Rádio Nacional FM 40 anos: Democratização da cultura passa pela democratização da comunicação

A Rádio Nacional FM recebeu homenagem em sessão solene realizada na Câmara Legislativa do Distrito Federal nesta segunda-feira, dia 15, pelos 40 anos de programação voltada à cultura e por abrir espaço para os novos artistas locais. A atividade reuniu parlamentares, diretores da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e da própria rádio, artistas e ouvintes. Os espaços de fala no evento reforçaram o conceito de que não é possível conceber uma democratização da cultura sem haver uma democratização da comunicação.

A sessão foi presidida pelo deputado distrital Chico Vigilante, que defendeu a existência de um sistema público de comunicação que contribua com o “fortalecimento cultural”. “Alguns lugares no Brasil só têm acesso ainda ao rádio como meio de informação e formação. É importante o sistema público seja fortalecido e, assim, contribua também com a regionalização da produção”, afirmou ele.

O parlamentar também criticou os meios de comunicação privados que fazem campanha para a extinção da EBC, usando o argumento de que o valor investido na empresa é alto e sem retorno. “O investimento público feito na EBC não é nada perto do dinheiro público que é repassado para os grandes meios. Essa tentativa de diminuir a importância da empresa é uma forma de tentar inibir a democratização da comunicação e da cultura”, afirmou Chico Vigilante.

Já a jornalista e produtora cultural Jaqueline Dias lembrou o espaço oferecido pela rádio aos artistas brasilienses. “Ela se posicionou como uma alternativa de programação cultural de qualidade na cidade. Não só com difusora, mas também como protetora das nossas memórias culturais”, frisou.

Por sua vez, a cantora e compositora Ana Reis relembrou sua história pessoal com a rádio, destacando que a mesma relação se repete com outros e outras artistas cuja primeira oportunidade de mostrar seu trabalho ocorreu em uma das iniciativas mantidas pela emissora, o “Projeto Brasília”. “Esse projeto valoriza principalmente artistas do DF. É muito bom ligar o rádio e ouvir o seu som e o de seus amigos tocando junto com o de músicos renomados, como Tom Jobim e Chico Buarque. É motivo de muito orgulho!”, disse ela, emocionada.

O maestro Ênio Antunes enfatizou que, nas duas Conferências Nacionais de Cultura já realizadas, a regionalização dos meios de comunicação e a instalação de um meio de comunicação público a exemplo da Rádio Nacional FM são imprescindíveis para a saúde política e cultural brasileira. “Hoje o jabá oferecido por produtoras a programas na comunicação privada distorce a cultura no país”, ponderou.

O presidente da EBC, Ricardo Melo, ressaltou a agilidade do rádio como uma característica especial do meio, a qual lhe faz ter afeto especial por ele. Melo destacou que a programação diferenciada oferecida pela Rádio Nacional FM impulsiona a regionalização. “Uma tristeza que tenho é ouvir programas musicais brasileiros nos quais a maioria dos candidatos cantam músicas estrangeiras, como se nós não tivéssemos o que mostrar ao mundo”, lamentou.

Melo ainda lembrou que os veículos de comunicação da EBC “correm um risco que nunca correram” desde a inauguração da Rádio Nacional AM em 1958, fato que marcou o início da empresa. “Estamos passando por um momento de asfixia financeira, apesar de termos R$ 2 bilhões embargados na Justiça. Temos cerca de R$ 700 milhões que não estão sendo liberados pelo governo federal”, apontou.

A Nacional foi a primeira emissora FM de Brasília, entrando no ar em 1976. A programação destaca a música popular brasileira (MPB), além de dar espaço à música instrumental, a novos talentos, aos artistas de Brasília e à informação. A rádio pode ser sintonizada em todo o Distrito Federal e entorno. O sinal daNacional FM também é disponibilizado via internet e satélite digital. Desde 2009, a emissora realiza um dos eventos mais importantes para promoção da cultura local, o Festival de Música da Rádio Nacional FM.

A EBC é a gestora de oito emissoras do sistema público de rádio, as quais têm como missão produzir, organizar e veicular programação radiofônica para públicos diversos, por meio de produção própria e independente, visando garantir o direito à comunicação e promover a cidadania e a diversidade.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Emissoras lançam nota a favor da comunicação pública

Representantes de emissoras públicas de todo país estiveram reunidos em Brasília/DF, nesta semana, para discutir sobre a importância da manutenção da rede pública de televisão e da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), além de pedir à direção da EBC uma maior abertura para o diálogo.

Segundo Tibico Brasil, presidente da TV Ceará, há uma grande preocupação com a quebra de conquistas obtidas desde 2010, quando foi criada a Rede Nacional de Comunicação Pública (RNPC). “Estamos passando por um momento de dificuldades na interlocução e vemos que há uma grande preocupação com adequação da grade de horário, mas sem que esse tema seja debatido com o conjunto que compõe a rede”, afirma Tibico. Ele reforça que a maior preocupação de uma rede pública seria a “democratização da cultura”, realizada por meio da descentralização da produção e não em função do retorno de audiência. “Isso deve ser a consequência e não o objetivo”, frisa.

Quando foi criada, a rede nacional era formada pela TV Brasil, por sete emissoras universitárias e por 15 emissoras públicas estaduais, alcançando pelo menos 700 emissoras entre afiliadas e retransmissoras. Com um alcance inicial de 1.716 municípios, a rede ultrapassa hoje 3 mil municípios.

Para Israel do Vale, presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC), a prioridade no momento é conseguir a liberação dos recursos da Contribuição para Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), que estão bloqueados desde 2009 porque empresas de telecomunicações contestam a contribuição judicialmente.

Outra questão destacada por Israel é a movimentação na grade de programação da TV Brasil sem consulta às emissoras públicas. “Essas mudanças não podem ser feitas de forma abrupta. Têm que ser dialogadas com a rede. Essa movimentação sem diálogo desestabiliza as emissoras públicas. Cada emissora tem sua peculiaridade, e isso deve ser analisado com um tempo maior para não gerar um problema em série”, aponta ele.

O presidente da ABEPEC lembra ainda o congelamento anunciado pela direção da EBC aos contratos firmados com as emissoras. “Vamos tratar esta questão como algo provisório e iremos trabalhar para que esteja prevista verba no orçamento de 2017. Iremos buscar com os governadores e parlamentares o apoio necessário para que o executivo regulamente o decreto”, enfatiza.

Devido ao momento atual de incertezas e cortes orçamentários na Empresa Brasil de Comunicação, a rede de emissoras púbicas de televisão manifestou sua preocupação com o futuro da EBC por meio de nota divulgada nesta sexta-feira, dia 12 de agosto, e reafirmou a importância do fortalecimento da comunicação pública.

Leia o conteúdo da nota na íntegra:

POR UMA COMUNICAÇÃO PÚBLICA FORTE,
COMPROMETIDA COM O CIDADÃO E A DEMOCRACIA

Reunidas em Brasília, as emissoras públicas estaduais de TV que compõem a Rede Nacional de Comunicação Pública manifestam seu total apoio à continuidade da operação da TV Brasil, fundamental para o cumprimento do princípio de complementariedade de sistemas de televisão definido pela Constituição Federal. A ameaça de suspensão das atividades da TV Brasil é gravíssima. Configuraria um duro ataque à liberdade de imprensa e de expressão e uma violação a um dos direitos humanos fundamentais reconhecidos pelas Nações Unidas.

A Empresa Brasil de Comunicação (EBC), nave-mãe da TV Brasil, da TV Brasil Internacional, da NBR, de oito emissoras de rádio e uma agência de notícias, foi inaugurada em 2007 com a missão de avançar na concretização dos artigos da Constituição relativos à comunicação – que seguem sem regulamentação na sua quase totalidade, 28 anos depois de promulgada a Carta Magna.

A hipótese de descontinuidade da TV Brasil prejudicaria diretamente toda estrutura de comunicação pública no país, na medida em que boa parte da programação das emissoras regionais provém dela. Na prática, a rede pública de televisão é o único meio de circulação de informação gratuita qualificada sobre fatos ocorridos para além do eixo Rio-São Paulo, onde se concentram as grandes redes de TV comerciais. É por meio da rede pública, a partir da TV Brasil, que a sociedade brasileira enxerga melhor a diversidade de temas, personagens, realidades e culturas regionais – o que demarca com clareza os diferentes papéis da TV pública e da TV comercial.

Da mesma forma, é importante acentuar a distinção entre uma TV pública como a TV Brasil e um canal estatal – caso da NBR, responsável pela comunicação governamental do Poder Executivo Federal. Essenciais para a defesa de uma democracia saudável, TV Brasil e NBR precisam demarcar com cada vez mais clareza seus diferentes papéis, que serão melhor cumpridos quanto maior for a separação de estruturas, equipes e conteúdos.

A lei que cria a TV Brasil oferece também um importante mecanismo de fomento à radiodifusão pública, por meio da única fonte de financiamento existente para o setor. A Contribuição para o Fomento à Radiodifusão Pública precisa ser regulamentada urgentemente, para que se possa escoar os R$ 2,7 bilhões, arrecadados desde 2009, entre as TVs e as rádios do campo público.

As emissoras abaixo assinadas reafirmam, portanto, a importância da preservação do caráter público da TV Brasil e do fortalecimento da Rede Nacional de Comunicação Pública, essenciais para a garantia dos direitos à informação, à comunicação e à liberdade de expressão. O que se constitui como instrumento indispensável para a afirmação de uma comunicação voltada aos interesses do cidadão, e que contribua para a consolidação da jovem democracia brasileira.

TV Aldeia (Acre)
TV Antares (Piauí)
TV Aperipê (Sergipe)
TV Ceará
TV Cultura do Amazonas
TV Pernambuco
TV UFB (Paraíba)
TV UFSC (Santa Catarina)
TV UFG (Goiás)
TV Universitária do Recife
TV Universitária (Rio Grande do Norte)
TVE Alagoas
TVE Bahia
TVE Tocantins
TVT (São Paulo)
Rede Minas

Especialistas defendem fortalecimento e autonomia da EBC

O papel da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) na comunicação pública do país foi tema de debate nesta segunda-feira, dia 8 de agosto, em seminário realizado pelo Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional. O evento contou com a participação de especialistas e também de integrantes do Conselho Curador da EBC.

O seminário “Missão da EBC na Comunicação Pública” pretendeu servir de facilitador do diálogo entre sociedade civil organizada, entidades em defesa da democratização da comunicação, funcionários da EBC e parlamentares, visando demonstrar a importância da manutenção da Empresa Brasil de Comunicação para o fortalecimento da democracia brasileira.

A vice-presidente do Conselho Curador da EBC, Evelin Maciel, lembrou o histórico da empresa, implementada pela Lei nº 11.652/2008 na perspectiva de regulamentar e estabelecer o sistema público de comunicação no Brasil, como previsto na Constituição Federal. Isso é importante porque garante o direito à comunicação por meio da complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação.

Evelin destacou a diversidade construída pela programação plural mantida pela emissora. “Uma das maiores conquistas da EBC é conseguir mostrar um Brasil que tem tão pouco espaço na grande mídia. A programação é planejada para pensar e representar a diversidade do nosso país”, frisou. Ela ressaltou a necessidade de autonomia financeira para garantir a autonomia editorial. “A Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública não está sendo liberada para a empresa. O dinheiro que já soma aproximadamente R$ 2 bilhões está sendo depositado judicialmente pelas empresas de telecomunicações, que contestam a contribuição”. A contribuição foi criada em 2008 e determina que 75% do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel) seja destinado à EBC. Porém, está bloqueada desde 2009 devido a uma ação impetrada na Justiça pelas empresas de telefonia.

Para a representante dos empregados no Conselho Curador, Akemi Nitahara, a EBC tem uma grande missão: contribuir para a construção da cidadania e para o fortalecimento de pautas de interesse público. “A sociedade não enxerga a comunicação como direito humano, e é essa concepção que temos que fazer refletir na sociedade”.

Nitahara também reforçou a necessidade de maior autonomia para a empresa e lembrou que entre os princípios da EBC estão a finalidade educativa e o incentivo à produção regional e independente. “A autonomia é o que mais desejamos para a EBC, para que possa servir aos interesses da sociedade. É preciso repensar esse modelo no qual a maioria do nosso Conselho de Administração é formado por membros do governo”, apontou. Ela ainda ressaltou a importância do mandato do presidente da empresa não coincidir com o do presidente da República, e destacou a necessidade de maior participação da sociedade e dos funcionários nas decisões da empresa.

Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), igualmente salientou a importância do fortalecimento das empresas públicas para a democracia no Brasil. “Temos o dever de seguir e regulamentar a comunicação pública, que compreende um segmento muito maior que as empresas públicas [inclui as rádios comunitárias, por exemplo]. A EBC tem um papel fundamental nesse setor.”

Bucci explanou sobre a experiência das emissoras públicas nos Estados Unidos e na Europa, onde não se organizam a partir do Estado. “Devemos lembrar que a EBC é uma empresa pública e não permitir que ela se transforme em uma empresa governamental. Nos países que costumamos usar como referência de democracia, as emissoras públicas de comunicação não sofrem interferência do Estado. São um modelo independente.”

O professor também argumentou sobre a importância de que os governos assegurem a diversidade e a cultura não só a partir de um modelo de mercado. “Certas expressões da cultura só existem até hoje por contarem com o apoio governamental. Por isso, as democracias criaram um balanço entre emissoras públicas e comerciais em vários países no mundo: para garantir essas expressões. A EBC ainda não é a solução, mas é uma trilha para a solução e devemos segui-la”. Ele ainda levantou algumas questões que precisam ser revistas para a efetiva independência da empresa: a mudança no quadro do Conselho Administrativo, que hoje possui em sua maioria pessoas do governo, e a vinculação à Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o que também limita a atuação da empresa. “Defender o sistema público é defender a Constituição e isso só pode ser feito no esboço da regulamentação da comunicação”, disse.

Durante o debate, Renata Mielli, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), afirmou que não há democracia sem comunicação democrática. Ela fez críticas ao modelo da empresa, mas defendeu a instituição por sua contribuição no caminho por uma comunicação democrática e cidadã. “Existem erros na concepção da comunicação pública. O Brasil não tem experiência de comunicação pública. Estamos construindo tudo do zero”, declarou. Ela também lembrou uma matéria publicada pela Folha de São Paulo em 2009 intitulada “Tela Fria”, que defendia o fechamento da EBC. “Os argumentos mudaram, mas os interesses continuam os mesmos”, afirmou.

O professor do Departamento de Comunicação Social na Universidade Federal de Pernambuco, José Mário Austregésilo, alegou que a existência da EBC é imprescindível para a sobrevivência das emissoras públicas de todo país. “A manutenção e o fortalecimento da EBC são essenciais para as emissoras públicas. Sua extinção nos deixaria sem uma cabeça de rede e sem o compartilhamento de conteúdo.”

Jonas Valente, coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas, frisou que a Constituição é clara no que se trata da complementaridade dos sistemas de comunicação comercial, estatal e público. “Discutir o fim da EBC é desprezar a Constituição”, reforçou.

O presidente da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado, senador Lasier Martins, foi convidado para o debate, mas não compareceu alegando agenda inadiável no Rio Grande do Sul. Vale lembrar que Lasier foi funcionário da RBS, filiada da Rede Globo naquele estado, e um dos maiores monopólios de comunicação no Brasil.

A reunião encaminhou como proposta aprovada a publicação de um resumo da reunião desta segunda-feira, que servirá de subsidio para futuros debates. O Conselho de Comunicação Social também referendou documento em que afirma que a defesa da comunicação pública e da EBC é uma de suas prioridades.

Conjuntura

O papel da empresa tornou-se foco de debates desde a posse do presidente interino, Michel Temer, que chegou a exonerar o jornalista Ricardo Melo do cargo de diretor-presidente e nomeou Laerte Rimoli no lugar. No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu a continuação, em caráter liminar, da gestão de Ricardo Melo, empossado dias antes do afastamento temporário de Dilma Rousseff da Presidência, em maio. O governo interino alegava direcionamento na cobertura jornalística e demitiu profissionais, comentaristas e âncoras da empresa considerados “pró-Dilma”.

Nessa disputa política pela direção da empresa, houve ameaças de extinção da EBC por medida provisória ou pelo menos da TV Brasil e do Conselho Curador. Nos bastidores, o que vem sendo comentado é a intenção do governo interino de transformar a EBC em mera divulgadora do conteúdo institucional do Poder Executivo. O que compromete o caráter público da EBC.

Os painelistas da reunião se manifestaram contrários à extinção da empresa pública por ela cumprir um preceito constitucional – o de complementaridade dos sistemas de comunicação – e por ser responsável por uma programação plural que representa a diversidade cultural e social existente no Brasil. Os painelistas cobraram, porém, o aprimoramento da empresa e que possíveis mudanças sejam feitas após amplo debate, “e não de maneira impositiva, por medida provisória”.

Conheça a EBC

A EBC é uma empresa pública criada em 2007 para fortalecer o sistema público de comunicação. É gestora da TV Brasil, Agência Brasil, Radioagência Nacional, das rádios Nacional AM do Rio, Nacional AM e FM de Brasília, Nacional OC da Amazônia e Nacional AM e FM do Alto Solimões, bem como as rádios AM e FM MEC do Rio de Janeiro. É também responsável pela Voz do Brasil e pelo canal de TV NBr, que veicula os atos do governo federal.

A empresa divulga conteúdos jornalísticos, educativos, culturais, esportivos e de entretenimento, tendo como objetivo expressar a diversidade e pluralidade brasileira. A sua estrutura prevista inclui: Assembleia Geral; órgãos da administração, que são o Conselho de Administração e a Diretoria Executiva; e órgãos de fiscalização, que são o Conselho Curador e o Conselho Fiscal, mais Auditoria Interna.

Raio X da ilegalidade: políticos donos da mídia no Brasil

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Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emissoras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da democracia brasileira e do conservadorismo político.

Texto: Iara Moura | Colaboraram: Mônica Mourão, Raquel Dantas e Yuri Leonardo

Segundo informações do Sistema de Acompanhamento de Controle Societário – Siacco, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), 32 deputados e oito senadores são proprietários, sócios ou associados de canais de rádio e TV. Têm, assim, espaço privilegiado de disputa pelo voto antes mesmo do período de campanha determinado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os 40 parlamentares são alvo de uma ação no Supremo Tribunal Federal que questiona a constitucionalidade da participação de políticos titulares de mandato eletivo como sócios de empresas de radiodifusão e pede medida liminar para evitar a ocorrência de novos casos.

Na mira da justiça

Buscando combater a concentração de emissoras nas mãos de políticos, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) com o apoio do Intervozes protocolou, em dezembro de 2015, uma Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 379) no Supremo Tribunal Federal (STF).

Em novembro do mesmo ano, uma articulação de entidades da sociedade civil e institutos de pesquisa entregou ao MPF representação denunciando os políticos que foram em seguida listados na ADPF. A representação traz nomes famosos como o do senador Fernando Collor e dos deputados Sarney Filho (PV-MA), Elcione Barbalho (PMDB-PA) – ex-mulher de Jader Barbalho, Rodrigo de Castro (PSDB-MG) e Rubens Bueno (PPS-PR) – líder do partido na Câmara. O próprio MPF de São Paulo já havia protocolado poucos dias antes ação contra veículos de radiodifusão ligados aos deputados paulistas Antônio Bulhões (PRB), Beto Mansur (PRB) e Baleia Rossi (PMDB).

Para o procurador geral da República Rodrigo Janot, a posse de canais de rádio e TV por políticos fere a liberdade de expressão e o princípio de isonomia, segundo o qual os candidatos e partidos devem ter igualdade de chances na corrida eleitoral. Ao emitir parecer favorável à ADPF 379, em agosto último, Janot argumentou que “a dinâmica social produz normalmente desigualdades – há, de fato, aqueles com maior poder econômico ou que detêm, na órbita privada ou na pública, função, cargo ou emprego que lhes confere maior poder de influência no processo eleitoral e político”. Porém, de acordo com ele, “não deve o próprio Estado criar ou fomentar tais desigualdades, ao favorecer determinados partidos ou políticos por meio da outorga de concessões, permissões e autorizações de serviço público, em especial de um relevante como a radiodifusão”. Segundo defendem alguns órgãos do Judiciário, pesquisadores e entidades do campo do direito à comunicação, a prática contraria o disposto no artigo 54 da Constituição Federal, segundo o qual deputados e senadores, a partir do momento em que são diplomados, não podem “firmar ou manter contrato” ou “aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado” em empresa concessionária de serviço público. A primeira linha do artigo seguinte da Constituição, de número 55, diz: “Perderá o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior”.

O próprio STF, no julgamento da Ação Penal 530, confirmou que os artigos 54, I, “a” e 54, II, “a” da Constituição contêm uma proibição clara que impede deputados e senadores de serem sócios de pessoas jurídicas titulares de concessão, permissão ou autorização de radiodifusão. Para o Ministro Luís Roberto Barroso, o objetivo desta proibição foi prevenir a reunião entre “poder político e controle sobre veículos de comunicação de massa, com os riscos decorrentes do abuso”. Segundo a Ministra Rosa Weber, “a proibição específica de que parlamentares detenham o controle sobre empresas de radiodifusão” visou evitar o “risco de que o veículo de comunicação, ao invés de servir para o livre debate e informação, fosse utilizado apenas em benefício do parlamentar, deturpando a esfera do discurso público”. A mesma ministra rejeitou, em novembro último, o pedido de liminar impetrado por Michel Temer por meio da Advocacia Geral da União, que pedia a suspensão de processos que contestam as concessões de rádios e TVs em nome de deputados e senadores.

Uma prática antiga

Segundo a pesquisadora e professora da UFRJ Suzy dos Santos, o fenômeno de políticos radiodifusores, chamado de “coronelismo eletrônico”, é antigo. Desde o processo de redemocratização, os governos eleitos mostraram-se não apenas tolerantes, mas protagonistas da prática de distribuição de canais de rádio e TV entre aliados políticos. “Demonstramos através de documentos históricos, correspondências, eportagens, a instrumentalização das concessões de rádio e televisão desde o período Vargas até os dias atuais. Você verifica claramente que desde os tempos do PSD, os partidos governistas sempre se mantiveram como os partidos dos políticos donos de radiodifusão”, explica.

No período de 1985-1988, foi ampla a distribuição de outorgas de radiodifusão a parlamentares constituintes. Segundo o pesquisador César Bolaño, “durante o governo do presidente José Sarney, as concessões foram ostensivamente usadas como moeda política, dando origem a um dos processos mais antidemocráticos do processo constituinte. Em troca de votos favoráveis ao mandato de cinco anos para presidente, foram negociadas 418 novas concessões de rádio e televisão. Com isso, cerca de 40% de todas as concessões feitas até o final de 1993 estavam nas mãos de prefeitos, overnadores e ex-parlamentares ou seus parentes e sócios”.

Ao longo dos anos, a prática ficou mais sutil, mas não foi abandonada. O governo de Fernando Henrique Cardoso distribuiu pelo menos 23 outorgas para políticos, enquanto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva concedeu, até agosto de 2006, pelo menos sete canais de TV e 27 outorgas de rádio a fundações ligadas a políticos. Entre os anos de 2007 a 2010, 68 congressistas eram ligados a pessoas jurídicas concessionárias de radiodifusão, enquanto no período de 2011 a 2014, 52 deputados federais e 18 senadores eram sócios ou associados de concessionária.

Em relação à legislatura atual (2015-2019), o projeto “Excelências”, vinculado a Transparência Brasil, revela que 43 deputados são concessionários de serviços de rádio ou TV, totalizando 8,4% dos membros da Câmara dos Deputados. Por sua vez, o Senado Federal é proporcionalmente ainda mais marcado por este fenômeno, já que 19 senadores são concessionários, atingindo a marca de 23,5% dos membros da casa. Ou seja, de 594 parlamentares eleitos, 63 são outorgados de meios de comunicação, atingindo a marca de mais de 10% do Congresso Nacional. “No caso de alguns estados como o Rio Grande do Norte, Roraima ou Santa Catarina, a propriedade de canais de rádio e TV por políticos ultrapassa 50% do total”, denuncia Suzy.

Os números apresentados pelo projeto “Excelências” revelam que, para além da vinculação juridicamente registrada de políticos com os serviços de radiodifusão, existem ainda os casos em que os parlamentares mantêm influência a partir de “laranjas” ou parentes no quadro societário dos veículos. É o caso do senador Eunício de Oliveira (PMDB-CE), que tem sua esposa Mônica Paes de Andrade Lopes de Oliveira, o irmão Edilson Lopes de Oliveira e o seu correligionário Gaudêncio Lucena como sócios proprietários da Rádio Tempo FM, em Juazeiro do Norte.

A situação de domínio político sobre os meios de comunicação expõe um grave conflito de interesses, uma vez que o próprio Congresso Nacional é responsável pela apreciação dos atos de outorga e renovação de concessões e permissões de radiodifusão. Segundo explica Camila Marques, advogada da Artigo 19, “a posse dos meios de radiodifusão por políticos afeta a isonomia, o pluralismo e o interesse público porque o sistema brasileiro de regulação de radiodifusão não prevê um regulador independente para deliberar sobre a distribuição do espectro eletromagnético e, por isso, essa deliberação é realizada por um procedimento licitatório em que os parlamentares do Congresso Nacional ocupam um papel central na análise das outorgas realizadas pelo poder executivo”, analisa.

Um dos episódios emblemáticos desta situação foi a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados de 38 concessões de radiodifusão e a renovação de outras 65 em apenas três minutos e com apenas um deputado presente no plenário, em 2011. Além disso, há ocasiões em que os parlamentares votam na aprovação das próprias outorgas ou renovações.

Segundo apuração da Folha de S. Paulo, dos 40 congressistas que constam como sócios de rádios ou TVs, sete creem que a legislação permite esse tipo de participação, desde que eles não exerçam funções administrativas nas emissoras. Essa opinião foi manifestada por Baleia Rossi (PMDB-SP), Fernando Collor (PTB-AL), Gonzaga Patriota (PSB-PE), João Henrique Caldas (SD-AL), João Rodrigues (PSD-SC), Ricardo Barros (PR-PR) e Victor Mendes (PV-MA).

Em manifestação encaminhada em maio de 2015 ao Supremo Tribunal Federal, a Advocacia Geral da União (AGU) endossa a tese de que a situação não infringe o disposto na Constituição. O órgão pronunciou-se pela rejeição da ADPF 379, argumentando que “não se pode aferir diretamente desse fato a manipulação da opinião pública, conforme pretende fazer crer o autor”, pois “os preceitos constitucionais invocados estão plenamente assegurados pelo próprio ordenamento jurídico, especificamente pelo Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65), que regula a propaganda eleitoral e impede a manipulação de informações e o controle da opinião pública por meio de empresas de radiodifusão”.

Casos de família

Alô, pai / Meu filho, esse negócio que eu li hoje do filho do Aderson Lago, esse sujeito foi muito cruel com a gente, com todos nós, com Roseana (Sarney), comigo. Escreveu aquele artigo outro dia me insultando de uma maneira brutal, vamos botar isso na televisão / (…) O cara já está aqui, da Globo, desde segunda-feira e estamos trabalhando

nisso, tá? / Falou com ele isso? / Falei, falei com ele. Falei com ele, mostrei tudo. Vai dar, vai dar certo (…) / Esse foi um assunto que eu peguei desde o começo, consegui, passei pro Sérgio, tô passando pro jornal pouco a pouco (…).

O diálogo transcrito acima [ouça aqui] ocorreu em 2009 entre o senador José Sarney e seu filho, Fernando Sarney, deputado federal, proprietário do Sistema Mirante (formado pela Rádio Litoral Maranhense, Rádio Mirante e pela TV Mirante). A escuta feita pela Polícia Federal foi amplamente divulgada pela imprensa e demonstra a interferência de interesses políticos na linha editorial dos canais de rádio e TV. Na ocasião, o senador José Sarney solicitou a seu filho a utilização da emissora de radiodifusão que possui em São Luís do Maranhão, a TV Mirante, afiliada da Rede Globo, para a veiculação de denúncias contra seus rivais do grupo do ex-governador Jackson Lago.

São muitos os causos do clã dos Sarney quanto à utilização das redes de rádio e TV para beneficiar os negócios da família. Na eleição de 1994 para eleger o governador do Maranhão, o candidato Cafeteira era o principal adversário de Roseana Sarney. Roseana liderava por apenas 1% de diferença nas intenções de voto quando, no início do segundo turno, os jornais e a TV da família começaram a divulgar que Cafeteira havia mandado matar o adversário José Raimundo dos Reis Pacheco. Faltando dois dias para o encerramento da campanha, a equipe de Cafeteira localizou José Raimundo e gravou entrevista com ele para exibir no último programa eleitoral gratuito. Naquela noite, a imagem da tevê desapareceu misteriosamente em todo o interior maranhense. Só a capital são Luís, onde vivia 1/3 do eleitorado testemunhou a imagem do homem dado como morto, atestando, ele mesmo, que o boato de assassinato era falso. O caso foi contado pelo jornalista Palmério Dória no livro “Honoráveis bandidos”, lançado em 2009.

Episódios parecidos se multiplicam Brasil afora. O ex-senador, governador da Bahia por três mandatos (dois dos quais como governador biônico indicado pelo governo militar) e ministro das comunicações do governo de José Sarney, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) é alvo de uma longa lista de reclamações contra a utilização política do seu grupo de comunicação. Além da Construtora OAS, comandada pelo seu genro Cesar Mata Pires, seu filho, Antônio Carlos Magalhães Júnior, é presidente da Rede Bahia, que engloba diversas empresas do estado, principalmente de comunicação. São elas: 88.7 Bahia FM,102,1 FM Sul (rádio FM em Itabuna), Correio da Bahia (jornal impresso) teve o nome reformulado para “Correio”, Globo FM (Rádio FM em Salvador), TV Bahia (afiliada da Rede Globo em Salvador e região), TV São Francisco (afiliada da Rede Globo em Juazeiro e região), TV Oeste (afiliada da Rede Globo em Barreiras e região), TV Santa Cruz (afiliada da Rede Globo em Itabuna e região), TV Subaé (afiliada da Rede Globo em Feira de Santana e região), TV Sudoeste (afiliada da Rede Globo em Vitória da Conquista e região), TV Salvador (canal fechado, transmitido em UHF ou por assinatura). Somente no ano de 1993, seu primeiro ano de mandato, a assessoria de comunicação da ex-prefeita de Salvador Lídice da Mata (PSDB) contabilizou a veiculação de 600 matérias contra a sua administração pela TV Bahia, repetidora da Globo, de propriedade da família Magalhães.

No ar, bancada BBB: boi, bala e bíblia

Suzy dos Santos, professora da UFRJ e coordenadora do projeto “Coronelismo eletrônico: as concessões na história política nacional”, explica que a posse direta ou indireta de canais de rádio e TV por políticos produz uma enorme deformidade no regime democrático e guarda semelhanças com formas de poder plutocrático característico da República Velha ou Primeira República (1889-1930), quando o capital político centrava-se em figuras autoritárias que mantinham com seu eleitorado uma relação dúbia de troca de favores, exploração e repressão. No Brasil rural, o poder político está ligado à posse de terras e à exploração da mão de obra campesina em grandes latifúndios. A palavra “coronel” refere-se à patente militar não apenas porque alguns destes políticos a detinha, mas porque, fardados ou não, faziam uso da violência para manter o controle político e perseguir não-aliados. Passados quase 90 anos, o cenário, hoje em dia, não é muito diferente.

Entre os 32 deputados concessionários de rádio e TV listados na ADPF 379, 18 são grandes proprietários de terra ou pecuaristas, compondo a chamada bancada ruralista, que defende no Congresso os interesses do agronegócio; nove são ligados à bancada evangélica; três estão nas duas bancadas. Além disso, dois deputados do conjunto integram também a chamada bancada da bala. No caso dos senadores, figuram na ação os nomes de Aécio Neves (PSDB-MG), Edison Lobão (PMDB-MA), Fernando Collor de Mello (PTB-AL), Agripino Maia (DEM-RN), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Jader Barbalho (PMDB-PA), Acir Gurcacz (PDT-RO) e Roberto Coelho Rocha (PSDB-MA), cujo filho é atualmente candidato à vice prefeitura de São Luís. Este último também compõe a bancada ruralista. Os sete demais são alvo de alguma investigação, segundo levantamento da Agência Pública.

Os nomes de destaque na política nacional, entre eles o de Aécio Neves, candidato à presidência derrotado no último pleito, demonstram que o coronelismo eletrônico, diferente do que se possa pensar, não é um fenômeno restrito à zona rural ou às regiões mais pobres do País, mas é generalizado e atinge também os grandes centros urbanos.

Na grande São Paulo, após ações civis públicas movidas pelo MPF e pelo Intervozes, em iniciativa oriunda do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (Findac), o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) determinou, em abril deste ano, o cancelamento das concessões de cinco emissoras de rádio que têm como sócios proprietários os deputados federais Baleia Rossi (PMDB-SP) e Beto Mansur (PRB). A medida atende ao pedido do Ministério Público Federal que, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), em São Paulo, ajuizou ações civis públicas contra os parlamentares em novembro de 2015. Alguns meses depois, porém, a liminar que determinava a retirada do ar da Rádio Cultura FM, e Rádio Cultura São Vicente, de propriedade de Beto Mansur, foi suspensa.

Mais recentemente, em agosto deste ano, também por meio de liminar, foi determinada a interrupção das transmissões da Rádio Metropolitana Santista Ltda (1.240MHz) de propriedade de Antônio Carlos Bulhões (PRB-SP).

Com as decisões, está suspensa a execução dos serviços de radiodifusão da Rádio Show de Igarapava LTDA, Rádio Metropolitana Santista e da Rádio AM Show LTDA, que contam com a participação de Baleia Rossi e Antônio Carlos Bulhões em seus quadros societários. O caso da Rádio Cultura FM em Santos é emblemático, uma vez que além da questão da posse por parlamentar, a emissora havia anunciado a mudança total da programação, arrendada para a Igreja Universal do Reino de Deus em setembro de 2015. A legislação de radiodifusão estabelece que a quantidade máxima de programação que pode ser comercializada pelo controlador da outorga é 25% do tempo total.

“O arrendamento de emissoras de radiodifusão caracteriza comercialização ilícita de outorgas públicas”, explica Bráulio Araújo, advogado, integrante do Coletivo Intervozes e um dos autores das ações contra os parlamentares radiodifusores. As Redes TV, 21 e CNT são as campeãs em arrendamento no país, segundo levantamento feito em 2014, comercializando respectivamente 49% e 91% de seus tempos de programação. Em junho deste ano, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei (PL) 2088/15, que permite a transferência de 50% das cotas ou ações representativas do capital de radiodifusão já no primeiro ano de vigência da outorga, e a transferência integral das cotas ou ações apos esse período, alterando a regra atual do Decreto 52.795/1963, que só permite a transferência de outorgas cinco anos após a expedição do certificado de licença para funcionamento (art. 90).

De acordo com a proposta da deputada Renata Abreu (PTN-SP), caso o poder executivo não se manifeste no prazo de 90 dias, a emissora estará tacitamente autorizada a proceder à transferência requerida. O projeto é muito permissivo por reduzir o prazo necessário para a efetivação das transferências e por prever de anuência tácita, caso o Poder Executivo não se manifeste em 90 dias. Segundo Bráulio Araújo, a transferência direta e indireta de outorgas de radiodifusão é inconstitucional pois descumpre a exigência constitucional de prévia licitação, ensejando a negociação de outorgas públicas por particulares e o controle de concessões por terceiros que não participaram do processo de licitação.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2946, a Procuradoria Geral da República questiona um dispositivo análogo da lei de concessões de serviços públicos (lei 8.987/1995), que autoriza a transferência de outorgas. Na ação, a PGR afirma que a autorização legal à transferência direta e indireta de concessões faz com que “a fraude ao sistema da licitação pública atinja raias de literal imoralidade”, vez que permite “a uma determinada empresa especializar-se em ‘vencer concorrências públicas’, repassando- as, em seguida, para empresas realmente interessadas no serviço”.

De pai para filho, de amigo para amigo

A Rádio Cultura AM foi inaugurada inicialmente em São Vicente, em 17 de outubro de 1946 e depois transferida para Santos. A emissora foi fundada por Paulo Salim e Jorge Mansur. Em 1958, o então diretor, Paulo Jorge Mansur, desdobrou a emissora em duas rádios – Rádio Cultura S. Vicente AM e Rádio Cultura de Santos FM –, ambas pertencentes à Sociedade Rádio Cultura São Vicente LTDA.

A rádio foi a segunda emissora do Brasil a entrar no ar e, desde então, cumpre papel político central nas disputas locais. O fundador da rádio, Jorge Mansur, acumulou popularidade ao apresentar o programa “A voz do povo” e foi eleito deputado por três mandatos. A partir de 1964, a Sociedade Cultura de São Vicente LTDA passou a ser constituída por Paulo Roberto Mansur, Gilberto Mansur e Maria Gomes Mansur, filhos de Paulo Jorge Mansur, que se desligou juridicamente, por motivos políticos. Seu filho Paulo Roberto Mansur (Beto Mansur), foi eleito – primeiramente vereador (1989), depois deputado federal (1991), prefeito (1996) e reeleito em 2000 – através da utilização do veículo rádio. A família ampliou seus negócios também para a televisão. Em 2001, os Mansur venceram a concorrência pública do canal 46 de Santos.

O poderio da família Mansur não se esgota nos negócios de mídia. Beto Mansur é empresário e latifundiário. No caso do deputado, a versão moderna do coronel tem raízes arcaicas com a exploração monocultora, a utilização de mão-de-obra análoga ao trabalho escravo e ainda a exploração do trabalho infantil. Em 2014, o deputado foi condenado pelo Tribunal Superior do Trabalho. Em nota publicada à época, Mansur negou as acusações e argumentou que a legislação brasileira é vaga na determinação do que é ou não trabalho escravo, o que acaba “prejudicando enormemente os produtores rurais”. Para livrar-se do questionamento do MPF sobre a posse das rádios, Mansur doou sua participação indireta nas empresas de radiodifusão para seus filhos e esposa.

Baleia Rossi vendeu a sua participação em uma das rádios para um de seus irmãos. A outra rádio, ele alega que foi vendida há alguns anos. Essas medidas estão sendo questionadas pelo MPF no âmbito das ações civis públicas.

O também deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) utilizou-se de expediente parecido para se defender ao ser investigado pelo MPF por não declarar à Justiça Eleitoral, nas últimas três eleições, ser sócio da rádio Satélite, em Pernambuco. Cunha comprou a rádio em 2005 e segundo afirmou em defesa, vendeu a emissora em 2007. O problema é que o Ministério das Comunicações, onde os registros das rádios são feitos, não homologou a transferência. Cunha afirma que as transações de compra e venda foram declaradas em seu imposto de renda. Atualmente a rádio é explorada pelo pastor R.R. Soares. A representação contra Eduardo Cunha segue em averiguação pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro.

Na sintonia do golpe

Os políticos na mira do MPF tiveram participação ativa no processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef. Dos oito senadores radiodifusores, sete votaram a favor do impeachment e um se ausentou da votação. Dos 32 deputados federais, 23 foram a favor, oito contra e um faltou à sessão. O deputado federal Beto Mansur foi um dos principais articuladores do impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados. Papel também crucial teve o senador Aécio Neves. Os golpistas estão muito ligados ao poder midiático. Para se ter uma ideia, no quadro atual do governo Temer, do total de 24 ministros, quatro são radiodifusores. Mendonça Filho, ex-deputado e ex-governador de Pernambuco, ministro da Educação, já esteve entre os acionistas da TV Jornal do Commercio, além da Rádio Difusora de Caruaru, Rádio Difusora de Garanhuns, Rádio Difusora de Limoeiro e Rádio Difusora de Pesqueira. Todas do mesmo grupo do empresário João Carlos Paes Mendonça.

Ricardo Barros, ex-deputado federal e ex-prefeito de Maringá (PR), atual ministro da Saúde, declarou possuir 99% das cotas da Rádio Jornal de Maringá (PR), no valor de R$ 488 mil, o que corresponde a cerca de 30% de seu patrimônio de R$ 1,8 milhão. Hélder Barbalho, ex-prefeito de Ananindeua (PA), ministro da Integração Nacional do governo Temer, também declarou ser dono de TVs no Pará, retransmissoras da Band. Ser ministro e radiodifusor não constitui uma ilegalidade em si. Mas além de misturar os poderes político e midiático de forma pouco saudável para a democracia, em geral os responsáveis pelos ministérios tenham exercido cargo eletivo quando já eram proprietários de meios de comunicação.

Andamento

A ADPF 379 encontra-se nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, relator da arguição. Além do parecer favorável da PGR, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e a Artigo 19 protocolaram amicus curiae (intervenção externa em processo através de opinião jurídica) endossando a ADPF. Na contramão, além da AGU, Senado, Câmara dos Deputados e Presidência da República protocolaram manifestações contrárias. A representação contra os políticos radiodifusores de todo o país segue tramitando junto às Procuradorias Regionais dos Direitos do Cidadão do MPF em cada um dos 18 estados de origem dos políticos listados.

As duas caras do Netflix

por Marco Konopacki*

O recente acordo para embarcar o Netflix nos setup boxes xfinity(X1)[1] da Comcast mostra que o original engajamento do Netflix na defesa da neutralidade de rede, demonstrado através de posts em seu blog corporativo[2], pode ser flexibilizado quando a empresa tem a oportunidade de ganhar uma grande vantagem na distribuição do seu serviço. Com essa postura, o Netflix está mostrando ter duas caras quando o assunto tratado é neutralidade da rede.

 

O Netflix se tornou referência numa árdua batalha pela garantia à neutralidade de rede nos Estados Unidos. Durante janeiro de 2013 e janeiro de 2014 o serviço de streaming de vídeos sob demanda teve sua velocidade de entrega gradualmente reduzida para usuários da Comcast, numa clara manipulação do tráfego de rede daquela operadora para prejudicar o Netflix (https://is.gd/W29qCC). Porém, no momento que o Netflix fez um acordo comercial com a operadora de telecom, os valores na velocidade de entrega subiram exponencialmente, demonstrando o poder que as operadoras tem para manipular o tráfego de rede e o quanto isso pode ser usado para fins comerciais na exploração de “novos negócios”.

 

O tema ganhou tanta notoriedade nos Estados Unidos que a FCC (Federal Communications Commission), a Anatel estadunidense, promoveu uma consulta pública para discutir a neutralidade de rede, a qual recebeu mais de 1 milhão de contribuições[3] em favor (com um empurrãozinho de John Oliver, é verdade). No Brasil, a neutralidade é um valor defendido e consolidado com o Marco Civil da Internet, reforçado pelo seu decreto de regulamentação que, no Art. 9, proíbe qualquer acordo que limite “o caráter amplo e irrestrito” da internet.

 

Recentemente, a Comcast passou a aplicar os famigerados limites de dados para banda larga. Muito diferente do que se queria fazer aqui pelo Brasil, com miseráveis 10Gb para planos pequenos, lá o limite médio está entre 700Gb e 1Tb. Ainda assim, com a demanda crescente por acesso a dados pesados, como o streaming de vídeos, talvez essa franquia em breve fique pequena, até para essa quantidade de dados. Por isso, algumas empresas de conteúdo estão fazendo acordo com as telcos para que seus serviços tenham bandeira livre para trafegar, sem descontar o valor da franquia contratada. Essa prática é conhecida como tarifação reversa ou, também, zero-rated services. Muitas pessoas vem defendendo que a prática de zero-rating fere a neutralidade da rede, pois cria guetos de acesso, o que vai de encontro ao espírito original da internet: a integração de redes para o compartilhamento amplo e irrestrito de conteúdos. As telcos se defendem com o argumento que isso faz parte da liberdade de modelo de negócio e que limitar essa prática feriria princípios básicos da livre iniciativa. No Brasil, a regulamentação do Marco Civil da internet vedou esse tipo de prática por ferir o caráter “universal e irrestrito da internet”.

 

Este ano a Comcast lançou o seu setup box X1, uma espécie de AppleTV ou Chromecast, em que ela disponibiliza alguns aplicativos de conteúdo que rodam usando a internet, seus e de parceiros. A Comcast anunciou que os aplicativos que usarem o seu X1 não terão os dados trafegados contados, ou seja, todo aplicativo no X1 será zero-rated e isso retomou a discussão se seria quebra de neutralidade ou não. Algumas pessoas defendem que o X1 é, na verdade, um serviço de IPTV, que usa a internet para um fim específico, numa rede específica, mas não é internet e, por isso, não feriria a neutralidade. No caso do Brasil, um serviço como esse seria vedado, uma vez que fere o inciso III do Art. 9, que limita a oferta de vantagem para aplicativos ofertados pela própria telco. Mas se fosse considerado um aparelho de IPTV, essa interpretação já mudaria, pois seria usado para um fim específico (televisão), ofertado a um grupo específico (Art. 2 inciso II alínea b) e, por isso, não feriria nenhuma regra. A verdade é que, com a convergência digital, a fronteira do que é entendido como internet ou não está cada vez mais turva. O que vem a ser a internet no momento em que praticamente tudo está conectado a internet de pessoas a objetos? Existe uma tendência a tudo convergir para internet, afinal esse foi o meio mais eficiente e barato pra transmitirmos todo tipo de conteúdo, desde um e-mail a um vídeo em 4K.

 

Zero-rating ferir ou não a neutralidade está ligado à capacidade de concentração do poder econômico na oferta de alguns serviços. Algumas empresas poderiam criar acordos capazes de formar bolhas de acesso, induzindo alguns usuários, em especial aqueles em fragilidade econômica, a acessarem serviços que lhes forem “mais vantajosos” e não de fato “o que se quer ou pode acessar”. Acabaria que a liberdade de acessar qualquer coisa na internet passaria a ser orientada por uma decisão econômica, induzida por acordo comerciais entre grandes operadores da rede. Isso é uma ameaça a ideia igualitária e distribuída com a qual a internet foi criada, criando ao contrário, “guetos internéticos” e determinando qual internet os pobres terão acesso e qualquer internet para os ricos. Os operadores de redes tem um poder desproporcional nesse jogo. Imagine um país com estradas por toda parte que permite o trânsito livre de pessoas para todo lado. Agora imagine a internet como sendo essa rede de estradas e que essas estradas são controladas por 4 ou 5 empresas. Agora imagine que essas empresas se organizam para determinar o preço dos pedágios das estradas e limitar quantos veículos podem trafegar nessas estradas. Pior, imagine que pessoas com muito dinheiro poderiam trafegar na pista do BRT e sem pagar pedágio. Isso com certeza geraria diferenças abissais com relação ao acesso aos recursos do mundo, e quem tem mais recursos já largaria quilômetros a frente.

 

Quando se fala que o Netflix está mostrando ter duas caras nesse jogo é porque a empresa que sofreu muito pelo controle de tráfego ao seu conteúdo agora está fechando um acordo para ser um dos aplicativos embarcados no X1 da Comcast. Parece que o Netflix vê a quebra da neutralidade no caso na manipulação da velocidade do tráfego, mas não vê problema em se beneficiar do tráfego não tarifado da Comcast. Mas imagine a concorrência desleal que isso representa para startups de conteúdo, com um modelo de negócio parecido com o do Netflix, que tentarem oferecer seu produto no mercado e que encontrarem uma série de barreiras comerciais porque estas empresas não tem dinheiro para oferecer seu serviço na modalidade zero-rated. Numa decisão puramente racional econômica, seria muito mais vantajoso qualquer consumidor optar por um produto que não aumenta minha conta de internet. O Netflix quer chutar a escada que o tornou num dos maiores serviços de streaming do mundo.

 

Mais uma vez, tentando contextualizar com a realidade brasileira, nós temos um sistema de radiodifusão mais concentrados do mundo. Apenas 7 famílias dominam toda a cadeia de conteúdo, desde a produção, passando pelo empacotamento até a distribuição. Além dessa concentração vertical, existe a concentração horizontal, em que os mesmos grupos econômicos dominam rádios e jornais. A internet surgiu como uma grande ferramenta para romper esse oligopólio, mas será que num cenário zero-rated isso seria assim? Imagine que a NET Serviços de Internet é parte do grupo econômico de uma dessas 7 famílias e imagine a imposição da limitação de franquia de dados para banda larga fixa se tornando realidade. Agora imagine que essa operadora comece a não tarifar quando você acessa conteúdos do grupo Globo de comunicação. Qual dos conteúdos vocês acham que terão mais chance de ser acessados? Bingo, a lógica oligopolista do conteúdo se reforça e pode ser que daqui alguns anos estejamos nos lamentando que a internet foi dominada por 7 famílias. Será a tragédia se repetindo, agora como farsa.

[1] http://www.techhive.com/article/3091722/streaming-services/netflix-will-land-on-comcasts-x1-platform-later-this-year.html

[2] http://www.huffingtonpost.com/2014/03/20/netflix-net-neutrality_n_5002935.html

[3] http://www.savetheinternet.com/press-release/105672/more-1-million-people-call-fcc-save-net-neutrality

*Pesquisador de internet e democracia. Mestre em Ciência Política UFPR. Doutorando em Ciência Política UFMG