Arquivo da categoria: Direito à Comunicação no Brasil 2016

A internet livre sob ameaça no Brasil

Uma série de iniciativas de empresas e dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pode mudar radicalmente a forma como os/as brasileiros/as usam a rede

Trabalhar, estudar, locomover-se, informar-se, comunicar- se. Os usos da internet em nosso cotidiano são tão diversos e tão essenciais que nos deixam a dúvida se seria possível hoje viver sem conexão. Mais além, especialistas há muito apontam a existência de dois universos onde convivemos concomitantemente: físico e virtual. Não, isso não é coisa da ficção inspirada na trama da trilogia Matrix ou da recente ‘série-febre’ Black Mirror. Mesmo quando estamos aparentemente desconectados, os rastros virtuais e nossos dados pessoais continuam com vida própria, em transações bancárias, perfis em redes sociais, cadastros em big datas (espécie de arquivo com grande capacidade de processamento de dados), entre outras ações que se dão concomitantemente na internet e fora dela. Parece óbvio defender a vida física e os direitos fundamentais que a garantem, mas e os da rede, quem cuida? E se uma não existe mais sem a outra? Em 2014, uma Resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) dispõe que os direitos humanos do mundo off-line também valem para o online.

No Brasil, a Lei 12.965 de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet (MCI), estabelece um conjunto de princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país, além de consagrá-la como um serviço essencial. Ao longo de 2016, infringindo os princípios do MCI, uma série de iniciativas de empresas privadas, do Judiciário e de parlamentares busca alterar a lógica de funcionamento da internet da maneira como se conhece atualmente. Segundo o relatório Freedom on the Net da organização Freedom House, divulgado em novembro de 2016, o status da internet no Brasil perdeu três pontos e passou de “livre” a “parcialmente livre”.

Os motivos para a queda foram os constantes bloqueios judiciais ao aplicativo WhatsApp, a decisão de operadoras de implantar franquias na banda larga fixa e o Projeto de Lei 215/2015, conhecido como “PL espião”, que estabelece medidas polêmicas como a quebra do anonimato de internautas. Em declaração recente, Maximiliano Martinhão, secretário de políticas de informática do Ministério de Ciência Tecnologia Inovações e Comunicações (MTIC), defendeu a flexibilização da legislação vigente tanto no que diz respeito a alguns pontos colocados no Marco Civil da Internet quando na proposta que tramita de revisão da Lei Geral de Telecomunicações (LGT). Questões como a neutralidade de rede, o manejo e a guarda de dados pessoais, a revisão de contratos de prestação de serviços de telefonia e internet, o bloqueio de aplicativos, entre outros temas, estão atualmente em pauta no congresso e no judiciário e podem alterar radicalmente a maneira como os/as brasileiros/as utilizam a internet no dia a dia. Analisamos a seguir algumas destas ameaças.

Acesso

No último dia 9 de novembro, o Projeto de Lei 3453/15, de autoria do deputado Daniel Vilela (PMDB-Go) foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) por 36 votos favoráveis e 11 contrários. A aprovação foi questionada por vários deputados que alertaram que o PL representa uma entrega de patrimônio público e reduz a capacidade de regulação do Estado em um setor conhecido por ser um dos piores prestadores de serviço do país. O projeto impacta também o acesso à internet fixa que, no caso brasileiro, compartilha a infraestrutura com a telefonia. Rafael Zanatta, pesquisador em telecomunicações do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), alerta que, se aprovado, o PL pode piorar a qualidade de serviços essenciais como telefonia e internet além de abrir caminhos para o aumento do preço. Isso porque o projeto pretende mudar o regime de prestação de serviço de telefonia de regime público, que se dá atualmente por meio de contratos de concessão, para regime privado, mais flexível. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações e Defesa do Consumidor (Sindec), de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro do mesmo ano, as empresas Claro/ Embratel/Net, OI Fixo/Celular e Vivo Telefônica/GVT aparecem respectivamente em primeiro, segundo e terceiro lugar entre as 50 que mais receberam queixas nos Procons no último ano.

Dados divulgados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em 2016 sobre os serviços de telefonia e internet mostram que o setor com a pior avaliação em relação à satisfação dos consumidores é o de banda larga fixa, que obteve nota 6,58 em nível nacional, em uma escala de zero a 10. “No regime privado, deixa de existir a modicidade tarifária, ou seja, o consumidor pode se deparar com preços ainda mais elevados, ainda mais num mercado extremamente oligopolizado como o nosso que tem atualmente três grandes players”, explica.

Além disso, segundo o especialista, há um interesse das empresas de telefonia e dos parlamentares que encampam o projeto de rever metas de universalização (que significa acesso para todas as pessoas) direto com a Agência regulatória, a Anatel. Atualmente, pouco mais de metade dos domicílios brasileiros têm acesso à banda larga fixa. O modelo de mercado concentra a distribuição do serviço em áreas urbanas e de maior Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto isso, áreas rurais, principalmente do norte e nordeste do País são verdadeiros “desertos digitais”. Mas não só. Enquanto o mundo assistia aos jogos olímpicos sediados no Rio de Janeiro, moradores do Morro da Conceição, na região portuária da cidade olímpica há poucos metros de onde a tocha ficou aberta à visitação, denunciavam a falta de acesso à internet banda larga fixa. Outro ponto polêmico do PL é a busca das telefônicas por não devolver ao Estado brasileiro os chamados bens reversíveis. Segundo apuração do Ministério Público Federal (MPF), estes bens somam cerca de 100 bilhões em infraestrutura montada para prestação de serviços essenciais de telefonia.

O contrato de concessão das telecomunicações, realizado em 1998 por meio da privatização do sistema Telebrás, estabelece que, findado o prazo de outorga, o Estado retomaria a posse dos bens necessários para oferta do serviço e iniciaria um novo processo de concessão da prestação do serviço, incluindo obrigações de preço, continuidade e universalização. Com a aprovação do PL 3453/15, esses bens, que fazem parte da outorga de telefonia fixa, não voltam mais para o Estado e não há mais garantias de que essa soma seja revertida para ampliação do acesso aos serviços. Após aprovação na CCJC, a votação segue para o Senado. Enquanto a proposta avança, outras iniciativas no Congresso e no Judiciário também vêm causando preocupação entre internautas, especialistas e ativistas.

Bloqueio de aplicativos

Ao longo de 2016, várias decisões judiciais, com base em investigações criminais, têm resultado no bloqueio de alguns aplicativos usados por um amplo público, como o WhatsApp. Mais recentemente, o lobby da indústria de direitos autorais também tem investido pesado na tentativa de alterar o Projeto de Lei 5204/16 (baseado no PL 5204/16, apensado ao primeiro) que visa justamente proibir esse tipo de decisões arbitrárias da justiça. Os bloqueios também foram pontos determinantes na queda do Brasil no ranking de liberdade na internet da Freedom House. Também com o intuito de evitar que casos similares voltassem a ocorrer, o Partido da República (PR), ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 5.527 (ADI). Para especialistas, há uma distorção na interpretação do MCI pelo poder Judiciário, o que abre precedentes perigosos para a liberdade de escolha do consumidor/ usuário. A legislação aponta a possibilidade de bloqueio de aplicativos somente no caso destes descumprirem a proteção da privacidade dos dados do usuário. Em Amicus curiae que endossa a ADI citada, o Instituto Beta para Democracia e Internet argumenta:

“Não parece plausível e muito menos proporcional que o descumprimento de uma medida judicial de quebra de sigilo bancário ou telefônico, por exemplo, atinja todos os demais correntistas de uma instituição financeira ou os usuários de uma operadora de telefonia. O Marco Civil constitui um importante patamar regulatório de proteção dos direitos do usuário da internet, porém ainda requer uma cautelosa compreensão de suas premissas e a das formas de implementação das suas sanções”.

Zero Rating

Outra prática que vem sendo questionada por especialistas é a das operadoras de telecomunicações de ofertar “gratuitamente” o acesso a determinados aplicativos após o fim da franquia de internet móvel. Detentoras das infraestruturas por onde trafegam os dados de navegação, as operadoras têm trabalhado para criar mecanismos que favorecem alguns aplicativos e conteúdos em detrimentos de outros, o chamado zero rating. É como se a empresa concessionária do serviço de pedágio de uma rodovia tivesse também o poder de escolher quais carros trafegam ou não naquele trecho e com que qualidade de estrada ou limite de velocidade determinados motoristas irão se deparar. A prática confronta o princípio da neutralidade de rede, consagrado no inciso IV, artigo 3º do Marco Civil da Internet (MCI), segundo o qual a rede deve ser igual para todos, sem diferença quanto ao tipo de uso. Assim, ao obter um plano de internet, o usuário paga pela velocidade contratada e não pelo tipo de página ou conteúdo que vai acessar ou usar.

Segundo Flávia Lefèvre, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI – BR), a utilização de zero rating, sem regulação específica, também viola o princípio da neutralidade de rede e ameaça o modelo aberto da internet. “A prática do zero rating associada aos planos com limite de volume de dados e restrição de acesso à internet ao final da franquia cria condições para que a internet se torne um espaço voltado preponderantemente a interesses comerciais e contrários à verdadeira e efetiva inclusão digital”, defende.

Por outro lado, o governo demonstra abertura para a pressão das empresas em flexibilizar o princípio da neutralidade. “Para a gente poder avançar com a internet, e estou falando como secretário, e não como coordenador do CGI.br, não dá para pensar com tamanha rigidez o aspecto de neutralidade de rede, sem poder usar zero rating, até para vencer a insegurança jurídica que está posta”, declarou Maximiliano Martinhão, secretário de Políticas de Informática do MCTIC, em novembro de 2016.

Franquia de dados

O alerta feito por Flávia Lefèvre também se refere à tentativa das operadoras de implementar o modelo de franquia de dados na banda larga fixa. Este é o padrão de negócio utilizado na banda larga móvel, e consiste na forma de serviço em que o usuário, ao utilizar toda a capacidade contratada, tem a sua conexão interrompida e para voltar a navegar na web é incitado a comprar pacotes adicionais. O argumento das operadoras de telecomunicações é o de que o modelo de “internet ilimitada” é um modelo de negócio ultrapassado e que não contempla mais a atual fase de uso da rede, pois existem hoje muito mais dados trafegando do que há dez anos. À época, o presidente da Anatel, João Rezende, em entrevista ao G1, defendeu o limite de franquia e argumentou que obrigar as empresas a oferecer banda larga ilimitada pode elevar o preço do serviço ou reduzir a qualidade deste.

Rafael Zanatta, do Idec, argumenta que não há estudos específicos que comprovem que haja uma “escassez de rede”. O especialista aponta que, mesmo com a crise econômica, as telefônicas continuam com alta taxa de lucro que poderia ser revestido em investimento pra ampliar a infraestrutura. “No último balanço trimestral, por exemplo, os três players que dominam o mercado brasileiro apresentam uma margem de lucro superior a um milhão”. Rafael acrescenta que a internet no Brasil é um serviço caro, que chega a superar 2% da renda média familiar e, ainda assim, a velocidade está muito aquém dos padrões globais. “Existe a possibilidade de regular a franquia sem abusividade. Vendo se a empresa tem escassez temporária de infraestrutura, considerando as especificidades das pequenas operadoras, por exemplo. Não faz sentido isso nos casos onde há infraestrutura abundante”, defende. E completa: “A estratégia oculta [neste debate] é implementar a franquia e flexibilizar o Marco Civil da Internet para permitir o zero rating”, resume.

Durante audiência que discutiu a questão no Senado Federal em junho deste ano, Bia Barbosa, do Intervozes, argumentou que é possível que esta prática comercial crie um fosso entre aqueles que poderão ter a “liberdade” de navegar por quaisquer tipos de conteúdos e aqueles que, por questões financeiras, não poderão pagar um valor que garanta a navegação sem restrições. Isso sem falar nos prejuízos para a educação à distância, por exemplo, já que esta modalidade educacional exige várias horas na frente da tela do computador com aulas em vídeo de alta resolução.

Dados pessoais

Em 2014, a Oi, empresa de telefonia, foi condenada pelo Ministério da Justiça a pagar R$ 3,5 milhões por ser acusada de monitorar a navegação dos consumidores na internet para posterior comercialização de dados. Durante o processo administrativo, foi observado que a empresa violou direitos à informação, à proteção contra publicidade enganosa e o direito à privacidade e à intimidade. A porta de verificação do comportamento dos consumidores era o serviço Navegador, oferecido pelo Velox, o serviço de banda larga da Oi. Durante as investigações, verificou-se ainda que a parceria da empresa Oi com a britânica Phorm permitiu o desenvolvimento do software Navegador, que capturava e mapeava todo o tráfego de dados do usuário, permitindo a criação de um perfil de uso da internet.

Após a análise do episódio, o Ministério da Justiça entendeu que a empresa violou princípios contidos na Constituição Federal e no Marco Civil da Internet. De posse de todas as nossas informações, e com o uso de uma tecnologia que cada vez mais se aprimora por meio de algoritmos, Google, Facebook, Twitter, entre outras grandes corporações têm acesso a informações privilegiadas do dia a dia dos usuários. A localização exata, o percurso que fazemos ao nos deslocar de casa ao trabalho, os destinos de férias ou as pesquisas nas ferramentas de busca, os problemas de saúde, entre outras questões estritamente pessoais, são dados valiosos que estão sendo manipulados e negociados por essas grandes empresas.

Mas não só por elas. Há também os casos de dados pessoais de órgãos públicos que são vazados para empresas privadas. No início de 2016, aposentados do Espírito Santo que haviam pedido aposentadoria pelo INSS caíram nas mãos de bancos e agências financeiras. Segundo o Ministério Público do Estado, as pessoas que haviam requerido o benefício ao INSS receberam ligações de agências financeiras oferecendo empréstimos consignados antes mesmos dos pedidos serem aceitos. A investigação está apurando como essas agências tiveram acesso a esses dados pessoais. À época, o INSS informou que os dados dos segurados são mantidos em sigilo e que não fornece qualquer dado pessoal a outras instituições que não sejam as responsáveis pelo pagamento da aposentadoria.

“Cada vez mais, em todo e qualquer momento, todas as nossas relações sociais estão apoiadas em coletas ou tratamentos de dados. Basta pensar nas relações que a gente tem com o governo, com o setor estatal de uma maneira geral. É impossível você aderir a um programa social, pensar, por exemplo, num bolsa família ou financiamento estudantil, sem que você troque os seus dados pessoais para poder aderir a aquele determinado benefício social”, explica Bruno Bioni, advogado do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e pesquisador do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da USP (GPoPAI/USP). O pesquisador defende que é urgente pensar uma política de proteção de privacidade e uso de dados pessoais na rede, uma vez que grande parte dos modelos de negócios online e as próprias políticas públicas, como as apontadas, se baseiam no tratamento de nossos dados.

Até o momento, o Brasil não tem sancionada uma lei que regule a coleta, armazenamento, processamento e divulgação de dados pessoais. O PL 5276/2016, que trata do assunto, atualmente tramita na Câmara dos Deputados. A legislação protege os dados pessoais tanto no que diz respeito ao uso por entes privados quanto públicos e ainda impede a transferência internacional de dados para países com leis de proteção menos rigorosas do que a nossa.

Joana Varon, integrante da Coding Rights, organização liderada por mulheres que promove direitos no mundo digital, explica que vivemos atualmente num contexto de capitalismo de dados. “Tudo o que a gente faz na rede é registrado. E esses dados são utilizados como modelos de negócios das empresas que a gente usa pra navegar na rede e que a gente usa nos serviços digitais”, resume. Enquanto isso, também avançam na Câmara e no Senado algumas iniciativas de Projetos de Lei que caminham na direção contrária da promoção da privacidade e da liberdade de expressão na web, como o PL 2390/15 que propõe a criação de um “Cadastro Nacional de Acesso à Internet”. O cadastro incluiria informações como endereço e CPF do usuário e teria como função combater práticas de pedofilia na internet. Segundo o PL, a cada nova conexão, o usuário teria de fornecer todos os dados pessoais para que a conexão seja liberada.

O cadastro obrigatório põe em xeque não só direitos individuais mas também coletivos e ameaça organizações e movimentos sociais que trabalham com a defesa e promoção de direitos humanos e que têm o anonimato como retaguarda para resistir à perseguição ou retaliação. É o caso do aplicativo Nós por Nós. Lançado em março de 2016, o aplicativo, voltado para denúncias de violações de direitos cometidas por policiais no Rio de Janeiro, recebeu em quase um ano de funcionamento 250 denúncias. Segundo relatório “Você matou meu filho”, publicado pela Anistia Internacional, de 2005 a 2014 foram registrados 8.466 casos de homicídio decorrentes de intervenção policial no estado do Rio de Janeiro; 5.132 casos apenas na capital.

Ao checar o andamento de todas as 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção policial no ano de 2011 na cidade, a Anistia descobriu que foi apresentada denúncia em apenas um caso. Até abril de 2015 (mais de três anos depois), 183 investigações seguiam em aberto. O medo e a descrença no sistema judicial são os principais fatores apontados para a falta de denúncia.

Um dos idealizadores do aplicativo, Fransérgio Goulart, afirma que a ideia da ferramenta é justamente facilitar a reação da população atingida pela violência de Estado. “Tinha já algo se iniciando, mas o aplicativo Nós por Nós facilitou e potencializou essas denúncias. E a grande novidade é que temos para onde encaminhar a denúncia (rede de apoio) defensoria, Ministério Público, ONGs de direitos humanos de forma articulada”, contou.

Para fazer uma denúncia por meio de vídeo, foto, áudio ou texto no Nós por Nós, o usuário não precisa fazer nenhum cadastro anterior que permita sua identificação, o que no caso do teor da ferramenta, é um detalhe vital para o funcionamento.

Além do PL 2390/15, uma série de inciativas decorrentes dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos, conhecida como CPI Ciber, afetam a privacidade e a liberdade de expressão na rede. O relatório final da comissão apresentado em março deste ano, reúne oito propostas de projetos de leis que, segundo a própria comissão, objetivam combater os crimes cometidos na internet.

Direitos na rede

Diante deste cenário, entidades da sociedade civil brasileira criaram em julho de 2016 a Coalizão Direitos na Rede, como uma forma de combater as crescentes tentativas de retirada de direitos. Em manifesto lançado durante o VI Fórum da internet, ocorrido em julho de 2016, as entidades afirmam que o objetivo da coalizão é defender princípios fundamentais para a garantia de acesso universal à Internet: respeito à neutralidade da rede, liberdade de informação e de expressão, segurança e respeito à privacidade e aos dados pessoais, assim como assegurar mecanismos democráticos e multiparticipativos de governança.

Segundo a Coalizão, além de atacar a privacidade, a liberdade de expressão e comunicação e o direito à informação de cidadãos conectados, este conjunto de propostas legislativas não leva em conta as características da rede e instaura uma espécie de “censura preventiva”. Os níveis de vigilância massiva da série Black Mirror vêm causando furor em discussões e tentativas de prognósticos que se multiplicam nas redes sociais. Se as iniciativas analisadas avançarem, trabalhar, estudar, locomover- se, informar-se, comunicar-se, organizar protestos, denunciar violações de direitos, entre outras ações essenciais para democracia, devem ficar bem comprometidas. Se depender da pressão das empresas e de alguns entes do Estado, a realidade fictícia da série está mais próxima do que podemos imaginar.

Mídia, política e religião: mistura que ameaça a democracia

Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emissoras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da democracia brasileira e do conservadorismo político

Texto: Mônica Mourão | Colaboraram: Bráulio Araújo, Elizângela Araújo, Iara Moura e Ramênia Vieira

FIGURA 4.2 PROGRAMAÇÃO.

“Abri uma igreja em Lusaka (capital da Zâmbia) e os pastores haviam sido expulsos de lá. Com a carta do presidente Lula, não só os pastores puderam voltar, como o presidente Rupiah Banda (2008-2011) deu a eles uma concessão de rádio e televisão para que pudessem pregar o evangelho”. A frase acima foi uma das descobertas da mídia durante a reta final do segundo turno das eleições no Rio de Janeiro, quando a população da cidade vai escolher entre Marcelo Freixo (Psol) e Marcelo Crivella (PRB). O trecho foi retirado de um vídeo disponível no Youtube em que Crivella conta que entrou para a política forçado pela Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) e comenta a temporada em que viveu na áfrica. O senador, bispo da Iurd e sobrinho do fundador dessa igreja, Edir Macedo, dono da rede Record, associa diretamente missão evangelizadora, política e mídia. O caso é emblemático de um cenário que está longe de se resumir à disputa eleitoral do Rio de Janeiro.

Políticos evangélicos donos da mídia

Em novembro do ano passado, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, autorizou procuradores de São Paulo a receberem uma representação, assinada por diversas entidades da sociedade civil, pedindo o cancelamento das outorgas de radiodifusão dadas a pessoas jurídicas que tenham entre seus sócios políticos em exercício do mandato. No total, 32 deputados federais e oito senadores são denunciados. Dos 32 deputados federais, nove fazem parte da bancada evangélica, o que corresponde a quase 30% do total. Desses nove, quase a metade faz parte também da bancada ruralista. Um deles, Beto Mansur (PRB-SP), é ficha suja, condenado por exploração de trabalho escravo. A bancada evangélica – ou bancada da bíblia – é conhecida por seu caráter conservador. Mas se engana quem generaliza esse posicionamento para todos os evangélicos.

A professora Magali Cunha, da Universidade Metodista de São Paulo, explica que o senso comum associa evangélicos a conservadorismo por serem os grupos com esse perfil os que têm mais visibilidade na mídia e na política. Segundo Magali, na radiodifusão, “não existem evangélicos progressistas ou de posição mais aberta em relação à teologia, à prática pastoral e à participação política. Esta é uma característica dos grupos mais conservadores e que os coloca em vantagem no tocante à visibilidade buscaram uma presença intensa nas mídias rádio e tevê, mais ainda no rádio. Os grupos mais abertos ou progressistas estão presentes em mídias alternativas e na internet, e não há uma denominação específica: são grupos os mais variados, vários deles articulados em experiências ecumênicas”, explica.

A imbricação política, mídia e religião fica bem evidente em alguns casos: o deputado Antônio Bulhões (PRB- -SP), além de concessionário de três emissoras de rádio, foi apresentador do programa “Fala que eu te escuto”, da Rede Record, e do “Retrato de Família”, na Record News, durante nove anos. Atualmente está em seu terceiro mandato como parlamentar. Ele é um Exemplo do quanto a visibilidade midiática aumenta as  chances de eleição, mas também da relação entre o crescimento de concessões para grupos evangélicos ou espaços “arrendados” para eles na televisão, crescimento da bancada da bíblia e avanço das agendas conservadoras no Congresso Nacional. “Este avanço começou a se configurar com o surgimento da bancada evangélica tal como a conhecemos em 1986, com a eleição do Congresso Constituinte. Naquela ocasião, houve um farto oferecimento de concessões ao chamado ‘centrão’, onde se localizou a maior parte da bancada. Foi dali que surgiram alguns dos empresários de mídia evangélica e a força de igrejas como a Iurd.

Para estes grupos, estar nas mídias é parte de uma estratégia de ocupação de espaços na esfera pública”, conta a professora Magali Cunha. Atualmente, segundo levantamento de grupo de pesquisa coordenado pelo professor Jorge Miklos, da Universidade Paulista, a bancada evangélica é formada por 199 deputados federais e quatro senadores. O cruzamento dos dados da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e de concessionários de radiodifusão é uma tarefa difícil pela falta de transparência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A Agência não disponibiliza um documento único com todas as rádios e tevês e os sócios e diretores.

Existem dois sistemas separados: Sistema de Controle de Radiodifusão (SCR) e Sistema de Acompanhamento de Controle Acionário (Siacco). O SRD não fornece o quadro societário das emissoras, que precisa ser buscado no Siacco. “Esse programa, entretanto, só poderá revelar o capital investido nessa empresa, as nomeações que compõem o quadro societário, quanto cada sócio investiu e o cargo que ele assume, em consultas individuais, dificultando a investigação”, explica Jorge Miklos. O professor coordenou a pesquisa de uma média de 4.500 rádios para cruzar os nomes dos deputados, senadores e seus familiares com as rádios e televisões brasileiras. Porém, houve uma diferença no resultado dos dados. “Por exemplo, o nome do deputado federal cassado Eduardo Cunha encontra-se no anexo do Ministério das Comunicações, mas não no da Anatel”, relata Miklos.

Eduardo Cunha, evangélico da Assembleia de Deus, teve uma representação protocolada contra ele na Procuradoria da República do Rio de Janeiro em dezembro de 2016. Naquele mês, a revista Época divulgou que Cunha consta nos registros do Ministério das Comunicações como sócio da Rádio Satélite. O deputado cassado afirmou para a revista que, apesar de ainda estar na lista de acionistas do Siacco, vendeu suas cotas em 2007, e as transações de compra e venda constaram de suas declarações de renda à Receita Federal. Mesmo que a informação dada pelo ex-deputado esteja correta, trata-se de uma ilegalidade: a definição de que empresa terá direito de explorar o serviço de radiodifusão depende da sua participação em uma licitação, seguida de aprovação pelo Congresso Nacional. Assim, Cunha não poderia simplesmente ter vendido sua outorga.

Bancada religiosa e direitos humanos

FIGURA 4.1.QueméQuem

O aumento da bancada da bíblia é patente: na legislatura de 2003-2006, era formada por 58 congressistas, um crescimento de 25% em relação à legislatura anterior. No Senado, passou de nenhum representante para três mandatos. “A maior parte dos congressistas evangélicos eram pastores vinculados à Assembleia de Deus e à Igreja Universal do Reino de Deus”, segundo Jorge Miklos.

O professor explica: “A Frente Parlamentar Evangélica expressa os interesses das igrejas evangélicas em geral, embora seja principalmente constituída de deputados pertencentes a igrejas pentecostais, que por sua típica agressividade em evangelizar, formam a maior parte da população evangélica brasileira”. Contudo, ele vê diferença nos posicionamentos dos deputados e senadores da FPE: “Os parlamentares evangélicos nem sempre votam em bloco, pois representam correntes distintas no campo religioso e no econômico. Só falam a mesma língua em questões de conteúdo moral. Sua relação com a bancada católica é marcada tanto pela união na defesa de interesses comuns como pela oposição às eventuais tentativas de suprematismo católico”.

Apesar de não formarem um bloco totalmente coeso, uma série de retrocessos nos direitos humanos está associada à bancada da bíblia, especialmente durante o período em que o pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) foi presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara.

Para ficar apenas com casos mais recentes, atualmente, são deputados ligados às igrejas católica e evangélica que estão no comando dos trabalhos da comissão especial que analisa a proposta conhecida como “Escola sem Partido”. O deputado Marcos Rogério (DEM-RO) ocupa a presidência e Flavinho (PSB-SP) é o relator. Ambos defendem o PL 5069/2013, que tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo. Marcos Rogério foi repórter de televisão e radialista, atuando na Comunicação Social por mais de 12 anos. Como deputado, foi relator da cassação de Eduardo Cunha, apesar de, como ele, pertencer à Frente Parlamentar Evangélica.

Flavinho já foi ligado à comunidade católica Canção Nova e apoiou uma proposta para revogar a permissão do uso do nome social de travestis e transexuais em órgãos da administração pública. Ao se colocar contra a criação da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara, Flavinho disse que, em vez de empoderamento, as mulheres querem ser “cuidadas” e que as parlamentares feministas não sabem o que é ser “amadas”. Para o professor Jorge Miklos, “não é inconstitucional ou ilegal a presença da bancada evangélica no congresso nacional. Todos lá dentro foram eleitos democraticamente. O que é inconstitucional? Pautas que ferem a dignidade da pessoa humana, como prevê o Artigo 1º da Constituição Federal, e a pluralidade do povo brasileiro”.

Missas e cultos eletrônicos

Os grupos evangélicos conservadores não se contentam “apenas” com a concessão de emissoras de rádio e televisão. Também ocupam os espaços de outras emissoras, numa prática chamada de “arrendamento”. Ou seja, como se um horário da programação fosse um terreno, o “dono” (concessionário) o cede para que outra pessoa faça uso dele, mediante pagamento. A prática, contudo, é ilegal. “Isso ou é uma subconcessão, o que é vedado, já que a concessão de qualquer serviço (como de estradas) é sempre dada para aquela pessoa jurídica, e não para nenhuma outra, ou é publicidade. Se for publicidade, tem o limite de 25% da programação da tevê”, explicou o Procurador da República Sergio Suiama. Ele é responsável por um inquérito que investiga os casos de arrendamento praticados por Band, Record, Rede TV! e TV Gazeta, a partir de um estudo da programação feito pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).

FIGURA 4.3. PROGRAMAÇÃO DA TV

De acordo com o levantamento, em 2016, 21% do total de programação veiculada pela tevê aberta brasileira foram de programas religiosos. Esse é o gênero número 1 ao se considerar o espaço total das emissoras pesquisadas pela Ancine, representando 1/5 da programação. Dentro da grade de cada uma, o percentual do gênero religioso é o seguinte: Band (16,4%), CNT (89,85%), Globo (0,58%), Record (21,75%), Rede TV! (43,41%), SBT (0%), TV Brasil (1,66%), TV Cultura (0,69%) e TV Gazeta (15,80%).

Curioso notar que a Record, única do grupo cujo concessionário é um bispo da Igreja Universal, não é a que mais veicula conteúdo religioso. Esse dado pode mostrar que, para as demais emissoras, o arrendamento é um negócio como qualquer outro, e não interessa o conteúdo veiculado. Vale ressaltar também duas importantes exceções: dois canais com as maiores audiências, Globo e SBT (numa disputa já longa com a Record pelo segundo lugar), não exercem essa prática: a primeira veicula, por conta própria, a missa católica aos domingos; a segunda é a única emissora que não transmite nenhum programa religioso. “A TV Globo, ao que consta, não recebe pagamento para veicular a Santa Missa. No caso dessas outras emissoras, a gente vê que uma boa parte da programação diária é paga pelas igrejas. Então é diferente a situação. Essas emissoras estão usando as igrejas como fonte de financiamento”, avalia Suiama.

A Ancine contabilizou também o percentual de publicidade veiculada em cada uma das emissoras: Band (3,20%), CNT (0,10%), Globo (0,10%), Record (0,10%), Rede TV! (5,29%), SBT (0,25%), TV Brasil (0,10%), TV Cultura (0,10%), TV Gazeta (43,61%). Quase todas, com a marcante exceção da TV Gazeta, cumprem o teto de 25% de tempo de publicidade comercial estabelecido pelo artigo 28 do Decreto 52.795/63, que determina o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. Contudo, se o arrendamento para igrejas for considerado venda de espaço publicitário, CNT e Rede TV! Estariam infringindo o Regulamento. O caso visivelmente ilegal do Grupo CNT, que vende quase a totalidade do seu espaço, é alvo de ação ajuizada pelo Ministério Público Federal de São Paulo. Outra ação do MPF pelo mesmo motivo foi aberta contra a Rede 21 Comunicações S/A, ambas em 2014. As emissoras venderam 22 horas diárias de toda a sua grade à Igreja Universal. Segundo o MPF, os contratos firmados entre a Universal e as duas emissoras podem envolver R$ 900 milhões.

O Ministério Público solicita, nas ações, que as outorgas sejam invalidadas e que o Grupo CNT, a Rede 21 e a Iurd sejam condenados ao pagamento de indenização, em valor determinado pela Justiça, por danos materiais à União e por danos morais difusos. Além disso, o MPF pede que a Presidência da República e o Ministério das Comunicações sejam condenados a se abster de conceder futuras outorgas de radiodifusão aos dois grupos empresariais e à Universal.

Segundo a assessoria do Ministério Público de São Paulo, as duas ações seguem tramitando na Justiça Federal. A invalidação das outorgas do serviço de radiodifusão pode acontecer, mas depende ainda da decisão da Justiça. O caso das demais emissoras, cujo inquérito foi aberto pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em maio deste ano, ainda está num estágio inicial. A partir da abertura do inquérito, foram solicitadas informações das emissoras e, agora, o MPF aguarda resposta do Ministério das Comunicações.

Segunda colocada no ranking dos programas religiosos, a Rede TV! foi a única que respondeu nossa reportagem. Através de sua assessoria, a emissora afirmou ser “laica em sua programação, transmitindo programas de diversas igrejas evangélicas, a missa da Catedral da Sé da Igreja católica, entre outras. Seus programas discutem abertamente temas de todas as religiões, do espiritismo, do candomblé e de qualquer outra motivação religiosa. Entende que como agente de comunicação não tem o direito, nem a vontade, de cercear ou discriminar qualquer manifestação religiosa, garantindo a mais ampla liberdade de expressão”. Ainda de acordo com a Rede TV!, a programação religiosa não prejudica a democracia: “Programas religiosos existem em todos os países democráticos, sendo vistos por milhões de telespectadores. No Brasil, as coproduções, religiosas ou não, são agentes fundamentais na garantia da pluralidade das comunicações. A RedeTV! respeita integralmente toda a legislação do setor”.

Laicidade, política e comunicação pública

Mesmo sendo uma televisão pública, a TV Brasil veicula programas religiosos da igreja católica e da evangélica. Em 2016, um deles, o evangélico Reencontro, além de fazer proselitismo religioso, serviu também de palanque político. A reclamação foi feita por telespectadores. Segundo o Boletim da Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o programa entrevistou a candidata a vereadora e ex-deputada federal Liliam Sá (PROS- -RJ), no dia 21 de maio, para falar sobre o Rio de Janeiro. Ela já havia sido entrevistada no mês anterior, assim como um pré-candidato a prefeito de São Gonçalo (RJ) e um pastor que mencionou que a esposa seria candidata a vereadora. Liliam é ex-deputada federal. O apresentador abriu o microfone para a candidata apresentar suas propostas para a cidade: “a senhora voltando como vereadora para o Rio de Janeiro, para ajudar esse município, um dos mais importantes do Brasil, quais são os planos que a senhora tem em mente?”. O caso demonstra a desigualdade de possibilidades dos candidatos se comunicarem com o eleitorado, como publicamos em matéria especial do Observatório do Direito à Comunicação sobre políticos donos da mídia.

“O espaço de uma televisão não é propriamente igual ao de uma praça pública. Na praça pública, qualquer pessoa pode chegar e fazer uma pregação, o Estado não pode impedir um pastor, um pai de santo ou um padre de fazer uma pregação no meio da praça. Mas, no caso da televisão, não é um espaço público acessível a qualquer pessoa. O Estado tem que assegurar essa igualdade? A religião que não tem dinheiro para pagar também deveria ter espaço? Se o Estado fosse fazer isso, como ele iria fazer? Iria financiar todas as religiões? Qual seria o critério de financiamento?”. Os questionamentos do procurador Sergio Suiama dizem respeito a um dilema vivido atualmente pela comunicação pública no Brasil. Em 2011, a partir de reclamações de ouvintes e telespectadores à Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o Conselho Curador aprovou uma resolução que solicitava a suspensão dos programas religiosos nos veículos da EBC. Com a decisão, A Santa Missa e Palavras de Vida, produzidos pela Igreja Católica, e o evangélico Reencontro deveriam ter saído do ar. Contudo, a Justiça Federal de Brasília concedeu liminar mantendo a exibição dos programas.

Integrante do Conselho Curador da EBC cassado pelo governo ilegítimo de Michel Temer, a professora da UFPE Ana Veloso relembra o processo: “Nós recebemos várias manifestações, via Ouvidoria, de telespectadores e ouvintes que não estavam satisfeitos porque a EBC transmitia a missa”. A ação está no Supremo Tribunal Federal e ainda aguarda uma decisão de Justiça. “O Estado brasileiro é laico e a comunicação pública deve permitir a liberdade de expressão das diversas religiões e crenças. Então, além de a gente sugerir que esse tipo de programa fosse retirado do ar, e nossa fundamentação está na lei da EBC e na Constituição Federal, também sugerimos que a Empresa viabilizasse a produção de programas que primassem pela diversidade religiosa”, contou Ana Veloso. Os contratos de permissão dos programas religiosos são anteriores à constituição da EBC, em 2007.

O argumento da Arquidiocese do Rio de Janeiro e da Primeira Igreja Batista na Ilha da Conceição, de Niterói, que entraram na Justiça para manter a exibição dos programas, foi de que “a pluralidade máxima consegue-se com a ampliação dos programas religiosos, não com a supressão dos existentes”. Tentamos ouvir o arcebispo católico Dom Orani Tempesta, que defende a continuação das transmissões da Santa Missa, mas não obtivemos retorno da Arquidiocese do Rio de Janeiro até o fechamento desta reportagem. Dom Orani Tempesta foi o presidente do Conselho Nacional de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional, durante o período de 2012 a 2014.

Apesar de não ter conseguido, até o momento, a retirada do ar dos programas que veiculam cerimônias religiosas, o Conselho Curador obteve uma vitória neste processo:a EBC publicou, em 2014, o resultado final de um pitching (espécie de concurso) para contratação de produtoras responsáveis por dois programas sobre diferentes religiões e crenças: Entre o Céu e a Terra e Retratos de Fé. O primeiro foi produzido pela Realejo Filmes e custou R$ 1,3 milhão e, o segundo, pela Aldeia Produções, no valor de R$ 910 mil. “A gente respeita a religião de todas as pessoas, mas a gente defende o Estado laico. Não podemos, numa emissora pública, privilegiar uma religião em detrimento de outra, porque isso se chama manutenção de privilégios”, reforçou Ana Veloso.

Intolerância religiosa

“Na minha vida dei um chute na heresia / Houve tanta gritaria de quem ama a idolatria / Eu lhe respeito meu irmão, não quero briga / Se ela é Deus, ela mesmo me castiga”. Os versos acima, compostos pelo bispo Marcelo Crivella, fazem parte da canção “Um chute na heresia”, lançada em CD do atual senador e postulante à prefeitura do Rio de Janeiro em 1998. Divulgados na última semana pela imprensa, os versos relembram um marcante episódio de intolerância religiosa. No dia 12 de outubro, quando católicos celebram o Dia de Nossa Senhora Aparecida, o bispo da Igreja Universal Sérgio von Helder chutou uma imagem da santa no programa O Despertar da Fé, transmitido pela Rede Record. O episódio aconteceu em 1995 quando, por coincidência, a Igreja Católica passou a ter seu próprio canal de televisão, a Rede Vida.

O bispo foi condenado por intolerância religiosa e vilipêndio a imagem. O Ministério das Comunicações chegou a se comprometer a investigar se o pastor infringiu leis do setor e foi considerado parcialmente responsável pelo episódio pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio de Araújo Sales.

Mas, na “guerra santa” midiática, os que não professam nenhuma crença também já foram alvo de discurso de ódio. Em caso mais recente, a Band teve que assinar um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público Federal comprometendo-se a exibir 72 vezes um vídeo produzido pelo MPF cujo objetivo é conscientizar a população sobre a laicidade do Estado brasileiro. A assinatura do TAC, feita em 2016, é resultado de um processo aberto pelos procuradores contra a emissora após declarações preconceituosas do apresentador José Luiz Datena no programa Brasil Urgente contra cidadãos ateus, no dia 27 de junho de 2010. O apresentador teria associado práticas criminosas à “ausência de Deus”: “Porque o sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites, é por isso que a gente vê esses crimes aí”.

Para Daniel Sottomaior, presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), a veiculação desse tipo de conteúdo estimula o preconceito. José Luiz Datena, o repórter Maurício Campos e a Rede Bandeirantes foram condenados a pagar R$ 135.600,00 à Associação. Outro caso que acabou parando na Justiça diz respeito a uma ação foi movida, em 2004, pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) de São Paulo e o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro Brasileira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert). Naquela ocasião, a Justiça entendeu que a Rede Record e a Rede Mulher descumpriram o artigo 215 da Constituição de 1988, uma vez que deixaram de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e não protegeram as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras. As duas emissoras haviam produzido e veiculado conteúdos ofensivos contra as religiões de matriz africana.

Para a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Stela Guedes Caputo, apenas quando é cometida alguma violência contra um terreiro ou uma pessoa de religião de matriz africana é possível conseguir alguma abordagem positiva da mídia. No entanto, Stela considera a inclusão dos terreiros fundamental para se compreender o Rio de Janeiro e o Brasil: “Qualquer mídia e discussão política que exclua os terreiros não é democrática. Se uma criança de candomblé não pode andar na rua sem medo, não vivemos numa democracia”.

Que religião se vê na TV?

Apesar do crescimento do número de evangélicos, que aumentou mais de 61,45% nos últimos dez anos, o Brasil ainda é majoritariamente um país católico. De acordo com dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do país se divide entre 123.280.172 católicos; 42.275.440 evangélicos; 3.848.876 espíritas; 588.797 umbandistas, candomblecistas e pessoas de outras religiões afro-brasileiras; 5.185.065 cidadãs e cidadãos de outras religiões e 15.335.510 sem religião. Para a professora Magali Cunha, “os grupos religiosos são segmentos sociais como outros e podem participar do espaço público, inclusive da política. Isto é saudável numa democracia. A concessão de radiodifusão para grupos religiosos deveria obedecer aos mesmos processos de concessão para outros segmentos sociais, com as mesmas exigências de comprometimento”.

No entanto, como o interesse político e econômico influencia fortemente a aprovação de concessões de rádio e tevê, essa distribuição acontece de forma desigual. Segundo Stela Guedes, as religiões afrodescendentes são tratadas de forma negativa tanto pela mídia corporativa quanto pela mídia da Igreja Universal. “Lutar contra isso é muito difícil, porque os terreiros são unidades independentes e muito pobres, sem condições de ter meios de comunicação próprios como as igrejas católica e evangélica”, afirmou Stela, que é candomblecista e faz parte do grupo de pesquisa Kererê (“miúdo”, em iorubá).

Assim, enquanto milhares de pessoas de outras religiões não têm espaço na mídia, a Igreja Universal tem um verdadeiro conglomerado. De acordo com informações dos próprios veículos da Iurd, a Folha Universal é a publicação impressa de maior distribuição do Brasil, com tiragem semanal média de 1,6 milhão e circulação em todo o país. Dados de 2014 encontrados no site da Universal apontam que a Rede Aleluia, composta por emissoras de rádio e televisão, atinge 75% do território nacional. É formada por 64 emissoras, espalhadas por 22 estados. O missionário da Assembleia de Deus Cosme Felippsen acredita que o problema não é o fato de grupos religiosos serem detentores de outorgas de radiodifusão, mas o conteúdo que transmitem em suas pregações. “O pessoal demoniza as religiões de matriz africana, e isso é uma das faces do racismo. As igrejas cantam contra orixás e outras entidades”, conta. Felippsen critica sua igreja, considerada por ele uma das mais “machistas, homofóbicas e racistas”, porém ainda se identifica com ela por ser o espaço que frequenta desde os três anos de idade, quando sua mãe se converteu. Porém, lembra que é um erro associar todos os evangélicos ao conservadorismo: “Existe um grupo forte de comunidades de fé que se reúnem no Ato Aula Pública Evangelho e Desobediência Civil. São evangélicos de esquerda que se encontram para discutir política. É a contracorrente dentro do movimento”. Cosme Felippsen deixa o recado contra a intolerância: “O problema é que, às vezes, a gente generaliza tudo”.

Para a professora Magali Cunha, o que ocorre hoje é que os grupos religiosos tiram vantagem das concessões e dos arrendamentos da mesma forma que outros segmentos o fazem, uma vez que não há regulação. Segundo ela, “o mesmo ocorre com ‘abusos’ da presença religiosa em outras frentes do espaço público, na política partidária, em que não há regulação e freios para que estes grupos não ultrapassem o sentido democrático de sua participação”.

*A reportagem procurou a Igreja Universal do Reino de Deus através da única forma de comunicação que disponibiliza em seu site, um formulário para envio de email. Não obteve resposta até o fechamento da matéria.

Na sintonia do golpe: o papel da mídia na crise política

Em 2016, as gerações nascidas nas décadas de 1990 e 2000 defrontaram-se, talvez pela primeira vez de forma mais aberta, com a ação incisiva e determinada dos grandes conglomerados midiáticos, no sentido de moldarem, à sua imagem e semelhança, o sistema político do país.

Texto: Helena Martins | Colaboraram: Iara Moura, Mônica Mourão e Elizângela Araújo

O afastamento da presidenta Dilma Rousseff, por meio de um golpe que envolveu decididamente o Legislativo, o Judiciário e os meios de comunicação, trouxe à tona e exigiu que fosse incluída na agenda de debates da sociedade a problemática do papel da mídia para a construção – ou o desmonte – da democracia. Na memória de um país que não enfrentou abertamente a história da ditadura civil-militar (1964-1985), restavam quase apagados casos de como o escândalo Proconsult, uma tentativa de fraude, encobertada pela Rede Globo, que objetivava impossibilitar a vitória de Leonel Brizola, em 1982, ao governo do Rio de Janeiro. A apresentação pela emissora do maior comício das Diretas Já, em São Paulo, em 1984, como uma festa em comemoração ao aniversário da capital paulista, ou a determinante edição debate televisivo entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Melo, candidatos à Presidência da República em 1989, às vésperas da eleição, pareciam fatos datados e cuja repetição seria improvável no tempo presente, dada a possibilidade de circulação de narrativas diferentes daquelas apresentadas pelos oligopólios.

Muito embora a criminalização, o silenciamento e a distorção de fatos envolvendo movimentos sociais e outros grupos progressistas sejam uma constante na história do sistema de comunicação brasileiro, a sociedade acostumou-se a ver uma mídia complacente com o poder central e seu projeto, ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990. No campo acadêmico, vimos o deslocamento do olhar sobre o poder dos conglomerados para as práticas de resistência e reelaboração de significados pelos receptores, bem como a difusão de entusiasmados estudos que decretaram o fim da comunicação massiva com o advento da internet.

No início dos anos 2000, após a eleição de Lula, apesar da ausência de enfrentamento do poder midiático por parte do governo, os oligopólios mudaram de postura. No contexto da Ação Penal 470, apelidada pela própria mídia como “mensalão”, em 2005, eles passaram ao que a professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Liziane Guazina, afirma ser uma postura adversária aos políticos e à política, conforme demonstrou na tese de doutorado “Jornalismo em Busca da Credibilidade: a cobertura adversária do Jornal Nacional no Escândalo do Mensalão”. Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Luís Felipe Miguel aponta que, a partir de então, houve “um processo de regressão da ação política da mídia brasileira”. Ele avalia que, do fim do período ditatorial até as eleições presidenciais de 2002, a grande imprensa parecia ter aprendido a conviver com o pluripartidarismo. Ela “parou de agir tão ostensivamente em favor de tal ou qual candidato e passou mais a exigir, de todos, compromissos básicos com certos interesses, o que se alinha às formas dominantes de intervenção política da mídia nas democracias liberais. Não é ausência de interferência, é uma interferência que se dá mais em termos de limitação do debate legítimo e menos como tentativa de induzir a opção eleitoral. Como o PT havia abandonado as partes de seu programa que podiam ser consideradas antissistêmicas, parecia possível uma acomodação dentro desse modelo”, explica.

A defesa aberta do golpe contra a democracia

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Manifestantes contrários ao impeachment da presidenta Dilma denunciam estratégia golpista da Rede Globo. Imagem: Mídia Ninja

No dia 13 de arço de 2016, o regresso tornou-se nítido. Se, em 1964, O Globo usou seu editorial do dia 2 de abril para proclamar que a nação vivia “dias gloriosos”, porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a

democracia, a lei e a ordem”, e saudou o golpe como um movimento não partidário, do qual participaram “todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais”, em 2016, foi a vez do Estado de S. Paulo usar o principal espaço de opinião do jornal para inflamar as milhares de pessoas que saíram às ruas, naquele dia de domingo, para protestar contra a presidenta Dilma Rousseff.

Após afirmar que “a maioria dos brasileiros, conforme atestam há tempos as pesquisas de opinião, exige que a petista Dilma Rousseff deixe a Presidência da República”, dispara: “a oportunidade de expressar concretamente essa demanda e, assim, impulsionar a máquina institucional responsável por destituí-la, conforme prevê a Constituição, será oferecida hoje, nas manifestações populares programadas Brasil afora. Chegou a hora de os brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente que não honra o cargo que ocupa e que hoje é o principal entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em alto e bom som: basta! Que as famílias indignadas com a crise moral representada por esse desgoverno não se deixem intimidar pelo rosnar da matilha de petistas e agregados, cujo único interesse na manutenção de Dilma na Presidência é preservar a boquinha à qual se habituaram desde que o PT chegou ao poder”[1].

Nos dois textos, há o apelo às famílias “indignadas com a crise moral”; o tom odioso com que trata o PT e a esquerda, em sentido amplo; a apresentação dos críticos à presidenta como não partidários e legítimos representantes da maioria dos brasileiros, além da adoção de uma postura convocatória por parte do jornal, justificada pela suposta defesa da democracia. Do mesmo modo, assim como no contexto do golpe de 1964, essa postura abertamente golpista foi combinada com a construção cotidiana de percepções sobre a crise política.

Na avaliação de Luís Felipe Miguel, “a mídia foi crucial para produzir o clima de opinião favorável ao golpe. Produziu-se uma narrativa manipulada e unilateral, de criminalização do governo, do PT e da esquerda em geral. Além disso, a mídia tem colaborado num processo mais de longo prazo, de desconstrução do discurso dos direitos e produção de uma representação do mundo social focada na competição e sem espaço para a solidariedade, isto é, de esvaziamento dos pressupostos da narrativa da esquerda”.

Se a construção da hegemonia depende, como detalhou o filósofo italiano Antonio Gramsci, da combinação entre coerção, portanto uso da força, e consenso, era – e tem sido – fundamental produzir sentidos comuns sobre os fatos e, inclusive, acerca das possíveis saídas que deveriam ser adotadas. Isso foi feito através de enquadramentos favoráveis aos protestos em defesa do impeachment; exclusão do contraditório da cobertura jornalística dos principais veículos de comunicação; repetição incessante de argumentos e outros mecanismos de manipulação.

Desequilíbrio: a gente vê por aqui

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Manchete de capa de O Globo no dia 14 de março de 2015. Imagem: site O Globo

Em março, mês decisivo para a definição dos rumos da crise política, diversas análises produzidas pelo Intervozes buscaram captar o posicionamento dos veículos vinculados

às grandes corporações, bem como a relação com as instituições que deveriam zelar pela democracia. Os textos mostram que, desde o início daquele mês, uma sucessão de episódios que revelaram a articulação íntima entre mídia e Judiciário foi, aos poucos, convencendo parte expressiva dos brasileiros a apoiar o impeachment de Dilma como uma solução final à crise política brasileira.

A edição especial do Jornal Nacional sobre a Operação Aletheia (fase da Lava Jato que culminou com a condução coercitiva do ex-presidente Lula) foi praticamente toda dedicada ao fato de, de relevância inegável. Os números, porém, mostram a ausência de equilíbrio. Nos primeiros quatro blocos do jornal do dia 4 de março, embora tenham sido veiculados 21 minutos de matérias sobre o tema, apenas 50 segundos foram ocupados com a posição da defesa. No segundo, novos 15 minutos de reportagens e apenas 20 segundos com a posição do ex-presidente e outros 20 segundos com fala de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula. A defesa dos empresários envolvidos no caso foi lida pelos apresentadores na bancada, totalizando pouco mais de um minuto e meio. Na matéria sobre o tríplex do Guarujá, foram sete segundos para citar a nota do Instituto Lula em 2 minutos e 50 segundos de reportagem.

Lula falou a primeira vez quando já haviam se passado 40 minutos de jornal. Dilma entrou na sequência, com fala de 1 minuto e 15 segundos. Rui Falcão, presidente do Partido dos Trabalhadores, teve direito a 16 segundos. Na matéria sobre as repercussões no Congresso, a oposição ocupou 1 minuto, ao passo que o PT, 30 segundos. No vídeo, o repórter divulgou, por 2 minutos, informações de como a direita pretendia paralisar o Parlamento até o impeachment sair.

Quando promotores de São Paulo pediram a prisão preventiva de Lula, no dia 10, o Jornal Nacional apresentou os fatos sem citar as críticas feitas por juristas, especialistas e inúmeros membros do Ministério Público à peça jurídica. No sábado 12, o principal telejornal do país destinou sete minutos para negar o pedido de direito de resposta do Instituto Lula em relação à cobertura daquele fato. A emissora se disse “surpreendida” por ser chamada a cumprir uma lei em vigor no Brasil – que tem o objetivo, exatamente, de garantir o princípio constitucional do equilíbrio jornalístico e o direito de não ser ofendido nos meios de comunicação. Em vez de atender o pedido, veiculou editorial defendendo-se e reiterando as acusações. Invertendo a lógica das coisas, a empresa utilizou-se do discurso de defesa da liberdade de imprensa para seguir sua atuação autoritária, avessa à pluralidade de pensamento no país.

No dia 13 de março, quando foi registrado o maior número de protestos favoráveis ao impeachment, a Globo-News cobriu, por mais de 12 horas, as manifestações. Ao longo do dia, repórteres e comentaristas se revezaram para enaltecer os protestos, repetir à exaustão, a cada cidade noticiada, os motivos que já estavam claros para os telespectadores, e jogar sobre os atos um peso decisivo sobre o processo de mudanças no comando do governo federal. Duas frases sintetizam a narrativa hegemônica: “um desfecho com a Dilma não agrega… O Brasil está perdendo o bonde da história”, afirmou a jornalista Cristiana Lôbo. Já Renata Lo Prete asseverou: “podemos chegar ao final do dia sem a ideia de que o país está dividido”.

Na Globo, o tradicional filme das tardes de domingo foi suspenso para dar espaço à cobertura ao vivo do que se passava na Avenida Paulista, em São Paulo. “Agora há pouco a gente presenciou o momento mais emocionante das manifestações. A FIESP jogou balões verdes e amarelos contra o número de impostos que os brasileiros pagam. Foi um movimento muito forte, as pessoas aplaudiram, foi uma emoção aqui”, declarou um repórter. Outra jornalista não conteve o entusiasmo e arrematou: “está linda a festa”.

O mesmo enquadramento foi repetido no programa nobre do domingo, o Fantástico. Em trinta e cinco minutos de programa, coube ao PT apenas 45 segundos de fala; à secretaria de Comunicação da Presidência da República, 30 segundos; e, aos protestos pró-governo, que também haviam sido realizados, menos de 2,5 minutos. A reportagem de abertura do programa, que teve 17 minutos de giro nacional e internacional sobre os atos, não teve qualquer contraponto.

O bloco sobre as manifestações foi encerrado com mais de 6 minutos sobre novas táticas e descobertas da operação Lava Jato, selando um domingo nada plural – e triste – para o jornalismo brasileiro. Nos dias seguintes, vazamento de conversas envolvendo Lula e, inclusive, a presidenta da República, que bem poderiam ser compreendidas como ataques à Segurança Nacional, ganharam destaque. Os apresentadores do JN, William Bonner e Renata Vasconcelos, chegaram a protagonizar uma vergonhosa leitura teatral das conversas – grampos ilegais que tiveram o sigilo derrubado pelo juiz Sérgio Moro. Buscando ocultar a parcialidade, o jornal apresentou respostas de Dilma, bem como protestos contrários ao afastamento – além, claro, daqueles favoráveis que se multiplicaram enquanto o JN ainda estava no ar.

Postura diversa foi adotada na cobertura dos atos em defesa da democracia, com destaque para aqueles realizados no dia 18 de março. Repetidos à exaustão, os números inferiores destes protestos em relação aos marcados pelo verde e amarelo passado foram também um elemento central para deslegitimá-los. Reiterando o argumento, o Jornal Nacional apresentou, no dia seguinte, uma reportagem somente sobre o comparativo das presenças. Outras duas diferenças foram notórias: a menor intensidade da cobertura e a presença do contraditório. A frase de Eliane Catanhede dispensa grandes explicações:

“a manifestação de hoje mostra que quem está indo pra rua é a militância. Não é o conjunto do povo brasileiro”, disse a comentarista. Assim, a Globo buscou levar o telespectador a não se enxergar naquelas pessoas “de vermelho” e “petistas”, como tantas vezes foram tachadas, numa ocultação de toda a diversidade de posicionamentos políticos de pessoas e grupos que denunciaram o golpe.

Capas do O Globo não deixam dúvidas acerca dessa estratégia. “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula e a favor de Moro”, estampou o periódico no dia 13 de março. “Aliados de Dilma e Lula fazem manifestação em todos os estados”, resumiu no dia 18.

Os casos deixaram nítida a midiatização da política e das ações do próprio Judiciário, bem como as estratégias de manipulação adotadas pela Globo, no que foi seguida por boa parte da imprensa brasileira. A seletividade das acusações, especialmente das denúncias de corrupção; a confirmação da relevância de determinados fatos e posicionamentos, aos quais foi atribuído caráter nacional; a utilização de números e imagens que conferiam legitimidade à argumentação e a fixação de argumentos por meio da repetição e da eliminação do contraditório foram os elementos da estratégia. Para não correr riscos, a Globo, especialmente, valeu-se de falas editorializadas ao longo de toda a cobertura, ao passo que a emissora praticamente dispensou a presença de comentaristas externos. A opinião pública era, afinal, a opinião dos próprios jornalistas do grupo.

Diante desse quadro e garantido o enraizamento social de tal posicionamento, não foi preciso abusar da inteligência dos analistas de mídia durante a cobertura da aprovação do afastamento, acompanhada, ao vivo, em todo o Brasil. Registros dos atos e de declarações de deputados foram abundantes. Não se viu, contudo, apuração, investigação, contextualização e problematização do processo em curso. Os argumentos que embasam o pedido de impeachment não foram apresentados, muito menos os de sua defesa. Nenhum convidado externo – nem mesmo um “especialista” alinhado ao posicionamento da Globo – foi convidado a discutir a situação do país. A postura motivou diversas críticas por parte da imprensa internacional, que denunciou o papel de políticos como Eduardo Cunha em todo o processo, as fragilidades jurídicas e mesmo os riscos à democracia. A crítica também foi direcionada aos conglomerados midiáticos. A tentativa de imprimir outras leituras à crise política e de denunciar as artimanhas que levariam ao impeachment coube aos veículos alternativos e também às emissoras públicas, em especial à TV Brasil. Também, por isso, apontam jornalistas da casa, a empresa sofreu forte retaliação logo que Temer assumiu.

Quando do episódio de demissão do diretor-presidente da EBC, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos, Edson Lanza, destacou que “o desenvolvimento de um sistema de meios de comunicação público em nível nacional, com garantias de independência em sua gestão e mecanismos de participação para a sociedade civil constitui um esforço positivo para a promoção do pluralismo de vozes nos meios de comunicação do Brasil”.

Os fundamentos da ataque da mídia à democracia

Pesquisador da relação entre mídia e democracia, o professor aposentado da UnB, Venício Lima, critica a postura adotada pela grande mídia no contexto da atual crise política. Para ele, ela expressa “continuidades históricas no comportamento da mídia que são fundamentalmente antidemocráticas e que são construtoras de uma cultura política que acaba sendo a cultura política dominante, independente de, por exemplo, uma nova geração que não necessariamente se utiliza de uma velha mídia”.

A partir da leitura de diversos estudos sobre o tema, Lima aponta três elementos-chave desse comportamento dos meios de comunicação. O primeiro é a adoção de um conceito de opinião pública “publicista”. Exemplificando o termo a partir da ação da mídia contra o presidente João Goulart, ele explica que os meios “assumiam que o papel da mídia era um papel de formação da opinião pública, mas ao mesmo tempo era um papel de representação e expressão dessa opinião pública”, o que era feito também com a desqualificação de outras instituições, como partidos, sindicatos e o próprio Congresso.

Em sentido semelhante, outra continuidade que pode ser percebida é a construção de um discurso adversário em relação à democracia, que é expresso na crítica permanente à política e aos políticos. Um olhar sobre as consequências dessa argumentação, para o professor, pode ajudar a explicar a eleição de candidatos que se apresentam como “apolíticos” nas eleições deste ano.

O perfil conservador desses políticos pode estar associado ao terceiro elemento destacado por Lima: o fato de a grande mídia ter adotado o discurso da vulgata neoliberal e, obviamente, refratário à esquerda. “Se você analisar o conjunto de palavras que fazem parte de um léxico neoliberal que vão sendo introduzidas no cotidiano das

pessoas, e como a mídia passou a criar uma linguagem pública usando esse léxico, é impressionante. E, no contexto dessa vulgata neoliberal, há também uma linguagem que favorece a intolerância e o ódio”, opina.

A cobertura oficialesca das medidas de Temer

O programa neoliberal adotado sem mediações por Michel Temer encontra na mídia um grande aliado. Medidas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que propõe o congelamento dos gastos públicos por vinte anos, ou a Reforma da Previdência têm sido apresentadas como ações imprescindíveis para que o país obtenha melhoras em seus índices econômicos. O discurso sobre a PEC, repetido à exaustão, buscava simplificar o problema e ocultar propostas concretas de saídas para a crise que não apenem os trabalhadores, como a auditoria da dívida pública e a taxação das grandes fortunas. No dia 30 de novembro, data da votação da Proposta no Senado, milhares de pessoas de todo o país foram a Brasília protestar contra a aprovação da medida que é considerada como um marco do fim do pacto constitucional firmado em 1988. O objetivo delas era chamar a atenção da sociedade e pressionar os parlamentares. Não obstante, a agenda midiática foi alterada devido ao acidente aéreo que vitimou 71 pessoas na Colômbia, a maior parte formada por integrantes do clube Chapecoense e profissionais da imprensa.

A tragédia ocupou todos os noticiários, de forma praticamente ininterrupta e sensacionalista. Enquanto os movimentos protestavam na Esplanada dos Ministérios, às casas de milhares de pessoas não chegavam informações sobre o que ocorria em Brasília. O silêncio fora rompido apenas quando o conflito já estava instaurado no local. Então, era útil à imprensa defensora da PEC apontar os atos de “vandalismo” – sem criticar, claro, a violência policial. Na madrugada, a Câmara dos Deputados também aproveitou o envolvimento dos brasileiros com a tragédia para alterar e votar o pacote de medidas contra a corrupção. Nos dias que se seguiram, enquanto a PEC não ganhava destaque em jornais como o Bom Dia Brasil e o Jornal Nacional, duas das principais fontes de informação de milhares de pessoas, a cobertura sobre o Chapecoense dava lugar apenas à discussão sobre as medidas de combate à corrupção.

Nos dias seguintes, as políticas propostas pelo governo Temer continuaram a ter o apoio da grande mídia, mas o discurso em relação ao presidente ganhou inflexões. Após oanúncio do acordo firmado pela cúpula da Odebrecht com o Ministério Público Federal (MPF), reportagens críticas passaram a ser mais recorrentes. No dia 9 de dezembro, o Jornal Nacional revelou o acordo de Cláudio Melo Filho, ex-diretor da empreiteira. Na abertura, citou o nome de Temer após destacar os de vários políticos da cúpula do governo. Na sequência, foi feito o anúncio de denúncia contra o ex-presidente Lula e seu filho e, em seguida, da redução da inflação – “a menor do mês de novembro em 18 anos”. A primeira notícia do jornal foi exatamente sobre a pauta positiva do dia: a redução da inflação. A segunda tratou da prisão do prefeito de Embu das Artes, na Grande São Paulo. A terceira, da identificação de suspeitos de matar um turista italiano, no Rio de Janeiro. A quarta, do anúncio do novo técnico da Chapecoense. Uma matéria sobre a situação dos sobreviventes do acidente foi apresentada na sequência.

Do acidente, o JN passou a um tema internacional, o relatório do Unicef sobre crianças que vivem em áreas de conflito ou são afetadas por desastres naturais. No segundo bloco, ganhou espaço a reforma da previdência, tema de duas reportagens seguidas. Até mesmo a previsão do tempo já havia sido anunciada quando, aos 25 minutos e 30 segundos, foi ao ar a matéria sobre a delação.

O destaque dado foi à denúncia contra Geraldo Alckmin. Embora o nome de Temer tenha sido pronunciado nas chamadas do jornal, inclusive na escalada, o caso envolvendo o presidente só foi detalhado aos 43 minutos e 10 segundos, por meio de link com um jornalista posicionado em Brasília. Isso é, não precisou de edição ou algo mais complexo do ponto de vista técnico. O texto passou longe de ser personalista. O nome de Temer foi apresentado em meio a muitos outros. E mais. Foi um dos últimos a ser citado. A “atuação indireta” de Temer, que teria pedido doações pessoalmente em uma ocasião, foi explicitada. No dia 10, o depoimento dele veio à tona. Na lista de 51 políticos, o próprio Temer – citado 43 vezes na delação premiada. O tom adversário verificado em momentos anteriores, contudo, não foi reprisado.

Na longa chamada inicial do Jornal Nacional, o nome do presidente sequer foi citado. A matéria sobre o capítulo dedicado por Cláudio Melo Filho a Temer começou assim: “as delações da Lava Jato, que já tinham atingido em cheio o grupo político do PT, e que ainda podem atingir mais nas próximas revelações, voltam-se agora contra para o núcleo do PMDB e políticos do PSDB”. O nome de Temer é citado quando a reportagem alcança o primeiro minuto. Destaca trecho da delação em que o empresário diz que Temer atuava de “maneira muito mais indireta”. O tratamento da denúncia de pedido de R$ 10 milhões foi bastante sutil, sobretudo se compararmos com a postura adotada em delações que envolveram Dilma Rousseff. No Jornal das 10, na Globo News, o tradicionalmente ácido Merval Pereira teve que fazer uma ginástica argumentativa para criticar o vazamento das delações. Merval chegou a concordar com a postura da Procuradoria- Geral da República, que decidiu abrir investigação para apurar o vazamento do conteúdo de delações.

A fragilidade do governo abriu espaço para a disputa entre setores da burguesia, que se reflete também no comportamento da mídia. Os jornais impressos deram destaque ao envolvimento do atual presidente, inclusive O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, que deram exclusividade, na chamada principal, à referência a Temer. A disputa pela ocupação do poder dependerá do resultado da pressão popular diante das novas denúncias e do avanço das propostas conservadoras, como a PEC 55 e a reforma da previdência. Este capítulo da história está aberto. E a posição da mídia, mais uma vez, poderá ser definidora. Conforme visto, embora os canais privados resguardassem entre si algumas divergências editoriais e formais, a narrativa geral que culminou no estabelecimento do impeachment de Dilma e com a chegada ao poder de Temer seguiu um caminho coerente e uníssono em seu objetivo geral. O governo Temer encontra na grande mídia uma aliada no que diz respeito ao apoio às medidas neoliberais mais polêmicas.

A falta de pluralidade de opiniões remonta à própria estrutura que organiza os meios de comunicação no Brasil regidos por uma lógica estritamente comercial. Além disso, a posse dos canais de rádio e TV por grupos religiosos e/ou políticos, conforme veremos, também garante a ressonância de um discurso hegemônico condizente com os interesses das elites políticas nacionais.

[1] Fonte: opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,chegou-a-hora-de-dizer-basta,10000020896

Raio X da ilegalidade: políticos donos da mídia no Brasil

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Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emissoras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da democracia brasileira e do conservadorismo político.

Texto: Iara Moura | Colaboraram: Mônica Mourão, Raquel Dantas e Yuri Leonardo

Segundo informações do Sistema de Acompanhamento de Controle Societário – Siacco, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), 32 deputados e oito senadores são proprietários, sócios ou associados de canais de rádio e TV. Têm, assim, espaço privilegiado de disputa pelo voto antes mesmo do período de campanha determinado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os 40 parlamentares são alvo de uma ação no Supremo Tribunal Federal que questiona a constitucionalidade da participação de políticos titulares de mandato eletivo como sócios de empresas de radiodifusão e pede medida liminar para evitar a ocorrência de novos casos.

Na mira da justiça

Buscando combater a concentração de emissoras nas mãos de políticos, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) com o apoio do Intervozes protocolou, em dezembro de 2015, uma Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 379) no Supremo Tribunal Federal (STF).

Em novembro do mesmo ano, uma articulação de entidades da sociedade civil e institutos de pesquisa entregou ao MPF representação denunciando os políticos que foram em seguida listados na ADPF. A representação traz nomes famosos como o do senador Fernando Collor e dos deputados Sarney Filho (PV-MA), Elcione Barbalho (PMDB-PA) – ex-mulher de Jader Barbalho, Rodrigo de Castro (PSDB-MG) e Rubens Bueno (PPS-PR) – líder do partido na Câmara. O próprio MPF de São Paulo já havia protocolado poucos dias antes ação contra veículos de radiodifusão ligados aos deputados paulistas Antônio Bulhões (PRB), Beto Mansur (PRB) e Baleia Rossi (PMDB).

Para o procurador geral da República Rodrigo Janot, a posse de canais de rádio e TV por políticos fere a liberdade de expressão e o princípio de isonomia, segundo o qual os candidatos e partidos devem ter igualdade de chances na corrida eleitoral. Ao emitir parecer favorável à ADPF 379, em agosto último, Janot argumentou que “a dinâmica social produz normalmente desigualdades – há, de fato, aqueles com maior poder econômico ou que detêm, na órbita privada ou na pública, função, cargo ou emprego que lhes confere maior poder de influência no processo eleitoral e político”. Porém, de acordo com ele, “não deve o próprio Estado criar ou fomentar tais desigualdades, ao favorecer determinados partidos ou políticos por meio da outorga de concessões, permissões e autorizações de serviço público, em especial de um relevante como a radiodifusão”. Segundo defendem alguns órgãos do Judiciário, pesquisadores e entidades do campo do direito à comunicação, a prática contraria o disposto no artigo 54 da Constituição Federal, segundo o qual deputados e senadores, a partir do momento em que são diplomados, não podem “firmar ou manter contrato” ou “aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado” em empresa concessionária de serviço público. A primeira linha do artigo seguinte da Constituição, de número 55, diz: “Perderá o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior”.

O próprio STF, no julgamento da Ação Penal 530, confirmou que os artigos 54, I, “a” e 54, II, “a” da Constituição contêm uma proibição clara que impede deputados e senadores de serem sócios de pessoas jurídicas titulares de concessão, permissão ou autorização de radiodifusão. Para o Ministro Luís Roberto Barroso, o objetivo desta proibição foi prevenir a reunião entre “poder político e controle sobre veículos de comunicação de massa, com os riscos decorrentes do abuso”. Segundo a Ministra Rosa Weber, “a proibição específica de que parlamentares detenham o controle sobre empresas de radiodifusão” visou evitar o “risco de que o veículo de comunicação, ao invés de servir para o livre debate e informação, fosse utilizado apenas em benefício do parlamentar, deturpando a esfera do discurso público”. A mesma ministra rejeitou, em novembro último, o pedido de liminar impetrado por Michel Temer por meio da Advocacia Geral da União, que pedia a suspensão de processos que contestam as concessões de rádios e TVs em nome de deputados e senadores.

Uma prática antiga

Segundo a pesquisadora e professora da UFRJ Suzy dos Santos, o fenômeno de políticos radiodifusores, chamado de “coronelismo eletrônico”, é antigo. Desde o processo de redemocratização, os governos eleitos mostraram-se não apenas tolerantes, mas protagonistas da prática de distribuição de canais de rádio e TV entre aliados políticos. “Demonstramos através de documentos históricos, correspondências, eportagens, a instrumentalização das concessões de rádio e televisão desde o período Vargas até os dias atuais. Você verifica claramente que desde os tempos do PSD, os partidos governistas sempre se mantiveram como os partidos dos políticos donos de radiodifusão”, explica.

No período de 1985-1988, foi ampla a distribuição de outorgas de radiodifusão a parlamentares constituintes. Segundo o pesquisador César Bolaño, “durante o governo do presidente José Sarney, as concessões foram ostensivamente usadas como moeda política, dando origem a um dos processos mais antidemocráticos do processo constituinte. Em troca de votos favoráveis ao mandato de cinco anos para presidente, foram negociadas 418 novas concessões de rádio e televisão. Com isso, cerca de 40% de todas as concessões feitas até o final de 1993 estavam nas mãos de prefeitos, overnadores e ex-parlamentares ou seus parentes e sócios”.

Ao longo dos anos, a prática ficou mais sutil, mas não foi abandonada. O governo de Fernando Henrique Cardoso distribuiu pelo menos 23 outorgas para políticos, enquanto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva concedeu, até agosto de 2006, pelo menos sete canais de TV e 27 outorgas de rádio a fundações ligadas a políticos. Entre os anos de 2007 a 2010, 68 congressistas eram ligados a pessoas jurídicas concessionárias de radiodifusão, enquanto no período de 2011 a 2014, 52 deputados federais e 18 senadores eram sócios ou associados de concessionária.

Em relação à legislatura atual (2015-2019), o projeto “Excelências”, vinculado a Transparência Brasil, revela que 43 deputados são concessionários de serviços de rádio ou TV, totalizando 8,4% dos membros da Câmara dos Deputados. Por sua vez, o Senado Federal é proporcionalmente ainda mais marcado por este fenômeno, já que 19 senadores são concessionários, atingindo a marca de 23,5% dos membros da casa. Ou seja, de 594 parlamentares eleitos, 63 são outorgados de meios de comunicação, atingindo a marca de mais de 10% do Congresso Nacional. “No caso de alguns estados como o Rio Grande do Norte, Roraima ou Santa Catarina, a propriedade de canais de rádio e TV por políticos ultrapassa 50% do total”, denuncia Suzy.

Os números apresentados pelo projeto “Excelências” revelam que, para além da vinculação juridicamente registrada de políticos com os serviços de radiodifusão, existem ainda os casos em que os parlamentares mantêm influência a partir de “laranjas” ou parentes no quadro societário dos veículos. É o caso do senador Eunício de Oliveira (PMDB-CE), que tem sua esposa Mônica Paes de Andrade Lopes de Oliveira, o irmão Edilson Lopes de Oliveira e o seu correligionário Gaudêncio Lucena como sócios proprietários da Rádio Tempo FM, em Juazeiro do Norte.

A situação de domínio político sobre os meios de comunicação expõe um grave conflito de interesses, uma vez que o próprio Congresso Nacional é responsável pela apreciação dos atos de outorga e renovação de concessões e permissões de radiodifusão. Segundo explica Camila Marques, advogada da Artigo 19, “a posse dos meios de radiodifusão por políticos afeta a isonomia, o pluralismo e o interesse público porque o sistema brasileiro de regulação de radiodifusão não prevê um regulador independente para deliberar sobre a distribuição do espectro eletromagnético e, por isso, essa deliberação é realizada por um procedimento licitatório em que os parlamentares do Congresso Nacional ocupam um papel central na análise das outorgas realizadas pelo poder executivo”, analisa.

Um dos episódios emblemáticos desta situação foi a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados de 38 concessões de radiodifusão e a renovação de outras 65 em apenas três minutos e com apenas um deputado presente no plenário, em 2011. Além disso, há ocasiões em que os parlamentares votam na aprovação das próprias outorgas ou renovações.

Segundo apuração da Folha de S. Paulo, dos 40 congressistas que constam como sócios de rádios ou TVs, sete creem que a legislação permite esse tipo de participação, desde que eles não exerçam funções administrativas nas emissoras. Essa opinião foi manifestada por Baleia Rossi (PMDB-SP), Fernando Collor (PTB-AL), Gonzaga Patriota (PSB-PE), João Henrique Caldas (SD-AL), João Rodrigues (PSD-SC), Ricardo Barros (PR-PR) e Victor Mendes (PV-MA).

Em manifestação encaminhada em maio de 2015 ao Supremo Tribunal Federal, a Advocacia Geral da União (AGU) endossa a tese de que a situação não infringe o disposto na Constituição. O órgão pronunciou-se pela rejeição da ADPF 379, argumentando que “não se pode aferir diretamente desse fato a manipulação da opinião pública, conforme pretende fazer crer o autor”, pois “os preceitos constitucionais invocados estão plenamente assegurados pelo próprio ordenamento jurídico, especificamente pelo Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65), que regula a propaganda eleitoral e impede a manipulação de informações e o controle da opinião pública por meio de empresas de radiodifusão”.

Casos de família

Alô, pai / Meu filho, esse negócio que eu li hoje do filho do Aderson Lago, esse sujeito foi muito cruel com a gente, com todos nós, com Roseana (Sarney), comigo. Escreveu aquele artigo outro dia me insultando de uma maneira brutal, vamos botar isso na televisão / (…) O cara já está aqui, da Globo, desde segunda-feira e estamos trabalhando

nisso, tá? / Falou com ele isso? / Falei, falei com ele. Falei com ele, mostrei tudo. Vai dar, vai dar certo (…) / Esse foi um assunto que eu peguei desde o começo, consegui, passei pro Sérgio, tô passando pro jornal pouco a pouco (…).

O diálogo transcrito acima [ouça aqui] ocorreu em 2009 entre o senador José Sarney e seu filho, Fernando Sarney, deputado federal, proprietário do Sistema Mirante (formado pela Rádio Litoral Maranhense, Rádio Mirante e pela TV Mirante). A escuta feita pela Polícia Federal foi amplamente divulgada pela imprensa e demonstra a interferência de interesses políticos na linha editorial dos canais de rádio e TV. Na ocasião, o senador José Sarney solicitou a seu filho a utilização da emissora de radiodifusão que possui em São Luís do Maranhão, a TV Mirante, afiliada da Rede Globo, para a veiculação de denúncias contra seus rivais do grupo do ex-governador Jackson Lago.

São muitos os causos do clã dos Sarney quanto à utilização das redes de rádio e TV para beneficiar os negócios da família. Na eleição de 1994 para eleger o governador do Maranhão, o candidato Cafeteira era o principal adversário de Roseana Sarney. Roseana liderava por apenas 1% de diferença nas intenções de voto quando, no início do segundo turno, os jornais e a TV da família começaram a divulgar que Cafeteira havia mandado matar o adversário José Raimundo dos Reis Pacheco. Faltando dois dias para o encerramento da campanha, a equipe de Cafeteira localizou José Raimundo e gravou entrevista com ele para exibir no último programa eleitoral gratuito. Naquela noite, a imagem da tevê desapareceu misteriosamente em todo o interior maranhense. Só a capital são Luís, onde vivia 1/3 do eleitorado testemunhou a imagem do homem dado como morto, atestando, ele mesmo, que o boato de assassinato era falso. O caso foi contado pelo jornalista Palmério Dória no livro “Honoráveis bandidos”, lançado em 2009.

Episódios parecidos se multiplicam Brasil afora. O ex-senador, governador da Bahia por três mandatos (dois dos quais como governador biônico indicado pelo governo militar) e ministro das comunicações do governo de José Sarney, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) é alvo de uma longa lista de reclamações contra a utilização política do seu grupo de comunicação. Além da Construtora OAS, comandada pelo seu genro Cesar Mata Pires, seu filho, Antônio Carlos Magalhães Júnior, é presidente da Rede Bahia, que engloba diversas empresas do estado, principalmente de comunicação. São elas: 88.7 Bahia FM,102,1 FM Sul (rádio FM em Itabuna), Correio da Bahia (jornal impresso) teve o nome reformulado para “Correio”, Globo FM (Rádio FM em Salvador), TV Bahia (afiliada da Rede Globo em Salvador e região), TV São Francisco (afiliada da Rede Globo em Juazeiro e região), TV Oeste (afiliada da Rede Globo em Barreiras e região), TV Santa Cruz (afiliada da Rede Globo em Itabuna e região), TV Subaé (afiliada da Rede Globo em Feira de Santana e região), TV Sudoeste (afiliada da Rede Globo em Vitória da Conquista e região), TV Salvador (canal fechado, transmitido em UHF ou por assinatura). Somente no ano de 1993, seu primeiro ano de mandato, a assessoria de comunicação da ex-prefeita de Salvador Lídice da Mata (PSDB) contabilizou a veiculação de 600 matérias contra a sua administração pela TV Bahia, repetidora da Globo, de propriedade da família Magalhães.

No ar, bancada BBB: boi, bala e bíblia

Suzy dos Santos, professora da UFRJ e coordenadora do projeto “Coronelismo eletrônico: as concessões na história política nacional”, explica que a posse direta ou indireta de canais de rádio e TV por políticos produz uma enorme deformidade no regime democrático e guarda semelhanças com formas de poder plutocrático característico da República Velha ou Primeira República (1889-1930), quando o capital político centrava-se em figuras autoritárias que mantinham com seu eleitorado uma relação dúbia de troca de favores, exploração e repressão. No Brasil rural, o poder político está ligado à posse de terras e à exploração da mão de obra campesina em grandes latifúndios. A palavra “coronel” refere-se à patente militar não apenas porque alguns destes políticos a detinha, mas porque, fardados ou não, faziam uso da violência para manter o controle político e perseguir não-aliados. Passados quase 90 anos, o cenário, hoje em dia, não é muito diferente.

Entre os 32 deputados concessionários de rádio e TV listados na ADPF 379, 18 são grandes proprietários de terra ou pecuaristas, compondo a chamada bancada ruralista, que defende no Congresso os interesses do agronegócio; nove são ligados à bancada evangélica; três estão nas duas bancadas. Além disso, dois deputados do conjunto integram também a chamada bancada da bala. No caso dos senadores, figuram na ação os nomes de Aécio Neves (PSDB-MG), Edison Lobão (PMDB-MA), Fernando Collor de Mello (PTB-AL), Agripino Maia (DEM-RN), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Jader Barbalho (PMDB-PA), Acir Gurcacz (PDT-RO) e Roberto Coelho Rocha (PSDB-MA), cujo filho é atualmente candidato à vice prefeitura de São Luís. Este último também compõe a bancada ruralista. Os sete demais são alvo de alguma investigação, segundo levantamento da Agência Pública.

Os nomes de destaque na política nacional, entre eles o de Aécio Neves, candidato à presidência derrotado no último pleito, demonstram que o coronelismo eletrônico, diferente do que se possa pensar, não é um fenômeno restrito à zona rural ou às regiões mais pobres do País, mas é generalizado e atinge também os grandes centros urbanos.

Na grande São Paulo, após ações civis públicas movidas pelo MPF e pelo Intervozes, em iniciativa oriunda do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (Findac), o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) determinou, em abril deste ano, o cancelamento das concessões de cinco emissoras de rádio que têm como sócios proprietários os deputados federais Baleia Rossi (PMDB-SP) e Beto Mansur (PRB). A medida atende ao pedido do Ministério Público Federal que, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), em São Paulo, ajuizou ações civis públicas contra os parlamentares em novembro de 2015. Alguns meses depois, porém, a liminar que determinava a retirada do ar da Rádio Cultura FM, e Rádio Cultura São Vicente, de propriedade de Beto Mansur, foi suspensa.

Mais recentemente, em agosto deste ano, também por meio de liminar, foi determinada a interrupção das transmissões da Rádio Metropolitana Santista Ltda (1.240MHz) de propriedade de Antônio Carlos Bulhões (PRB-SP).

Com as decisões, está suspensa a execução dos serviços de radiodifusão da Rádio Show de Igarapava LTDA, Rádio Metropolitana Santista e da Rádio AM Show LTDA, que contam com a participação de Baleia Rossi e Antônio Carlos Bulhões em seus quadros societários. O caso da Rádio Cultura FM em Santos é emblemático, uma vez que além da questão da posse por parlamentar, a emissora havia anunciado a mudança total da programação, arrendada para a Igreja Universal do Reino de Deus em setembro de 2015. A legislação de radiodifusão estabelece que a quantidade máxima de programação que pode ser comercializada pelo controlador da outorga é 25% do tempo total.

“O arrendamento de emissoras de radiodifusão caracteriza comercialização ilícita de outorgas públicas”, explica Bráulio Araújo, advogado, integrante do Coletivo Intervozes e um dos autores das ações contra os parlamentares radiodifusores. As Redes TV, 21 e CNT são as campeãs em arrendamento no país, segundo levantamento feito em 2014, comercializando respectivamente 49% e 91% de seus tempos de programação. Em junho deste ano, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei (PL) 2088/15, que permite a transferência de 50% das cotas ou ações representativas do capital de radiodifusão já no primeiro ano de vigência da outorga, e a transferência integral das cotas ou ações apos esse período, alterando a regra atual do Decreto 52.795/1963, que só permite a transferência de outorgas cinco anos após a expedição do certificado de licença para funcionamento (art. 90).

De acordo com a proposta da deputada Renata Abreu (PTN-SP), caso o poder executivo não se manifeste no prazo de 90 dias, a emissora estará tacitamente autorizada a proceder à transferência requerida. O projeto é muito permissivo por reduzir o prazo necessário para a efetivação das transferências e por prever de anuência tácita, caso o Poder Executivo não se manifeste em 90 dias. Segundo Bráulio Araújo, a transferência direta e indireta de outorgas de radiodifusão é inconstitucional pois descumpre a exigência constitucional de prévia licitação, ensejando a negociação de outorgas públicas por particulares e o controle de concessões por terceiros que não participaram do processo de licitação.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2946, a Procuradoria Geral da República questiona um dispositivo análogo da lei de concessões de serviços públicos (lei 8.987/1995), que autoriza a transferência de outorgas. Na ação, a PGR afirma que a autorização legal à transferência direta e indireta de concessões faz com que “a fraude ao sistema da licitação pública atinja raias de literal imoralidade”, vez que permite “a uma determinada empresa especializar-se em ‘vencer concorrências públicas’, repassando- as, em seguida, para empresas realmente interessadas no serviço”.

De pai para filho, de amigo para amigo

A Rádio Cultura AM foi inaugurada inicialmente em São Vicente, em 17 de outubro de 1946 e depois transferida para Santos. A emissora foi fundada por Paulo Salim e Jorge Mansur. Em 1958, o então diretor, Paulo Jorge Mansur, desdobrou a emissora em duas rádios – Rádio Cultura S. Vicente AM e Rádio Cultura de Santos FM –, ambas pertencentes à Sociedade Rádio Cultura São Vicente LTDA.

A rádio foi a segunda emissora do Brasil a entrar no ar e, desde então, cumpre papel político central nas disputas locais. O fundador da rádio, Jorge Mansur, acumulou popularidade ao apresentar o programa “A voz do povo” e foi eleito deputado por três mandatos. A partir de 1964, a Sociedade Cultura de São Vicente LTDA passou a ser constituída por Paulo Roberto Mansur, Gilberto Mansur e Maria Gomes Mansur, filhos de Paulo Jorge Mansur, que se desligou juridicamente, por motivos políticos. Seu filho Paulo Roberto Mansur (Beto Mansur), foi eleito – primeiramente vereador (1989), depois deputado federal (1991), prefeito (1996) e reeleito em 2000 – através da utilização do veículo rádio. A família ampliou seus negócios também para a televisão. Em 2001, os Mansur venceram a concorrência pública do canal 46 de Santos.

O poderio da família Mansur não se esgota nos negócios de mídia. Beto Mansur é empresário e latifundiário. No caso do deputado, a versão moderna do coronel tem raízes arcaicas com a exploração monocultora, a utilização de mão-de-obra análoga ao trabalho escravo e ainda a exploração do trabalho infantil. Em 2014, o deputado foi condenado pelo Tribunal Superior do Trabalho. Em nota publicada à época, Mansur negou as acusações e argumentou que a legislação brasileira é vaga na determinação do que é ou não trabalho escravo, o que acaba “prejudicando enormemente os produtores rurais”. Para livrar-se do questionamento do MPF sobre a posse das rádios, Mansur doou sua participação indireta nas empresas de radiodifusão para seus filhos e esposa.

Baleia Rossi vendeu a sua participação em uma das rádios para um de seus irmãos. A outra rádio, ele alega que foi vendida há alguns anos. Essas medidas estão sendo questionadas pelo MPF no âmbito das ações civis públicas.

O também deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) utilizou-se de expediente parecido para se defender ao ser investigado pelo MPF por não declarar à Justiça Eleitoral, nas últimas três eleições, ser sócio da rádio Satélite, em Pernambuco. Cunha comprou a rádio em 2005 e segundo afirmou em defesa, vendeu a emissora em 2007. O problema é que o Ministério das Comunicações, onde os registros das rádios são feitos, não homologou a transferência. Cunha afirma que as transações de compra e venda foram declaradas em seu imposto de renda. Atualmente a rádio é explorada pelo pastor R.R. Soares. A representação contra Eduardo Cunha segue em averiguação pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro.

Na sintonia do golpe

Os políticos na mira do MPF tiveram participação ativa no processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef. Dos oito senadores radiodifusores, sete votaram a favor do impeachment e um se ausentou da votação. Dos 32 deputados federais, 23 foram a favor, oito contra e um faltou à sessão. O deputado federal Beto Mansur foi um dos principais articuladores do impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados. Papel também crucial teve o senador Aécio Neves. Os golpistas estão muito ligados ao poder midiático. Para se ter uma ideia, no quadro atual do governo Temer, do total de 24 ministros, quatro são radiodifusores. Mendonça Filho, ex-deputado e ex-governador de Pernambuco, ministro da Educação, já esteve entre os acionistas da TV Jornal do Commercio, além da Rádio Difusora de Caruaru, Rádio Difusora de Garanhuns, Rádio Difusora de Limoeiro e Rádio Difusora de Pesqueira. Todas do mesmo grupo do empresário João Carlos Paes Mendonça.

Ricardo Barros, ex-deputado federal e ex-prefeito de Maringá (PR), atual ministro da Saúde, declarou possuir 99% das cotas da Rádio Jornal de Maringá (PR), no valor de R$ 488 mil, o que corresponde a cerca de 30% de seu patrimônio de R$ 1,8 milhão. Hélder Barbalho, ex-prefeito de Ananindeua (PA), ministro da Integração Nacional do governo Temer, também declarou ser dono de TVs no Pará, retransmissoras da Band. Ser ministro e radiodifusor não constitui uma ilegalidade em si. Mas além de misturar os poderes político e midiático de forma pouco saudável para a democracia, em geral os responsáveis pelos ministérios tenham exercido cargo eletivo quando já eram proprietários de meios de comunicação.

Andamento

A ADPF 379 encontra-se nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, relator da arguição. Além do parecer favorável da PGR, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e a Artigo 19 protocolaram amicus curiae (intervenção externa em processo através de opinião jurídica) endossando a ADPF. Na contramão, além da AGU, Senado, Câmara dos Deputados e Presidência da República protocolaram manifestações contrárias. A representação contra os políticos radiodifusores de todo o país segue tramitando junto às Procuradorias Regionais dos Direitos do Cidadão do MPF em cada um dos 18 estados de origem dos políticos listados.

Brasil é medalhista olímpico em violação do direito à comunicação

A empolgação com os esportes não apaga o “legado negativo” dos Jogos Olímpicos. Além da repressão policial e das remoções, o cerceamento à liberdade de expressão e a concentração midiática marcaram a Rio 2016

Texto: Iara Moura e Mônica Mourão |Colaborou: Eduardo Amorim, Yuri Leonardo, Caio Barbosa, Camila Nobrega e Cinco de Terra

As Olimpíadas de 2016 encerram quase dez anos em que diversas cidades do Brasil viveram as mudanças causadas por um megaevento esportivo. Desde a preparação para os Jogos Pan-Americanos de 2007, bilhões foram investidos em gastos feitos a partir de parcerias público- privadas (PPP) em diferentes áreas. A comunicação é uma delas. O International Broadcast Center (IBC), centro de mídia para a transmissão dos Jogos, faz parte de uma PPP que inclui também o Main Press Center (MPC) e o Hotel de Mídia. O custo total do complexo é estimado em R$ 1,68 bilhão, dos quais R$ 1,15 bilhão vem de recursos privados e R$ 528 milhões da prefeitura do Rio de Janeiro. Após os Jogos Olímpicos, o “legado” ficará sob a responsabilidade da Concessionária Rio Mais, formada pelas empresas Odebrecht, Andrade Gutierrez e Carvalho Hosken, responsáveis pela construção.

“Saber que a prefeitura do Rio gastou todo este dinheiro para um centro de mídia que vai funcionar apenas durante os megaeventos é ter certeza de que a prefeitura e o governo do estado do Rio têm suas preferências no que investir. Este é mais um exemplo para mostrar também que esta cidade está virando uma cidade apenas para turistas, para ricos, para alguns”, afirmou a jornalista, comunicadora popular e moradora do Complexo da Maré Gizele Martins. No contexto dos megaeventos realizados na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 250 mil pessoas sofreram remoções, segundo dados da Articulação Nacional dos
Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas (Ancop). É certo que o grande público e as comunidades afetadas com as remoções e a violência policial pouco ficou sabendo das violações de direitos relacionadas ao Pan, à Copa e às Olimpíadas, até porque os direitos de transmissão das competições também ficaram nas mãos de poderosos grupos de mídia no Brasil e o acesso à informação e o direito à livre manifestação de pensamento foram violados durante os Jogos.

Segundo a mareense Gizele Martins, “se todo o dinheiro [investido no IBC] fosse dividido entre os inúmeros meios de comunicação comunitária e populares de favelas, ocupações, bairros pobres, estaríamos equipados, nos organizaríamos para fazer muito melhor a nossa própria comunicação. Estaríamos contando o histórico escravista e racista do nosso país, disputando as opiniões”. Ela lembra que, durante os 15 anos que atua com comunicação comunitária nas favelas do Rio de Janeiro, foram poucas as formas de incentivo público para a comunicação não comercial. A cobertura da grande mídia, que, em geral, não pauta as violações de direitos cometidas em nome dos Jogos Olímpicos, tem relação direta com o interesse privado de transmissores e patrocinadores do evento. “As Olimpíadas são um produto. A Globo vendeu cotas multimilionárias,

então os megaeventos deixam de ser uma pauta e passam a ser um produto para a empresa”, explicou Mário Campagnani, integrante do comitê organizador da jornada Rio 2016 – Os Jogos da Exclusão, que realizou atividades de denúncia ao desrespeito aos direitos humanos nas Olimpíadas.

Público ou privado?

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Durante os jogos, o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas organizou, no Rio, a jornada Jogos da Exclusão, denunciando as violações de direitos, dentre elas o direito a manifestação. Imagem: Caio Barbosa

No dossiê de candidatura para ser cidade-sede dos Jogos, apresentado em 2008, o valor estimado do evento era de R$ 28,8 bilhões. Com a mais recente atualização da Matriz de Responsabilidade, em janeiro de 2016, este valor passou para R$ 39 bilhões nos dados oficiais, superando em quase R$ 14 bilhões os custos da Copa do Mundo de

2014 e chegando a quase dez vezes os R$ 3,7 bilhões gastos com o Pan-Americano de 2007. Na versão atual da Matriz, houve um aumento da participação do poder público de 36%, em agosto de 2015, para 40% do montante total.

As altas cifras contrastam com o cenário de destruição da comunidade vizinha ao Parque Olímpico. A Vila Autódromo, onde moravam cerca de 600 famílias e hoje resistem apenas 20, é um símbolo das prioridades de investimentos feitos pelo poder público a serviço do interesse privado. Essa mesma lógica rege também a comunicação. Os serviços de telefonia e internet, que deveriam ser um direito de todos, foram alvo de grandes investimentos para garantir a transmissão dos jogos, enquanto comunidades ao lado das arenas seguem sem acesso à internet banda larga. Uma força-tarefa foi feita para que o Brasil oferecesse, ainda na Copa das Confederações, em 2013, uma internet com a qualidade que o país nunca conseguiu implantar. Essa possibilidade, inclusive, foi a justificativa para que as empresas que fossem oferecer esses serviços tivessem isenções fiscais (IPI, PIS e Cofins). Além disso, foram feitas modificações na legislação

para facilitar a instalação de antenas necessárias para a disponibilização da rede 4G. Para a Copa de 2014, a Telebras investiu R$ 89,4 milhões na implantação de infraestrutura, o que equivale ao investimento anual para a implantação do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). A expectativa do Plano era conectar 35 milhões de domicílios à internet fixa até o ano de realização do Mundial. No entanto, segundo dados de 2015 do Ministério das Comunicações, apenas 23,5 milhões de locais têm banda larga fixa. Quando se olha para fora dos centros urbanos, os números diminuem ainda mais.

Direitos de transmissão

Em dezembro de 2015, o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou que o Grupo Globo comprou os direitos dos Jogos Olímpicos até 2032 para tevê aberta, por assinatura, internet e celular, mas o valor é mantido em segredo. A título de comparação, sabe- que, nos Estados Unidos, um acordo semelhante entre o COI e a NBCU (conglomerado de mídia daquele país) custou R$ 7,6 bilhões. A falta de transparência repete erros de anos passados, já que a empresa brasileira também não revela os gastos para detenção dos direitos sobre a Copa do Mundo de 2014. O que se sabe é que a Rede Globo tem como anunciantes nos Jogos: Claro, Coca Cola, Fiat, Bradesco, P&G e Nestlé. Segundo informações da revista Meio & Mensagem, cada cota de patrocínio foi vendida a R$ 255 milhões. Ou seja, a Globo deverá ter um faturamento de pelo menos R$ 1,53 bilhão com o evento.

A emissora da família Marinho repassa direitos e certamente lucra também sobre o faturamento da Rede Record e da Bandeirantes. A Record, do bispo Edir Macedo, fechou quatro patrocinadores e, se cada cota tiver sido vendida por R$ 126 milhões, deve faturar cerca de R$ 760 milhões com os jogos. Já a Band vendeu quatro cotas de patrocínios, cada uma no valor de R$ 310 milhões, segundo o site Conexão TV.

A concentração da transmissão pela mídia privada não é uma regra universal. Albert Steinberger, jornalista freelancer que trabalha para o canal público alemão Deutsche Welle, aponta as diferenças nas transmissões de grandes eventos esportivos quando se compara o caso do Brasil com o Reino Unido e a Alemanha, por exemplo. Nesses países, as emissoras públicas BBC e Channel 4, no primeiro, e ARD e ZDF, no segundo, transmitem, entre outros, Copa, Olimpíadas e Paralimpíadas. Mas alguns campeonatos nacionais, como a Bundesliga e a Premier League, têm suas transmissões restritas às TVs privadas. “Aqui também se questiona muito se vale a pena gastar milhões em acordos de direitos de transmissão”, apontou Steinberger.

“Um caso para mim que foi super interessante foi a cobertura da BBC durante os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Eles realmente abriram todos os sinais e disponibilizaram na internet. Ou seja, era possível assistir a qualquer tipo de esporte que tivesse acontecendo ao vivo e de graça. Se o direito tivesse sido comprado por uma TV privada, obviamente o modelo de tomada de decisão seria diferente. Seria priorizado o lucro, afinal de contas, o investimento inicial é muito alto”, analisa o jornalista.

No caso brasileiro, o direito de transmissão das Paralimpíadas, que atrai menos público e, portanto, desperta menos interesse comercial, foi comprado pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). De acordo com o plano de trabalho de 2016 da empresa pública, o orçamento total previsto para as Olimpíadas e as Paralimpíadas é de R$ 1,9 milhão de reais, sendo que R$ 450 mil foram usados para a transmissão das Paralimpíadas na televisão, quase 17 vezes menos o valor que a NBCU pagou ao COI para os Jogos Olímpicos de 2020 a 2032.

O resto do montante foi distribuído entre transmissão dos Jogos Olímpicos no rádio (R$ 600 mil), custos para viagens jornalísticas (R$ 350 mil), gastos adicionais no satélite (R$ 220 mil) e compra de espaço no IBC (R$ 280 mil). O mesmo IBC do complexo de mídia que recebeu mais de R$ 500 milhões de investimentos da prefeitura e será gerido por um grupo de empresas privadas.

Acesso à informação

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Falta de respostas e acesso negado foram os principais retornos à consulta sobre obras olímpicas/ Reprodução relatório Artigo 19

 

Segundo aponta relatório da organização Artigo 19, no Brasil dos megaeventos esportivos, estamos muito longe de garantir a transparências das informações públicas. O orçamento detalhado e os impactos das obras olímpicas, como a do BRT (Bus Rapid Transit) Transolímpica no Rio de Janeiro, não estão ao alcance de todas as cidadãs e cidadãos como determina a Lei de Acesso à Informação (12.527/11). Os ônibus articulados que trafegam em corredores exclusivos foram uma das principais promessas de legado das Olimpíadas para a cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o relatório, foram feitos 13 pedidos específicos de informações sobre remoções causadas pelas obras do BRT, com base na LAI.

Ao todo, 54 solicitações foram feitas para diferentes órgãos, como o Portal Cidade Olímpica, o Portal Transparência Carioca, o Portal Transparência da Mobilidade e o

Portal da Controladoria Geral do Município, além do Instituto Estadual do Ambiente. Apenas 7% dos pedidos foram atendidos. Foram três meses de busca que levou à conclusão de que o direito à informação não é respeitado e que é praticamente impossível para a população ter acesso à caixa preta das obras preparatórias para as Olimpíadas 2016. “Se não há informação, fica comprometida a efetiva participação popular no debate sobre o tema e, portanto, qualquer possibilidade real de incidência no processo decisório”, conclui a pesquisa.

A falta de transparência também abrange os investimentos para infraestrutura de telecomunicações durante os Jogos. Segundo matéria da Agência Brasil, o valor dos investimentos para possibilitar as conexões 3G e 4G não pode ser divulgado por exigência contratual do Comitê Olímpico Internacional (COI) e do Comitê Olímpico do Brasil (COB). O acordo foi firmado com o Grupo América Móvil, que engloba as marcas Claro, NET e Embratel. Mais uma vez, recursos públicos foram usados para beneficiar empresas privadas. Apesar dos investimentos feitos pelo Grupo América Móvil, coube à Embratel fornecer a rede de fibra ótica para captar os sinais de transmissão entregues ao IBC. Além disso, o site oficial dos Jogos e a venda de ingressos estão hospedados nos data centers da Embratel.

Liberdade de expressão

A violação do direito à comunicação durante as Olimpíadas também se deu através da repressão a manifestações políticas nos locais dos jogos. Responsáveis pela Rio 2016 retiraram dos estádios Mané Garrincha, em Brasília, Mineirão, em Belo Horizonte e no Sambódromo, no Rio de Janeiro, torcedores que se manifestaram contra o governo interino de Michel Temer.

No último sábado (20), o pai de um jovem morto pela Polícia Militar do Rio de Janeiro foi impedido de abrir uma bandeira de protesto no Maracanã. Segundo o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, Carlos da Silva Souza, pai de Carlos Eduardo, um dos cinco jovens assassinados por policiais do 41º Batalhão da Polícia Militar em novembro de 2015, teve cerceado seu direito à manifestação. Tais ações repressivas estão respaldadas pela Lei Geral das Olimpíadas. O inciso IV do artigo 28 estabelece como condição para o acesso e permanência nos locais oficiais, por exemplo, “não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação”. O inciso X do mesmo artigo determina ainda que não se pode “utilizar bandeiras para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável”.

São puníveis com prisão de até um ano a produção e distribuição de produtos que imitem símbolos oficiais da competição, mas também a mera modificação de qualquer símbolo, ainda que seu objetivo seja, por exemplo, a realização de uma paródia. Em abril deste ano, diversas entidades da sociedade civil repudiaram a Lei das Olimpíadas e Paralimpíadas, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, por seu caráter autoritário.

A coordenadora do Centro de Referência Legal da ONG Artigo 19, Camila Marques, mostrou-se preocupada com a repressão à liberdade de expressão que marcou os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. “Com apenas uma semana do início do evento, já vimos o aumento da ocupação na Maré, no Complexo do Alemão e de uma forma geral. Cada vez mais o Estado está se aprimorando no seu aparato de repressão, através da compra de equipamentos, e esse legado é o que realmente vai ficar dos megaeventos no Brasil”, considera Camila Marques.

Sangue no chão

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Pai de jovem assassinado pela polícia é impedido de abrir uma bandeira de protesto no Maracanã/ FOTO: Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas

A comunicação independente, alternativa e comunitária segue pulsante, apesar de todas as dificuldades impostas pela repressão cotidiana que se acirra no contexto dos megaeventos. As articulações de comunicadoras e comunicadores em favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro levaram à criação, por exemplo, de páginas no Facebook para denunciar violências cometidas pela polícia, prefeitura, governo do Estado e Forças Armadas – que ocuparam o Complexo da Maré durante a Copa de 2014. Mas, além de canal de denúncia, as redes sociais têm sido um meio para perseguir comunicadores. Gizele Martins, da Maré, já recebeu até ameaças de estupro e avisos de que deve “calar a boca”. No Complexo do Alemão, outro conjunto de favelas cariocas, Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, também é alvo de perseguição. Em abril deste ano, Santiago denunciou para a mídia e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) que policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Alemão têm abordado moradores perguntando se o conhecem.

O Papo Reto atua principalmente na denúncia à violência policial, através de redes sociais e de conteúdo audiovisual. Os riscos de fato são grandes para quem defende os direitos humanos no Brasil. Segundo a organização internacional Front Line Defenders, o país está em primeiro lugar na lista mundial de defensores assassinados em 2016, ao todo, 24, entre janeiro e abril. A disputa de narrativas sobre os megaeventos e seu impacto, especialmente nas comunidades mais pobres ou periféricas, certamente incomoda as instituições violadoras de direitos. Para Gizele Martins, “com a mídia comercial ao lado da prefeitura e do governo, eles sabem que vão alienar, silenciar, apagar a história e mentir dizendo ao mundo que este é um exemplo de cidade e que durante os Jogos tudo aconteceu perfeitamente, sem qualquer sangue no chão”.