Brasil é medalhista olímpico em violação do direito à comunicação

A empolgação com os esportes não apaga o “legado negativo” dos Jogos Olímpicos. Além da repressão policial e das remoções, o cerceamento à liberdade de expressão e a concentração midiática marcaram a Rio 2016

Texto: Iara Moura e Mônica Mourão |Colaborou: Eduardo Amorim, Yuri Leonardo, Caio Barbosa, Camila Nobrega e Cinco de Terra

As Olimpíadas de 2016 encerram quase dez anos em que diversas cidades do Brasil viveram as mudanças causadas por um megaevento esportivo. Desde a preparação para os Jogos Pan-Americanos de 2007, bilhões foram investidos em gastos feitos a partir de parcerias público- privadas (PPP) em diferentes áreas. A comunicação é uma delas. O International Broadcast Center (IBC), centro de mídia para a transmissão dos Jogos, faz parte de uma PPP que inclui também o Main Press Center (MPC) e o Hotel de Mídia. O custo total do complexo é estimado em R$ 1,68 bilhão, dos quais R$ 1,15 bilhão vem de recursos privados e R$ 528 milhões da prefeitura do Rio de Janeiro. Após os Jogos Olímpicos, o “legado” ficará sob a responsabilidade da Concessionária Rio Mais, formada pelas empresas Odebrecht, Andrade Gutierrez e Carvalho Hosken, responsáveis pela construção.

“Saber que a prefeitura do Rio gastou todo este dinheiro para um centro de mídia que vai funcionar apenas durante os megaeventos é ter certeza de que a prefeitura e o governo do estado do Rio têm suas preferências no que investir. Este é mais um exemplo para mostrar também que esta cidade está virando uma cidade apenas para turistas, para ricos, para alguns”, afirmou a jornalista, comunicadora popular e moradora do Complexo da Maré Gizele Martins. No contexto dos megaeventos realizados na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 250 mil pessoas sofreram remoções, segundo dados da Articulação Nacional dos
Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas (Ancop). É certo que o grande público e as comunidades afetadas com as remoções e a violência policial pouco ficou sabendo das violações de direitos relacionadas ao Pan, à Copa e às Olimpíadas, até porque os direitos de transmissão das competições também ficaram nas mãos de poderosos grupos de mídia no Brasil e o acesso à informação e o direito à livre manifestação de pensamento foram violados durante os Jogos.

Segundo a mareense Gizele Martins, “se todo o dinheiro [investido no IBC] fosse dividido entre os inúmeros meios de comunicação comunitária e populares de favelas, ocupações, bairros pobres, estaríamos equipados, nos organizaríamos para fazer muito melhor a nossa própria comunicação. Estaríamos contando o histórico escravista e racista do nosso país, disputando as opiniões”. Ela lembra que, durante os 15 anos que atua com comunicação comunitária nas favelas do Rio de Janeiro, foram poucas as formas de incentivo público para a comunicação não comercial. A cobertura da grande mídia, que, em geral, não pauta as violações de direitos cometidas em nome dos Jogos Olímpicos, tem relação direta com o interesse privado de transmissores e patrocinadores do evento. “As Olimpíadas são um produto. A Globo vendeu cotas multimilionárias,

então os megaeventos deixam de ser uma pauta e passam a ser um produto para a empresa”, explicou Mário Campagnani, integrante do comitê organizador da jornada Rio 2016 – Os Jogos da Exclusão, que realizou atividades de denúncia ao desrespeito aos direitos humanos nas Olimpíadas.

Público ou privado?

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Durante os jogos, o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas organizou, no Rio, a jornada Jogos da Exclusão, denunciando as violações de direitos, dentre elas o direito a manifestação. Imagem: Caio Barbosa

No dossiê de candidatura para ser cidade-sede dos Jogos, apresentado em 2008, o valor estimado do evento era de R$ 28,8 bilhões. Com a mais recente atualização da Matriz de Responsabilidade, em janeiro de 2016, este valor passou para R$ 39 bilhões nos dados oficiais, superando em quase R$ 14 bilhões os custos da Copa do Mundo de

2014 e chegando a quase dez vezes os R$ 3,7 bilhões gastos com o Pan-Americano de 2007. Na versão atual da Matriz, houve um aumento da participação do poder público de 36%, em agosto de 2015, para 40% do montante total.

As altas cifras contrastam com o cenário de destruição da comunidade vizinha ao Parque Olímpico. A Vila Autódromo, onde moravam cerca de 600 famílias e hoje resistem apenas 20, é um símbolo das prioridades de investimentos feitos pelo poder público a serviço do interesse privado. Essa mesma lógica rege também a comunicação. Os serviços de telefonia e internet, que deveriam ser um direito de todos, foram alvo de grandes investimentos para garantir a transmissão dos jogos, enquanto comunidades ao lado das arenas seguem sem acesso à internet banda larga. Uma força-tarefa foi feita para que o Brasil oferecesse, ainda na Copa das Confederações, em 2013, uma internet com a qualidade que o país nunca conseguiu implantar. Essa possibilidade, inclusive, foi a justificativa para que as empresas que fossem oferecer esses serviços tivessem isenções fiscais (IPI, PIS e Cofins). Além disso, foram feitas modificações na legislação

para facilitar a instalação de antenas necessárias para a disponibilização da rede 4G. Para a Copa de 2014, a Telebras investiu R$ 89,4 milhões na implantação de infraestrutura, o que equivale ao investimento anual para a implantação do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). A expectativa do Plano era conectar 35 milhões de domicílios à internet fixa até o ano de realização do Mundial. No entanto, segundo dados de 2015 do Ministério das Comunicações, apenas 23,5 milhões de locais têm banda larga fixa. Quando se olha para fora dos centros urbanos, os números diminuem ainda mais.

Direitos de transmissão

Em dezembro de 2015, o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou que o Grupo Globo comprou os direitos dos Jogos Olímpicos até 2032 para tevê aberta, por assinatura, internet e celular, mas o valor é mantido em segredo. A título de comparação, sabe- que, nos Estados Unidos, um acordo semelhante entre o COI e a NBCU (conglomerado de mídia daquele país) custou R$ 7,6 bilhões. A falta de transparência repete erros de anos passados, já que a empresa brasileira também não revela os gastos para detenção dos direitos sobre a Copa do Mundo de 2014. O que se sabe é que a Rede Globo tem como anunciantes nos Jogos: Claro, Coca Cola, Fiat, Bradesco, P&G e Nestlé. Segundo informações da revista Meio & Mensagem, cada cota de patrocínio foi vendida a R$ 255 milhões. Ou seja, a Globo deverá ter um faturamento de pelo menos R$ 1,53 bilhão com o evento.

A emissora da família Marinho repassa direitos e certamente lucra também sobre o faturamento da Rede Record e da Bandeirantes. A Record, do bispo Edir Macedo, fechou quatro patrocinadores e, se cada cota tiver sido vendida por R$ 126 milhões, deve faturar cerca de R$ 760 milhões com os jogos. Já a Band vendeu quatro cotas de patrocínios, cada uma no valor de R$ 310 milhões, segundo o site Conexão TV.

A concentração da transmissão pela mídia privada não é uma regra universal. Albert Steinberger, jornalista freelancer que trabalha para o canal público alemão Deutsche Welle, aponta as diferenças nas transmissões de grandes eventos esportivos quando se compara o caso do Brasil com o Reino Unido e a Alemanha, por exemplo. Nesses países, as emissoras públicas BBC e Channel 4, no primeiro, e ARD e ZDF, no segundo, transmitem, entre outros, Copa, Olimpíadas e Paralimpíadas. Mas alguns campeonatos nacionais, como a Bundesliga e a Premier League, têm suas transmissões restritas às TVs privadas. “Aqui também se questiona muito se vale a pena gastar milhões em acordos de direitos de transmissão”, apontou Steinberger.

“Um caso para mim que foi super interessante foi a cobertura da BBC durante os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Eles realmente abriram todos os sinais e disponibilizaram na internet. Ou seja, era possível assistir a qualquer tipo de esporte que tivesse acontecendo ao vivo e de graça. Se o direito tivesse sido comprado por uma TV privada, obviamente o modelo de tomada de decisão seria diferente. Seria priorizado o lucro, afinal de contas, o investimento inicial é muito alto”, analisa o jornalista.

No caso brasileiro, o direito de transmissão das Paralimpíadas, que atrai menos público e, portanto, desperta menos interesse comercial, foi comprado pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). De acordo com o plano de trabalho de 2016 da empresa pública, o orçamento total previsto para as Olimpíadas e as Paralimpíadas é de R$ 1,9 milhão de reais, sendo que R$ 450 mil foram usados para a transmissão das Paralimpíadas na televisão, quase 17 vezes menos o valor que a NBCU pagou ao COI para os Jogos Olímpicos de 2020 a 2032.

O resto do montante foi distribuído entre transmissão dos Jogos Olímpicos no rádio (R$ 600 mil), custos para viagens jornalísticas (R$ 350 mil), gastos adicionais no satélite (R$ 220 mil) e compra de espaço no IBC (R$ 280 mil). O mesmo IBC do complexo de mídia que recebeu mais de R$ 500 milhões de investimentos da prefeitura e será gerido por um grupo de empresas privadas.

Acesso à informação

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Falta de respostas e acesso negado foram os principais retornos à consulta sobre obras olímpicas/ Reprodução relatório Artigo 19

 

Segundo aponta relatório da organização Artigo 19, no Brasil dos megaeventos esportivos, estamos muito longe de garantir a transparências das informações públicas. O orçamento detalhado e os impactos das obras olímpicas, como a do BRT (Bus Rapid Transit) Transolímpica no Rio de Janeiro, não estão ao alcance de todas as cidadãs e cidadãos como determina a Lei de Acesso à Informação (12.527/11). Os ônibus articulados que trafegam em corredores exclusivos foram uma das principais promessas de legado das Olimpíadas para a cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o relatório, foram feitos 13 pedidos específicos de informações sobre remoções causadas pelas obras do BRT, com base na LAI.

Ao todo, 54 solicitações foram feitas para diferentes órgãos, como o Portal Cidade Olímpica, o Portal Transparência Carioca, o Portal Transparência da Mobilidade e o

Portal da Controladoria Geral do Município, além do Instituto Estadual do Ambiente. Apenas 7% dos pedidos foram atendidos. Foram três meses de busca que levou à conclusão de que o direito à informação não é respeitado e que é praticamente impossível para a população ter acesso à caixa preta das obras preparatórias para as Olimpíadas 2016. “Se não há informação, fica comprometida a efetiva participação popular no debate sobre o tema e, portanto, qualquer possibilidade real de incidência no processo decisório”, conclui a pesquisa.

A falta de transparência também abrange os investimentos para infraestrutura de telecomunicações durante os Jogos. Segundo matéria da Agência Brasil, o valor dos investimentos para possibilitar as conexões 3G e 4G não pode ser divulgado por exigência contratual do Comitê Olímpico Internacional (COI) e do Comitê Olímpico do Brasil (COB). O acordo foi firmado com o Grupo América Móvil, que engloba as marcas Claro, NET e Embratel. Mais uma vez, recursos públicos foram usados para beneficiar empresas privadas. Apesar dos investimentos feitos pelo Grupo América Móvil, coube à Embratel fornecer a rede de fibra ótica para captar os sinais de transmissão entregues ao IBC. Além disso, o site oficial dos Jogos e a venda de ingressos estão hospedados nos data centers da Embratel.

Liberdade de expressão

A violação do direito à comunicação durante as Olimpíadas também se deu através da repressão a manifestações políticas nos locais dos jogos. Responsáveis pela Rio 2016 retiraram dos estádios Mané Garrincha, em Brasília, Mineirão, em Belo Horizonte e no Sambódromo, no Rio de Janeiro, torcedores que se manifestaram contra o governo interino de Michel Temer.

No último sábado (20), o pai de um jovem morto pela Polícia Militar do Rio de Janeiro foi impedido de abrir uma bandeira de protesto no Maracanã. Segundo o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, Carlos da Silva Souza, pai de Carlos Eduardo, um dos cinco jovens assassinados por policiais do 41º Batalhão da Polícia Militar em novembro de 2015, teve cerceado seu direito à manifestação. Tais ações repressivas estão respaldadas pela Lei Geral das Olimpíadas. O inciso IV do artigo 28 estabelece como condição para o acesso e permanência nos locais oficiais, por exemplo, “não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação”. O inciso X do mesmo artigo determina ainda que não se pode “utilizar bandeiras para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável”.

São puníveis com prisão de até um ano a produção e distribuição de produtos que imitem símbolos oficiais da competição, mas também a mera modificação de qualquer símbolo, ainda que seu objetivo seja, por exemplo, a realização de uma paródia. Em abril deste ano, diversas entidades da sociedade civil repudiaram a Lei das Olimpíadas e Paralimpíadas, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, por seu caráter autoritário.

A coordenadora do Centro de Referência Legal da ONG Artigo 19, Camila Marques, mostrou-se preocupada com a repressão à liberdade de expressão que marcou os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. “Com apenas uma semana do início do evento, já vimos o aumento da ocupação na Maré, no Complexo do Alemão e de uma forma geral. Cada vez mais o Estado está se aprimorando no seu aparato de repressão, através da compra de equipamentos, e esse legado é o que realmente vai ficar dos megaeventos no Brasil”, considera Camila Marques.

Sangue no chão

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Pai de jovem assassinado pela polícia é impedido de abrir uma bandeira de protesto no Maracanã/ FOTO: Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas

A comunicação independente, alternativa e comunitária segue pulsante, apesar de todas as dificuldades impostas pela repressão cotidiana que se acirra no contexto dos megaeventos. As articulações de comunicadoras e comunicadores em favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro levaram à criação, por exemplo, de páginas no Facebook para denunciar violências cometidas pela polícia, prefeitura, governo do Estado e Forças Armadas – que ocuparam o Complexo da Maré durante a Copa de 2014. Mas, além de canal de denúncia, as redes sociais têm sido um meio para perseguir comunicadores. Gizele Martins, da Maré, já recebeu até ameaças de estupro e avisos de que deve “calar a boca”. No Complexo do Alemão, outro conjunto de favelas cariocas, Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, também é alvo de perseguição. Em abril deste ano, Santiago denunciou para a mídia e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) que policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Alemão têm abordado moradores perguntando se o conhecem.

O Papo Reto atua principalmente na denúncia à violência policial, através de redes sociais e de conteúdo audiovisual. Os riscos de fato são grandes para quem defende os direitos humanos no Brasil. Segundo a organização internacional Front Line Defenders, o país está em primeiro lugar na lista mundial de defensores assassinados em 2016, ao todo, 24, entre janeiro e abril. A disputa de narrativas sobre os megaeventos e seu impacto, especialmente nas comunidades mais pobres ou periféricas, certamente incomoda as instituições violadoras de direitos. Para Gizele Martins, “com a mídia comercial ao lado da prefeitura e do governo, eles sabem que vão alienar, silenciar, apagar a história e mentir dizendo ao mundo que este é um exemplo de cidade e que durante os Jogos tudo aconteceu perfeitamente, sem qualquer sangue no chão”.

 

 

Por que precisamos já de uma lei de proteção de dados pessoais

Num contexto de massificação de coleta e tratamento de dados na internet, é fundamental garantir a aprovação do PL 5276/16, em tramitação na Câmara.

Por Marina Pita*

Sabe aquele clique que você dá nos “termos de uso” de uma aplicação na internet sem ler o que está escrito ali? Saiba que, ao fazer isso, você pode estar liberando seus dados pessoais para usos que você nem imagina.

Em tempos de conservadorismo e criminalização de condutas, a garantia dodireito à privacidade nas redes se mostra cada vez mais fundamental. Sem ela, nossa liberdade de expressão, de livre manifestação de pensamento e de organização política ficam seriamente comprometidas. Mais do que isso, num contexto de massificação de coleta e tratamento de dados na internet, informações como características de saúde, identidade sexual ou opção religiosa também podem estar sendo usadas sem a sua autorização.

Até hoje, o Brasil não dispõe de uma lei para regular a coleta, armazenamento, processamento e divulgação de dados pessoais. Regular essa prática não significa impedir que dados sejam coletados e pesquisados para trazer benefícios sociais – como, por exemplo, quando informações da população são usadas para analisar uma epidemia de saúde ou desenvolver políticas públicas para atender a uma parcela específica da população.

Mas é preciso estabelecer princípios e critérios para que isso aconteça e, assim, garantir que nossos dados não sejam usados para atender a interesses comerciais, contra a nossa vontade, ultrapassando limites éticos e legalmente aceitos.

Respondendo a essa preocupação e atendendo a um pleito da sociedade civil, o Ministério da Justiça, em diálogo também com o setor empresarial, elaborou um Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais. O processo contou com a contribuição de milhares de brasileiros, por meio de duas consultas públicas, e levou cerca de seis anos para ficar pronto.

Finalmente, o PL 5276/2016 chegou à Câmara dos Deputados, onde tramita com pedido de urgência constitucional – ou seja, tem prazo para ser votado, senão tranca a pauta da Casa legislativa. Mas tem muitos lobistas já trabalhando no Congresso para que o texto seja engavetado.

O projeto defende a privacidade das pessoas tanto em relação ao poder público, cuja atuação pode violar garantias individuais, quanto contra as práticas de entes privados que queiram lucrar com nossos dados. Impede, por exemplo, que empresas coletem, comprem ou vendam dados dos cidadãos sem seu consentimento livre e informado.

A proposta também define que o titular dos dados deve ter acesso facilitado às informações sobre o tratamento pelo qual eles passam. Essas informações – a finalidade específica do tratamento, forma e duração do tratamento e identificação do responsável – deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva.

E, uma vez que muitos dos locais de armazenamento de dados ficam fora do país, o projeto de lei vale para todos os bancos de dados formados a partir de coletas realizadas no Brasil, pela internet ou fora dela (por exemplo, pelo seu plano de saúde ou a empresa do seu cartão de crédito), e impede a transferência internacional de dados para países com leis de proteção menos rigorosas do que a nossa.

Para garantir o cumprimento da norma, o projeto de lei prevê sanções administrativas e possibilidade de ressarcimentos por danos pela utilização ilegal das informações, e determinada que um órgão competente fique responsável pela fiscalização da lei, junto com o Conselho Nacional de Proteção de Dados e da Privacidade. Essa autoridade será responsável inclusive pela adequação progressiva dos bancos de dados já existentes no país antes da entrada em vigor da lei.

Como a violação da sua privacidade impacta sua vida?

O perfil de uma pessoa, do que ela gosta, o que compra, quais suas necessidades, hábitos e dificuldades nunca valeu tanto para o mercado. Ao mesmo tempo, entretanto, o valor de nossos dados pessoais nunca foi tão subestimado por nós. Se os Correios estivessem abrindo suas cartas, lendo e, com as informações ali obtidas, direcionando empresas ao seu encalço, você não concordaria, certo? Mas no mundo online pouca gente parece se preocupar.

Muita gente não sabe – ou acha aceitável – que seus dados, com o maior número de detalhes possível, estejam sendo armazenados e analisados por corporações e governos. É normal ouvir a afirmação: “Se não tenho nada a esconder, podem me vigiar”. Mas aí é que as pessoas se enganam. Não fazer nada de “errado” ou ilegal não quer dizer que a proteção da sua privacidade e o seu controle sobre as informações que lhe dizem respeito sejam fundamentais.

Mesmo a pessoa mais correta do mundo tem algo a manter privado se não quiser ser explorada comercialmente mais do que as outras ou se não quiser ser discriminada ou tratada de maneira diferente.

Veja o caso da discriminação comercial, a que todos estamos sujeitos. Já se sabe que lojas online tem alterado o preço dos produtos ofertados com base no endereço ou perfil do usuário que acessa a página. Há notícias de sites, por exemplo, que vendem mais caro para bairros a depender da nacionalidade predominante dos internautas que ali navegam.

A privacidade também é essencial para o acesso indiscriminado à saúde. Todas as pessoas adoecem, é um fato. Mas, sem a preservação dos seus dados, aquelas com histórico de problemas de saúde ou de doenças crônicas na família passarão a ser discriminadas não só pela empresa do plano de saúde, mas também por futuros empregadores ou empresas de crédito.

Hoje, empresas de gestão de dados de saúde têm cada vez mais acesso aos hábitos das pessoas colhendo dados em aplicativos de celulares. A empresa SulAmerica Saúde, por exemplo, mantém um aplicativo para dispositivos móveis que colhe dados de localização dos usuários o tempo todo.

Para que ela usa esses dados? Não está claro. Mas saber quais lugares uma pessoa frequenta e em que horários, quantas horas trabalha, se faz horas extra, por exemplo, pode ser definidor de quanto cobrar em um seguro saúde. Ou até para definir um candidato numa vaga de emprego.

Em um mundo com enorme capacidade de captura – e os smartphones são a joia da coroa neste aspecto –, armazenamento, processamento e análise dos dados como o que vivemos hoje, todas as pessoas estão sujeitas a algum tipo de discriminação, sejam estes dados corretos ou incorretos, garantidores da igualdade de oportunidades ou excludentes. E quanto maior a disponibilidade de dados e liberdade para o seu processamento, maior a chance de algo dar errado.

Não podemos nos enganar: essas máquinas, os algoritmos, erram e é preciso nos proteger dos erros. Uma jornalista feminista, por exemplo, que faz buscas por notícias sobre feminicídios e formas de assassinato de mulheres, já foi avisada pelo Google que suas buscas estavam estranhas. Daí para ela ela ser apontada por uma autoridade policial, que teve acesso não autorizado a esses dados, como uma pessoa perigosa em potencial é um pulo!

Por todos estes fatores, é fundamental que o PL 5276/16 tramite com celeridade na Câmara dos Deputados e seja aprovado rapidamente pelo Congresso. Enquanto isso, tenha certeza de que seus dados estão sendo coletados sem que você saiba. E os riscos são todos seus.

Clique aqui para ler a carta assinada por dezenas de organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes, em apoio ao Projeto de Proteção de Dados Pessoais.

*Marina Pita é jornalista e membro do Conselho Diretor do Intervozes.

STF volta a julgar constitucionalidade da Classificação Indicativa

Considerada fundamental para a proteção dos direitos da criança, Classificação Indicativa entra na pauta do STF no dia 8

Por Helena Martins*

Imagine acordar, ligar a TV e encontrar cenas de violência extrema em todos os programas veiculados por veículos de radiodifusão. Isso poderá ocorrer se a Classificação Indicativaperder sua capacidade de orientar a organização da grade de programação das emissoras. A Classificação Indicativa é um instrumento que indica horários para a exibição de conteúdos que contenham também cenas de sexo ou drogas, a partir da avaliação sobre impactos da exposição de crianças e adolescentes a eles.

Desde 2001, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2404, que pretende revogar o artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual prevê sanções às emissoras que veiculem conteúdo em horário diferente do recomendado, desrespeitando a Classificação Indicativa.

Na prática, ficaria a cargo apenas das empresas a opção de seguir ou não a indicação. O julgamento, parado desde 2011, foi retomado em novembro do ano passado. Depois de um novo pedido de vistas, feito pelo ministro Teori Zavascki, está previsto para entrar na pauta de votação do STF desta quarta-feira, dia 8.

A situação é perigosa, pois quatro ministros já votaram a favor da ADI, ao passo que apenas um – Edison Fachin – votou pela manutenção do que está previsto em lei.

Diante deste cenário, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) manifestou-se oficialmente sobre o tema e pediu ao STF “que julgue improcedente a ADI, a fim de assegurar o direito à proteção integral da criança e do adolescente”.

Para o colegiado, que reúne órgãos estatais e do governo federal, bem como organizações populares, a política regulamenta o que está previsto na Constituição Federal, já que esta estabelece que a União deve “exercer a Classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão” (art. 21, XVI).

Tendo em vista não haver análise prévia de conteúdo nem veto à produção e circulação de programas, o CNDH criticou o argumento, em geral utilizado por grupos empresariais contrários à regulação, de que a Classificação cerceia a liberdade de expressão.

“Este Conselho entende, no entanto, que os direitos não são absolutos e que apenas se for tomada como tal é que a liberdade de expressão pode ser considerada atingida pela Classificação Indicativa. Isso porque a restrição promovida pela Classificação é mínima, relacionada exclusivamente ao horário de exibição dos programas, não à livre produção e circulação deles”, diz o texto, que também elenca diversos tratados internacionais que legitimam a política adotada no Brasil desde 2006.

Em um contexto de avanço do pensamento conservador, materializado, por exemplo, na proposta de redução da maioridade penal e na defesa do punitivismo como forma de resolução do problema da violência, o Conselho fez um apelo para que a sociedade defenda os direitos de crianças e adolescentes.

O pedido foi reforçado por outros órgãos que defendem os direitos humanos em um seminário sobre a Classificação Indicativa, realizado em março deste ano, em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (Conanda), a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e diversas entidades da sociedade civil.

“Classificação Indicativa não é censura. De modo algum ela interfere na produção de conteúdo. Ela cria um sistema mínimo de proteção aos direitos das crianças. Flexibilizá-la será abrir uma porteira para revogar todos os mecanismos de proteção previstos no ECA”, afirmou o então procurador Federal dos Direitos do Cidadão, Aurélio Rios, também conselheiro do CNDH.

Já o presidente do Conanda, Fábio Paes, destacou: “A Classificação Indicativa é um espaço para assegurar que as crianças não sejam violentadas em seu direito ao desenvolvimento integral”.

A fim de ampliar a mobilização da sociedade em torno da garantia da política e informar sobre os impactos psicossociais que podem ser gerados com a fragilização dela, organizações da sociedade civil encampam a campanha “Programa adulto em horário adulto”.

Por meio de uma parceria com o Avaaz, a petição online intitulada “STF: Proteja a infância, não derrube a Classificação Indicativa!”, uma das iniciativas da campanha, tem sido enviada para milhares de e-mails, a fim de fortalecer o apoio popular à política. Além de coletar assinaturas, a plataforma permite também que sejam enviadas mensagens para cada um dos ministros do Supremo pedindo o apoio deles à continuidade da Classificação.

No site da campanha, coordenada pela Andi – Comunicação e Direitos, Artigo 19, Instituto Alana e pelo Intervozes, também estão disponíveis informações sobre o funcionamento da Classificação Indicativa, o debate jurídico em torno do tema no STF, o posicionamento de organizações e, claro, peças para a agitação da campanha nas redes sociais.

Agora, é a hora de cada um e cada uma assumir o seu papel nesse jogo e mobilizar suas redes de amigos, familiares e parceiros na defesa da Classificação. Temos pouco tempo para isso.

Sabemos, claro, que esse é apenas um instrumento para a garantia de uma mídia que promova e não viole direitos. Como relembrou o procurador Domingos Dresch, no seminário citado, “a existência de uma mídia eletrônica hegemônica, onipresente e pouco regulada é algo perverso para a democracia”.

Não obstante, até para conquistarmos avanços na pauta da regulação da mídia, é necessário dialogar com a sociedade sobre a importância dos mecanismos já existentes e desvelar os equívocos constantes em ataques feitos a eles, como no caso dos argumentos que relacionam qualquer mecanismo de regulação à censura.

Além disso, é preciso apontar os sucessos de políticas como a Classificação Indicativa. Construída e analisada frequentemente de forma participativa, baseada nas melhores práticas de países com maior tradição nessa área, como França e Canadá, ela rapidamente tornou-se conhecida e elogiada por boa parte da população.

Como aponta pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas, em cooperação com a UNESCO, em 2012 (a pedido do Ministério da Justiça), 97% dos pais ou responsáveis por crianças de 4 a 16 anos consideram muito importante ou importante que emissoras de TV aberta respeitem a limitação de horário vinculada à Classificação Indicativa. E 94% consideram que deve existir multa para emissoras que desrespeitarem as regras. Mais informações aqui.

Infelizmente, esses dados não serão apresentados pelos veículos de comunicação que querem, a todo custo, vender produtos e impor modos de vida às audiências, sem se preocuparem com os impactos no orçamento das famílias, na autoestima das crianças ou no impacto de seus conteúdos na construção da personalidade delas. Eles, contudo, sabem que o debate sobre a regulação da mídia no Brasil avança, a duras penas, mesmo no Judiciário.

Exemplo disso foi a decisão tomada pelo Supremo Tribunal e Justiça (STJ), em março, deproibir a publicidade voltada à criança. Embora essa vedação já conste no Código de Defesa do Consumidos, de 1990, e tenha sido objeto de resolução do Conanda, de 2012, que trata de publicidade abusiva, esse era mais um tabu existente no Brasil.

Não à toa, o ministro do STJ que julgou a ação, movida pelo Instituto Alana contra a Bauducco por conta de uma ação de oferta de relógio em troca de embalagens de biscoitos, Herman Benjamin, classificou o julgamento como “histórico”.

“O STJ está dizendo: acabou e ponto final. Temos publicidade abusiva duas vezes: por ser dirigida à criança e de produtos alimentícios. Não se trata de paternalismo sufocante nem moralismo demais, é o contrário: significa reconhecer que a autoridade para decidir sobre a dieta dos filhos é dos pais”, disse o relator em seu voto.

Diante disso, dos riscos que cercam a política da Classificação Indicativa e de tantos outros ataques, é preciso mostrar ao Judiciário e à sociedade em geral que o interesse público deve guiar nossas instituições e a democracia. Já passou da hora de afirmarmos que queremos mais (e não menos) direitos, também nos meios de comunicação.

Antes de sair do nosso blog, não se esqueça de assinar e divulgar a petição em defesa da Classificação Indicativa. Basta clicar aqui.

*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Mulheres se mobilizam pelas redes para denunciar a cultura do estupro

As redes sociais têm exercido o duplo papel de denunciar casos de machismo e violência contra mulher e de fazer o contraponto aos grandes meios

Por Camila Nobrega e Cinthya Paiva*

A notícia do estupro coletivo sofrido por uma adolescente de 16 anos, no fim de maio, em uma favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro, com envolvimento de mais de 30 homens, será impossível de ser esquecida. O caso ficará eternizado por ter sido publicizado pelas redes sociais, com a divulgação do vídeo por parte dos autores do crime, e também pelas respostas que recebeu dentro das próprias redes, principalmente aquelas protagonizadas por mulheres, que ao denunciarem o caso e pedirem punição aos envolvidos, criaram eco e provocaram amplo debate público sobre a cultura do estupro no país.

Ao mesmo tempo em que foi o meio virtual que empoderou a jovem e a sensibilizou para que ela denunciasse oficialmente o crime ocorrido, foi nele também onde a imagem dela foi exaustivamente exposta, sendo sua vida virtual e física ameaçada diretamente por um forte discurso de responsabilidade, legitimado pela cultura patriarcal e oligárquica do estupro. Ou seja, a situação nas redes foi marcada por esta dualidade, o que nos leva a refletir sobre os usos que atualmente são feitos da internet.

Por outro lado, em um país com grande penetração dos meios de comunicação tradicionais (principalmente a televisão e o rádio), é improdutivo realizar qualquer análise sobre a batalha dos discursos travada nas redes sociais, sem que seja feito um paralelo sobre os discursos produzidos nestes meios tradicionais. Em outros termos, analisar como a mídia tradicional se posiciona ou como reporta os fatos torna-se essencial para compreender a formação da opinião pública exposta nas redes e os diversos pesos dados às diferentes narrativas que tomam a internet.

No fato em debate, vale recordar que antes das manifestações de milhares de mulheres em torno do tema, o jornal Folha de S. Paulo, no dia 26 de maio, noticiava a seguinte manchete, em seu caderno Cotidiano: “‘Chorei quando vi o vídeo’, diz avó de garota que diz ter sido estuprada”. Ao colocar que a vítima “diz ter sido estuprada”, o jornal assume um posicionamento de pôr em dúvida a afirmação da vítima, apesar das evidências de que houve o crime por ela relatado.

Em reportagem da Globonews no mesmo dia, o advogado de Raí de Souza confirmou que o cliente dele foi o responsável por filmar a jovem nua (desacordada, como mostravam os videos, impossibilitada de qualquer reação) e sangrando e compartilhar com outras pessoas por celular, que em seguida teriam disponibilizado na internet. Se os jovens admitiram responsabilidade na gravação e divulgação das imagens isso por si só já é crime. Caberia, portanto, à reportagem questionar “por que os mandados de prisão demoraram tanto para serem expedidos?” ou “por que o caso continuava sendo tratado como suspeita a ser investigada?”. Nada disso foi feito, o que mostra certa negligência da mídia quanto à apuração do que realmente importava ao fato e demonstra a dificuldade de se reconhecer como vítima a mulher que sofreu estupro.

Em outros veículos, a jovem foi, a todo tempo, levada a provar sua condição de vítima, cabendo exclusivamente às pessoas da família, advogados de defesa e pessoas diretamente envolvidas com a jovem o papel de defendê-la de acusações sobre seu comportamento, como se isto fosse o que estivesse em jogo. O mesmo peso acusatório não recaiu sobre os jovens acusados do crime – que apareceram rindo na televisão – o que permite relacionar a responsabilização da vítima à cultura de violência e estupro contra as mulheres que segue incrustada em nosso país. Por isso, vale sempre lembrar que estupro é crime previsto no Código Penal Brasileiro (Lei 2848/1940), sendo classificado como ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (art.213).

Gerar dúvidas em relatos de vítima de estupro é o padrão no sistema de Justiça brasileiro, principalmente quando os receptores da denúncia são homens. Não por acaso, as delegacias especiais de proteção às mulheres foram criadas para minimizar o constrangimento da vítima, exposta primeiramente ao crime e, depois, aos que tentam imputá-la alguma responsabilidade. As notícias nos grandes jornais seguiram, portanto, com este mesmo tom, reproduzindo a violência simbólica operada nas salas de delegacias e hospitais brasileiros.

Não por acaso, o mesmo tom de dúvida exposto nos grandes jornais e TVs foram amplamente reproduzidos nas redes sociais, ou seja, a partir do discurso de responsabilização da vítima ou mesmo de divulgação de informações sobre sua vida – irrelevantes ao caso – feitos nos veículos tradicionais, emergem e crescem na internet posts e comentários de relativização do estupro, que reforçam a narrativa da culpa da vítima. Questões como “mas por onde ela andava e com quem?” e “que tipo de roupas ela usava” foram comuns, além dos memes que expunham a vítima.

Estupro e recorrência na mídia

No Brasil, uma mulher é estuprada a cada três horas, e isto está diretamente ligado à cultura machista e patriarcal que coloca as mulheres como objeto sexual do homem. O corpo feminino, ao invés de ser de pertencimento das mulheres, é tido como propriedade do masculino, podendo este fazer uso quando bem entender. Infelizmente, a mídia brasileira não tem atuado na desconstrução desta cultura. Ao contrário, são inúmeros os casos em que há a naturalização da violência sexual contra as mulheres em programas de rádio e TV.

No Programa Agora é Tarde, da BAND, apresentado por Rafinha Bastos, que foi ao ar no dia 25 de fevereiro de 2015, o ator Alexandre Frota revelou – em tom de gozação e deboche – que teria praticado sexo com uma mãe de santo contra vontade dela enquanto ela estaria desmaiada, ou seja, que a teria estuprado. À época, o Intervozes acionou o Departamento de Acompanhamento e Avaliação do Ministério das Comunicações e o Ministério Público Federal (MPF). Em uma materialização da negligência sobre a violência, nunca houve punição para o caso. Ao contrário, o ator transformou-se em figura pública digna de ser recebida para apresentar propostas ao Ministério de Educação, em Brasília, no atual governo interino de Michel Temer.

Há ainda o estupro ocorrido no programa Big Brother Brasil, na edição de 2012, na TV Globo, em que Daniel, um dos participantes da casa, foi expulso após a participante Monique ter dito que: “Só se ele foi muito mau caráter de ter feito sexo comigo dormindo”, caso que contou, inclusive, com investigação criminal. E, no início deste ano, muitas foram as denúncias após a exibição de uma cena de estupro em uma minissérie da TV Globo, Ligações Perigosas.

Na internet, o debate sobre a cultura do estupro tinha sido levantado no final de 2015, em função da multiplicação de comentários absolutamente lascivos e agressivos em relação a uma menina de apenas 12 anos, participante do reality show Masterchef.

O poder mobilizador da internet, porém, por vezes acaba por expor vítimas de violência sexual. Por falta de informações sobre o funcionamento das redes sociais, muitas pessoas ajudaram a perpetuar o crime cometido no fim de maio ao enviar mensagens, mesmo que em tom de repúdio. Assim, embora as redes sociais possam cumprir um papel de produção da diversidade de discursos – para além do produzido na mídia convencional – neste caso, cumpriu também um papel de violador de direitos humanos, ao expor, pela segunda vez, a vítima à violência.

O que se deve fazer, nesses casos, não é denunciar o perfil do divulgador do material pela timeline ou reproduzir o seu conteúdo. As denúncias devem ser feitas de forma privada, copiando o endereço das postagens nos locais específicos para isso dos sites das redes onde foram feitas as publicações. Deve-se lembrar que também é crime a publicação de fotos com cenas pornográficas de sexo envolvendo crianças ou adolescentes, de acordo com o artigo 240 do Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8060/1990).

As formas de violência simbólica impostas às mulheres são muitas. E a tentativa de entendê-las é essencial para enxergar as relações de dominação, que são relações históricas, culturais e linguisticamente construídas. A narrativa que expõe essa violência e se contrapõe a ela precisa de uma força ainda maior para romper o discurso que figura na ordem do que é natural, radical, irredutível e universal dentro de um conjunto de valores e apontar diferentes poderes que mantêm essa dinâmica funcionando.

É muito mais fácil manter-se no diálogo com a ordem do dia, reafirmando preconceitos e assimetrias de discursos do que jogar luz nas entrelinhas. E, nas redes sociais, vale lembrar, isto ocorre porque elas não são espaços neutros – como muitos acreditam ser. Ao contrário, elas também estão imersas em relações de poder e podem (re)produzir narrativas já estruturadas que operam na disputa destes poderes. A boa notícia, no entanto, é que, se por um lado o discurso conservador parece avassalador nas mídias tradicionais e nas redes, olhando por outro ponto de vista, é essencial apontar a força de um contradiscurso protagonizado por mulheres que cresceu por conta própria e se impôs, influenciando até mesmo a grande mídia.

Após as manifestações públicas na internet de milhares de mulheres e a organização de atos como a Marcha das Flores, o tom da imprensa se modificou. A própria Folha de S. Paulo e a TV Globo mudaram a forma de noticiar o fato, tratando-o como crime. E, mesmo com bastante atraso, os movimentos sociais de mulheres ganharam voz dentro das reportagens, uma vez que o fato não poderia mais se manter invisibilizado. Em outros termos, o cenário mostra que os ataques às mulheres – somos constantemente submetidas ao julgamento do patriarcado – não serão superados sem que haja forte mobilização nas redes e também nas ruas. Os crimes não serão esquecidos, nem silenciados.

*Camila Nobrega é jornalista e pesquisadora visitante do departamento de Ciência Política da Freie Universität Berlin e Cinthya Paiva é advogada; ambas integram o Coletivo Intervozes.

O começo do fim da comunicação pública no Brasil?

Texto: Iara Moura

Colaboraram: Oona Castro, Camila Nóbrega (Intervozes) e Caio Barbosa (Cinco de Terra e Ecoar)

 

https://www.youtube.com/watch?v=sKFE1bW8md0

Governo interino de Temer intervém na Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e ameaça a continuidade do incipiente projeto de comunicação pública nacional

Um dos primeiros atos do presidente interino Michel Temer foi a exoneração do diretor-presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Com a demissão de Ricardo Melo e de mais de uma centena de funcionários, e a declaração de que deverá editar Medida Provisória para mudar o caráter da Empresa e extinguir o Conselho Curador, sem nenhum debate público, Temer dá sinais de intenção de retomar o caráter de propaganda estatal que veículos de comunicação pública já tiveram em outros momentos da história do Brasil, como o período do Estado Novo e da Ditadura Militar.

Buscando se proteger das implicações legais da demissão de Ricardo Melo, o governo interino de Michel Temer anunciou ainda que estava editando uma Medida Provisória para mudar o funcionamento da EBC. Segundo informações divulgadas da Folha de São Paulo no dia 18/05, a MP ainda está em elaboração e contém dentre suas alterações, a extinção do Conselho Curador, órgão cuja principal função é zelar pela autonomia da EBC, impedindo ingerência do governo e do mercado sobre a programação, o conteúdo e a gestão da comunicação pública.

“Houve um boato da exoneração do presidente que feria a lei e essa exoneração foi confirmada no Diário oficial após o Conselho Curador esclarecer esse governo de que a prerrogativa de demitir o presidente é deste órgão aqui. Isso foi feito numa fase em que o país está esperando que seja julgado o processo de impeachment da presidenta Dilma. Esse ato sugere para a sociedade a intenção de aparelhamento”, defendeu Rita Freire, presidenta do Conselho Curador, durante a reunião extraordinária do órgão que aprovou nota  de pedido de esclarecimento ao presidente interino Michel Temer nesta terça-feira (31).  A reunião foi interrompida quando um grupo de ativistas foi impedido de entrar no salão. Após serem autorizados, os ativistas entoaram: “Michel Temer não me representa. Nem Rimoli não me representa. Eu vou explicar. Não tá entendendo? Mexeu com a EBC, você vai sair perdendo”.

https://www.youtube.com/watch?v=FrldaO2Vypk&feature=youtu.be

Intervenção durante reunião extraordinária do Conselho Curador da EBC, na tarde de 31/05/2016

Segundo Ricardo Melo, o clima na Empresa nos dias subsequentes à sua exoneração é de insegurança. “Eu não fui comunicado da exoneração. Eu fiquei sabendo que estava exonerado pelo Diário Oficial. São madrugadas e madrugadas que a maioria dos funcionários da nossa emissora ficam acompanhando a hora que o diário oficial vai sair pra saber o que vai acontecer no outro dia”, denunciou durante solenidade em homenagem a ele próprio realizada na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro no último dia 23 de maio. Segundo relato do jornalista, a Empresa está vivendo um processo truculento, “de fazer inveja aos momentos ditatoriais no Brasil”. “A EBC vai ser simplesmente um porta-voz das medidas que o governo golpista pretende tomar se ele continuar no poder”, afirmou.

Em entrevista à Agência Brasil, o presidente empossado, Laerte Rimoli, defendeu-se das críticas e prometeu “devolver a empresa para a sociedade brasileira”. Rimoli atuou como diretor de comunicação na Câmara dos Deputados, durante a gestão do presidente afastado da Casa, Eduardo Cunha. Ricardo Melo, porém, relata que a promessa de apaziguar os ânimos na empresa não é o que está acontecendo na prática.  Melo denunciou a truculência de episódios como o arrombamento da sala da superintendente da regional sudeste I, Marília Baracat, e a tentativa de obstrução ao trabalho que ele mesmo sofreu, quando coordenava o fechamento do Repórter Brasil no sábado anterior (21), já que continuava na função de diretor de jornalismo. O cancelamento da transmissão do show de Mano Brown (dos Racionais MCs) na Virada Cultura de São Paulo como uma tentativa de silenciar manifestações contrárias ao governo Temer e a demissão do jornalista recém-contratado, Sidney Rezende, também foram episódios repudiados pelo ex-diretor.

Para representantes dos trabalhadores e trabalhadoras da EBC e movimentos sindicais, a ingerência que hoje se apresenta de maneira “truculenta e ilegal”, marcou a história da empresa em outros momentos e se refletiu em dificuldades internas. A diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, Cláudia Abreu, lembrou que a EBC não é um “projeto de governo”, mas é “resultado de uma cobrança da sociedade civil sobre a necessidade de um projeto de comunicação pública”.

A jornalista defende que é necessário ampliar o debate interno e a valorização profissional dos trabalhadores concursados e repudiou episódios de assédio moral a líderes sindicais e a condução de trabalhadores à Polícia Federal acusados de fazer piquete durante a greve de 2013.  Apesar das críticas, Cláudia destaca a necessidade da união dos gestores, trabalhadores e sociedade civil “contra o golpe e em defesa do caráter público da empresa, que é uma conquista da sociedade e não de um governo”.

Enquanto fechávamos esse texto, estava em análise, no Supremo Tribunal Federal, um mandado de segurança impetrado por Ricardo Melo denunciando a ilegalidade de sua exoneração e da nomeação de Laerte Rimoli. Na Corte, a relatoria da ação ficou sob a responsabilidade do ministro Dias Toffoli, que determinou a notificação do presidente da República interino para que ele preste informações. Até o fechamento deste texto, Toffoli não havia se pronunciado sobre o caso . Após longo debate público que levou à criação da EBC, firmou-se a concepção de que o diretor-presidente deveria ter mandato-fixo, não coincidente com a Presidência da República, de 4 anos. O mandato de Melo seguiria até o ano de 2020 e a violação desta determinação é o principal argumento que levou à abertura do mandado de segurança em análise.

Futuro incerto

As notícias de mudanças abruptas na EBC têm sido recebidas com preocupação em várias regiões do país. É o caso da Amazônia, região comumente negligenciada na programação de canais privados de comunicação do país. A Rádio Nacional Alto Solimões, caçula das emissoras da EBC, funciona atualmente com sete funcionários que se revezam nas funções de produção, jornalismo, locução, atendimento aos ouvintes e questões administrativas. Em 2016, completa dez anos de existência. Como parte da comemoração, os funcionários da emissora e os ouvintes aguardam com ansiedade o presente prometido: reformas técnicas para propiciar a chegada do sinal às áreas rurais e ribeirinhas mais remotas e concurso público para ampliar a equipe técnica. As últimas intervenções do presidente interino Michel Temer transmitem para a pequena sucursal de Tabatinga um clima de insegurança quanto ao futuro.

Os cuidados para evitar o surto de H1N1 que o Brasil atravessa, as indicações de como identificar os sintomas da doença e os grupos prioritários na vacinação: esse era o destaque da manhã do dia 23/05/2016 no noticiário Bom Dia Amazônia, transmitido para a região da Amazônia legal e do Alto Solimões, extremo oeste do estado do Amazonas.  O programa entra no ar, ao vivo, de segunda a sábado, às 05h, pela Rádio Nacional da Amazônia e às 03h na Rádio Nacional do Alto Solimões. Entremeando a entrevista com um médico especialista na doença, ídolos da música popular brasileira e do pop nacional animavam a manhã dos ouvintes. Diferente da erudita Rádio Mec – também do campo público e que se dedica à música clássica – ali, ídolos do tecnobrega e do reggaeton também figuravam na programação.

A emissora foi criada em 2006 e está localizada no limite fronteiriço do Brasil com a Colômbia e o Peru, no município de Tabatinga (AM). Atualmente, segundo a coordenadora Miss Lene Ferreira, a rádio alcança satisfatoriamente quatro municípios: Tabatinga, Benjamin, Atalaia do Norte e São Paulo de Olivença. A medição do alcance, para além dos aparatos técnicos, se dá de maneira muito simples: pela participação ativa dos ouvintes. “As pessoas ligam ou vêm até a rádio pra dar e receber notícias sobre a família, para saber de concursos públicos, anunciar festas, reuniões. É pela Rádio que elas são convocadas a comparecer no Fórum. É a ligação com a cidade, com o país”, explica.

O sinal é uma preocupação constante da rádio que nasceu com a pretensão de alcançar nove municípios (Tabatinga, Atalaia do Norte, Benjamim Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tocantins, Jutaí e Fonte Boa). Por meio das ondas de AM e FM, o resgate da cultura lusófona-brasileira também está entre os objetivos da emissora. Miss Lene conta que as rádios que alcançavam a maior parte da região eram colombianas ou peruanas. “As pessoas usam a rádio também do outro lado (da fronteira) para aprimorar ou aprender o português”, conta.

Segundo relatório da ouvidoria da EBC, a questão do sinal é o maior motivo das reclamações que o órgão recebeu no ano de 2015. Até nas grandes cidades é comum a TV e as rádios do sistema ficarem fora do ar. “Embora as queixas sejam provenientes de vários pontos do Brasil, as zonas norte e oeste da cidade do Rio de Janeiro se destacam. O sinal da área provém da estação retransmissora da Serra do Mendanha, cujos equipamentos não garantem boa qualidade do sinal e muitas vezes deixam a região sem sinal algum durante meses”, destaca o documento. No mesmo informe, a superintendência de suporte explica que a demora em resolver as questões técnicas se dá pela burocracia para aquisição de equipamentos e realização dos reparos.

Enquanto na tarde do dia 20./05 no Alto Solimões, ouvia-se a segunda edição do Repórter Amazônia, nas capitais São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro funcionários, ouvintes, telespectadores, leitores e apoiadores ocupavam as sedes das EBC em protesto contra a exoneração de Ricardo Melo. A nomeação que já havia sido antecipada na imprensa se confirmaria com a publicação no Diário Oficial da União na manhã daquele dia.

Para aqueles que protestavam na sexta-feira (20), a troca de presidentes fere a autonomia da EBC uma vez que passa por cima da lei de criação da empresa (11.652/2007) a qual estabelece, em seu artigo 19, que o mandato de quatro anos do presidente só pode ser interrompido por meio de dois dispositivos: a saída espontânea ou a existência de dois votos de desconfiança feitas pelo Conselho Curador da Empresa.

No ato organizado pela Frente em Defesa da Comunicação Pública em Brasília, a presidenta do Conselho Curador, Rita Freire, ressaltou: “estamos caminhando junto com os trabalhadores e a sociedade civil que está representada nesse conselho e está levantando sua voz hoje para que o direito à comunicação pública não seja maculado, violado, agredido por interesses circunstanciais de mudança na vida do país”.

A EBC foi criada em 2007 após a realização do I Fórum Nacional de TVs Públicas. Integrou as veteranas Rádio Nacional do Rio de Janeiro, Rádio Nacional Amazônia, Rádio Mec e outras emissoras geridas pela extinta Radiobrás e pela TVE do Rio de Janeiro numa só rede nacional de  comunicação pública. As emissoras estaduais educativas também foram incorporadas ao Sistema Público de Comunicação. Concomitantemente à criação da empresa, entraram no ar também a TV Brasil e a Agência Brasil. O portal da EBC estreou em julho de 2012.

Diversidade em xeque

Não é a primeira vez que a EBC sofre com interferências que comprometem o caráter público, a atividade jornalística e a relação de confiança com o público.  Ao longo da existência da empresa, questões de ingerência foram constantemente denunciadas pelos empregados e até pelos espectadores/as, ouvintes e leitores/as através da ouvidoria.

Durante o final de 2015 e o início de 2016, com o acirramento da conjuntura de crise política nacional, a ouvidoria recebeu denúncias de espectadores questionando uma suposta falta de equilíbrio nos conteúdos dos programas jornalísticos das rádios, da TV e nas coberturas da Agência Brasil. O relatório de março de 2016, por exemplo, período de manifestações a favor e contra o impeachment e de divulgação de grampos telefônicos pelo juiz Sérgio Moro, destaca a reclamação de uma telespectadora que se diz indignada com a edição do dia 10/03/2016 do Repórter Brasil:

“Considero grave o uso de uma emissora pública, bancada com recursos públicos, ser usada assim para atender os interesses político-partidários do governo do momento. Os apresentadores e os dois jornalistas convidados para comentar o pedido de prisão não disfarçaram suas preferências políticas e fizeram de tudo para tentar caracterizar as investigações recentes como injustas, indevidas”, diz um trecho da reclamação.

Em coluna publicada no portal da EBC, a ouvidora Joseti Marques endossa a crítica da leitora, mas chama atenção para o fato de que também são recorrentes reclamações que apontam os programas jornalísticos da EBC como iguais aos das emissoras comerciais em forma e conteúdo. São comuns também comentários que criticam o fato de as reportagens não defenderem o governo. A ouvidora explica que a confusão entre público, estatal e governamental ainda é um desafio a ser superado.

Para Priscilla Kerche, repórter da TV Brasil de São Paulo, a tentativa da empresa em copiar os modelos de gestão dos meios privados, hierarquizado e pouco democrático, faz confundir o papel do meio público e cria problemas para o exercício da atividade jornalística. “ A influência governista pesou em cargos decisórios assumidos por comissionados que, mais uma vez, se espelham na mídia tradicional. Muito por conta de uma cultura jornalística do país também. O desafio é produzir conteúdo qualificado e diferenciado numa estrutura que reproduz a lógica de empresas comerciais, mas que não tem estrutura pra fazer igual e nem deveria ter isso como objetivo”, defende.

Para o jornalista Albert Steinberger, que passou pelas redações da TV Câmara, TV Globo, BBC Brasil (sucursal da TV pública britânica para o Brasil), ZDF (TV pública alemã – Canal 2) e Deutsche Welle (canal alemão estatal/público voltado para o exterior), as interferências ao trabalho dos jornalistas estão presentes nos diversos tipos de meios em diferentes níveis:

“Seja uma linha editorial neoliberal, ou uma limitação para lidar com assuntos da família real britânica. Não dá para idealizar e acreditar que exista um meio com liberdade total para o jornalista. Todos os veículos têm suas limitações de acordo com a cultura da empresa, fonte de financiamento, chefia e outros fatores”, defende.

O jornalista destaca, porém, que a existência de uma variedade de vozes na grande imprensa, como acontece na Inglaterra e na Alemanha, onde é possível, por exemplo, investigar livremente as contas do governo ou as acusações de irregularidade em determinada empresa e “ver um fato sob diferentes olhares”, é positivo e necessário para a sociedade. Buscando garantir essa diversidade, a Constituição Federal estabelece em seu artigo 222 a complementaridade dos sistemas público, estatal e privado na exploração dos serviços de rádio e TV em território nacional.

Democracia fora do ar

Episódios anteriores de interferência dos governos e de grupos empresariais nas atividades das emissoras do campo público deixaram marcas profundas na história do Brasil. Em 30 de março de 1964, na madrugada que marcou a instalação da ditadura civil-militar, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro virou meio de transmissão de grupos que se opunham ao golpe que estava em vias de acontecer reunidos na Rede Pela Legalidade.

No primeiro dia do golpe, o diretor da Rádio Nacional foi informado pelo telefone da chegada de dois tanques de guerra que apontavam os canhões para os transmissores da Rádio Nacional, acompanhados por cerca de 100 soldados armados. Assim que se instalou, o presidente Castelo Branco demitiu 39 funcionários da Rádio Nacional sem qualquer processo. A emissora, criada em 1936 e estatizada pelo Estado Novo em 1940, tinha 800 empregados e produzia 20 horas de programação diária, liderando a audiência no país.

Documentos reunidos na pesquisa “O Serviço Nacional de Informações e a comunicação” (Peic/UFRJ) revelam que a espionagem, a censura e a demissão e perseguição de funcionários eram expedientes utilizados pelos governos militares como forma de conter as críticas ao regime feitas pelos movimentos democráticos. A partir da madrugada do dia 30 de março para o dia 1º de abril de 1964, os veículos públicos, privados, comunitários, educativos e alternativos eram alvos a serem neutralizados pela inteligência dos militares. A pesquisa mostra ainda que, nem mesmo com o fim da ditadura notou-se significativa mudança de  percepção do ponto de vista do controle de conteúdo.

“A linguagem e os métodos utilizados para vigiar os meios de comunicação permaneceram similares mesmo após o fim da ditadura. O que evidencia o caráter do que historicamente entendemos por ‘transição suave’ e que, mesmo no contexto democrático, a vigília e o controle permaneceram”, relata Janaine Aires pesquisadora da UFRJ.

Documentos coletados nos arquivos do SNI sobre espionagem de veículos do campo público por governos militares  

O uso dos meios públicos alemães durante a Segunda Guerra para a propaganda nazista se tornou episódio exemplar do imperativo de proteger o interesse público e garantir a diversidade de ideias nos meios de comunicação. Embora a independência financeira seja constantemente alvo de pressão dos meios privados, os canais públicos, tanto na Alemanha quanto na Inglaterra, se financiam por meio de uma taxa anual que os cidadãos dos dois países pagam. Atualmente a taxa anual de TV está em 215,76 euros  por residência na Alemanha (por ano). No Reino Unido, o valor anual é de 145,50 libras.

Na Alemanha e em outros países da Europa – como Portugal e Espanha – onde o modelo de radiodifusão se desenvolveu primeiro como monopólio público e o uso privado só veio posteriormente, a comunicação pública percorreu um caminho próprio consolidando-se e servindo de modelo para os demais sistemas no mundo. Lá, a ZDF lidera a audiência com 12,6%, seguida pela ARD com 11,5%. A rede privada RTL aparece encostada em terceiro lugar com 10%.

Do mesmo modo, a BBC inglesa é líder de audiência com uma programação variada que mescla entretenimento e informação. Por conta disso, as emissoras também são alvo das mídias privadas.  No Bild Zeitung na Alemanha e no The Sun são recorrentes os ataques. Aqui, durante a recente troca de presidentes da EBC, os jornais O Globo e O Estado de São Paulo publicaram editoriais questionando a rentabilidade e a relevância da EBC e acusando a empresa de ser instrumento de “propaganda lulopetista”. Ambos os jornais, de grandes grupos de mídia, acusam a EBC de representar um gasto estatal desnecessário e desproporcional.

A EBC custa à União cerca de R$ 750 milhões anuais.  Os gastos com publicidade do Governo Federal, empregados na Rede Globo, por outro lado, somam 6,2 bilhões de reais nos 12 anos de governo petista, ou seja, uma média de 516 milhões ao ano, sem contar a verba empregada em suas afiliadas.

Programação infantil na contramão do consumismo

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Programa TV Piá, exibido pela TV brasil. Foto: divulgação

“Nasce hoje uma nova televisão para que os brasileiros tenham mais liberdade de escolha. Isso é pluralidade. Isso é democracia. A TV Brasil quer ser um espelho de nosso país, espera refletir a multidão de brasileiros de todas as raças, cores, credos, regiões e condições sociais que formam o coletivo chamado Brasil”.

O trecho da vinheta exibida durante a primeira transmissão da TV Brasil em 2 de dezembro de 2007 foi lido pela atriz Zezé Motta e resume o intento da emissora em ter uma programação diversa que refletisse a cultura nacional e o interesse público. A grade da TV Brasil foi formatada a partir de uma perspectiva generalista com programas informativos, jornalísticos e de entretenimento, além da programação infantil.

A programação voltada para este público é reconhecida em âmbito internacional antes mesmo da TV Brasil entrar no ar. Os casos de sucesso “Meu amigãoZão” e “TV Piá”, no qual crianças de diferentes regiões do Brasil aparecem compartilhando saberes, brincadeiras e suas culturas, demonstram que a TV Brasil busca se diferenciar das TVs comerciais nos desenhos, séries e revistas eletrônicas voltadas para os pequenos.

“Enquanto as emissoras comerciais visualizam a criança e o adolescente principalmente como consumidores, a TV Brasil olha as crianças sob a ótica da cidadania. Uma implicação imediata dessa diferença é a inexistência de publicidade nas 7 horas de programação infanto-juvenil exibidas cotidianamente”, explica Inês Vitorino, pesquisadora da Universidade Federal do Ceará, coordenadora do Grupo de Pesquisa da Relação Infância e Mídia (Grim). À convite do Conselho Curador da EBC, o grupo fez um monitoramento que analisou a programação infanto-juvenil da emissora levando em consideração critérios de diversidade regional, originalidade, incentivo à criatividade, a ausência de conteúdos danosos ao desenvolvimento do público infantil, entre outros.

A transmissão de campeonatos de futebol feminino e das séries B, C e D do futebol masculino também são destaques na programação que em 2016 apostou na transmissão de eventos culturais e shows como o Desfile das Campeãs durante o carnaval do Rio de Janeiro e a Virada Cultural de São Paulo.

Pensar a programação da emissora é uma das prerrogativas do Conselho Curador formado por 22 membros: 15 representantes da sociedade civil, indicados via consulta popular e aprovados pela presidência; quatro do Governo Federal; um da Câmara dos Deputados; um do Senado Federal; e um representante dos trabalhadores da EBC. Os representantes do público são escolhidos por meio de consulta pública. Se a intenção da Medida Provisória de Temer se confirmar, o órgão pode ser extinto e o acompanhamento da sociedade civil quanto
à diversidade, a isenção jornalística e o respeito aos direitos humanos, dentre outros princípios da comunicação pública, podem ficar fora do ar por um longo tempo.