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Telecomunicações: universalização segue distante, limitando o exercício de direitos

Texto: Helena Martins*

Em 2018, o Brasil registrou a passagem dos 20 anos da privatização do setor de telecomunicações. O aniversário foi marcado pelo aprofundamento do viés privatista que orientou a abertura do setor à concorrência em 1998. Embora cada vez mais importante por suportar serviços considerados essenciais, como a conexão à Internet, as telecomunicações brasileiras ainda não incorporaram a perspectiva da universalização. Sem isso, brasileiros e brasileiras dependem da própria sorte para acessá-las.

Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ao longo de todo o ano de 2018, o setor empresarial deu continuidade à pressão pela aprovação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 79/2016. A proposta legislativa propõe alterações drásticas na Lei Geral das Telecomunicações (LGT), que organiza o setor desde 1997. O PLC foi o grande destaque do rol das violações do direito à comunicação nas telecomunicações em 2017. Conforme abordado em nosso relatório daquele ano, o projeto propõe a adaptação da modalidade de outorga de serviços de telefonia fixa de concessão para autorização, acabando, na prática, com o único serviço prestado em regime público no setor, e ainda entrega de um patrimônio avaliado em mais de R$ 100 bilhões, os bens reversíveis, para as empresas.

Considerando as necessidades de conexão dos brasileiros, é evidente que, ainda que o serviço telefônico não seja mais considerado essencial, é por meio dessa infraestrutura que boa parte da população se conecta à Internet. Cerca de 15% das conexões de domicílios utilizam ADSL, ou seja, os cabos de cobre da telefonia fixa. Assim, é importante ter um olhar atento para a importância desta infraestrutura que, inclusive, pode ser atualizada e alcançar novos patamares de velocidade.

Explica Marina Pita, conselheira do Intervozes e representante dos usuários no Comitê de Defesa dos Usuários de Serviços de Telecomunicações da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

No entanto, o setor empresarial segue pressionando pelo fim da concessão do serviço de telefonia fixa e um modelo que seja altamente lucrativo a eles, ainda que não assegure o acesso à conexão.

Ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Gilberto Kassab participou da abertura do Painel Telebrasil 2018. Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil
Ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Gilberto Kassab participou da abertura do Painel Telebrasil 2018. Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil

No documento final do Painel Telebrasil 2018, evento que reúne as empresas do setor, a primeira medida apontada como urgente para ampliar o potencial e garantir a conexão à Internet, maior cobertura de celular e Internet móvel e fixa, uso intensivo da chamada Internet das Coisas e implantação de serviços de Cidades Inteligentes foi exatamente a aprovação imediata do PLC 79/16. A atualização legal e regulatória, segundo o texto, liberaria ainda mais investimentos para viabilizar isso. Nesse sentido, requerimentos com pedidos de urgência foram feitos para que o projeto fosse votado pelo plenário do Senado, onde está parado desde 2017, após mobilização da sociedade civil e decisão, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de que ele deveria voltar a ser debatido.

Apesar desses interesses e das promessas do governo Temer, nada mudou. Com o fim da legislatura, o PLC 79 voltou para a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática do Senado (CCTCI), onde será relatado pela senadora Daniella Ribeiro (PP/PB). Há pelo menos 16 emendas sugeridas do final do ano passado que devem ser averiguadas pela Casa. Para a sociedade civil, o retorno dessa discussão é preocupante. “A gente acredita que o PLC 79 aponta, a grosso modo, para a privatização da privatização”, critica Marcos Urupá, integrante da coordenação do Intervozes.

“A proposta do PLC 79 e sua retomada agora apontam para o contrário das necessidades da sociedade, que tem o direito de ter acesso à Internet. Acreditamos que uma proposta ideal seria um debate amplo sobre a Lei Geral de Telecomunicações, observando a realidade da expansão do serviço de oferta de banda larga, o que pode trazer rentabilidade às empresas e casar com a consideração sobre o interesse público na oferta desse serviço, que cada vez mais é essencial”, pondera.

Urupá destaca ainda que o projeto poderá viabilizar a entrega de um patrimônio de R$ 100 bilhões para as operadoras de telecomunicações. Para ele,

Se trata de uma entrega sem clareza das contrapartidas e, o que é pior, sem uma clareza do que é efetivamente esse patrimônio, pois há contradições em torno da lista dos bens reversíveis. Por isso, o PLC é danoso para a União, para a sociedade, rentável apenas para o setor de telecomunicações.

Para Pita, além do fato de o valor dos bens reversíveis estar sendo “extremamente desvalorizado”, não há parâmetros transparentes para a análise do saldo da troca da concessão para a autorização, o que faz com que a sociedade civil organizada seja contra a proposta de mudança da LGT. É fundamental ter em conta que além de o saldo poder ser usado pelas empresas para investimentos em suas redes privadas, não há critérios suficientes para assegurar que esses recursos serão investidos onde a população brasileira precisa, nas áreas em que a conexão fixa não existe ou é cara. Não há também perspectiva clara de redução da concentração na oferta de banda larga, o que torna o serviço tão caro para boa parte da população.

Para piorar, ainda que a discussão e a deliberação públicas sobre esses temas não tenham sido finalizadas, o governo Michel Temer adotou medidas que ampliaram o caráter comercial e não a perspectiva dos direitos no setor das telecomunicações. Em dezembro, no apagar das luzes de seu governo, Temer editou dois decretos direcionando políticas para a área.

O primeiro, Decreto 9.612/2018, dispõe sobre as políticas de telecomunicações. Ele decreto veio substituir uma série de decretos editados desde 2003 que trataram do reposicionamento das políticas de telecomunicações, de modo a colocar no foco da atuação do poder público a necessidade de implantação de infraestrutura para atender a crescente demanda por redes que dêem suporte para os serviços de acesso a Internet. O decreto anterior, 4.733/2003, definiu novas orientações para as políticas de telecomunicações já no contexto da reforma do Estado e privatizações ocorridas em julho de 1998 e previu expressamente o caráter universal do acesso à rede mundial de computadores, em consonância com o que determina a Constituição Federal.

Entretanto, os decretos editados posteriormente ignoraram este direito. É o caso, inclusive, do Decreto 7.175/2010 – que instituiu o Plano Nacional de Banda Larga –, que excluiu a previsão do caráter universal dos serviços de telecomunicações, passando a falar em massificação, cujas consequências jurídicas têm diferenças significativas, na medida em que retira do Estado a obrigação de se comprometer com a garantia de acesso.

O mesmo ocorre com o Decreto 9.612, que apesar de ter introduzido aspectos importantes, continua a não dar efetividade ao caráter universal dos serviços de telecomunicações e acesso a Internet, como expressamente previsto no Marco Civil da Internet.

Entre os aspectos relevantes do atual decreto está a previsão de que a Telebrás atue como indutora da implementação das políticas de telecomunicações, estando estabelecida inclusive a atribuição de prestar serviços de acesso a Internet diretamente ao consumidor nas localidades onde não existam oferta adequada. Igualmente relevante é a previsão de que as redes implantadas com base nas políticas estabelecidas pelo novo decreto devem estar sujeitas a obrigação de compartilhamento desde o início de sua operação, reservando-se parte de sua capacidade com o cumprimento dos objetivos das políticas públicas.

Outra mudança efetivada em 2018 se deu por meio do Decreto 9.619/2018, também apresentado nos últimos meses de mandato de Michel Temer. O texto aprovou o novo Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado no Regime Público. Ocorre, como alerta a advogada Flávia Lefèvre, integrante do Comitê Gestor da Internet no Brasil e do Intervozes, que ele “deixou de fora mais de R$ 3,7 bilhões a favor das concessões decorrentes do saldo da troca de metas dos Postos de Serviço de Telecomunicações (PSTs) para o backhaul, infraestrutura de rede de suporte do STFC para conexão em banda larga, que interliga as redes de acesso ao backbone da operadora”. Desde a edição do Decreto 6.424/2008, a meta de instalação dos PSTs deixou de existir, colocando em seu lugar a ampliação da infraestrutura de banda larga. O atual estimula novamente a conexão 4G, precária em relação à qualidade da Internet.

Queda nos acessos contraria crescente importância dos serviços

Sem políticas públicas para que seja garantida a universalização dos serviços, o que temos visto é a ampliação da dificuldade da população, que enfrenta um contexto de crise financeira no país, exercer o seu direito à comunicação. Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), da PNAD e TIC Domicílios consolidados pela consultoria Teleco apontam que havia, apenas, 31,2 milhões de assinantes de banda larga no Brasil em janeiro de 2019. Em 12 meses, entre setembro de 2018 e agosto de 2018, foram adicionados apenas 2,49 milhões de contratos desse serviço em todo o território nacional. Pouco para a importância que a Internet tem adquirido no cotidiano como instrumento necessário, inclusive, para o acesso a políticas públicas.

A quantidade de acessos com velocidade acima de 34 Mb/s quase dobrou no ano passado, tornando-se a segunda categoria mais popular, assim como o número de clientes usando Internet via fibra óptica. Já a faixa de 2 Mb/s a 12 Mb/s ainda segue concentrando a maioria dos clientes. Isso significa que poucas pessoas estão tendo a oportunidade de usufruir de uma conexão rápida, ao passo que a maior parte da população depende de acessos móveis, uma situação que amplia a desigualdade digital em nosso país.

A dificuldade está associada aos preços cobrados, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2017, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), realizada por meio do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). Lançada em julho do ano passado, a pesquisa mostrou que o preço da conexão permanece como principal motivo mencionado para a ausência de Internet nos domicílios. Ao todo, 27% dos entrevistados afirmam que o serviço é caro.

O mesmo é diagnosticado na pesquisa do Intervozes intitulada Marco Civil da Internet – Violações ao direito de acesso universal previsto na lei, lançada em fevereiro de 2018, que mostra, ainda, que a própria Anatel tem dificuldades para obter dados sobre preços ofertados concretamente à população em diferentes municípios e aponta como um dos problemas a carga tributária que incide sobre o setor.

Evidenciando como a violação do direito à comunicação acompanha outras problemáticas, a pesquisa do CGI.br mostra ainda que as desigualdades por classe socioeconômica e por áreas urbanas e rurais demarcam diferenças em relação ao acesso à Internet. A rede mundial de computadores está presente em 30% dos domicílios de classe D/E (proporção que era de 23% em 2016) e 34% das residências da área rural (em 2016, era 26%). Já nas classes A e B, as proporções atingem 99% e 93%, respectivamente. Os dados mostram, portanto, que o acesso aumentou, mas que ainda está longe de ser comparado ao que é vivenciado por pessoas mais ricas e moradoras dos centros urbanos. Além disso, 19% dos domicílios conectados não possuem computador, o que representa 13,4 milhões de residências. Essa proporção era de apenas 4% em 2014, o que mostra também que o acesso está se dando de forma precária, sobretudo por meio dos dispositivos móveis.

Horta em pequena propriedade rural em Avaré (SP). Créditos: José Reynaldo da Fonseca/ Wikimedia Commons
Horta em pequena propriedade rural em Avaré (SP). Créditos: José Reynaldo da Fonseca/ Wikimedia Commons

Essa situação decorre também da baixa concorrência no setor. Praticamente quatro operadoras controlam 73% das conexões. A líder, o Grupo Claro, detém 9,4 milhões delas (30% do total). Em segundo lugar está a Vivo, com 7,6 milhões de assinantes (24%). Enquanto isso, a Oi vem a seguir com 6 milhões (ou 19%). De acordo com a Anatel, somente a Claro/NET conseguiu adicionar clientes ao longo do ano, tendo registrado um crescimento de 5% de sua base de assinantes. Enquanto isso, a Vivo ficou estável e a Oi sofreu queda de 5% no número de contratos ativos.

Se a Internet cresceu pouco, o acesso à telefonia caiu. No caso da fixa, o país registrou, ao todo, a existência de 37,5 milhões de linhas em dezembro de 2018, segundo a Anatel, cerca de 2 milhões a menos que no mesmo mês de 2017, o que representa uma variação negativa de 5,23%. Os estados com taxas que ultrapassam a faixa de 40% dos domicílios com telefone fixo estão concentrados nas regiões Sudeste e Centro Oeste. Nas regiões Norte e Nordeste, os percentuais variam entre 10% e 30%, à exceção, sendo o que registra maior presença, entre estes, o estado do Acre, com 32,3%.

Mesmo a telefonia móvel, que fechou dezembro de 2018 com 229 milhões de linhas, sofreu queda no comparativo com 2017, ano que terminou com 236 milhões, uma variação negativa de 3,08%. As regiões Norte e Centro-Oeste são as com menor taxa de acesso, totalizando 16 milhões e 18,8 milhões, respectivamente. Do total das linhas, 56,5% são pré-pagas, ao passo que 43,5%, pós-pagas. Em relação às tecnologias que viabilizam conexão por meio do celular, a mais comum já é a 4G, representando 56,6% do total. A 3G atinge 23,9%. Já a 2G, 10,8%.

A queda nos acessos é ainda mais expressiva na TV paga, que no Brasil é considerada um serviço de telecomunicações. As operadoras perderam no ano passado 549 mil assinantes. Com isso, o serviço fechou 2018 com 17,5 milhões de contratos ativos, segundo a Anatel. É o quarto ano seguido com registro de queda. A situação começou a ser verificada em 2014. Após registro de expansão entre 2011 e 2013, quando o crescimento da TV por assinatura e da banda larga aconteciam de forma quase paralela, a crise econômica levou ao cancelamento de contratos.

A esse fator somou-se outro nos últimos anos: a popularização de serviços de vídeo sob demanda, como o Netflix, com tarifas bem mais baixas que as cobradas pelas empresas de TV paga. Em fevereiro de 2019, a empresa Amdocs divulgou estudo em que aponta que os serviços de vídeo que funcionam por meio da Internet estão presentes em 39% dos lares, ao passo que a TV paga, em 26%. Eles já são a principal forma de assistir TV em 8% das casas. No país, detalha o estudo, três novos contratos do serviço foram adicionados para cada casa que abriu mão da TV por assinatura no ano de 2017. Essa mudança expressa uma tendência mundial e que tende a ainda se aprofundar no Brasil. Na Austrália, por exemplo, 17% dos lares já privilegiam essa modalidade de acessar conteúdos, percentual que chega a 16% no México e 13% nos Estados Unidos. Mas para acessá-los com qualidade, faz-se necessária uma boa conexão à Internet.

Bem comum ou mercadoria?

O cenário das telecomunicações no Brasil mostra que há uma enorme desigualdade na participação da sociedade no setor e que ainda estamos longe de garantir que o acesso à Internet seja tratado como um serviço essencial no Brasil, embora esse conceito conste no Marco Civil da Internet desde 2014.

A ausência de uma postura efetiva de defesa da universalização das telecomunicações e do acesso à Internet acaba afetando outras políticas públicas, como alertam organizações da sociedade civil, entre elas a ONG Internet Sem Fronteiras (ISF). Diretora da organização no Brasil, Florence Poznanski cita o exemplo da construção do cabo ELLAlink, feito para conectar América Latina e Europa. Florence explica que o projeto surgiu sem fins lucrativos, a partir de aliança entre a brasileira Rede Nacional de Pesquisa (RNP), a rede universitária europeia GEANT e a sul-americana RedCLARA.

Além de uma oportunidade para fortalecer a inclusão digital do continente e reduzir os custos de acesso, o cabo traz um modelo de governança inovador que abre uma grande esperança para o reconhecimento da Internet como um bem comum da humanidade, dedicando uma parte de sua banda larga para a comunicação de organizações não-comerciais. “Isso nos interessou, porque era possível pensar em um acesso à Internet sem fins lucrativos, mas sob a ótica do bem comum”, inclusive com uma proposta inicial de gestão compartilhada, que significaria uma mudança no modo de governança dos cabos submarinos que até então foram utilizados quase exclusivamente para fins comerciais, detalha. Ademais, a criação de uma rota alternativa para o tráfego mundial teria importância geopolítica, pois ele é atualmente controlado, em mais de 99%, por multinacionais norte-americanas.

No entanto, esse potencial foi condicionado por escolhas que transcendem a tecnologia. “A existência de um cabo – no caso do ELLAlink –, que vai chegar em Fortaleza e em São Paulo, não necessariamente se traduz diretamente em mais acesso, porque na verdade isso significa conectar essa quantidade de banda larga em um lugar, mas que pode ser usada em data centers em São Paulo, por exemplo, que vão contribuir para conectar ainda mais setores que já estão conectados. Caso tenha uma política realmente de universalização, através de pontos de trafego etc., poderia servir a outros lugares para o país, barateando o acesso à rede”, opina Florence.

Inicialmente, a Telebras seria parte dos investidores do que veio a se converter na empresa ELLAlink, mas no segundo semestre de 2018 ela deixou de ser membro do consórcio alegando restrições orçamentárias e renegociou as condições da parceria. Agora, ficou garantido apenas a contratação da capacidade do cabo, frustrando as expectativas de quem defendia que ele poderia fomentar outros modelos de gestão da rede e reiterando que “não é o próprio cabo que resolve em si o problema, mas a maneira como ele é inserido na política”, conforme resume a diretora da ISF.

Como em todo o campo da comunicação, nas telecomunicações é preciso que haja postura ativa de agentes do poder público para que o desenvolvimento tecnológico seja transformado em vivência para o conjunto da sociedade. A Lei Geral de Telecomunicações prevê que a oferta dos serviços será garantida basicamente por meio de três modalidades: estímulo à competição, regulação e subvenção econômica. Vinte anos depois de aprovada a LGT, parece nítido que o país ainda está longe de utilizar de maneira eficaz esses mecanismos e caminhar para o tratamento da comunicação como direito e não mercadoria.

* Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante da Coordenação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

A internet livre sob ameaça no Brasil

Uma série de iniciativas de empresas e dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pode mudar radicalmente a forma como os/as brasileiros/as usam a rede

Trabalhar, estudar, locomover-se, informar-se, comunicar- se. Os usos da internet em nosso cotidiano são tão diversos e tão essenciais que nos deixam a dúvida se seria possível hoje viver sem conexão. Mais além, especialistas há muito apontam a existência de dois universos onde convivemos concomitantemente: físico e virtual. Não, isso não é coisa da ficção inspirada na trama da trilogia Matrix ou da recente ‘série-febre’ Black Mirror. Mesmo quando estamos aparentemente desconectados, os rastros virtuais e nossos dados pessoais continuam com vida própria, em transações bancárias, perfis em redes sociais, cadastros em big datas (espécie de arquivo com grande capacidade de processamento de dados), entre outras ações que se dão concomitantemente na internet e fora dela. Parece óbvio defender a vida física e os direitos fundamentais que a garantem, mas e os da rede, quem cuida? E se uma não existe mais sem a outra? Em 2014, uma Resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) dispõe que os direitos humanos do mundo off-line também valem para o online.

No Brasil, a Lei 12.965 de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet (MCI), estabelece um conjunto de princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país, além de consagrá-la como um serviço essencial. Ao longo de 2016, infringindo os princípios do MCI, uma série de iniciativas de empresas privadas, do Judiciário e de parlamentares busca alterar a lógica de funcionamento da internet da maneira como se conhece atualmente. Segundo o relatório Freedom on the Net da organização Freedom House, divulgado em novembro de 2016, o status da internet no Brasil perdeu três pontos e passou de “livre” a “parcialmente livre”.

Os motivos para a queda foram os constantes bloqueios judiciais ao aplicativo WhatsApp, a decisão de operadoras de implantar franquias na banda larga fixa e o Projeto de Lei 215/2015, conhecido como “PL espião”, que estabelece medidas polêmicas como a quebra do anonimato de internautas. Em declaração recente, Maximiliano Martinhão, secretário de políticas de informática do Ministério de Ciência Tecnologia Inovações e Comunicações (MTIC), defendeu a flexibilização da legislação vigente tanto no que diz respeito a alguns pontos colocados no Marco Civil da Internet quando na proposta que tramita de revisão da Lei Geral de Telecomunicações (LGT). Questões como a neutralidade de rede, o manejo e a guarda de dados pessoais, a revisão de contratos de prestação de serviços de telefonia e internet, o bloqueio de aplicativos, entre outros temas, estão atualmente em pauta no congresso e no judiciário e podem alterar radicalmente a maneira como os/as brasileiros/as utilizam a internet no dia a dia. Analisamos a seguir algumas destas ameaças.

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No último dia 9 de novembro, o Projeto de Lei 3453/15, de autoria do deputado Daniel Vilela (PMDB-Go) foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) por 36 votos favoráveis e 11 contrários. A aprovação foi questionada por vários deputados que alertaram que o PL representa uma entrega de patrimônio público e reduz a capacidade de regulação do Estado em um setor conhecido por ser um dos piores prestadores de serviço do país. O projeto impacta também o acesso à internet fixa que, no caso brasileiro, compartilha a infraestrutura com a telefonia. Rafael Zanatta, pesquisador em telecomunicações do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), alerta que, se aprovado, o PL pode piorar a qualidade de serviços essenciais como telefonia e internet além de abrir caminhos para o aumento do preço. Isso porque o projeto pretende mudar o regime de prestação de serviço de telefonia de regime público, que se dá atualmente por meio de contratos de concessão, para regime privado, mais flexível. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações e Defesa do Consumidor (Sindec), de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro do mesmo ano, as empresas Claro/ Embratel/Net, OI Fixo/Celular e Vivo Telefônica/GVT aparecem respectivamente em primeiro, segundo e terceiro lugar entre as 50 que mais receberam queixas nos Procons no último ano.

Dados divulgados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em 2016 sobre os serviços de telefonia e internet mostram que o setor com a pior avaliação em relação à satisfação dos consumidores é o de banda larga fixa, que obteve nota 6,58 em nível nacional, em uma escala de zero a 10. “No regime privado, deixa de existir a modicidade tarifária, ou seja, o consumidor pode se deparar com preços ainda mais elevados, ainda mais num mercado extremamente oligopolizado como o nosso que tem atualmente três grandes players”, explica.

Além disso, segundo o especialista, há um interesse das empresas de telefonia e dos parlamentares que encampam o projeto de rever metas de universalização (que significa acesso para todas as pessoas) direto com a Agência regulatória, a Anatel. Atualmente, pouco mais de metade dos domicílios brasileiros têm acesso à banda larga fixa. O modelo de mercado concentra a distribuição do serviço em áreas urbanas e de maior Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto isso, áreas rurais, principalmente do norte e nordeste do País são verdadeiros “desertos digitais”. Mas não só. Enquanto o mundo assistia aos jogos olímpicos sediados no Rio de Janeiro, moradores do Morro da Conceição, na região portuária da cidade olímpica há poucos metros de onde a tocha ficou aberta à visitação, denunciavam a falta de acesso à internet banda larga fixa. Outro ponto polêmico do PL é a busca das telefônicas por não devolver ao Estado brasileiro os chamados bens reversíveis. Segundo apuração do Ministério Público Federal (MPF), estes bens somam cerca de 100 bilhões em infraestrutura montada para prestação de serviços essenciais de telefonia.

O contrato de concessão das telecomunicações, realizado em 1998 por meio da privatização do sistema Telebrás, estabelece que, findado o prazo de outorga, o Estado retomaria a posse dos bens necessários para oferta do serviço e iniciaria um novo processo de concessão da prestação do serviço, incluindo obrigações de preço, continuidade e universalização. Com a aprovação do PL 3453/15, esses bens, que fazem parte da outorga de telefonia fixa, não voltam mais para o Estado e não há mais garantias de que essa soma seja revertida para ampliação do acesso aos serviços. Após aprovação na CCJC, a votação segue para o Senado. Enquanto a proposta avança, outras iniciativas no Congresso e no Judiciário também vêm causando preocupação entre internautas, especialistas e ativistas.

Bloqueio de aplicativos

Ao longo de 2016, várias decisões judiciais, com base em investigações criminais, têm resultado no bloqueio de alguns aplicativos usados por um amplo público, como o WhatsApp. Mais recentemente, o lobby da indústria de direitos autorais também tem investido pesado na tentativa de alterar o Projeto de Lei 5204/16 (baseado no PL 5204/16, apensado ao primeiro) que visa justamente proibir esse tipo de decisões arbitrárias da justiça. Os bloqueios também foram pontos determinantes na queda do Brasil no ranking de liberdade na internet da Freedom House. Também com o intuito de evitar que casos similares voltassem a ocorrer, o Partido da República (PR), ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 5.527 (ADI). Para especialistas, há uma distorção na interpretação do MCI pelo poder Judiciário, o que abre precedentes perigosos para a liberdade de escolha do consumidor/ usuário. A legislação aponta a possibilidade de bloqueio de aplicativos somente no caso destes descumprirem a proteção da privacidade dos dados do usuário. Em Amicus curiae que endossa a ADI citada, o Instituto Beta para Democracia e Internet argumenta:

“Não parece plausível e muito menos proporcional que o descumprimento de uma medida judicial de quebra de sigilo bancário ou telefônico, por exemplo, atinja todos os demais correntistas de uma instituição financeira ou os usuários de uma operadora de telefonia. O Marco Civil constitui um importante patamar regulatório de proteção dos direitos do usuário da internet, porém ainda requer uma cautelosa compreensão de suas premissas e a das formas de implementação das suas sanções”.

Zero Rating

Outra prática que vem sendo questionada por especialistas é a das operadoras de telecomunicações de ofertar “gratuitamente” o acesso a determinados aplicativos após o fim da franquia de internet móvel. Detentoras das infraestruturas por onde trafegam os dados de navegação, as operadoras têm trabalhado para criar mecanismos que favorecem alguns aplicativos e conteúdos em detrimentos de outros, o chamado zero rating. É como se a empresa concessionária do serviço de pedágio de uma rodovia tivesse também o poder de escolher quais carros trafegam ou não naquele trecho e com que qualidade de estrada ou limite de velocidade determinados motoristas irão se deparar. A prática confronta o princípio da neutralidade de rede, consagrado no inciso IV, artigo 3º do Marco Civil da Internet (MCI), segundo o qual a rede deve ser igual para todos, sem diferença quanto ao tipo de uso. Assim, ao obter um plano de internet, o usuário paga pela velocidade contratada e não pelo tipo de página ou conteúdo que vai acessar ou usar.

Segundo Flávia Lefèvre, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI – BR), a utilização de zero rating, sem regulação específica, também viola o princípio da neutralidade de rede e ameaça o modelo aberto da internet. “A prática do zero rating associada aos planos com limite de volume de dados e restrição de acesso à internet ao final da franquia cria condições para que a internet se torne um espaço voltado preponderantemente a interesses comerciais e contrários à verdadeira e efetiva inclusão digital”, defende.

Por outro lado, o governo demonstra abertura para a pressão das empresas em flexibilizar o princípio da neutralidade. “Para a gente poder avançar com a internet, e estou falando como secretário, e não como coordenador do CGI.br, não dá para pensar com tamanha rigidez o aspecto de neutralidade de rede, sem poder usar zero rating, até para vencer a insegurança jurídica que está posta”, declarou Maximiliano Martinhão, secretário de Políticas de Informática do MCTIC, em novembro de 2016.

Franquia de dados

O alerta feito por Flávia Lefèvre também se refere à tentativa das operadoras de implementar o modelo de franquia de dados na banda larga fixa. Este é o padrão de negócio utilizado na banda larga móvel, e consiste na forma de serviço em que o usuário, ao utilizar toda a capacidade contratada, tem a sua conexão interrompida e para voltar a navegar na web é incitado a comprar pacotes adicionais. O argumento das operadoras de telecomunicações é o de que o modelo de “internet ilimitada” é um modelo de negócio ultrapassado e que não contempla mais a atual fase de uso da rede, pois existem hoje muito mais dados trafegando do que há dez anos. À época, o presidente da Anatel, João Rezende, em entrevista ao G1, defendeu o limite de franquia e argumentou que obrigar as empresas a oferecer banda larga ilimitada pode elevar o preço do serviço ou reduzir a qualidade deste.

Rafael Zanatta, do Idec, argumenta que não há estudos específicos que comprovem que haja uma “escassez de rede”. O especialista aponta que, mesmo com a crise econômica, as telefônicas continuam com alta taxa de lucro que poderia ser revestido em investimento pra ampliar a infraestrutura. “No último balanço trimestral, por exemplo, os três players que dominam o mercado brasileiro apresentam uma margem de lucro superior a um milhão”. Rafael acrescenta que a internet no Brasil é um serviço caro, que chega a superar 2% da renda média familiar e, ainda assim, a velocidade está muito aquém dos padrões globais. “Existe a possibilidade de regular a franquia sem abusividade. Vendo se a empresa tem escassez temporária de infraestrutura, considerando as especificidades das pequenas operadoras, por exemplo. Não faz sentido isso nos casos onde há infraestrutura abundante”, defende. E completa: “A estratégia oculta [neste debate] é implementar a franquia e flexibilizar o Marco Civil da Internet para permitir o zero rating”, resume.

Durante audiência que discutiu a questão no Senado Federal em junho deste ano, Bia Barbosa, do Intervozes, argumentou que é possível que esta prática comercial crie um fosso entre aqueles que poderão ter a “liberdade” de navegar por quaisquer tipos de conteúdos e aqueles que, por questões financeiras, não poderão pagar um valor que garanta a navegação sem restrições. Isso sem falar nos prejuízos para a educação à distância, por exemplo, já que esta modalidade educacional exige várias horas na frente da tela do computador com aulas em vídeo de alta resolução.

Dados pessoais

Em 2014, a Oi, empresa de telefonia, foi condenada pelo Ministério da Justiça a pagar R$ 3,5 milhões por ser acusada de monitorar a navegação dos consumidores na internet para posterior comercialização de dados. Durante o processo administrativo, foi observado que a empresa violou direitos à informação, à proteção contra publicidade enganosa e o direito à privacidade e à intimidade. A porta de verificação do comportamento dos consumidores era o serviço Navegador, oferecido pelo Velox, o serviço de banda larga da Oi. Durante as investigações, verificou-se ainda que a parceria da empresa Oi com a britânica Phorm permitiu o desenvolvimento do software Navegador, que capturava e mapeava todo o tráfego de dados do usuário, permitindo a criação de um perfil de uso da internet.

Após a análise do episódio, o Ministério da Justiça entendeu que a empresa violou princípios contidos na Constituição Federal e no Marco Civil da Internet. De posse de todas as nossas informações, e com o uso de uma tecnologia que cada vez mais se aprimora por meio de algoritmos, Google, Facebook, Twitter, entre outras grandes corporações têm acesso a informações privilegiadas do dia a dia dos usuários. A localização exata, o percurso que fazemos ao nos deslocar de casa ao trabalho, os destinos de férias ou as pesquisas nas ferramentas de busca, os problemas de saúde, entre outras questões estritamente pessoais, são dados valiosos que estão sendo manipulados e negociados por essas grandes empresas.

Mas não só por elas. Há também os casos de dados pessoais de órgãos públicos que são vazados para empresas privadas. No início de 2016, aposentados do Espírito Santo que haviam pedido aposentadoria pelo INSS caíram nas mãos de bancos e agências financeiras. Segundo o Ministério Público do Estado, as pessoas que haviam requerido o benefício ao INSS receberam ligações de agências financeiras oferecendo empréstimos consignados antes mesmos dos pedidos serem aceitos. A investigação está apurando como essas agências tiveram acesso a esses dados pessoais. À época, o INSS informou que os dados dos segurados são mantidos em sigilo e que não fornece qualquer dado pessoal a outras instituições que não sejam as responsáveis pelo pagamento da aposentadoria.

“Cada vez mais, em todo e qualquer momento, todas as nossas relações sociais estão apoiadas em coletas ou tratamentos de dados. Basta pensar nas relações que a gente tem com o governo, com o setor estatal de uma maneira geral. É impossível você aderir a um programa social, pensar, por exemplo, num bolsa família ou financiamento estudantil, sem que você troque os seus dados pessoais para poder aderir a aquele determinado benefício social”, explica Bruno Bioni, advogado do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e pesquisador do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da USP (GPoPAI/USP). O pesquisador defende que é urgente pensar uma política de proteção de privacidade e uso de dados pessoais na rede, uma vez que grande parte dos modelos de negócios online e as próprias políticas públicas, como as apontadas, se baseiam no tratamento de nossos dados.

Até o momento, o Brasil não tem sancionada uma lei que regule a coleta, armazenamento, processamento e divulgação de dados pessoais. O PL 5276/2016, que trata do assunto, atualmente tramita na Câmara dos Deputados. A legislação protege os dados pessoais tanto no que diz respeito ao uso por entes privados quanto públicos e ainda impede a transferência internacional de dados para países com leis de proteção menos rigorosas do que a nossa.

Joana Varon, integrante da Coding Rights, organização liderada por mulheres que promove direitos no mundo digital, explica que vivemos atualmente num contexto de capitalismo de dados. “Tudo o que a gente faz na rede é registrado. E esses dados são utilizados como modelos de negócios das empresas que a gente usa pra navegar na rede e que a gente usa nos serviços digitais”, resume. Enquanto isso, também avançam na Câmara e no Senado algumas iniciativas de Projetos de Lei que caminham na direção contrária da promoção da privacidade e da liberdade de expressão na web, como o PL 2390/15 que propõe a criação de um “Cadastro Nacional de Acesso à Internet”. O cadastro incluiria informações como endereço e CPF do usuário e teria como função combater práticas de pedofilia na internet. Segundo o PL, a cada nova conexão, o usuário teria de fornecer todos os dados pessoais para que a conexão seja liberada.

O cadastro obrigatório põe em xeque não só direitos individuais mas também coletivos e ameaça organizações e movimentos sociais que trabalham com a defesa e promoção de direitos humanos e que têm o anonimato como retaguarda para resistir à perseguição ou retaliação. É o caso do aplicativo Nós por Nós. Lançado em março de 2016, o aplicativo, voltado para denúncias de violações de direitos cometidas por policiais no Rio de Janeiro, recebeu em quase um ano de funcionamento 250 denúncias. Segundo relatório “Você matou meu filho”, publicado pela Anistia Internacional, de 2005 a 2014 foram registrados 8.466 casos de homicídio decorrentes de intervenção policial no estado do Rio de Janeiro; 5.132 casos apenas na capital.

Ao checar o andamento de todas as 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção policial no ano de 2011 na cidade, a Anistia descobriu que foi apresentada denúncia em apenas um caso. Até abril de 2015 (mais de três anos depois), 183 investigações seguiam em aberto. O medo e a descrença no sistema judicial são os principais fatores apontados para a falta de denúncia.

Um dos idealizadores do aplicativo, Fransérgio Goulart, afirma que a ideia da ferramenta é justamente facilitar a reação da população atingida pela violência de Estado. “Tinha já algo se iniciando, mas o aplicativo Nós por Nós facilitou e potencializou essas denúncias. E a grande novidade é que temos para onde encaminhar a denúncia (rede de apoio) defensoria, Ministério Público, ONGs de direitos humanos de forma articulada”, contou.

Para fazer uma denúncia por meio de vídeo, foto, áudio ou texto no Nós por Nós, o usuário não precisa fazer nenhum cadastro anterior que permita sua identificação, o que no caso do teor da ferramenta, é um detalhe vital para o funcionamento.

Além do PL 2390/15, uma série de inciativas decorrentes dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos, conhecida como CPI Ciber, afetam a privacidade e a liberdade de expressão na rede. O relatório final da comissão apresentado em março deste ano, reúne oito propostas de projetos de leis que, segundo a própria comissão, objetivam combater os crimes cometidos na internet.

Direitos na rede

Diante deste cenário, entidades da sociedade civil brasileira criaram em julho de 2016 a Coalizão Direitos na Rede, como uma forma de combater as crescentes tentativas de retirada de direitos. Em manifesto lançado durante o VI Fórum da internet, ocorrido em julho de 2016, as entidades afirmam que o objetivo da coalizão é defender princípios fundamentais para a garantia de acesso universal à Internet: respeito à neutralidade da rede, liberdade de informação e de expressão, segurança e respeito à privacidade e aos dados pessoais, assim como assegurar mecanismos democráticos e multiparticipativos de governança.

Segundo a Coalizão, além de atacar a privacidade, a liberdade de expressão e comunicação e o direito à informação de cidadãos conectados, este conjunto de propostas legislativas não leva em conta as características da rede e instaura uma espécie de “censura preventiva”. Os níveis de vigilância massiva da série Black Mirror vêm causando furor em discussões e tentativas de prognósticos que se multiplicam nas redes sociais. Se as iniciativas analisadas avançarem, trabalhar, estudar, locomover- se, informar-se, comunicar-se, organizar protestos, denunciar violações de direitos, entre outras ações essenciais para democracia, devem ficar bem comprometidas. Se depender da pressão das empresas e de alguns entes do Estado, a realidade fictícia da série está mais próxima do que podemos imaginar.

Raio X da ilegalidade: políticos donos da mídia no Brasil

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Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emissoras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da democracia brasileira e do conservadorismo político.

Texto: Iara Moura | Colaboraram: Mônica Mourão, Raquel Dantas e Yuri Leonardo

Segundo informações do Sistema de Acompanhamento de Controle Societário – Siacco, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), 32 deputados e oito senadores são proprietários, sócios ou associados de canais de rádio e TV. Têm, assim, espaço privilegiado de disputa pelo voto antes mesmo do período de campanha determinado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os 40 parlamentares são alvo de uma ação no Supremo Tribunal Federal que questiona a constitucionalidade da participação de políticos titulares de mandato eletivo como sócios de empresas de radiodifusão e pede medida liminar para evitar a ocorrência de novos casos.

Na mira da justiça

Buscando combater a concentração de emissoras nas mãos de políticos, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) com o apoio do Intervozes protocolou, em dezembro de 2015, uma Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 379) no Supremo Tribunal Federal (STF).

Em novembro do mesmo ano, uma articulação de entidades da sociedade civil e institutos de pesquisa entregou ao MPF representação denunciando os políticos que foram em seguida listados na ADPF. A representação traz nomes famosos como o do senador Fernando Collor e dos deputados Sarney Filho (PV-MA), Elcione Barbalho (PMDB-PA) – ex-mulher de Jader Barbalho, Rodrigo de Castro (PSDB-MG) e Rubens Bueno (PPS-PR) – líder do partido na Câmara. O próprio MPF de São Paulo já havia protocolado poucos dias antes ação contra veículos de radiodifusão ligados aos deputados paulistas Antônio Bulhões (PRB), Beto Mansur (PRB) e Baleia Rossi (PMDB).

Para o procurador geral da República Rodrigo Janot, a posse de canais de rádio e TV por políticos fere a liberdade de expressão e o princípio de isonomia, segundo o qual os candidatos e partidos devem ter igualdade de chances na corrida eleitoral. Ao emitir parecer favorável à ADPF 379, em agosto último, Janot argumentou que “a dinâmica social produz normalmente desigualdades – há, de fato, aqueles com maior poder econômico ou que detêm, na órbita privada ou na pública, função, cargo ou emprego que lhes confere maior poder de influência no processo eleitoral e político”. Porém, de acordo com ele, “não deve o próprio Estado criar ou fomentar tais desigualdades, ao favorecer determinados partidos ou políticos por meio da outorga de concessões, permissões e autorizações de serviço público, em especial de um relevante como a radiodifusão”. Segundo defendem alguns órgãos do Judiciário, pesquisadores e entidades do campo do direito à comunicação, a prática contraria o disposto no artigo 54 da Constituição Federal, segundo o qual deputados e senadores, a partir do momento em que são diplomados, não podem “firmar ou manter contrato” ou “aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado” em empresa concessionária de serviço público. A primeira linha do artigo seguinte da Constituição, de número 55, diz: “Perderá o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior”.

O próprio STF, no julgamento da Ação Penal 530, confirmou que os artigos 54, I, “a” e 54, II, “a” da Constituição contêm uma proibição clara que impede deputados e senadores de serem sócios de pessoas jurídicas titulares de concessão, permissão ou autorização de radiodifusão. Para o Ministro Luís Roberto Barroso, o objetivo desta proibição foi prevenir a reunião entre “poder político e controle sobre veículos de comunicação de massa, com os riscos decorrentes do abuso”. Segundo a Ministra Rosa Weber, “a proibição específica de que parlamentares detenham o controle sobre empresas de radiodifusão” visou evitar o “risco de que o veículo de comunicação, ao invés de servir para o livre debate e informação, fosse utilizado apenas em benefício do parlamentar, deturpando a esfera do discurso público”. A mesma ministra rejeitou, em novembro último, o pedido de liminar impetrado por Michel Temer por meio da Advocacia Geral da União, que pedia a suspensão de processos que contestam as concessões de rádios e TVs em nome de deputados e senadores.

Uma prática antiga

Segundo a pesquisadora e professora da UFRJ Suzy dos Santos, o fenômeno de políticos radiodifusores, chamado de “coronelismo eletrônico”, é antigo. Desde o processo de redemocratização, os governos eleitos mostraram-se não apenas tolerantes, mas protagonistas da prática de distribuição de canais de rádio e TV entre aliados políticos. “Demonstramos através de documentos históricos, correspondências, eportagens, a instrumentalização das concessões de rádio e televisão desde o período Vargas até os dias atuais. Você verifica claramente que desde os tempos do PSD, os partidos governistas sempre se mantiveram como os partidos dos políticos donos de radiodifusão”, explica.

No período de 1985-1988, foi ampla a distribuição de outorgas de radiodifusão a parlamentares constituintes. Segundo o pesquisador César Bolaño, “durante o governo do presidente José Sarney, as concessões foram ostensivamente usadas como moeda política, dando origem a um dos processos mais antidemocráticos do processo constituinte. Em troca de votos favoráveis ao mandato de cinco anos para presidente, foram negociadas 418 novas concessões de rádio e televisão. Com isso, cerca de 40% de todas as concessões feitas até o final de 1993 estavam nas mãos de prefeitos, overnadores e ex-parlamentares ou seus parentes e sócios”.

Ao longo dos anos, a prática ficou mais sutil, mas não foi abandonada. O governo de Fernando Henrique Cardoso distribuiu pelo menos 23 outorgas para políticos, enquanto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva concedeu, até agosto de 2006, pelo menos sete canais de TV e 27 outorgas de rádio a fundações ligadas a políticos. Entre os anos de 2007 a 2010, 68 congressistas eram ligados a pessoas jurídicas concessionárias de radiodifusão, enquanto no período de 2011 a 2014, 52 deputados federais e 18 senadores eram sócios ou associados de concessionária.

Em relação à legislatura atual (2015-2019), o projeto “Excelências”, vinculado a Transparência Brasil, revela que 43 deputados são concessionários de serviços de rádio ou TV, totalizando 8,4% dos membros da Câmara dos Deputados. Por sua vez, o Senado Federal é proporcionalmente ainda mais marcado por este fenômeno, já que 19 senadores são concessionários, atingindo a marca de 23,5% dos membros da casa. Ou seja, de 594 parlamentares eleitos, 63 são outorgados de meios de comunicação, atingindo a marca de mais de 10% do Congresso Nacional. “No caso de alguns estados como o Rio Grande do Norte, Roraima ou Santa Catarina, a propriedade de canais de rádio e TV por políticos ultrapassa 50% do total”, denuncia Suzy.

Os números apresentados pelo projeto “Excelências” revelam que, para além da vinculação juridicamente registrada de políticos com os serviços de radiodifusão, existem ainda os casos em que os parlamentares mantêm influência a partir de “laranjas” ou parentes no quadro societário dos veículos. É o caso do senador Eunício de Oliveira (PMDB-CE), que tem sua esposa Mônica Paes de Andrade Lopes de Oliveira, o irmão Edilson Lopes de Oliveira e o seu correligionário Gaudêncio Lucena como sócios proprietários da Rádio Tempo FM, em Juazeiro do Norte.

A situação de domínio político sobre os meios de comunicação expõe um grave conflito de interesses, uma vez que o próprio Congresso Nacional é responsável pela apreciação dos atos de outorga e renovação de concessões e permissões de radiodifusão. Segundo explica Camila Marques, advogada da Artigo 19, “a posse dos meios de radiodifusão por políticos afeta a isonomia, o pluralismo e o interesse público porque o sistema brasileiro de regulação de radiodifusão não prevê um regulador independente para deliberar sobre a distribuição do espectro eletromagnético e, por isso, essa deliberação é realizada por um procedimento licitatório em que os parlamentares do Congresso Nacional ocupam um papel central na análise das outorgas realizadas pelo poder executivo”, analisa.

Um dos episódios emblemáticos desta situação foi a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados de 38 concessões de radiodifusão e a renovação de outras 65 em apenas três minutos e com apenas um deputado presente no plenário, em 2011. Além disso, há ocasiões em que os parlamentares votam na aprovação das próprias outorgas ou renovações.

Segundo apuração da Folha de S. Paulo, dos 40 congressistas que constam como sócios de rádios ou TVs, sete creem que a legislação permite esse tipo de participação, desde que eles não exerçam funções administrativas nas emissoras. Essa opinião foi manifestada por Baleia Rossi (PMDB-SP), Fernando Collor (PTB-AL), Gonzaga Patriota (PSB-PE), João Henrique Caldas (SD-AL), João Rodrigues (PSD-SC), Ricardo Barros (PR-PR) e Victor Mendes (PV-MA).

Em manifestação encaminhada em maio de 2015 ao Supremo Tribunal Federal, a Advocacia Geral da União (AGU) endossa a tese de que a situação não infringe o disposto na Constituição. O órgão pronunciou-se pela rejeição da ADPF 379, argumentando que “não se pode aferir diretamente desse fato a manipulação da opinião pública, conforme pretende fazer crer o autor”, pois “os preceitos constitucionais invocados estão plenamente assegurados pelo próprio ordenamento jurídico, especificamente pelo Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65), que regula a propaganda eleitoral e impede a manipulação de informações e o controle da opinião pública por meio de empresas de radiodifusão”.

Casos de família

Alô, pai / Meu filho, esse negócio que eu li hoje do filho do Aderson Lago, esse sujeito foi muito cruel com a gente, com todos nós, com Roseana (Sarney), comigo. Escreveu aquele artigo outro dia me insultando de uma maneira brutal, vamos botar isso na televisão / (…) O cara já está aqui, da Globo, desde segunda-feira e estamos trabalhando

nisso, tá? / Falou com ele isso? / Falei, falei com ele. Falei com ele, mostrei tudo. Vai dar, vai dar certo (…) / Esse foi um assunto que eu peguei desde o começo, consegui, passei pro Sérgio, tô passando pro jornal pouco a pouco (…).

O diálogo transcrito acima [ouça aqui] ocorreu em 2009 entre o senador José Sarney e seu filho, Fernando Sarney, deputado federal, proprietário do Sistema Mirante (formado pela Rádio Litoral Maranhense, Rádio Mirante e pela TV Mirante). A escuta feita pela Polícia Federal foi amplamente divulgada pela imprensa e demonstra a interferência de interesses políticos na linha editorial dos canais de rádio e TV. Na ocasião, o senador José Sarney solicitou a seu filho a utilização da emissora de radiodifusão que possui em São Luís do Maranhão, a TV Mirante, afiliada da Rede Globo, para a veiculação de denúncias contra seus rivais do grupo do ex-governador Jackson Lago.

São muitos os causos do clã dos Sarney quanto à utilização das redes de rádio e TV para beneficiar os negócios da família. Na eleição de 1994 para eleger o governador do Maranhão, o candidato Cafeteira era o principal adversário de Roseana Sarney. Roseana liderava por apenas 1% de diferença nas intenções de voto quando, no início do segundo turno, os jornais e a TV da família começaram a divulgar que Cafeteira havia mandado matar o adversário José Raimundo dos Reis Pacheco. Faltando dois dias para o encerramento da campanha, a equipe de Cafeteira localizou José Raimundo e gravou entrevista com ele para exibir no último programa eleitoral gratuito. Naquela noite, a imagem da tevê desapareceu misteriosamente em todo o interior maranhense. Só a capital são Luís, onde vivia 1/3 do eleitorado testemunhou a imagem do homem dado como morto, atestando, ele mesmo, que o boato de assassinato era falso. O caso foi contado pelo jornalista Palmério Dória no livro “Honoráveis bandidos”, lançado em 2009.

Episódios parecidos se multiplicam Brasil afora. O ex-senador, governador da Bahia por três mandatos (dois dos quais como governador biônico indicado pelo governo militar) e ministro das comunicações do governo de José Sarney, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) é alvo de uma longa lista de reclamações contra a utilização política do seu grupo de comunicação. Além da Construtora OAS, comandada pelo seu genro Cesar Mata Pires, seu filho, Antônio Carlos Magalhães Júnior, é presidente da Rede Bahia, que engloba diversas empresas do estado, principalmente de comunicação. São elas: 88.7 Bahia FM,102,1 FM Sul (rádio FM em Itabuna), Correio da Bahia (jornal impresso) teve o nome reformulado para “Correio”, Globo FM (Rádio FM em Salvador), TV Bahia (afiliada da Rede Globo em Salvador e região), TV São Francisco (afiliada da Rede Globo em Juazeiro e região), TV Oeste (afiliada da Rede Globo em Barreiras e região), TV Santa Cruz (afiliada da Rede Globo em Itabuna e região), TV Subaé (afiliada da Rede Globo em Feira de Santana e região), TV Sudoeste (afiliada da Rede Globo em Vitória da Conquista e região), TV Salvador (canal fechado, transmitido em UHF ou por assinatura). Somente no ano de 1993, seu primeiro ano de mandato, a assessoria de comunicação da ex-prefeita de Salvador Lídice da Mata (PSDB) contabilizou a veiculação de 600 matérias contra a sua administração pela TV Bahia, repetidora da Globo, de propriedade da família Magalhães.

No ar, bancada BBB: boi, bala e bíblia

Suzy dos Santos, professora da UFRJ e coordenadora do projeto “Coronelismo eletrônico: as concessões na história política nacional”, explica que a posse direta ou indireta de canais de rádio e TV por políticos produz uma enorme deformidade no regime democrático e guarda semelhanças com formas de poder plutocrático característico da República Velha ou Primeira República (1889-1930), quando o capital político centrava-se em figuras autoritárias que mantinham com seu eleitorado uma relação dúbia de troca de favores, exploração e repressão. No Brasil rural, o poder político está ligado à posse de terras e à exploração da mão de obra campesina em grandes latifúndios. A palavra “coronel” refere-se à patente militar não apenas porque alguns destes políticos a detinha, mas porque, fardados ou não, faziam uso da violência para manter o controle político e perseguir não-aliados. Passados quase 90 anos, o cenário, hoje em dia, não é muito diferente.

Entre os 32 deputados concessionários de rádio e TV listados na ADPF 379, 18 são grandes proprietários de terra ou pecuaristas, compondo a chamada bancada ruralista, que defende no Congresso os interesses do agronegócio; nove são ligados à bancada evangélica; três estão nas duas bancadas. Além disso, dois deputados do conjunto integram também a chamada bancada da bala. No caso dos senadores, figuram na ação os nomes de Aécio Neves (PSDB-MG), Edison Lobão (PMDB-MA), Fernando Collor de Mello (PTB-AL), Agripino Maia (DEM-RN), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Jader Barbalho (PMDB-PA), Acir Gurcacz (PDT-RO) e Roberto Coelho Rocha (PSDB-MA), cujo filho é atualmente candidato à vice prefeitura de São Luís. Este último também compõe a bancada ruralista. Os sete demais são alvo de alguma investigação, segundo levantamento da Agência Pública.

Os nomes de destaque na política nacional, entre eles o de Aécio Neves, candidato à presidência derrotado no último pleito, demonstram que o coronelismo eletrônico, diferente do que se possa pensar, não é um fenômeno restrito à zona rural ou às regiões mais pobres do País, mas é generalizado e atinge também os grandes centros urbanos.

Na grande São Paulo, após ações civis públicas movidas pelo MPF e pelo Intervozes, em iniciativa oriunda do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (Findac), o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) determinou, em abril deste ano, o cancelamento das concessões de cinco emissoras de rádio que têm como sócios proprietários os deputados federais Baleia Rossi (PMDB-SP) e Beto Mansur (PRB). A medida atende ao pedido do Ministério Público Federal que, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), em São Paulo, ajuizou ações civis públicas contra os parlamentares em novembro de 2015. Alguns meses depois, porém, a liminar que determinava a retirada do ar da Rádio Cultura FM, e Rádio Cultura São Vicente, de propriedade de Beto Mansur, foi suspensa.

Mais recentemente, em agosto deste ano, também por meio de liminar, foi determinada a interrupção das transmissões da Rádio Metropolitana Santista Ltda (1.240MHz) de propriedade de Antônio Carlos Bulhões (PRB-SP).

Com as decisões, está suspensa a execução dos serviços de radiodifusão da Rádio Show de Igarapava LTDA, Rádio Metropolitana Santista e da Rádio AM Show LTDA, que contam com a participação de Baleia Rossi e Antônio Carlos Bulhões em seus quadros societários. O caso da Rádio Cultura FM em Santos é emblemático, uma vez que além da questão da posse por parlamentar, a emissora havia anunciado a mudança total da programação, arrendada para a Igreja Universal do Reino de Deus em setembro de 2015. A legislação de radiodifusão estabelece que a quantidade máxima de programação que pode ser comercializada pelo controlador da outorga é 25% do tempo total.

“O arrendamento de emissoras de radiodifusão caracteriza comercialização ilícita de outorgas públicas”, explica Bráulio Araújo, advogado, integrante do Coletivo Intervozes e um dos autores das ações contra os parlamentares radiodifusores. As Redes TV, 21 e CNT são as campeãs em arrendamento no país, segundo levantamento feito em 2014, comercializando respectivamente 49% e 91% de seus tempos de programação. Em junho deste ano, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei (PL) 2088/15, que permite a transferência de 50% das cotas ou ações representativas do capital de radiodifusão já no primeiro ano de vigência da outorga, e a transferência integral das cotas ou ações apos esse período, alterando a regra atual do Decreto 52.795/1963, que só permite a transferência de outorgas cinco anos após a expedição do certificado de licença para funcionamento (art. 90).

De acordo com a proposta da deputada Renata Abreu (PTN-SP), caso o poder executivo não se manifeste no prazo de 90 dias, a emissora estará tacitamente autorizada a proceder à transferência requerida. O projeto é muito permissivo por reduzir o prazo necessário para a efetivação das transferências e por prever de anuência tácita, caso o Poder Executivo não se manifeste em 90 dias. Segundo Bráulio Araújo, a transferência direta e indireta de outorgas de radiodifusão é inconstitucional pois descumpre a exigência constitucional de prévia licitação, ensejando a negociação de outorgas públicas por particulares e o controle de concessões por terceiros que não participaram do processo de licitação.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2946, a Procuradoria Geral da República questiona um dispositivo análogo da lei de concessões de serviços públicos (lei 8.987/1995), que autoriza a transferência de outorgas. Na ação, a PGR afirma que a autorização legal à transferência direta e indireta de concessões faz com que “a fraude ao sistema da licitação pública atinja raias de literal imoralidade”, vez que permite “a uma determinada empresa especializar-se em ‘vencer concorrências públicas’, repassando- as, em seguida, para empresas realmente interessadas no serviço”.

De pai para filho, de amigo para amigo

A Rádio Cultura AM foi inaugurada inicialmente em São Vicente, em 17 de outubro de 1946 e depois transferida para Santos. A emissora foi fundada por Paulo Salim e Jorge Mansur. Em 1958, o então diretor, Paulo Jorge Mansur, desdobrou a emissora em duas rádios – Rádio Cultura S. Vicente AM e Rádio Cultura de Santos FM –, ambas pertencentes à Sociedade Rádio Cultura São Vicente LTDA.

A rádio foi a segunda emissora do Brasil a entrar no ar e, desde então, cumpre papel político central nas disputas locais. O fundador da rádio, Jorge Mansur, acumulou popularidade ao apresentar o programa “A voz do povo” e foi eleito deputado por três mandatos. A partir de 1964, a Sociedade Cultura de São Vicente LTDA passou a ser constituída por Paulo Roberto Mansur, Gilberto Mansur e Maria Gomes Mansur, filhos de Paulo Jorge Mansur, que se desligou juridicamente, por motivos políticos. Seu filho Paulo Roberto Mansur (Beto Mansur), foi eleito – primeiramente vereador (1989), depois deputado federal (1991), prefeito (1996) e reeleito em 2000 – através da utilização do veículo rádio. A família ampliou seus negócios também para a televisão. Em 2001, os Mansur venceram a concorrência pública do canal 46 de Santos.

O poderio da família Mansur não se esgota nos negócios de mídia. Beto Mansur é empresário e latifundiário. No caso do deputado, a versão moderna do coronel tem raízes arcaicas com a exploração monocultora, a utilização de mão-de-obra análoga ao trabalho escravo e ainda a exploração do trabalho infantil. Em 2014, o deputado foi condenado pelo Tribunal Superior do Trabalho. Em nota publicada à época, Mansur negou as acusações e argumentou que a legislação brasileira é vaga na determinação do que é ou não trabalho escravo, o que acaba “prejudicando enormemente os produtores rurais”. Para livrar-se do questionamento do MPF sobre a posse das rádios, Mansur doou sua participação indireta nas empresas de radiodifusão para seus filhos e esposa.

Baleia Rossi vendeu a sua participação em uma das rádios para um de seus irmãos. A outra rádio, ele alega que foi vendida há alguns anos. Essas medidas estão sendo questionadas pelo MPF no âmbito das ações civis públicas.

O também deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) utilizou-se de expediente parecido para se defender ao ser investigado pelo MPF por não declarar à Justiça Eleitoral, nas últimas três eleições, ser sócio da rádio Satélite, em Pernambuco. Cunha comprou a rádio em 2005 e segundo afirmou em defesa, vendeu a emissora em 2007. O problema é que o Ministério das Comunicações, onde os registros das rádios são feitos, não homologou a transferência. Cunha afirma que as transações de compra e venda foram declaradas em seu imposto de renda. Atualmente a rádio é explorada pelo pastor R.R. Soares. A representação contra Eduardo Cunha segue em averiguação pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro.

Na sintonia do golpe

Os políticos na mira do MPF tiveram participação ativa no processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef. Dos oito senadores radiodifusores, sete votaram a favor do impeachment e um se ausentou da votação. Dos 32 deputados federais, 23 foram a favor, oito contra e um faltou à sessão. O deputado federal Beto Mansur foi um dos principais articuladores do impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados. Papel também crucial teve o senador Aécio Neves. Os golpistas estão muito ligados ao poder midiático. Para se ter uma ideia, no quadro atual do governo Temer, do total de 24 ministros, quatro são radiodifusores. Mendonça Filho, ex-deputado e ex-governador de Pernambuco, ministro da Educação, já esteve entre os acionistas da TV Jornal do Commercio, além da Rádio Difusora de Caruaru, Rádio Difusora de Garanhuns, Rádio Difusora de Limoeiro e Rádio Difusora de Pesqueira. Todas do mesmo grupo do empresário João Carlos Paes Mendonça.

Ricardo Barros, ex-deputado federal e ex-prefeito de Maringá (PR), atual ministro da Saúde, declarou possuir 99% das cotas da Rádio Jornal de Maringá (PR), no valor de R$ 488 mil, o que corresponde a cerca de 30% de seu patrimônio de R$ 1,8 milhão. Hélder Barbalho, ex-prefeito de Ananindeua (PA), ministro da Integração Nacional do governo Temer, também declarou ser dono de TVs no Pará, retransmissoras da Band. Ser ministro e radiodifusor não constitui uma ilegalidade em si. Mas além de misturar os poderes político e midiático de forma pouco saudável para a democracia, em geral os responsáveis pelos ministérios tenham exercido cargo eletivo quando já eram proprietários de meios de comunicação.

Andamento

A ADPF 379 encontra-se nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, relator da arguição. Além do parecer favorável da PGR, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e a Artigo 19 protocolaram amicus curiae (intervenção externa em processo através de opinião jurídica) endossando a ADPF. Na contramão, além da AGU, Senado, Câmara dos Deputados e Presidência da República protocolaram manifestações contrárias. A representação contra os políticos radiodifusores de todo o país segue tramitando junto às Procuradorias Regionais dos Direitos do Cidadão do MPF em cada um dos 18 estados de origem dos políticos listados.

4G: o leilão furado

Por Bruno Marinoni*

O governo brasileiro realizou, no último dia 30 de setembro, o leilão que ninguém queria. A chamada faixa dos 700 MHz, uma fatia do espectro radioelétrico brasileiro, que passará a ser destinada à tecnologia 4G de acesso à internet, deve render ao Estado algo entre R$ 4,9 e 5,3 bilhões no fim do processo. A previsão era a de que seriam arrecadados, no mínimo, R$ 7,7 bi. O ágio esperado de R$ 300 milhões não passou, no fim das contas, de R$ 38,1 milhões. Mesmo assim, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, considera o processo um sucesso.

Aos defensores da democratização da comunicação, o governo Lula havia prometido um espaço reservado na digitalização da televisão para as emissoras públicas. Por uma infeliz coincidência do destino, a maior parte dessa reserva, alocada na mesma faixa dos 700 MHz, acaba de ser entregue às multinacionais das telecomunicações, sem que a garantia de alocação no espectro para os novos canais públicos (inclusive os previstos no decreto que criou a TV digital no Brasil) esteja dada.

Além disso, a estratégia de venda definida pelo governo reforça o quadro de concentração de propriedade (e poder) no setor. Se hoje temos quatro grandes operadoras de telecomunicação no país, apenas três delas arremataram os lotes nacionais de 700 MHz: Claro, Tim e Telefônica (Vivo). A Oi desistiu de participar do processo, surpreendendo alguns analistas.

Os tradicionais donos da comunicação no Brasil – as empresas comerciais que povoam praticamente todo o espectro reservado à TV e ao rádio – são outras que não estão exatamente contentes. Temem pelo futuro da qualidade de seus serviços (e, logo, da competitividade dos seus negócios). A exploração da faixa de 700 MHz pelos serviços de banda larga móvel em 4G, a ser oferecido a partir de 2019 pelas empresas de telefonia que arremataram o leilão, pode causar interferência nos sinais de radiodifusão, e o governo não quis esperar a realização dos testes necessários para lidar com os eventuais problemas decorrentes.

Ainda assim, os empresários de radiodifusão conseguiram garantir uma contrapartida. A chamada “limpeza da faixa de 700 MHz”, verdadeira operação de “redução de danos” no setor comercial, que resultará na migração da radiodifusão para outra parte do espectro, vai custar às operadoras de telecomunicação, novas ocupadoras da faixa, algo perto de R$ 3,6 bilhões – gastos na compra de equipamentos para que as emissoras hoje em operação transmitam em frequência diferente.

As maiores beneficiadas com o processo, as empresas de telecomunicação, também não saíram contentes. No dia 18, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) anunciou sua rejeição ao pedido de impugnação do edital do leilão. A solicitação foi feita pelas quatro maiores operadoras do setor. De qualquer forma, garantiram o seu lugar ao sol.

A ausência de competidores capitalizados para enfrentar as grandes das telecomunicações é um fator fundamental para se compreender a disposição apresentada pelas operadoras no leilão. Não se conseguiu vender nem todos os lotes (dos seis, restam dois). Por que dar lances maiores se “tá tudo dominado”?

Todos bateram o pé para que esse processo não fosse feito assim. Exerceu-se, assim, nada mais que o direito universal ao esperneio diante do Ministério das Comunicações, que se fez de mouco. A discrepância entre as estimativas do governo para o leilão e o seu resultado mostra o grau de segurança que devemos ter diante da anunciada “consolidação da universalização da banda larga”, tão comemorada pelo atual ministro.

O que fazer com o dinheiro?

Mesmo diante do fracasso da arrecadação do leilão, o recurso arrecadado poderia ser utilizado para implementar uma política de democratização da comunicação. Investir na comunicação pública, na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), no fomento de ações independentes dos oligopólios de radiodifusão e telecomunicação, no desenvolvimento de softwares livres etc. Propostas temos muitas.

Todavia, o mais provável é que vejamos, mais uma vez, todo o recurso público escorrendo pelo ralo sem fim do chamado superávit primário, que sangra o Brasil em nome de uma dívida pública herdada e imposta ao país.

* Bruno Marinoni é jornalista, doutor em sociologia pela UFPE e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A (não) ampliação do acesso móvel no Brasil

*Por Marina Cardoso

A partir da Copa do Mundo, o Brasil está no caminho dos grandes avanços na área de telecomunicações. Ao menos é isso que o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, demonstra no seu discurso, quando diz que levou o Brasil para a ponta da tecnologia de acesso à internet em redes móvel, a partir da implementação da rede LTE, nome técnico para a conexão 4G. Mas será que esse ritmo de conexão do País, como apregoa o executivo federal, é um fato?

Para preparar o Brasil para a Copa do Mundo – e as exigências da Fifa – a Anatel incluiu no leilão de frequência de 2,5GHz, destinada ao 4G brasileiro, a obrigação de cobertura nas doze cidades-sede do evento até o início da competição. Ainda, incluiu-se no edital do leilão de frequência, realizado em junho de 2012, que todas as capitais e cidades com mais de 500 mil habitantes deveriam estar cobertas até maio de 2014. O serviço também deverá estar ativo nas cidades com mais de 30 mil habitantes até o final de 2017. Municípios menores terão de contar com o 4G até o final de 2019.

Agora aos fatos: o serviço de 4G ainda é muito caro para a grande parte da população brasileira. Os números de acessos móveis utilizando a rede 4G só são vistosos porque a Anatel, com a anuência do governo federal e apoio do SindiTelebrasil (sindicato patronal das operadoras de telecom), divulgou dados sobre o número de conexões móveis existentes no País que ocultam uma realidade preocupante.

A agência reguladora informou, em release, do dia 17 de junho, que “a banda larga móvel totalizou 128,49 milhões de acessos, dos quais 3,27 milhões eram terminais 4G”. Pela frase, o leitor desavisado supõe que o número de acessos à internet banda larga em dispositivos móveis supera mais da metade da população brasileira. A realidade, porém, é que estes são dados de chips ativados em tecnologia móvel capaz de prover acesso à internet.

Basicamente, todo usuário que dispõe de um smartphone 3G e 4G ou de um modem entra na conta da banda larga móvel da Anatel. No entanto, estima-se que algo em torno de 20% dos detentores de smartphones tenham contrato com pacotes de dados. Um percentual que tende a cair, uma vez que a política tributária do governo federal estimula a venda desses aparelhos no país: ou seja, mesmo que haja mais pessoas com um smartphone, isso não significa que elas tenham capacidade de comprometer parte da renda com serviços de telecomunicações.

A Telebrasil (Associação Brasileira de Telecomunicações), por sua vez, divulgou ao final de julho que o Brasil fechou o primeiro semestre com 161 milhões de acessos banda larga. O montante também considera os 137,7 milhões de conexões em redes 3G ou 4G que, apenas potencialmente, poderiam se conectar. Desse total, 111,5 milhões correspondem a celulares e o restante se refere a conexões por modem. Este último poderia ser contabilizado como acesso móvel, uma vez que não têm outra função.

Na banda larga fixa, ainda seguimos com números irrisórios. Em junho, foram 23,22 milhões de acessos em um país de mais de 200 milhões de habitantes (35,53% dos domicílios). A expansão no número de acessos fixos de 9,3% em doze meses, aparentemente um grande avanço proporcional, é um dado a ser analisado diante da pequena base que o representa. Ou seja, para a grande maioria dos brasileiros, os que acessam serviços de banda larga móvel em sistemas pré-pagos, os preços dos pacotes não cabem no orçamento mensal.

Segundo a União Internacional de Telecomunicações (UIT), a oferta de entrada da banda larga não deve ultrapassar 5% da renda média mensal. Como o Brasil é um país muito desigual, vamos usar como referência o salário mínimo que, desde janeiro, vale 724 reais. Os pacotes de entrada de 4G, quando do lançamento das ofertas no ano passado, variavam de 79,90 reais a (2GB de franquia da Claro) a 149 reais (2GB da Vivo). Isso ignorando que os pacotes de dados devem estar atrelados a serviços de voz mínimos. Ou seja, bem acima dos 10% do salário mínimo brasileiro.

Agora, a bem da verdade, ainda é preciso desmontar um último argumento. Não é preciso uma Copa do Mundo para fazer um leilão de frequência e encaminhar a construção de redes. O governo federal está mostrando isso agora, ao impor o leilão da faixa de frequência de 700 Mhz (também para redes LTE), apesar das diversas incertezas sobre interferência entre o serviço de banda larga móvel e a TV digital terrestre aberta. Com este leilão, o governo federal abre mão de qualquer avanço em termos de obrigação de garantia de cobertura. A estimativa – e já salivam os senhores do superávit primário – é que a arrecadação da União chegue a oito bilhões de reais apenas com a venda de outorgas.

Pensando pequeno

O tamanho da ambição brasileira em termos de garantia de acesso (ou sua pequenez) se mede pela velocidade exigida na oferta de “internet” rural: taxa de transmissão de 256 kbps de download, 128 kbps de upload e franquia mensal de 250 MB, conforme as obrigações das vencedoras do leilão da faixa de frequência de 2,5 GHz. Isso nem ao menos é banda larga! A UIT, em 2003, admitia que a definição de banda larga era difícil porque sempre em evolução, mas apontava que o termo seria devidamente usado quando para denominar serviços cuja capacidade de transmissão fosse superior a 1,5 Mbps!.

Mesmo que 100% dos municípios brasileiros disponham da oferta estabelecida até dezembro de 2015, tal como prevê o edital, seria forçar a barra falar em garantia de acesso à internet – um meio com cada vez mais recursos, mas que também exige maior capacidade (e não, as pessoas que moram no campo não querem menos da internet do que você, leitor). O máximo que o governo conseguiu chegar neste edital foi exigir que, até dezembro de 2017, as operadoras ofereçam conexão com taxa de transmissão de 1 Mbps de download, de 256 kbps de upload e franquia mensal de 500 MB. E assim avança a ampliação da internet no Brasil.

*Marina Cardoso é integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.