CADE afirma que nunca se manifestou sobre neutralidade de rede

Em evento promovido em Brasília, representante do órgão explicou que o posicionamento sobre zero-rating se deu em um caso específico e apenas a partir da perspectiva da concorrência

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) tomou uma decisão sobre apenas um caso específico de prática de zero-rating das operadoras de telecomunicações e da perspectiva exclusiva da concorrência mas não quanto à neutralidade de rede, frisou Cristiane Albuquerque, coordenadora-geral de análise antitruste, responsável pela nota técnica sobre zero-rating de redes sociais no caso de inquérito administrativo movido por denúncia da Proteste contra Vivo, Oi, Claro e TIM. Durante debate sobre neutralidade de rede nesta terça-feira (6), realizada na Semana de Política de Tecnologia de Brasília, Abuquerque refutou afirmações de que o CADE teria tomado uma decisão sobre neutralidade de rede, como afirmaram alguns veículos à época, e frisou que mesmo a questão concorrencial não está fechada e será analisada caso a caso.

“Olhamos os contratos específicos que estavam vigentes à época, as ofertas das operadoras, os contratos comerciais. Aquilo, nós entendemos que não era conduta anticompetitiva e infração à ordem econômica. Mas a análise foi feita dentro da nossa competência e não acerca da neutralidade”, disse.

Para Rafael Zanatta, advogado do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) que representou também a Coalizão Direitos na Rede no evento, as práticas de zero-rating precisam ser analisadas como uma questão de economia política, das escolhas do país quanto ao desenvolvimento do mercado doméstico de aplicações, inclusive, e não apenas como uma questão concorrencial e de neutralidade de rede, mas também por estas perspectivas. E, no entanto, a escolha brasileira de definir CADE, Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), considerando as diretrizes do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), para avaliar as práticas de neutralidade de rede não está funcionando.

“Nosso desafio é azeitar o sistema e garantir a efetividade de normas já existente e que são descumpridas. Unir o direito do consumidor ao potencial de discriminação do tráfego, isso ninguém está olhando. Temos uma questão de enforcement”, afirmou.

Representando o Sindicato das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (SindiTelebrasil), Alexander Castro defendeu que a prática de zero-rating não fere a neutralidade de rede, mas pode ser, sim, questionada do ponto de vista concorrencial. A questão, no entanto, estaria em como garantir que as grandes provedoras de conteúdo online, como Google, Facebook e Netflix, que representam mais de 80% do tráfego, contribuam para cobrir os custos de manutenção da infraestrutura de telecomunicações que dá suporte à Internet.

“A questão da neutralidade de rede respinga no consumidor. Mas a questão se concentra principalmente na disputa de poder. O tráfego da Internet está concentrado em poucas aplicações nos EUA. Eles têm todo o interesse em que as empresas de telecom entreguem tudo igual”, defendeu.

A avaliação de Antonio Moreiras, engenheiro do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), é de que as empresas atuantes na camada de conteúdo – Google, Facebook, Akamai, Microsoft e Apple – também contribuem para manter a infraestrutura de suporte à Internet por meio do investimento em Content Delivery Networks (CDN) e sistemas de cache.

“Não vamos buscar conteúdo nos EUA, mas em servidor dentro da rede do provedor Internet, que já conta com boa parte desses conteúdos. De certa forma, ao organizar isso, essas empresas também participam da construção da infraestrutura e diminuem os custos operacionais. Precisamos ver se há um desequilíbrio na balança, mas elas estão tentando minimizar o impacto do volume crescente de tráfego de dados”, apontou.

A mediadora Marília Monteiro, Tech Policy Fellow da Fundação Mozilla, organizadora do evento em parceria com o Intervozes, lamentou que Anatel e Senacon não tenham enviado representantes ao debate em Brasília, especialmente porque estão, no Marco Civil da Internet, responsáveis pela aplicação da lei.

O Intervozes realizou, em parceria com a Derechos Digitales, uma pesquisa sobre neutralidade de rede na América Latina, e defende que práticas de zero-rating ferem a neutralidade de rede, conforme estabelecida no Marco Civil da Internet.

Por Marina Pita – Especial para o Observatório do Direito à Comunicação

Liberdade de Expressão no Brasil: ainda mais ameaças em 2017

Texto: Ramênia Vieira

O direito à comunicação nunca foi plenamente constituído no Brasil enquanto direito humano básico de todo cidadão. Sendo assim, a liberdade de expressão, um dos pilares desse direito, sempre esteve em risco no nosso país. Em períodos como o atual, de violações à democracia acompanhadas de uma agenda política retrógrada, a liberdade de expressão fica ainda mais ameaçada.

As últimas movimentações pós-golpe dos ocupantes dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) reforçam que a livre manifestação de pensamento não será “tolerada” quando não estiver consonante com a manutenção do status quo vigente. Entidades e militantes dos direitos humanos têm tido que reforçar e reafirmar a cada dia os princípios da liberdade de expressão e de imprensa, assim como o direito à comunicação, como garantias fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente democrática.

E esse cerceamento tem acontecido em diversas frentes. Na manutenção do oligopólio midiático e no desmonte da comunicação pública. Nas decisões judiciais censurando manifestações artísticas e na violenta repressão policial durante protestos. E também nos ataques aos direitos na internet e à liberdade de imprensa. Em todos esses campos, o cenário brasileiro atual revela o objetivo de calar as vozes dissonantes.

Calar Jamais!

Na tentativa de reagir aos ataques e confrontar essa onda de violação e censura que vem ocorrendo em nosso país, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) lançou no ano passado a campanha Calar Jamais!, que teve divulgado em outubro de 2017 seu relatório de um ano de implementação. A publicação traz o balanço das violações à liberdade de expressão registradas na plataforma do Calar Jamais! ao longo desse período.

LogoCalarjamais-1O relatório Calar Jamais! – Um ano de denúncias contra violações à liberdade de expressão” foi organizado em sete categorias: 1) violações contra jornalistas, comunicadores sociais e meios de comunicação; 2) censura a manifestações artísticas; 3) cerceamento a servidores públicos; 4) repressão a protestos, manifestações, movimentos sociais e organizações políticas; 5) repressão e censura nas escolas; 6) censura nas redes sociais; e 7) desmonte da comunicação pública.

Para o FNDC, o conjunto das violações apresentado comprova “que práticas de cerceamento à liberdade de expressão que já ocorriam no Brasil – por exemplo, em episódios constantes de violência a comunicadores e repressão às rádios comunitárias – encontraram um ambiente propício para se multiplicar após a chegada de Michel Temer ao poder, por meio de um golpe parlamentar-jurídico-midiático, que resultou na multiplicação de protestos contra as medidas adotadas pelo governo federal e pelo Congresso Nacional”. Ao todo, o relatório traz 72 denúncias de cerceamento à liberdade de expressão de comunicadores e jornalistas no exercício da sua profissão, de repressão às manifestações e protestos realizados contra medidas do governo Temer (PMDB) e até de censura a servidores públicos, ocorridas no último ano.

Uma das denúncias mostra o caso de um grupo de teatro em Santos cujos componentes foram presos enquanto faziam uma apresentação em praça pública. Outras narram casos de professores que têm sofrido censura em sala de aula por motivações políticas. Ou ainda a repressão física que sofreram os manifestantes que protestavam contra a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que congela os gastos públicos por 20 anos, aprovada em dezembro passado pelo Congresso Nacional.

Em entrevista à rede TVT, Renata Mielli, coordenadora nacional do FNDC, denunciou o papel da imprensa tradicional, que silencia sobre esses abusos e compactua com a estratégia de criminalização dos movimentos sociais. “Esse processo de criminalizar o movimento social não é novo, mas agora eles precisam elevar o tom para dar legitimidade ao processo de golpe que a gente viveu. Assim, seguem retirando os nossos direitos”.

O relatório ainda destaca que a mídia hegemônica, que participou da articulação do golpe parlamentar-jurídico-midiático, colaborou na reprodução sistemática de discursos de ódio que estimulam as intolerâncias religiosa, política, social e cultural, sendo corresponsável pelo avanço da onda conservadora que atinge o país. Esse conservadorismo em voga tem reforçado episódios de censura e de privação da liberdade de expressão justamente em áreas fundamentais para a formação do cidadão, como a educação e a cultura.

Mateus Ferreira da SilvaEsse período de autoritarismo pode ser percebido no relatório Calar Jamais! principalmente no registro de dois casos: os crimes praticados contra o jovem Edvaldo Alves, morto em Pernambuco por um policial que lhe acertou um tiro de bala de borracha, durante um protesto justamente contra a violência; e no caso do estudante universitário Mateus Ferreira da Silva, que teve traumatismo craniano após ser atingido com um golpe na cabeça desferido por um oficial da Polícia Militar durante manifestação em Goiânia. Assim como nos casos de vários professores e estudantes que se tornaram alvo de perseguição política e ideológica na cruzada intitulada “Escola Sem Partido”.

O ano foi bastante tumultuado e opressor para todos os segmentos do setor progressista no país. Como pôde ser constatado na invasão policial à Escola Florestan Fernandes, do Movimento dos Sem Terra (MST), mesmo sem a existência de um mandado de busca e apreensão para a operação. Os policiais chegaram a disparar contra as pessoas na recepção da unidade e prenderam dois militantes. Outra atitude opressora veio diretamente do governo federal, quando Michel Temer suspendeu os direitos constitucionais por meio de decreto presidencial em 24 de maio de 2017, durante ocupação de Brasília por movimentos populares que se manifestavam contra a perda de direitos. O ocupante da Presidência declarou Estado de Defesa e autorizou a ação das Forças Armadas para garantir a “ordem” no país, recuando da decisão dias depois.

Liberdade de expressão e liberdade de imprensa

A vertente mais visível da liberdade de expressão é a liberdade de imprensa, mas estabelecer as diferenças e os limites entre ambas as garantias não é tarefa isenta de polêmicas ou controvérsias. O professor Venício A. de Lima tem uma proposta conceitual que colabora para diminuir as confusões geradas: “A primeira referida à liberdade individual e ao direito humano fundamental da palavra, da expressão. A segunda, à liberdade da ‘sociedade’ e/ou de empresas comerciais – a imprensa ou a mídia – de publicarem o conteúdo que consideram ‘informação jornalística’ e entretenimento”.

A liberdade de expressão diz respeito, portanto, a todos os indivíduos da sociedade, enquanto a liberdade de imprensa se refere especificamente ao trabalho dos jornalistas e dos meios de comunicação. Ambas são essenciais para o exercício da cidadania e para a consolidação da democracia.

Todos os anos, jornalistas são mortos em diferentes regiões do mundo, no exercício de suas funções. Pesquisa lançada em maio de 2017 pela organização não-governamental Artigo 19 relata que, em 2016, foram registradas 31 graves violações contra comunicadores em todas as regiões do país. Entre elas, quatro assassinatos, cinco tentativas de assassinatos e 22 ameaças de morte. A pesquisa sobre o tipo do veículo de comunicação para o qual a vítima atuava revela que, em 52% dos casos, o comunicador era vinculado a meios considerados alternativos, como blogs e pequenos jornais impressos, enquanto o número de graves violações registradas em veículos comerciais foi de 42%.

No que diz respeito aos autores das violações, a pesquisa mantém a tendência verificada nos anos anteriores, com a ampla maioria das violações se concentrando em agentes do Estado, como políticos e policiais. Esse foi o perfil identificado em 77% dos casos verificados em 2016. Mesmo assim, em 39% dos casos de graves violações contra comunicadores, não houve a abertura de investigação por parte da polícia. Outros tipos de violência praticados contra os comunicadores, como a censura judicial e perseguição política, também foram identificados. O número de homicídios caiu de oito para dois entre 2015 e 2016, mas o total de agressões subiu para 205 casos, colocando o Brasil como o quinto país no mundo com mais ataques a jornalistas.

A presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, denuncia que, além da falta de liberdade de expressão para os jornalistas dentro das empresas em que trabalham, os profissionais estão tendo que lidar também com a violência policial durante a realização dos seus serviços. “Os profissionais estão apanhando nas ruas e isso é gravíssimo, porque nós não podemos falar de democratização da comunicação, não podemos falar de liberdade de imprensa e de liberdade de expressão, tratando o profissional com violência. Além disso, temos a violência difusa, como nos casos de censura interna nos veículos de comunicação, que são mais difíceis para denunciar justamente porque há um silêncio tácito da categoria em relação aos casos de censura interna”, ponderou durante audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada em julho deste ano.

Na mesma audiência, foi abordado também o tema da perseguição aos profissionais. O vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Alagoas, Izaías Barbosa de Oliveira relatou a perseguição a um colega de profissão que sequer pode citar o nome de um deputado estadual. Ou seja, ele está impedido de falar o nome do deputado alagoano em qualquer circunstância, não apenas em relação à matéria que produziu. Essa decisão judicial acaba afetando o trabalho do profissional, que cobre exclusivamente a área de política. O caso já foi transitado em julgado no início do ano, ou seja, o jornalista tornou-se um criminoso “perante os olhos da lei por ter feito uma reportagem falando sobre a lentidão do Ministério Público Federal na apuração de um determinado caso”, conforme citado pelo vice-presidente. Casos como esse vêm crescendo em todo o país, principalmente nos estados do eixo Norte-Nordeste, o que evidencia a existência de um coronelismo social na região.

Eduardo GuimarãesAs tentativas sistemáticas de cerceamento ao trabalho dos jornalistas têm provocado temores entre os profissionais. Os jornalistas que atuam na política e que falam sobre as oligarquias ainda existentes no Brasil estão sendo processados rotineiramente. O que, além do desgaste psicológico dos profissionais, causa dificuldades financeiras por conta dos custos dos processos judiciais. Um caso emblemático foi o da condução coercitiva, a pedido do juiz Sérgio Moro, do blogueiro Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, em março deste ano. Caso claro de privação da liberdade de expressão e tentativa de intimidação, já que o blogueiro havia feito uma representação contra o juiz, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2015. Para Guimarães, essa ação da polícia não é uma tentativa apenas de silenciá-lo, mas calar todos que divergem das posições tomadas pela Justiça.

Outro caso que chamou a atenção foi a condenação da atriz e apresentadora da TV Globo Monica Iozzi, que foi obrigada a pagar R$ 30 mil de indenização para o ministro do STF Gilmar Mendes. O processo foi aberto pelo magistrado após a atriz postar nas suas redes sociais uma crítica contra a decisão do ministro, que concedeu habeas corpus a Roger Abdelmassih, condenado por 58 estupros.

Cultura e liberdade de expressão

QueermuseuUma polêmica iniciada no começo de setembro de 2017 com a exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira”, exibida em Porto Alegre, trouxe para o debate público um assunto muito delicado: alguns setores conservadores querem implementar um sistema de classificação indicativa para museus e exposições. A mostra reunia obras de 85 artistas, incluindo os mundialmente conhecidos Alfredo Volpi e Cândido Portinari, e acabou encerrada um mês antes da previsão pelo Santander Cultural após críticas de grupos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), que acusavam a exposição de fazer apologia à pedofilia e à zoofilia. Após essa reação, vários grupos começaram a aparecer em diversos municípios brasileiros questionando outras exposições realizadas.

Desta forma, setores começaram a cobrar dos gestores públicos ações imediatas em relação às exposições, sem debate algum com os demais segmentos da sociedade. Um grande número de projetos de lei apresentados em diversos estados – até o momento são 13 – são um exemplo desta movimentação para limitar e até mesmo censurar a liberdade de expressão em eventos artísticos. O Espírito Santo, por exemplo, aprovou em outubro de 2017 um projeto que proíbe a nudez e a representação de ato sexual em exposições de museus e equipamentos públicos do estado. A proposta foi votada em regime de urgência e ganhou o apoio de quase todos os deputados da casa.

De acordo com o autor, o deputado estadual Euclério Sampaio (PDT), o projeto quer “promover o bem-estar das famílias”. A proibição abrangerá expressões artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes e vídeos que exponham o ato sexual e a nudez humana, exceto quando a exposição tiver fins “estritamente pedagógicos”. O projeto ainda vai à sanção do governador do estado. Caso sancionada a lei, o descumprimento acarretará em multa. Projetos semelhantes já tramitam no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Câmara dos Deputados, em Brasília.

Muitos países já passaram por situações semelhantes, mas nenhum adotou políticas públicas nas quais o Estado se sobreponha a uma decisão dos pais, tomada a partir das orientações e informações fornecidas pelas instituições e artistas. É o que afirma Isabella Henriques, diretora de advocacy do Instituto Alana. Para ela, os responsáveis pelos espaços de artes devem prestar informações suficientes para a proteção da criança, adotando medidas complementares em auxílio às famílias. Mas são estas que devem tomar suas próprias decisões.

Procurado por alguns representantes de igrejas para tratar do assunto, o ministro da Cultura do Brasil, Sérgio Sá Leitão, defendeu que exposições de arte tivessem uma classificação indicativa, a exemplo do que já acontece nos cinemas e em programas de televisão. Vários especialistas em direitos das crianças e organizações de defesa da liberdade de expressão, entretanto, afirmam que a política de classificação indicativa em vigor no Brasil para o cinema, a televisão e os jogos eletrônicos não é o melhor instrumento para tratar dessa questão. De acordo com a Portaria nº 368/2014, do Ministério da Justiça, exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público, tais como as circenses, teatrais e shows musicais, não são classificados. Idem para os museus.

Na avaliação de Veet Vivarta, consultor de mídia e direitos humanos que participou do processo de elaboração e implementação da política de classificação indicativa no Brasil, reconhecida por organismos internacionais, os critérios usados para definir se um conteúdo audiovisual é recomendado ou não para determinada faixa etária não se aplicariam de forma adequada às artes plásticas. Tampouco caberia ao Estado fiscalizar e definir a classificação de museus. Caso os princípios da classificação indicativa fossem aplicados diretamente a um quadro ou escultura de Michelangelo, por exemplo, poderia ser classificada apenas para maiores de 16 anos.Michelangelo

Especialistas e defensores dos direitos humanos são unânimes ao defender que, no que se refere aos museus, galerias e instituições culturais, é preciso um amplo debate entre os agentes culturais e a sociedade para que sejam criadas regras mais claras e de fato aplicáveis às artes plásticas, sem que se comprometa a livre expressão cultural nem a liberdade de expressão. Em nota publicada, o Intervozes e demais entidades se posicionaram sobre o debate em torno da política de Classificação Indicativa, discutindo as especificidades dos centros culturais e defendendo que qualquer decisão normativa conte com o debate envolvendo a participação dos diversos segmentos da sociedade.

Direitos humanos, liberdade de expressão e internet

Quando a internet surgiu no mundo, estudiosos e academia viram nesta um possível espaço para viabilizar a democratização da comunicação. Essas projeções se demonstraram equivocadas, e a realidade é que a rede mundial de computadores, apesar de seu potencial para difusão da diversidade e pluralidade de ideias, tem se tornado um “curral”, com bolhas que limitam o acesso à comunicação variada. Além disso, a presença e a lógica dos grandes monopólios vêm crescendo na rede. No Brasil, precisamos enfrentar ao mesmo tempo o desafio de defender o caráter livre, aberto e plural e garantir a proteção aos direitos humanos na rede, e paralelamente correr atrás da dívida histórica que relegou metade da população a uma vida offline: apenas 54% da população do país têm acesso à rede doméstica.

O Brasil havia assumido um papel de vanguarda ao criar em 2014, após quase três anos de tramitação na Câmara dos Deputados, a Lei 12.965/14, conhecida popularmente como o Marco Civil da Internet. O texto rege o uso da rede no país, definindo direitos e deveres de usuários e provedores da web. Os três pilares do Marco Civil são a liberdade de expressão, privacidade e neutralidade de rede e a universalização do acesso e da governança participativa na internet. Porém, esses pilares estão constantemente ameaçados por forças conservadoras e por interesses econômicos.

A liberdade de expressão já tem sido atacada na internet com a prática do bloqueio a sites e aplicativos em decisões judiciais de primeira instância, como vinha acontecendo com o Whatsapp. O aplicativo teve seu bloqueio determinado a primeira vez em 2015 por um juiz do Piauí num processo que nem ao menos justificava o motivo. Em 2016 a mesma decisão foi tomada por um juiz do Rio de Janeiro que alegava que a empresa se recusou a cumprir uma decisão judicial para fornecer informações para uma investigação policial, num evidente desequilíbrio entre os direitos da maioria dos usuários e a necessidade de investigação e punição de uma minoria deles. Esses casos continuam sendo debatidos pelo STF, a quem caberá uma decisão final.

Neste mesmo contexto de restrição de direitos, também o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) passa por uma série de ataques, promovidos pelo governo, visando a enfraquecer a participação da sociedade e fortalecer as ações das empresas de telecomunicações. A advogada Flávia Lefèvre, conselheira do CGI.br, alerta sobre a importância de se valorizar o espaço. “Temos que fortalecer os mecanismos de gestão da internet, para que as teles não desmontem a participação que se tem hoje. Neste momento, o envolvimento de todos para o processo de revisão do processo de governança multiparticipativa no Brasil é fundamental para a preservação de direitos humanos, direito à comunicação, direito à informação e dos direitos de consumidores”.

Outros ataques à liberdade vêm acontecendo, como a tentativa de “quebra” da neutralidade de rede, o que geraria uma série de mudanças quanto à forma como nos comunicamos de forma online. As empresas querem discriminar o conteúdo que a sociedade usa. Na teoria, paga menos quem usa menos, e quem usa mais paga mais. Porém, a coisa não seria bem assim. Pode ser gerada uma estratificação da rede. As empresas delimitam pacotes e o consumidor que se limite àquele escolhido, como se fosse uma TV por assinatura. Essa discriminação do acesso a conteúdo na rede vai limitar ainda mais a liberdade de expressão daqueles que têm menos condições.

A entidade Coding Rights mapeou propostas de lei que tratam da internet. “Alguns parlamentares acabam apresentando projetos que, na verdade, acabam é atacando a liberdade de expressão”, frisa a ativista Kimberly Anastacio. Ela cita dois exemplos de falta de conhecimento sobre a rede e de compromisso com o cidadão: o projeto de lei que criava o cadastro nacional de usuário da internet, que previa a necessidade da pessoa “logar” cada vez que fosse acessar a rede, e uma emenda dentro do debate da reforma política que tratava da retirada imediata de conteúdo caso houvesse denúncia de que o mesmo tinha origem em robôs ou anônimos. “Essas tentativas de acabar com problemas na internet, mas sem conversar com quem realmente lida com as tecnologias e está na base, não funcionam e são um atentado à liberdade de expressão”, frisa Kimberly.

Concentração

Por fim, a alta concentração de propriedade no mercado da comunicação impõe uma ameaça à liberdade de expressão no Brasil, como ficou comprovada na pesquisa do Monitoramento da Propriedade de Mídia no Brasil (MOM-Brasil). Nem a tecnologia digital e o crescimento da internet, nem esforços regulatórios ocasionais limitaram a formação de oligopólios também na rede. A propriedade cruzada é, segundo André Pasti, coordenador da pesquisa, uma “dimensão central da concentração na mídia brasileira”, sendo naturalizada pelo sistema de comunicação de massa nacional. O caso do grupo Globo, com seu conglomerado de emissoras de rádio e tevês aberta e fechada, jornais, revistas e sites, é o mais conhecido, mas o modelo se reproduz também entre outros grupos.

Nos últimos anos, a pesquisa do MOM mapeou a propriedade da mídia em dez países, além do Brasil: Colômbia, Peru, Camboja, Filipinas, Gana, Ucrânia, Turquia, Sérvia, Tunísia e Mongólia. O Brasil foi identificado como a nação que apresenta maiores riscos à pluralidade e à liberdade de expressão. Essa avaliação se baseia em dez indicadores sobre concentração para cada um dos quatro setores de mídia (impressos, online, tevê e rádio), incluindo a propriedade cruzada, a falta de transparência na divulgação de dados sobre propriedade e o eventual controle político sobre veículos de mídia.

Para Bia Barbosa, jornalista e coordenadora do Intervozes, a concentração de propriedade dos meios de comunicação impacta significativamente sobre o exercício da liberdade de expressão no país. “O Brasil é um dos países que têm o maior quadro de concentração da propriedade dos meios de comunicação. Não falamos em quantidade de veículos, mas sim que esses veículos estão associados a grupos econômicos e, em muitos casos, a grupos familiares, o que é uma característica do sistema midiático brasileiro”.

No país, há uma legislação muito acanhada para barrar a concentração de propriedade dos meios. E um número pequeno de proprietários equivale a uma menor diversidade de conteúdo, o que restringe a pluralidade de opiniões e a própria liberdade de expressão. Sendo assim, a concentração de propriedade dos meios coloca em risco os fundamentos da democracia. Sempre houve omissão do Estado brasileiro na regulação dos meios de comunicação, assim como quase nunca houve preocupação em garantir aquilo que a Constituição Federal estabeleceu como um princípio: a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal de comunicação. A liberdade de expressão é exercício de cidadania e qualifica o debate público – e, consequentemente, a própria sociedade. É um direito fundamental, mas, como todo direito, não é um ganho permanente. Assim, em um Estado que enfrenta graves tempos de crise política e de revogação de direitos, o cidadão precisa estar alerta para que também a liberdade de expressão não seja cerceada.

Ramênia Vieira é jornalista, editora do Observatório do Direito à Comunicação  e integrante do Coletivo Intervozes

Imprensa: personagem político ainda mais complexo em 2017

Texto: Mônica Mourão

Dizer que os jornalistas não devem mentir, inventar, distorcer, caluniar, etc, é como afirmar que as pessoas devem ser honestas. O problema, aqui, é ultrapassar o óbvio, obter um consenso sobre o conceito de honestidade. Quanto ao jornalismo, a dificuldade seria conseguir um acordo sobre o que é a verdade, quais são os fatos que merecem ser relatados e sob que ângulo político, ideológico e filosófico (Genro Filho, 2012, p. 147).

A provocação do professor Adelmo Genro Filho, que faleceu pouco depois de ter publicado sua teoria marxista sobre o jornalismo (no livro O Segredo da Pirâmide), coloca-nos na posição de criticar a ideia de manipulação feita pela imprensa. Afinal, defender que algo foi manipulado significa afirmar que seria possível – desde que dotados de técnicas adequadas e justas intenções – que os jornalistas relatassem a verdade. Ora, não é preciso cair nas armadilhas pós-modernas do relativismo para compreender que não existe uma única verdade sobre um mesmo fato.

Uma outra linha de pensamento, ainda sob a ótica da “manipulação”, é que são os interesses de classe em jogo que levam a imprensa a cobrir os acontecimentos de uma maneira, e não de outra. Mas aí também existe uma armadilha. Como lembra Genro Filho, ao se analisar tudo pela ótica da luta de classes, visto que a imprensa é uma invenção burguesa, seu posicionamento seria sempre de defesa dos valores burgueses. Porém, segundo ele mesmo, primeiro, isso não faz da imprensa uma arma exclusiva da burguesia. Em segundo lugar, e o mais importante para nossa análise, ainda que o veículo seja burguês, nem todos os seus funcionários-jornalistas o são; a ideologia não funciona como uma correia de transmissão automática.

É a partir desses pressupostos que buscamos compreender a cobertura midiática sobre o que consideramos os temas mais candentes de 2017: os posicionamentos a favor e contra Temer; a cobertura das manifestações e das reformas trabalhista e previdenciária; a abordagem da imprensa sobre Lula e o PT; e a incorporação de pautas de grupos minoritários de forma positiva. Nosso principal alvo de análise é a TV Globo, pela força política e liderança cultural que exerce há anos no país, mas outras emissoras e veículos impressos também são incluídos no texto.

Que imprensa é essa?

Primeiramente, não custa reparar no sujo falando do mal lavado. Globo no Fifagate, acusada de pagar propina para conseguir a transmissão dos jogos; SBT, alinhado a Temer, passa propaganda das reformas e retransmite sinal da TV governamental NBR; Record, não é de hoje, financia-se com dinheiro da Igreja Universal; e a Band ocupa, com seu Brasil Urgente, o segundo lugar no ranking de violações aos direitos humanos. É desse tipo de empresas privadas (nesse caso, concessionárias de um serviço público) que estamos falando aqui. Em sua maioria, junto com os impressos, são ligadas a grandes grupos empresariais cujos donos também atuam em outros setores, como o educacional, financeiro, imobiliário, agropecuário, de energia, de transportes, de infraestrutura e de saúde, segundo detalhou a pesquisa “Quem controla a mídia no Brasil?”.

Globo #ForaTemer

“Saem os militares, entram os presidentes civis, a relação é exatamente a mesma. Quer dizer, a Globo não tem uma vocação necessariamente militarista ou ditatorial. Mas ela tem uma vocação governista: onde tem governo está a Rede Globo”. A frase é do jornalista Gabriel Priolli e foi dita em 1993, para o documentário da BBC inglesa “Muito além do Cidadão Kane” – verdadeiro “best seller proibido”.

Há mais de 20 anos, justamente no período da transição democrática – lenta, gradual e segura para os setores conservadores e as elites –, seria inimaginável ver a Globo na posição atual: defendendo a saída do presidente ilegítimo sem sucesso. E o que surpreende é não ter conseguido e se mantido, assim, na “oposição” ao governo federal. Mas, contraditoriamente, não à sua agenda político-econômica.

Até maio desse ano, a cobertura anti-Dilma e pró-impeachment desembocava no óbvio, que era a defesa da legitimidade e da política do governo Temer. Naquele mês, as denúncias dos donos da JBS contra Michel Temer desnudaram de forma indisfarçável o que para os opositores do golpe já estava evidente: a reputação do vice decorativo não era ilibada, já que eleestava mergulhado em corrupção.  

Naquele 17 de maio, William Bonner titubeou e chamou Temer de “ex-presidente” na escalada do Jornal Nacional, corrigindo-se em seguida. Renata Vasconcelos encerrou a edição anunciando que o Jornal da Globo traria mais informações sobre a “notícia bombástica” que Lauro Jardim havia publicado em sua coluna no site d’O Globo algumas horas antes do JN. A bomba foi a gravação feita por Joesley Batista em uma conversa com Temer sobre a “mesada” paga pelo silêncio de Eduardo Cunha, que incluía a resposta do presidente: “Tem que manter isso aí”.

O JN exibiu o áudio, confirmou as informações contidas nele com investigadores da Lava Jato e repercutiu a reação dos parlamentares e do próprio presidente no Palácio do Planalto. Naquela noite, o Jornal Nacional terminou mais cedo. Era quarta-feira, dia de futebol. Mas bem que vinha a calhar um tempinho a mais para afinar o posicionamento da emissora, que parecia realmente pega de surpresa com o furo jornalístico do colunista da mesma organização. Mais tarde, no anunciado Jornal da Globo, William Waack decretou: “O assunto no qual o governo está condenado a se concentrar é um só: a própria sobrevivência”.

A partir daí, o jogo virou. No dia seguinte, a cobertura jornalística da Globo assumiu um caráter escancaradamente antigoverno. Os gritos de #ForaTemer que invadiam os links ao vivo em quase toda situação com um aglomerado de pessoas, antes abafados e censurados, viraram alvo de comentários nas matérias, inclusive durante o festival Rock in Rio. Até num seriado sobre o período da independência do Brasil de Portugal, o Filhos de Pátria, de Bruno Mazzeo, apareceu um “Fora, Pedro” (e também uma frase típica dos golpistas: “Primeiro a gente tira o Pedro, depois a gente vê”.

As articulações pela saída de Temer não ficaram “apenas” na cobertura jornalística do maior grupo de comunicação do país. Segundo noticiado pela Folha de S. Paulo, no domingo seguinte à “notícia bombástica” o vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo, Paulo Tonet Camargo, recebeu em sua residência, em Brasília, a visita de Rodrigo Maia, presidente da Câmara e primeiro lugar na linha sucessória caso se efetivasse a queda de Michel Temer.

No dia seguinte, seria lida a relatoria sobre a denúncia contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), cujo relator, Sergio Zveiter (PMDB-RJ), tem o Grupo Globo como cliente de serviços jurídicos há mais de 40 anos. No Congresso, Zveiter, também considerado próximo a Maia, chega a receber a alcunha de “advogado da Globo”.

Segundo o jornalista Daniel Fonsêca, a atividade de bastidores não é novidade na história da Globo: “Entre os anos 1990 e o começo dos 2000, um alto executivo da Globo chegou a ser apelidado em Brasília de ‘Senador Evandro’. Era Evandro Guimarães, que ocupava na época exatamente o mesmo cargo que hoje ocupa Paulo Tonet, dono da casa no Lago Sul”.

Se apenas a editorialização das matérias já são uma mostra de que a imprensa não exerce apenas o papel de mediação, mas sim de ator político ativo no cenário brasileiro, as movimentações extrajornalísticas evidenciam ainda mais esse caráter. Talvez então a frase de Priolli no início desse texto siga fazendo sentido: a Globo tentou (e atuou para) manter-se alinhada ao governo. Frustrada essa expectativa, porém, seguiu com o viés #ForaTemer, mas desde que mantida a agenda neoliberal de perda de direitos e enfraquecimento dos serviços públicos.

Globo seguiu na oposição em raia própria

Apesar do esforço de interpretação sobre a nova linha editorial da Globo, uma pergunta permanecia no ar: por que a gigante seguiu isolada na oposição ao governo? Para entender melhor esse cenário, o Intervozes acompanhou a cobertura feita pela chamada grande mídia da votação realizada no dia 2 de agosto na Câmara dos Deputados sobre o acatamento ou não das denúncias contra Temer feitas pela Procuradoria Geral da República, em análise feita por Bia Barbosa e Camila Nobrega.

Naquele dia, a Globo suspendeu o Jornal Nacional e a novela Força do Querer para transmitir ao vivo a votação no Congresso, por quatro horas ininterruptas. A análise ficou por conta do Jornal das Dez, da Globonews.

“O governo trabalhou pesado, atendendo no atacado e no varejo, ao longo do dia, os pedidos de seus aliados. Até a última hora e durante a sessão, o Presidente trabalhou pessoalmente para barrar a investigação”, anunciou a âncora Renata LoPrete. Para a comentarista Cristiana Lobo, foi uma vitória “magra”. O tom era de denúncia da compra de votos e de fracasso político, apesar da votação vitoriosa.

Essa também foi a linha defendida no editorial do impresso O Globo de 2 de agosto, assim como nas manchetes online do jornal após a votação: “Com 263 votos, Câmara ignora provas e barra denúncia contra Temer”; “Com sorriso no rosto, Temer diz que resultado não é vitória pessoal”, “Deputado preso em regime semiaberto vota a favor de presidente”, “Internautas promovem vomitaço em rede social de Michel Temer”.

Mais discreta, a Folha de S. Paulo publicou em sua capa no dia seguinte à votação: “Temer usa máquina, demonstra força e barra denúncia”. Dentro do jornal, afirmou: “Balcão de negócios com o recurso público garante vitória governista”, e trouxe duas páginas centrais sob o título “Placar da Denúncia”, com fotos, nomes e partidos dos deputados e como cada um votou.

Entre os veículos que seguiram outra linha, estão a Band e o Estado de S. Paulo.  O Jornal da Noite, da Bandnews, destacou: “Mercado financeiro e empresários defendem continuidade de Michel Temer na Presidência”. Em seguida, uma longa reportagem ouviu empresários de diversos setores que afirmaram ser positiva a permanência de Temer para a continuidade das reformas e para a economia. Encerrada a votação, o destaque do Estadão foi o pronunciamento do Presidente: “Após barrar denúncia, Temer diz que é urgente pôr o país nos trilhos”.

Mais recentemente, o Estadão se mostrou panfletário na defesa do governo Temer. No dia 4 de agosto, em editorial intitulado “Vitória da responsabilidade”, o jornal declarou que “afastar o presidente da República do exercício do cargo seria uma evidente irresponsabilidade, e a Câmara dos Deputados, no cumprimento de suas atribuições constitucionais, rejeitou com acerto tal imprudência”.

Dialogando indiretamente com a posição da Globo, para o Estado de S. Paulo, no mesmo editorial acima, defendia que “ao contrário do que alguns afirmam, o presidente Michel Temer sai fortalecido do episódio, mostrando, uma vez mais, sua capacidade de articulação com o Congresso”.

Com ou sem Temer, imprensa defende perda de direitos

“Cabe agora a Michel Temer, com a máxima urgência, reorganizar o seu governo, estabelecendo as condições para o prosseguimento das reformas, em especial, a reforma da Previdência. Há muito a fazer e nenhum tempo a perder”. Era o que dizia o Estado de S. Paulo, em mais um trecho do editorial de 4 de agosto. O tom de que as reformas são positivas e necessárias ao crescimento econômico tem sido geral na imprensa – inclusive nos veículos do Grupo Globo.

Com ou sem Temer, imprensa defende perda de direitosNa edição de 12 de agosto, o Jornal Nacional anunciou que “um estudo concluiu que a reforma trabalhista, aprovada em 2017, vai criar 1,5 milhão de empregos e estimular o crescimento do país nos próximos quatro anos”. Depois de mostrar uma vendedora de loja de roupas satisfeita por poder dividirsuas férias em três vezes, a matéria revela que o “estudo” (como de praxe no jornalismo, utilizado de maneira pouco ou nada crítica, como se pesquisas fossem isentas) havia sido feito pelo banco Itaú.

A cobertura do Jornal Nacional sobre a votação da reforma trabalhista no Senado, no dia 11 de julho, evidenciava o posicionamento pró-reforma. A abertura do programa dedicou quase 6 minutos abordando a ocupação da mesa diretora pelas senadoras contrárias à votação e apenas 37 segundos para explicar o conteúdo do projeto aprovado.

O tom do JN foi de que o protesto das senadoras foi algo violento e, durante toda a matéria, apenas opiniões dos senadores pró-reforma foram exibidas. “A atitude das senadoras foi condenada por colegas de diversos partidos”, anunciou a repórter, transmitindo a ideia de que foi ampla a suprapartidária a crítica às parlamentares. A matéria trouxe falas de Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), Cristóvam Buarque (PPS-DF) e Eunício Oliveira (presidente da Casa), que tacharam a atitude das senadoras de “ato de força”, “desrespeito total” e “gesto antidemocrático”, de acordo com os três primeiros. Segundo Eunício Oliveira, “nem a ditadura militar ousou ocupar mesa do Congresso Nacional”.

Já os poucos segundos dedicados a explicar o texto votado no Senado, trouxeram uma perspectiva favorável à sua aprovação. “A reforma trabalhista dá força de lei a acordos entre trabalhadores e patrões, respeitando os direitos assegurados pela Constituição, como FGTS e 13º; permite que férias possam ser divididas em até três períodos; acaba com a obrigatoriedade da contribuição sindical, equivalente a um dia de salário do trabalhador; permite que intervalo de almoço possa ser reduzido para 30 minutos, diminuindo a jornada mediante negociação coletiva; e inclui a jornada intermitente, o trabalho em dias alternados ou por algumas horas, como o de trabalhadores de bares ou eventos”. Nenhuma palavra de crítica às reformas, nenhuma palavra das senadoras “antidemocráticas”, nenhuma informação sobre o fechamento de todas as entradas do plenário pelo senador Eunício.

Dois dias depois, em 13 de julho, William Waack associou a reforma trabalhista a uma atualização de uma lei que seria retrógrada: “Até agora essa relação [entre empregados e empregadores] foi submetida a uma legislação com mais de 70 anos de idade”.

O Jornal da Globo seguiu com matéria da repórter Renata Ribeiro, que explicou as mudanças. Segundo ela, a reforma vai permitir contratos de trabalho mais flexíveis e direitos assegurados – como FGTS, 13º salário, licença-maternidade e férias proporcionais ao tempo de trabalho – serão mantidos. A repórter disse ainda que acordos entre trabalhadores e empresas irão prevalecer e anunciou o fim da contribuição sindical. Afirmando que as mudanças foram bem recebidas, Renata ouviu dois especialistas: ambos favoráveis à reforma. Para eles, assim como havia sugerido Waack, nossa lei trabalhista até então em vigor seria atrasada e tornaria o país pouco competitivo.

A defesa das reformas estava presente também meses antes, quando havia uma unanimidade pró-Temer na imprensa hegemônica. Em artigo do Intervozes no blog da CartaCapital, foram analisados o Jornal Nacional, o Jornal da Globo, o Jornal da Band, o Jornal da Record e o Repórter Brasil, da TV Brasil do dia 13 de março. Neste dia, mais de 125 cidades registraram manifestações e paralisações contra as reformas trabalhista e da previdência.

Único canal da comunicação pública analisado, o Repórter Brasil aparentemente havia sofrido censura: o vídeo com gritos de “Fora, Temer!” não foi ao ar no site do jornal. Nos demais telejornais noturnos, “o tom das matérias foi muito mais o impacto das paralisações – sobretudo dos trabalhadores das redes de transporte – do que os atos em si. Flashes rápidos dos protestos, nenhum número sobre o total de participantes e, principalmente, nenhuma entrevista com os organizadores das manifestações foram a maneira escolhida pela mídia de censurar o motivo que levou milhares de brasileiros e brasileiras às ruas”.

Temer ainda vivia sua lua-de-mel com a imprensa, quando estourou a primeira greve geral no país, no dia 28 de abril desse ano. O tom da cobertura foi o mesmo da nota do presidente ilegítimo e da entrevista com o ministro da Justiça Osmar Serraglio: a ordem era não falar em “greve geral”, mas sim em “dia de protestos” e, no máximo, “paralisações”.

Informações de bastidores dão conta de que essa foi também a orientação das chefias de redação em diferentes veículos. A confusão proposital entre “greve geral” e “dia de protestos”, feita por quase toda a imprensa, foi crucial para o tom negativo da cobertura. Ora, o sucesso de uma greve é, visualmente, quase o contrário do de um dia de protestos: ruas vazias, ao invés de cheias. Embora também houvesse manifestações marcadas para aquele dia, não mencionar a greve prejudica gravemente o entendimento daquele 28 de abril.

“Segundo a BandNews, o que houve no Rio de Janeiro ‘não foi uma greve. […] Foi um dia de muitos problemas, de muito caos para as pessoas que seguiam para o trabalho, que queriam tocar a vida’. No Jornal Hoje, da Globo, foram ao ar 40 minutos de matérias sobre a greve sem que a palavra fosse usada. Falou-se em ‘paralisação de 24 horas chamada pelos sindicatos’ [como se sindicatos fossem entes apartados da população]. Na Record, nada da expressão ‘greve geral’. O tom da cobertura deu ênfase para as depredações e nenhuma explicação das motivações do movimento”, conforme análise publicada no dia seguinte à greve.

Como de praxe, a cobertura silenciou manifestantes, mostrou especialmente atos “violentos” cometidos por eles (mas não contra eles) e focou nos transtornos no trânsito e nos serviços, como se pode perceber a partir de algumas manchetes do dia 29: “Protesto de centrais afeta transportes e tem violência” (O Globo), “Greve afeta transporte e comércio e termina com atos de vandalismo” (O Estado de S. Paulo), “Greve afeta transporte e termina em vandalismo” (Correio Braziliense), “Greve atinge transportes e escolas em dia de confronto” (Folha de S. Paulo).

(Na tevê, uma importante exceção foi o Jornal Nacional. Ele foi o único telejornal a falar acerca do conteúdo das reformas trabalhista e da previdência e ouviu diferentes fontes sobre o tema (incluindo Paulinho da Força Sindical, o presidente da CUT Wagner Freitas e o ministro da Justiça Osmar Serraglio). Na GloboNews, uma mudança na linguagem: ela colocou repórteres no chão, sofrendo com o gás lacrimogêneo como os manifestantes. Uma grande diferença na cobertura anteriormente feita com o distanciamento proporcionado pelo “globocop”.)

Nada de novo sob o sol. Como já havia sido analisado, os motivos dos protestos do dia 24 de maio também não foram publicados. Ao invés de ouvir as razões que levaram mais de 100 mil pessoas às ruas naquele dia, a imprensa focou nas chamas e na depredação de parte da Esplanada dos Ministérios. Era a desculpa perfeita para criminalizar todo o movimento social, as cidadãs e cidadãos contrários à perda de direitos levada a cabo pelo governo Temer. O ataque à Esplanada funcionou também para que a mídia justificasse a ação violenta das Forças Armadas.  

Embora uma ressalva no início deste artigo lembre que a luta de classes não é a única chave interpretativa para o entendimento da imprensa, isso não significa que ela não é uma fundamental ótica de análise. Em casos de acirramento dessa luta, como são os de reformas que interferem diretamente nas relações de trabalho, o caráter burguês da imprensa fica ainda mais evidente. E, como dizia Gramsci, em 1916, “para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores”.

Lula e PT sob ataque

Na já famosa “polarização política” na qual o Brasil se viu imerso especialmente desde a vitória apertada de Dilma Rousseff nas eleições de 2014, o posicionamento antipetista da imprensa hegemônica é evidente. Embora os governos Lula e Dilma não tenham feito frente às demandas dos movimentos sociais por uma comunicação mais democrática (entre outras pautas históricas da esquerda), a relação entre governos petistas e mídia não se constituiu numa oposição acirrada – mas também esteve longe de ser um mar de rosas.

Identificados como “esquerda” ou “comunistas” em tempos de debates acalorados nas redes sociais, os petistas foram aceitos pela grande imprensa. Mas apenas aceitos, sem grande entusiasmo. Desde que sua força política mostrou-se mais frágil, não houve titubeio em atuar ativamente pela derrubada da presidenta reeleita em 2014. Mesmo depois da queda, sobram casos que evidenciam a tomada de posição antiPT e, especialmente, antiLula. Comentaremos alguns que consideramos emblemáticos.

Lula e PT sob ataqueConforme publicado na página do Intervozes no Facebook, no dia 10 de maio, a mídia brasileira dedicou-se o dia todo a um único fato: o depoimento do ex-presidente Lula ao juiz Sérgio Moro, em mais uma fase crucial da operação Lava Jato. Ao longo do dia, enquanto o país buscava informações sobre os rumos do depoimento, a GloboNews enfatizou repetidamente a narrativa de “confronto”, “duelo”, no estilo FlaxFlu: “O embate está marcado para essa tarde”; “eles ficarão frente a frente pela primeira vez hoje”, “luta de novela” foram algumas das chamadas feitas durante a programação do canal fechado do Grupo Globo. O clima já havia sido antecipado pelas revistas IstoÉ e Veja.

 

Ao longo do dia, concomitante à narrativa pré-luta, os telejornais da GloboNews foram aos poucos respondendo a essa pergunta. Um dos comentaristas analisou num matutino “O PT quer transformar esse depoimento em fato político. Pelo Lula, ele daria esse depoimento num palanque”. Até às 14h, horário de início do depoimento, nenhuma imagem mostrava os manifestantes que, solidários a Lula, se deslocaram em caravanas até Curitiba. A tentativa de esconder e justificar o injustificável foi escancarada quando a cobertura mostrou repetidas vezes o grande aparato policial montado para o depoimento, na frente na sede da Justiça Federal, sem, sobretudo, justificar o porquê desse esquema de segurança.

Quando já não dava mais para evitar, a poucos minutos de ter início o “duelo”, uma entrada ao vivo de 2 minutos (num total de 1 hora de telejornal) mostrou um pequeno grupo de pessoas pró Lava Jato num bate-boca com um “militante petista”. A narrativa era: o partidário de Lula tinha ido ali provocar e procurar encrenca.

À noite, a mesma GloboNews respondeu de forma definitiva ao questionamento que lançamos acima. No Em Pauta, veiculado às 20h, montou-se um verdadeiro tribunal para julgar o depoimento de Lula. Quatro comentaristas revezaram-se numa espécie de “júri popular midiático” que ocorreu a despeito do trâmite e das prerrogativas exclusivas do Judiciário. Trechos do depoimento de Lula foram transmitidos, comentados e, mais que isso, confrontados.

O Jornal Nacional e o Jornal da Globo tiveram tons bem mais contidos que a TV por assinatura. Mostraram longos trechos dos depoimentos sem comentários “julgadores” como os da Gnews. Na abertura do Jornal Nacional, a âncora justificou o fato de aquela edição não conseguir dar um panorama geral do que tinha sido o depoimento de Lula pelo pouco tempo que tiveram para a montagem do jornal: “Tivemos só 40 minutos para editar todo o depoimento”, disse a certa altura enquanto se comprometia com uma cobertura mais apurada ao longo da programação da emissora no dia seguinte. A essa chamada, seguiu-se uma que enfocava a queda da inflação, a “taxa alcança o patamar mais baixo em dez anos”, pauta favorável ao governo Temer.

A edição dos dois jornais noturnos da Globo se ateve à divulgação de alguns trechos do depoimento, sobretudo aqueles que tematizavam o triplex do Guarujá e seguiram a linha de invisibilizar ou diminuir a manifestação pró-Lula. O JN mostrou imagem do momento da dispersão dos manifestantes.

Outro caso emblemático aconteceu meses depois. Quem passava pelas bancas de revista no dia 5 de setembro e via o jornal O Globo exposto à venda teve um mau entendimento dos fatos envolvendo corrupção no país. A manchete de capa trazia em letras garrafais: “Janot denuncia Lula, Dilma e mais seis por organização criminosa”. Abaixo dela, uma fotografia das malas contendo os 51 milhões de reais descobertos pela Polícia Federal num apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB). O texto referente a essa foto, porém, estava à direita dela, em tamanho menor, com bem menos destaque. A relação espontânea feita pelo olhar ligava a manchete com denúncias contra o PT à fotografia das malas de dinheiro de Geddel. Certamente, os editores e diagramadores do jornal O Globo sabem disso.

Lula e PT sob ataque 2O foco do noticiário em Lula também serviu para tirar a atenção das reformas: em 12 de julho, dia posterior à aprovação da reforma trabalhista no Senado, o Jornal Nacional dedicou 29 minutos e 40 segundos de sua edição a matérias sobre a condenação do ex-presidente pelo juiz Sérgio Moro. Desse total, 15 minutos e 26 segundos foi a duração da matéria que trazia apenas os argumentos utilizados por Moro. Na abertura, William Bonner decretou: “É a primeira vez na história que um ex-presidente da República é condenado por um crime comum no Brasil”. Outro vídeo, de 1 minuto e 57 segundos, citou as sentenças de cada um dos condenados: Lula, Léo Pinheiro (ex-presidente da OAS), Agenor Franklin Magalhães Medeiros (executivo da OAS). Em 3 minutos e 6 segundos, foi explicado o trâmite da condenação: e só então o telespectador ficou sabendo que ela foi feita em primeira instância e ainda cabia apelação por parte da defesa.

Além dessas, foram ao ar, naquela noite, mais três matérias sobre a condenação de Lula. Uma delas, com 3 minutos e 17 segundos, tratou da repercussão no Congresso de maneira equilibrada (apenas 7 segundos a mais para os defensores do ex-presidente). Outra, com 4 minutos e meio, ouviu exclusivamente apoiadores de Lula: seu advogado de defesa, Cristiano Zanin Martins; o vice-presidente do PT, Márcio Macedo; o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Wagner Santana. Também foi citada uma nota do Partido dos Trabalhadores. Em 1 minuto e 24 segundos, os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos informaram que Lula ainda é réu em mais quatro ações penais.

A disparidade de espaço dado para os argumentos condenatórios e os de defesa do ex-presidente evidenciam: no tribunal midiático, a sentença já foi dada.

De olho em 2018

A artilharia contra Lula se mantém pesada e assim deve prosseguir, com o objetivo de inviabilizar sua candidatura nas eleições do ano que vem. Parte da estratégia é fortalecer outros nomes de presidenciáveis. É isso que foi feito no dia 23 de novembro, pelo escancaradamente pró-Temer Estadão. “Aprovação a Huck dispara e atinge 60%, mostra pesquisa” foi a manchete de capa da edição daquela quinta-feira.

De olho em 2018Com o título “Aprovação a Huck cresce 17 pontos, afirma Ipsos”, e o subtítulo “Conforme o Barômetro Político Estadão-Ipsos, apresentador é a personalidade com a melhor avaliação entre os 23 nomes relacionados pelo instituto aos entrevistados”, o jornal deu a entender algo diferente do que está escrito na matéria assinada por Daniel Bramatti.

Apenas no terceiro parágrafo, a matéria explica os dados: “A pesquisa Ipsos não é de intenção de voto. O que os pesquisadores dizem aos entrevistados é o seguinte: ‘Agora vou ler o nome de alguns políticos e gostaria de saber se o (a) senhor (a) aprova ou desaprova a maneira como eles vêm atuando no País’”. No parágrafo seguinte, uma fala de Danilo Cersosimo, diretor do Ipsos, joga água fria no entusiasmo pró-Huck que inicia o texto: “Se a eleição fosse hoje, ele teria um desempenho razoável, mas não esse cacife todo”.

Mas, antes de chegar até esse ponto do texto, o leitor desavisado já construiu uma imagem vitoriosa da candidatura de Huck. E, provavelmente, esqueceu-se de que o próprio Estadão havia noticiado, no dia 19 de setembro, que “Lula lidera intenções de voto em todos os cenários, diz pesquisa da CNT”.

No dia 24 de novembro, o blog Direto da Fonte, do Estadão, afirmou que “Huck pode anunciar hoje estar fora da eleição presidencial”. No dia 27, o próprio Huck publicou artigo na Folha de S. Paulo negando que será candidato. O jornalismo declaratório, sem base em informações seguras, aposta num futuro “talvez” e parece demonstrar que o jogo político está mesmo entrelaçado à imprensa. E que, ao contrário do que a mídia conservadora tem buscado convencer o público, as fake news estão longe de ser um problema exclusivo da internet e das redes sociais.  

Também no dia 24, a Folha de S. Paulo publicou matéria sobre o perigo representado pela possível eleição de Lula: “A eventual vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderia derrubar a Bolsa dos atuais 74 mil pontos para abaixo de 55 mil pontos e deixar o dólar acima de R$ 4,10, indica pesquisa realizada pela XP Investimentos. O levantamento, feito entre os últimos dias 21 e 23, ouviu 211 investidores institucionais, como gestores de recursos, economistas e consultorias”.

O medo do desastre econômico dá o tom da construção da ideia de que a candidatura de Lula representa uma ameaça para o país. Como se investidores representassem os principais interesses da maioria da população brasileira.

#GloboLixo: ataque conservador e questões estruturais

O Brasil não é mesmo para iniciantes. Depois de colocar no ar, no dia 8 de outubro, uma matéria do Fantástico sobre brincadeiras e brinquedos sem distinção de gênero, a hashtag #GloboLixo chegou aos trending topics do Twitter.  

Como já havia sido analisado por Pedro Ekman, a Globo fez mudanças na sua programação que deram a ela ares mais progressistas, especialmente no entretenimento: em programas de humor (como o novo Zorra Total), de auditório (o Amor e Sexo pautou o feminismo em janeiro desse ano) e na dramaturgia (como a já citada série Filhos da Pátria, com suas menções a questões políticas atuais, e a novela Força do Querer, com dois personagens transgêneros, sendo um também interpretado por um homem trans).

Porém, acreditamos que essa seja tanto uma estratégia para a emissora se manter com sua posição hegemônica quanto fruto de brechas e tensões entre as forças conservadoras e progressistas que atuam por dentro da empresa, que obviamente não é monolítica. No primeiro caso, vale lembrar que a Globo, diferente das demais emissoras de televisão, sempre procurou se posicionar como uma vanguarda cultural.

Faz isso, porém, sem abrir mão das pautas político-econômicas neoliberais. Encara a fúria reacionária contrária à – muitas aspas nessa hora – “ideologia de gênero”, mas segue defendendo a perda de direitos trabalhistas e as privatizações, por exemplo. O que coloca inclusive limites à sua postura “feminista” (mais aspas), por não fazer o recorte de gênero ao pautar a reforma trabalhista sem mencionar o quanto ela prejudicará especialmente as mulheres.

Progressista no entretenimento, conservadora no jornalismo, a platinada mantém sua liderança, mas segue de olho nas necessidades de inovação num mercado televisivo cada vez menos atraente para a juventude. Além disso, é preciso lembrar que problemas estruturais como o racismo e o machismo seguem fortes não só na Globo, mas em outras emissoras da TV aberta. Recentemente, o apresentador William Waack foi flagrado proferindo uma fala racista, o que é apenas a ponta do iceberg da subrepresentação de negras e negros nas telas. A população LGBT ainda é alvo de invisibilidade e estereótipos, e as mulheres sofrem violência ao vivo em reality shows, que seguem escalando homens agressores.

Estratégias e armadilhas narrativas

No jogo desigual de ideias, em que as grandes empresas privadas de comunicação são as donas da bola, são recorrentes algumas estratégias para divulgar notícias do ângulo político, ideológico e filosófico de interesse dessas empresas.

Pesquisas, números e dados estatísticos são comumente usados sem nenhum quê de desconfiança, como se fossem verdades exatas. Muitas vezes também os responsáveis pelas pesquisas não aparecem com destaque nas matérias, e saber se as conclusões publicadas como fatos foram extraídas de institutos ligados ao capital financeiro ou à própria imprensa faz toda a diferença. Esse foi o caso das matérias sobre a candidatura de Luciano Huck (que, ainda pior, confundiu aprovação da imagem de uma pessoa com intenção de voto) e da que falava dos riscos para a economia caso Lula seja eleito presidente em 2018.

Também na cobertura antiPT se viu a artimanha de “esconder” a informação principal da notícia. No caso, o destaque dado a um aspecto dos acontecimentos, e não a outros, colocava como mais importante algo que seria desdito adiante. (Pela própria matéria, a candidatura de Luciano Huck não tinha tanta força quanto a manchete afirmava). Além da ordem das informações no texto, a organização das imagens (e a relação imagem-texto) foi outra armadilha narrativa usada pela imprensa, como na já clássica capa d’O Globo com as malas de dinheiro de Geddel.  

As opiniões de especialistas também são usadas para legitimar uma “verdade”. Essa foi a estratégia-mor das matérias sobre as reformas: como duvidar do que diz um economista, que estaria apresentando uma ideia embasada na “isenção” e “neutralidade” científicas? Embora haja exceções (o Estúdio I, da GloboNews, é um oásis de pluralidade de ideias em meio ao deserto midiático), os “isentos” especialistas são escolhidos a dedo para não falar nada que destoe da linha editorial do veículo que o procurou.  

Quem é ouvido nas matérias, aliás, segue sendo uma grande tática para mostrar apenas um lado das questões, invisibilizando ou minimizando atores e atrizes sociais fundamentais para um olhar mais abrangente sobre os temas. Chega a ser inacreditável quando se pensa nos preceitos básicos do jornalismo, mas é muito comum – e escapa ao leitor/telespectador que não está atento – a veiculação de notícias sobre manifestações que não ouvem manifestantes, sobre reformas trabalhistas que não ouvem trabalhadores, sobre o protesto de senadoras de oposição que não ouvem as senadoras etc.

Sem contar na seleção de quem fala e em que momento fala. De acordo com a análise de enquadramento, as primeiras fontes ouvidas dão o tom da matéria; as demais entram na sequência na condição de dar uma resposta a elas, uma posição defensiva que aparece na narrativa, mas não necessariamente condiz com as disputas políticas extratexto.

Por fim, a grande reclamação dos movimentos sociais é de fato uma estratégia eficaz: a simples ausência de certas pautas, fontes e pontos de vista na grande imprensa. Silenciar na mídia é trabalhar para que algo não exista na esfera pública. É diminuir drasticamente as condições de convencimento de boa parte da população da existência de certos problemas e das diferentes maneiras de enfrentá-los. Entre brechas e disputas, a mídia hegemônica segue sendo muito eficiente em excluir do debate público a pluralidade e diversidade que poderiam colaborar de fato com mudanças estruturais na sociedade.

Mônica Mourão é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes

* A análise das coberturas só foi possível graças aos textos produzidos por diferentes militantes do Intervozes ao longo do ano, todos devidamente creditados nos links. A referência a um post na nossa página de Facebook é de um texto de autoria de Iara Moura.

Em busca do equilíbrio e da promoção de direitos na internet

Painel organizado por Intervozes e Internet Lab reuniu organizações do terceiro setor defensoras de direitos humanos e de uma liberdade de expressão de viés inclusivo

Intervozes e Internet Lab formaram uma parceria para debater direitos humanos nas redes digitais durante o VII Fórum da Internet no Brasil, realizado entre 14 e 17 de novembro no Rio de Janeiro. Denominado Liberdade de expressão e violações de direitos humanos online: uma articulação em busca do equilíbrio e em defesa de uma Internet promotora de direitos, o painel contou com a participação de Nathalie Gazzaneo (Facebook Brasil), Deborah Duprat (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), Elen Geraldes (Escola de App-UnB), Flavia Lefevre (Proteste), Joana Varon (Coding Rights), Larissa da Cruz Santiago (Blogueiras Negras) e Mariana Valente (Internet Lab). Iara Moura foi a moderadora da mesa, representando o Intervozes.

O painel foi organizado na perspectiva de reunir organizações do terceiro setor defensoras de direitos humanos e de uma liberdade de expressão de viés inclusivo, que respeite os direitos de mulheres, negros/as, população LGBT e crianças no mundo virtual, além de representantes de plataformas de Internet (setor privado), do Ministério Público Federal e das universidades. Iara Moura destacou a relevância da agenda para o atual momento histórico do país, em meio a rupturas e violações de direitos fundamentais. Também fez uma referência ao seminário realizado em julho no Conselho Nacional de Direitos Humanos, que reuniu sociedade civil e ativistas em defesa de uma internet livre, durante o qual foi reapresentada a campanha Conecte seus Direitos. A campanha visa uma articulação permanente na busca do equilíbrio entre o direito fundamental à liberdade de expressão e outros direitos humanos, como a privacidade.

Já no painel realizado no Fórum da Internet no Brasil, a Coding Rights lançou o relatório Violências de Gênero na Internet: diagnósticos, soluções e desafios, resultado de uma contribuição conjunta que igualmente contou com a participação do Intervozes. O documento foi enviado à Relatoria Especial da ONU que está mapeando a violência online no país. Joana Varon explicou que, para a produção do relatório, primeiramente foi mapeada a diversidade de casos de violência online que passam posteriormente para o mundo off-line e as tipologias de crimes, para depois ser feito um levantamento sobre o tratamento do assunto pela legislação. O relatório também levanta casos de contas hackeadas, bloqueadas por denúncias coletivas, situações marcadas pelo corrente discurso de ódio e até a invasão de modem na casa de ativistas. Ações estas marcadas pela censura. O relatório pode ser encontrado em https://www.codingrights.org/wp-content/uploads/2017/11/Relatorio_ViolenciaGenero_v061.pdf

A professora Elen Geraldes falou da experiência obtida pelo projeto Escola de App da Universidade de Brasília (UnB) e da importância do empoderamento das meninas nos meios digitais. O projeto de extensão vai às escolas públicas do Distrito Federal para identificar situações de violência online contra meninas e catalogar os tipos de violência praticados, para em seguida estabelecer uma interlocução com os gestores de ensino, medir os impactos das políticas públicas nesta área e pensar novas políticas que possam proteger os grupos sociais mais vulneráveis. Por meio do projeto, também são promovidas oficinas para apropriação tecnológica, nas quais as meninas são “sensibilizadas” a utilizarem as ferramentas sociais e desenvolverem aplicativos que visem romper com alguns dos problemas relatados – daí o nome da iniciativa.

Por sua vez, a representante do Facebook no painel, Nathalie Gazzaneo, apresentou as medidas adotadas pela plataforma a partir das denúncias “verificadas” pela empresa. Nathalie afirmou que há preocupação em entender questões sociais emergentes, além do contexto cultural e local dos usuários da tecnologia, e informou que existem ferramentas para restringir alguns tipos de conteúdo de violações de direitos. Complementou, porém, afirmando que a maior parte do conteúdo postado pelos usuários precisa da ajuda do suporte para a avaliação se de fato se trata de conteúdo ofensivo, atuação esta que ocorreria a partir de denúncias. “Poucas pessoas conhecem o mecanismo de denúncia específico do Messenger. Ele recebe atenção muito grande da plataforma e é especialmente importante nos temas de raça e gênero, pois a maioria das ameaças/insinuações ocorrem por esse canal”, relatou, apontando a questão de gênero como a de maior demanda na América Latina em termos de notificações de violações à privacidade e de mensagens de ódio. As demais painelistas questionaram esse poder de decidir o que retirar do ar e quando nas mãos das plataformas digitais.

Violência de gênero e racismo

Larissa Santiago, do Blogueiras Negras, retratou os problemas enfrentados pelas mulheres negras na vida online, alvo de ataques frequentes desde que passaram a buscar por sua auto-organização nas redes. Muitas vezes, as ativistas sofrem ataques coordenados na internet, que se estendem desde a violência de gênero até o racismo. A reação violenta é tanta que as ativistas definiram por retirar a parte de comentários do blogue, na tentativa de minimizar os impactos que alguns destes comentários estavam causando em algumas delas. Por um tempo, o grupo alimentou um Tumblr na tentativa de constranger os ataques, com mensagens enviadas com ameaças e agressões. O Blogueiras Negras, que chegou a se retirar por um tempo do Facebook, está retornando agora à plataforma para monitorar a ausência de resposta às denúncias de violações de direitos e para buscar um processo mais transparente em relação às denúncias das quais o próprio grupo era alvo. “O lado de lá já entendeu muito bem como funciona e sempre que querem derrubam as páginas das mulheres negras, mesmo que não exista nenhuma atitude considerada fora ‘dos padrões’ aceitos pelas plataformas”, apontou.

Sobre este aspecto, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, destacou que vivemos uma disputa histórica na sociedade brasileira pelo espaço público, estando a internet dentro deste contexto. Para ela, há uma disputa assimétrica neste ambiente. “Se alguém for calado, somos nós, as mulheres, os negros, transexuais, LGBTs, enfim, os segmentos historicamente violentados pelo setor hegemônico da sociedade”, enfatizou. Deborah reconhece a internet como um espaço estrategicamente interessante para potencializar as lutas emancipatórias, principalmente pela sua capacidade de aproximar histórias e lutas. Ela reforça que a gestão da internet não deve ser privada e sim pública. “Temos que ter muito cuidado com essas ferramentas que as próprias empresas oferecem. Por outro lado, precisamos transformar o nosso modo de ocupar as redes”, afirmou.

Governança multissetorial e Solução em Múltiplas Camadas

Flávia Lefèvre, da Proteste – Associação de Consumidores, defendeu a importância de se preservar a governança multissetorial da internet para a garantia de direitos humanos fundamentais. “A forma tradicional de regulação, marcada pelo viés econômico, dificilmente tem condições de dar respostas rápidas para as violações que acontecem na rede. Hoje temos por volta de 300 projetos de lei para alterar e restringir direitos que já foram assegurados pelo Marco Civil da Internet”, apontou Flávia. Ela cita como exemplo a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Crimes Cibernéticos, que passou a colocar em risco direitos como a privacidade e a liberdade de expressão. “Quisemos trazer o tema da governança multissetorial para o Fórum da Internet no Brasil a fim de democratizar o debate, defendendo o caráter multiparticipativo do Comitê Gestor da Internet (CGI.br). O CGI existe desde 1995. Foi revisto em 2003, por meio do Decreto 4.829/2003. Agora estamos entrando numa nova revisão. Para preservar o caráter multisetorial da governança, precisamos da participação de todos”, enfatizou Flávia.

Nesta direção, Mariana Giogetti Valente, do Internet Lab, destacou a suposta dicotomia existente entre os temas da violação de direitos humanos e da liberdade de expressão. “Quando tem violência, a gente está limitando a liberdade de expressão. Não podemos falar de uma solução por uma via apenas. Devemos enfrentar o problema da violência em múltiplas camadas”, ponderou. Ela lembrou uma avaliação do Internet Lab sobre estratégias jurídicas para combater o vazamento de imagens íntimas, o chamado revenge porn, durante a qual foram feitos estudos de caso com escolas cujos alunos mantinham listas de as “10 mais vadias”. “Ocorreram suicídios nesses bairros por conta dessas listas. Entramos em contato com coletivos feministas e perguntamos sobre o endurecimento da lei para tratar desses casos. A maioria respondeu que o caminho não era polícia, que estavam tentando chamar audiência para discutir políticas de educação e saúde”, lembrou Mariana, antes de completar: “Nesse contexto de múltiplas camadas, o diálogo com o setor privado é importante, mas deve ser feito com cuidado. Há uma demanda grande da sociedade de civil. Que liberdade de expressão existe em alguém disseminar uma foto sem minha autorização? A postura adotada pela plataforma tem um papel central e faz diferença na vida de uma pessoa que sofreu violência online”.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação 

Novos presentes para velhos amigos: mudanças na radiodifusão beneficiam empresários e políticos de sempre

Texto: Mabel Dias

20110106174454_comunicaçãoQuando as primeiras ondas de rádio e, posteriormente, de TV foram transmitidas no Brasil, vieram acompanhadas de uma necessária regulação para organizar os sinais que cortavam o território brasileiro. Como o espectro eletromagnético, por onde passam essas ondas, é finito, é preciso que o Estado defina regras para que sua ocupação se dê de forma organizada, sem que haja interferência nas frequências.
Dessa forma, até mesmo as rádios e TVs comerciais só podem funcionar a partir de uma autorização, permissão ou concessão pública. Para ter esse direito, as emissoras deveriam passar por um processo licitatório e atender diversos requisitos estabelecidos pela própria Constituição Federal de 1988. Critérios como a “promoção da cultura nacional e regional”, conteúdos com finalidades “educativas, artísticas, culturais e informativas”, além da regionalização dessa produção são alguns dos princípios indicados pela carta magna.

Essa definição existe para estimular a diversidade de produção e de conteúdo, ampliando a representatividade e participação da sociedade nos meios de comunicação. E essas exigências nada mais são que a definição das contrapartidas que o concessionário deveria cumprir, afinal de contas, seja para o veículo público, estatal ou privado, a concessão para exploração do sinal é pública e, portanto, deve ter obrigações com a sociedade. Mesmo tendo como objetivo o lucro, as mídias comerciais precisam justificar o seu uso de um bem que é púbico e de direito de toda a população.

No entanto, esses critérios nunca foram levados em consideração para a liberação ou não renovação das concessões. A decisão política de não fiscalizar o cumprimento desses requisitos sempre fez com que o setor privado criasse suas próprias regras, consolidando o imaginário de que as mídias comerciais não precisam prestar contas à sociedade e que são donas de um espectro que, na verdade, é público.

Agravando ainda mais essa “terra sem lei”, o poder público brasileiro também sempre fez vistas grossas à transferência de outorgas para terceiros, abrindo mão de lançar novas licitações, como pleiteava os movimentos. Assim, as emissoras comerciais sempre tiveram suas concessões renovadas de modo praticamente automático, mesmo sem cumprir os requisitos de utilidade pública.

Se esse cenário sempre foi naturalizado pelo poder público, para os movimentos que atuam em defesa do direito à comunicação, essa pauta é fundamental. E o que já estava ruim conseguiu piorar a partir da formalização dessas práticas, após uma série de medidas que o presidente Michel Temer (PMDB) vem executando desde que tomou posse.

Nova Lei para concessões
Em abril de 2017, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 13.424/2017, sancionada pelo presidente Michel Temer. A nova lei tem origem na Medida Provisória 747/2016 (MP 747), que foi enviada ao Congresso no final de 2016 e aprovada praticamente “a toque de caixa” em março de 2017. Ela prevê uma série de alterações na concessão de outorgas para as empresas privadas de rádios e TVs.

Pela nova lei, as empresas de radiodifusão foram anistiadas em relação aos prazos de renovação das outorgas pelo governo federal. Segundo as novas regras, todo concessionário que havia perdido o prazo para renovar suas outorgas ganhou mais 90 dias para fazê-lo. Não interessa se o atraso foi de um mês ou de dois anos. Aquelas emissoras que já haviam pedido a renovação, mas o fizeram fora do prazo – inclusive as que o Executivo já tinha revogado a licença justamente pelo atraso na solicitação da renovação – também ganharam mais uma chance para recolocar seus canais em funcionamento, caso o Congresso Nacional ainda não tivesse se manifestado sobre o caso. A partir de agora, se mais alguém se esquecer de pedir para renovar suas outorgas dentro do prazo, caberá ao governo a tarefa de avisar ao concessionário.

Assim, em vez de abrir novos processos de licitação para que outros interessados tivessem a oportunidade de ocupar as outorgas abandonadas pelas empresas, o governo optou por beneficiar os antigos concessionários, para que voltassem a operar. Ou seja, essa anistia vai na contramão dos movimentos que cobram maior transparência na definição das concessões, com consultas públicas para todos que queiram utilizar o espectro eletromagnético.

Para a jornalista Bia Barbosa, do Coletivo Intervozes e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a aprovação da lei é um “escárnio com a radiodifusão brasileira”. Em entrevista publicada no Observatório do Direito à Comunicação, Bia afirma que “num país em que as concessões sempre foram usadas como moeda de troca política, foi possível piorar o procedimento das licenças. E agora não é nenhum exagero afirmar que o empresariado da radiodifusão pode fazer o que bem entender com este bem que, vale lembrar, é público”.

De acordo com Renata Mielli, coordenadora geral do FNDC, a Lei 13.424/17 aprofunda a ausência de transparência no processo de concessão e restringe ainda mais a possibilidade de haver alguma participação de outros setores que tenham a intenção de receber uma outorga. “O que o FNDC defende não são remendos para beneficiar os atuais concessionários, e sim, a mudança no processo de concessão, através de licitações transparentes, chamadas através de editais, com audiências públicas para que a sociedade possa participar do debate e conferir maior transparência”, afirma Renata.

O direcionamento da MP 747 para antigos empresários era tão evidente, que até as rádios comunitárias foram inicialmente excluídas da anistia. No entanto, após forte pressão de radialistas e entidades, as rádios comunitárias acabaram sendo contempladas.

Para Jerry de Oliveira, do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias, esta inclusão do setor na MP foi “um conto do vigário”. “Alguns segmentos do setor lutaram para que fosse incluído na MP um dispositivo que aumentasse o tempo de renovação das comunitárias, principalmente para as emissoras que perderam o prazo. Se de um lado deu um fôlego para estas emissoras, de outro não se garante que as comunitárias terão suas renovações atendidas”, aponta Jerry.

De acordo com o radialista, a portaria do antigo Ministério das Comunicações – que, a partir do governo Temer foi fundido com outras pastas, transformadas no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) – facilitou várias demandas das rádios comerciais, como as relacionadas às cassações, flexibilização trabalhista e alterações em artigos do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62). “Mas para as comunitárias não se mudou um artigo sequer da Lei 9.612/98, apesar de ganharem uma extensão de prazo para renovação. A possibilidade de cassação é eminente, pois as mudanças na lei das rádios comunitárias não constam na medida provisória”, afirma Jerry. A lei decorrente dessa MP já está em vigor desde março de 2017.

Renovação automática
Outro ponto que a Lei 13.424/2017 altera no sistema de concessão de outorgas para as empresa de radiodifusão é um aprofundamento do processo de renovação de forma praticamente automática.

A previsão de cumprimento de “todas as obrigações legais e contratuais” e o atendimento “ao interesse público” como requisito para o direito à renovação das outorgas foi excluído da lei. No Brasil, o processo de renovação das licenças de rádio e TV já é quase automático, sendo necessário o voto aberto de dois quintos dos deputados e senadores, em sessão conjunta do Parlamento, para que uma concessão não seja renovada.

Agora, as obrigações que tinham de ser respeitadas – pelo menos segundo a letra da lei – desapareceram. Se o extinto Ministério das Comunicações pouco fiscalizava o cumprimento dessas obrigações legais e contratuais e nada olhava para o atendimento “ao interesse público” no momento de renovar licenças, agora isso nem mais será solicitado.

Concessão pública x posse particular
Comemorada pelos empresários radiodifusores, a lei 13.424 é justificada pelo governo como uma forma de desburocratizar o setor. No entanto, mudanças significativas reduzem o controle social e a própria fiscalização do Estado, desconfigurando o que deveria ser uma concessão pública. Assim, as empresas ganham mais liberdade para tratar a outorga como uma posse particular, diminuindo a prestação de contas para o governo e para a sociedade.

Cessões de cotas e ações que alterassem o controle societário das empresas e alterações nos objetivos sociais das concessionárias deveriam ser previamente autorizadas pelo Executivo. Agora, isso não será mais preciso. Basta que as empresas informem ao governo sobre as alterações realizadas. Aquelas que fizeram alterações ilegalmente sem a autorização prévia do Ministério, quando a lei anterior ainda valia, ganharam sessenta dias a partir de março de 2017 para informar ao governo das mudanças, sem qualquer prejuízo para continuarem funcionando normalmente.

O que segue dependendo de autorização prévia do Estado é somente a transferência total e integral da concessão para outra empresa, numa prática já bastante conhecida, chamada “comércio de outorgas”. Além disso, agora os radiodifusores também ganharam mais uma ajuda: a transferência está liberada inclusive para as outorgas que estiverem funcionando em caráter precário, ou seja, que ainda não tiverem seus processos de renovação concluídos.

Tais medidas privilegiam os antigos radiodifusores comerciais e fragilizam suas obrigações. Se essa já era a perspectiva da lei aprovada em março, consolidou-se em agosto de 2017, após um novo decreto do presidente Temer. De número 9.138/17, ele modifica consideravelmente o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, revogando o decreto 88.066/1983 e alterando o 52.795/1963.

De acordo com o atual decreto, o contrato de concessão não precisa trazer, como cláusula obrigatória, os preceitos e obrigações das emissoras estabelecidos no artigo 28 do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. A norma continua em vigor, mas sua menção explícita desaparece dos contratos de concessão. Já o termo aditivo firmado na renovação da outorga não precisa mais ser remetido ao Tribunal de Contas, reduzindo os mecanismos de fiscalização do setor.

O decreto também reduz uma série de exigências para a solicitação da renovação das outorgas. Anteriormente, se exigia vinte e três documentos, enquanto que agora só serão cobrados doze, com a promessa do Ministério de melhorar o fluxo de análise dos processos e acelerar o tempo de resposta às emissoras. Estima-se que o período de tramitação dessas análises caia de oito para dois anos.

Entre os documentos que não serão mais cobrados das empresas estão, por exemplo, o projeto de investimento que demonstre a origem dos recursos a serem aplicados no empreendimento. Também deixam de ser exigidos os pareceres de dois auditores independentes demonstrando a capacidade econômica da empresa de realizar os investimentos necessários à prestação do serviço pretendido.

Além da simplificação dos documentos para concessão e renovação das outorgas, o decreto também incorpora, no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, aspectos já aprovados pela Lei 13.424/07. Entre eles, a dispensa de anuência prévia do MCTIC para a alteração contratual das outorgas e a autorização de transferência de outorgas. Da mesma forma, modifica o tipo de declaração exigida para empresas que possuem até 30% de capital financeiro estrangeiro em sua composição societária.

Algumas infrações anteriormente previstas também deixam de existir a partir desse decreto, como em relação à execução dos serviços de radiodifusão não exibir pronunciamentos em cadeia nacional ou descumprir as exigências referentes à propaganda eleitoral.

Também deixa de ser uma infração destruir os textos dos programas, inclusive noticiosos, antes de decorrido o prazo de 10 dias contados a partir da data de sua transmissão e não conservar as gravações dos programas de debates ou políticos, bem como pronunciamentos da mesma natureza, pelo prazo de 5 a 10 dias (de acordo com a potência da emissora) depois de transmitido o conteúdo. A partir de agora, a emissora é obrigada a conservar a gravação da programação irradiada somente durante as 24 horas subsequentes ao encerramento dos trabalhos diários da emissora.

Deixa ainda de ser uma infração prevista no Regulamento o desrespeito ao direito de resposta reconhecido por decisão judicial. Ou seja, apesar de ter que cumprir a ordem da lei, se uma empresa detentora de outorga não o fizer, não estará infringindo o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão.

Ao mesmo tempo, passam a ser consideradas infrações “colaborar na prática de rebeldia, desordem ou manifestações proibidas” e “utilizar equipamentos diversos dos aprovados ou instalações fora das especificações técnicas constantes da Portaria que as tenha aprovado”.

De positivo, o decreto 9.138 traz algumas mudanças que refletem no quadro societário das empresas. A nova legislação determina o afastamento do sócio ou diretor da concessionária em alguns casos: quando este participe do quadro societário ou diretivo de outra empresa radiodifusora na mesma localidade; em caso de ser eleito para mandato eletivo que lhe assegure imunidade parlamentar ou para cargos ou funções dos quais decorra foro especial; e em caso de condenação por órgão colegiado de uma série de crimes previstos na legislação brasileira.

Soma-se a esse decreto a Portaria no 5774, enviada pelo MCTIC nas últimas semanas de 2016, alterando a regulamentação das sanções administrativas aplicadas contra as entidades prestadoras dos serviços de radiodifusão. Com as mudanças, se flexibilizou a punição para os radiodifusores infratores.

Com a portaria, todas as emissoras e canais de rádio e TV comerciais que descumprirem a lei passam a ter a possibilidade de converter a pena de cassação da licença em multa. Tal decisão fica a cargo do Secretário de Radiodifusão.

Anteriormente, um canal de rádio ou retransmissora de TV perderia esse benefício caso somasse 20 pontos no rol de infrações praticadas. Com a flexibilização trazida pela nova portaria, o limite chega a 80 pontos. Portanto, fica ainda mais difícil a cassação da licença de radiodifusores infratores.

Plano Nacional de Outorgas e o golpe nas rádios comunitárias
Em abril de 2016, durante o governo de Dilma Roussef (PT), o então ministro das Comunicações, André Figueiredo, assinou três planos nacionais de outorgas, sendo dois para a radiodifusão comunitária e um para a educativa. Na ocasião, o ministro afirmou que, com o Plano Nacional de Outorgas (PNO), todos os municípios brasileiros contariam com radiodifusão comunitária.

Dos dois planos para radiodifusão comunitária, o primeiro contém editais que incluem povos e comunidades tradicionais, totalizando 123 municípios de todos os estados e do Distrito Federal. O segundo foi dividido em 14 editais, que atingiriam todos os 1.264 municípios brasileiros que não dispõem de rádio comunitária. A previsão do Ministério, no período de lançamento do PNO, era que estes anúncios dos editais acontecessem entre maio de 2017 e julho de 2019.

Já o plano de radiodifusão educativa era composto de 761 municípios, que seriam contemplados com 879 editais. A primeira fase começaria no período de agosto de 2016 a maio de 2017, alcançando 237 localidades, sendo 235 para FM e duas para TV.

Porém, após o afastamento de Dilma, o então presidente-interino Michel Temer suspendeu a publicação dos editais do PNO. De acordo com o coordenador executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), Geremias Santos, o serviço de radiodifusão comunitária foi um dos mais prejudicados. “O atual governo revogou o Plano Nacional de Outorgas e não publicou os editais para os anos de 2016/18, que estabeleceriam mais de mil e duzentas novas concessões de rádios comunitárias, possibilitando que cada município brasileiro tivesse, pelo menos, acesso a uma estação”, pontua Geremias.

O radialista informa ainda que mais de 500 processos de rádios comunitárias, autorizados pelo Congresso Nacional para apreciação e votação das outorgas foram devolvidos para o MCTIC, voltando à estaca zero.

Essa suspensão do PNO compromete ainda mais o funcionamento das rádios que atualmente já operam. O cenário de perseguição às rádios comunitárias, contínuo nos últimos governos, segue inviabilizando a sobrevivência desse segmento.

É o caso da rádio Canal Mais FM, que opera no município de Bauru, em São Paulo. Seu dirigente, Cirineu Fedriz, aponta que em menos de um ano no ar, a rádio já sofreu duas fiscalizações da Anatel. “A nossa rádio completou um ano de transmissão no final de setembro e a nossa licença esperávamos há mais de 15 anos. Só conseguimos porque acionamos o Judiciário, que obrigou a outorga da rádio”, informa Cirineu.

Direito à comunicação negado
A suspensão do Plano Nacional de Outorgas representou ainda mais a negação do direito à comunicação. Ao abortar a proposta de ampliação da radiodifusão pelo país, o governo inviabilizou a operação de novas rádios e TVs comunitárias e educativas. Em um cenário de extrema concentração midiática no Brasil, a existência de mais emissoras representaria maior diversidade nos meios de comunicação e a oportunidade de mais pessoas exercerem sua liberdade de expressão, além da própria sociedade que aumentaria seu rol de opções para ver e ouvir o que desejasse.

As medidas do governo federal também apontam para o sentido inverso do que é defendido pelos movimentos em defesa da democratização da comunicação e até mesmo de experiências de governos latino e norte-americanos, e europeus.

Enquanto muitos países desses continentes já adotam ações mais severas para combater a concentração midiática, fortalecer a radiodifusão pública e reforçar as exigências para as concessões, no Brasil todo esse processo tem retrocedido, após décadas de passos lentos.

O atual projeto político inviabiliza o surgimento de novas entidades radiodifusoras, privilegiando os poucos e antigos donos da mídia. A falta de transparência nas licitações das outorgas e a redução da fiscalização sobre os concessionários diminui a possibilidade de uma comunicação que cumpra a sua função social.

Todo esse “pacote de bondades” do governo Temer, através de medidas provisórias, leis e portarias, fragiliza ainda mais as exigências para se obter, manter e renovar as concessões. Os radiodifusores passam a ter cada vez menos obrigações com o Estado, para justificar as outorgas, distanciando-se do compromisso que deveriam ter com a sociedade ao fazer uso de um bem público.

Dessa forma, a garantia do direito à comunicação passa a dispor de menos mecanismos, uma vez que o sistema de radiodifusão comercial ganha mais liberdade para tratar a comunicação como mercadoria, contrariando os preceitos constitucionais. Nega-se uma vez mais, portanto, o direito à comunicação para a maior parte da população brasileira.

Mabel Dias – jornalista e integrante do Coletivo Intervozes.