Imprensa: personagem político ainda mais complexo em 2017

Texto: Mônica Mourão

Dizer que os jornalistas não devem mentir, inventar, distorcer, caluniar, etc, é como afirmar que as pessoas devem ser honestas. O problema, aqui, é ultrapassar o óbvio, obter um consenso sobre o conceito de honestidade. Quanto ao jornalismo, a dificuldade seria conseguir um acordo sobre o que é a verdade, quais são os fatos que merecem ser relatados e sob que ângulo político, ideológico e filosófico (Genro Filho, 2012, p. 147).

A provocação do professor Adelmo Genro Filho, que faleceu pouco depois de ter publicado sua teoria marxista sobre o jornalismo (no livro O Segredo da Pirâmide), coloca-nos na posição de criticar a ideia de manipulação feita pela imprensa. Afinal, defender que algo foi manipulado significa afirmar que seria possível – desde que dotados de técnicas adequadas e justas intenções – que os jornalistas relatassem a verdade. Ora, não é preciso cair nas armadilhas pós-modernas do relativismo para compreender que não existe uma única verdade sobre um mesmo fato.

Uma outra linha de pensamento, ainda sob a ótica da “manipulação”, é que são os interesses de classe em jogo que levam a imprensa a cobrir os acontecimentos de uma maneira, e não de outra. Mas aí também existe uma armadilha. Como lembra Genro Filho, ao se analisar tudo pela ótica da luta de classes, visto que a imprensa é uma invenção burguesa, seu posicionamento seria sempre de defesa dos valores burgueses. Porém, segundo ele mesmo, primeiro, isso não faz da imprensa uma arma exclusiva da burguesia. Em segundo lugar, e o mais importante para nossa análise, ainda que o veículo seja burguês, nem todos os seus funcionários-jornalistas o são; a ideologia não funciona como uma correia de transmissão automática.

É a partir desses pressupostos que buscamos compreender a cobertura midiática sobre o que consideramos os temas mais candentes de 2017: os posicionamentos a favor e contra Temer; a cobertura das manifestações e das reformas trabalhista e previdenciária; a abordagem da imprensa sobre Lula e o PT; e a incorporação de pautas de grupos minoritários de forma positiva. Nosso principal alvo de análise é a TV Globo, pela força política e liderança cultural que exerce há anos no país, mas outras emissoras e veículos impressos também são incluídos no texto.

Que imprensa é essa?

Primeiramente, não custa reparar no sujo falando do mal lavado. Globo no Fifagate, acusada de pagar propina para conseguir a transmissão dos jogos; SBT, alinhado a Temer, passa propaganda das reformas e retransmite sinal da TV governamental NBR; Record, não é de hoje, financia-se com dinheiro da Igreja Universal; e a Band ocupa, com seu Brasil Urgente, o segundo lugar no ranking de violações aos direitos humanos. É desse tipo de empresas privadas (nesse caso, concessionárias de um serviço público) que estamos falando aqui. Em sua maioria, junto com os impressos, são ligadas a grandes grupos empresariais cujos donos também atuam em outros setores, como o educacional, financeiro, imobiliário, agropecuário, de energia, de transportes, de infraestrutura e de saúde, segundo detalhou a pesquisa “Quem controla a mídia no Brasil?”.

Globo #ForaTemer

“Saem os militares, entram os presidentes civis, a relação é exatamente a mesma. Quer dizer, a Globo não tem uma vocação necessariamente militarista ou ditatorial. Mas ela tem uma vocação governista: onde tem governo está a Rede Globo”. A frase é do jornalista Gabriel Priolli e foi dita em 1993, para o documentário da BBC inglesa “Muito além do Cidadão Kane” – verdadeiro “best seller proibido”.

Há mais de 20 anos, justamente no período da transição democrática – lenta, gradual e segura para os setores conservadores e as elites –, seria inimaginável ver a Globo na posição atual: defendendo a saída do presidente ilegítimo sem sucesso. E o que surpreende é não ter conseguido e se mantido, assim, na “oposição” ao governo federal. Mas, contraditoriamente, não à sua agenda político-econômica.

Até maio desse ano, a cobertura anti-Dilma e pró-impeachment desembocava no óbvio, que era a defesa da legitimidade e da política do governo Temer. Naquele mês, as denúncias dos donos da JBS contra Michel Temer desnudaram de forma indisfarçável o que para os opositores do golpe já estava evidente: a reputação do vice decorativo não era ilibada, já que eleestava mergulhado em corrupção.  

Naquele 17 de maio, William Bonner titubeou e chamou Temer de “ex-presidente” na escalada do Jornal Nacional, corrigindo-se em seguida. Renata Vasconcelos encerrou a edição anunciando que o Jornal da Globo traria mais informações sobre a “notícia bombástica” que Lauro Jardim havia publicado em sua coluna no site d’O Globo algumas horas antes do JN. A bomba foi a gravação feita por Joesley Batista em uma conversa com Temer sobre a “mesada” paga pelo silêncio de Eduardo Cunha, que incluía a resposta do presidente: “Tem que manter isso aí”.

O JN exibiu o áudio, confirmou as informações contidas nele com investigadores da Lava Jato e repercutiu a reação dos parlamentares e do próprio presidente no Palácio do Planalto. Naquela noite, o Jornal Nacional terminou mais cedo. Era quarta-feira, dia de futebol. Mas bem que vinha a calhar um tempinho a mais para afinar o posicionamento da emissora, que parecia realmente pega de surpresa com o furo jornalístico do colunista da mesma organização. Mais tarde, no anunciado Jornal da Globo, William Waack decretou: “O assunto no qual o governo está condenado a se concentrar é um só: a própria sobrevivência”.

A partir daí, o jogo virou. No dia seguinte, a cobertura jornalística da Globo assumiu um caráter escancaradamente antigoverno. Os gritos de #ForaTemer que invadiam os links ao vivo em quase toda situação com um aglomerado de pessoas, antes abafados e censurados, viraram alvo de comentários nas matérias, inclusive durante o festival Rock in Rio. Até num seriado sobre o período da independência do Brasil de Portugal, o Filhos de Pátria, de Bruno Mazzeo, apareceu um “Fora, Pedro” (e também uma frase típica dos golpistas: “Primeiro a gente tira o Pedro, depois a gente vê”.

As articulações pela saída de Temer não ficaram “apenas” na cobertura jornalística do maior grupo de comunicação do país. Segundo noticiado pela Folha de S. Paulo, no domingo seguinte à “notícia bombástica” o vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo, Paulo Tonet Camargo, recebeu em sua residência, em Brasília, a visita de Rodrigo Maia, presidente da Câmara e primeiro lugar na linha sucessória caso se efetivasse a queda de Michel Temer.

No dia seguinte, seria lida a relatoria sobre a denúncia contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), cujo relator, Sergio Zveiter (PMDB-RJ), tem o Grupo Globo como cliente de serviços jurídicos há mais de 40 anos. No Congresso, Zveiter, também considerado próximo a Maia, chega a receber a alcunha de “advogado da Globo”.

Segundo o jornalista Daniel Fonsêca, a atividade de bastidores não é novidade na história da Globo: “Entre os anos 1990 e o começo dos 2000, um alto executivo da Globo chegou a ser apelidado em Brasília de ‘Senador Evandro’. Era Evandro Guimarães, que ocupava na época exatamente o mesmo cargo que hoje ocupa Paulo Tonet, dono da casa no Lago Sul”.

Se apenas a editorialização das matérias já são uma mostra de que a imprensa não exerce apenas o papel de mediação, mas sim de ator político ativo no cenário brasileiro, as movimentações extrajornalísticas evidenciam ainda mais esse caráter. Talvez então a frase de Priolli no início desse texto siga fazendo sentido: a Globo tentou (e atuou para) manter-se alinhada ao governo. Frustrada essa expectativa, porém, seguiu com o viés #ForaTemer, mas desde que mantida a agenda neoliberal de perda de direitos e enfraquecimento dos serviços públicos.

Globo seguiu na oposição em raia própria

Apesar do esforço de interpretação sobre a nova linha editorial da Globo, uma pergunta permanecia no ar: por que a gigante seguiu isolada na oposição ao governo? Para entender melhor esse cenário, o Intervozes acompanhou a cobertura feita pela chamada grande mídia da votação realizada no dia 2 de agosto na Câmara dos Deputados sobre o acatamento ou não das denúncias contra Temer feitas pela Procuradoria Geral da República, em análise feita por Bia Barbosa e Camila Nobrega.

Naquele dia, a Globo suspendeu o Jornal Nacional e a novela Força do Querer para transmitir ao vivo a votação no Congresso, por quatro horas ininterruptas. A análise ficou por conta do Jornal das Dez, da Globonews.

“O governo trabalhou pesado, atendendo no atacado e no varejo, ao longo do dia, os pedidos de seus aliados. Até a última hora e durante a sessão, o Presidente trabalhou pessoalmente para barrar a investigação”, anunciou a âncora Renata LoPrete. Para a comentarista Cristiana Lobo, foi uma vitória “magra”. O tom era de denúncia da compra de votos e de fracasso político, apesar da votação vitoriosa.

Essa também foi a linha defendida no editorial do impresso O Globo de 2 de agosto, assim como nas manchetes online do jornal após a votação: “Com 263 votos, Câmara ignora provas e barra denúncia contra Temer”; “Com sorriso no rosto, Temer diz que resultado não é vitória pessoal”, “Deputado preso em regime semiaberto vota a favor de presidente”, “Internautas promovem vomitaço em rede social de Michel Temer”.

Mais discreta, a Folha de S. Paulo publicou em sua capa no dia seguinte à votação: “Temer usa máquina, demonstra força e barra denúncia”. Dentro do jornal, afirmou: “Balcão de negócios com o recurso público garante vitória governista”, e trouxe duas páginas centrais sob o título “Placar da Denúncia”, com fotos, nomes e partidos dos deputados e como cada um votou.

Entre os veículos que seguiram outra linha, estão a Band e o Estado de S. Paulo.  O Jornal da Noite, da Bandnews, destacou: “Mercado financeiro e empresários defendem continuidade de Michel Temer na Presidência”. Em seguida, uma longa reportagem ouviu empresários de diversos setores que afirmaram ser positiva a permanência de Temer para a continuidade das reformas e para a economia. Encerrada a votação, o destaque do Estadão foi o pronunciamento do Presidente: “Após barrar denúncia, Temer diz que é urgente pôr o país nos trilhos”.

Mais recentemente, o Estadão se mostrou panfletário na defesa do governo Temer. No dia 4 de agosto, em editorial intitulado “Vitória da responsabilidade”, o jornal declarou que “afastar o presidente da República do exercício do cargo seria uma evidente irresponsabilidade, e a Câmara dos Deputados, no cumprimento de suas atribuições constitucionais, rejeitou com acerto tal imprudência”.

Dialogando indiretamente com a posição da Globo, para o Estado de S. Paulo, no mesmo editorial acima, defendia que “ao contrário do que alguns afirmam, o presidente Michel Temer sai fortalecido do episódio, mostrando, uma vez mais, sua capacidade de articulação com o Congresso”.

Com ou sem Temer, imprensa defende perda de direitos

“Cabe agora a Michel Temer, com a máxima urgência, reorganizar o seu governo, estabelecendo as condições para o prosseguimento das reformas, em especial, a reforma da Previdência. Há muito a fazer e nenhum tempo a perder”. Era o que dizia o Estado de S. Paulo, em mais um trecho do editorial de 4 de agosto. O tom de que as reformas são positivas e necessárias ao crescimento econômico tem sido geral na imprensa – inclusive nos veículos do Grupo Globo.

Com ou sem Temer, imprensa defende perda de direitosNa edição de 12 de agosto, o Jornal Nacional anunciou que “um estudo concluiu que a reforma trabalhista, aprovada em 2017, vai criar 1,5 milhão de empregos e estimular o crescimento do país nos próximos quatro anos”. Depois de mostrar uma vendedora de loja de roupas satisfeita por poder dividirsuas férias em três vezes, a matéria revela que o “estudo” (como de praxe no jornalismo, utilizado de maneira pouco ou nada crítica, como se pesquisas fossem isentas) havia sido feito pelo banco Itaú.

A cobertura do Jornal Nacional sobre a votação da reforma trabalhista no Senado, no dia 11 de julho, evidenciava o posicionamento pró-reforma. A abertura do programa dedicou quase 6 minutos abordando a ocupação da mesa diretora pelas senadoras contrárias à votação e apenas 37 segundos para explicar o conteúdo do projeto aprovado.

O tom do JN foi de que o protesto das senadoras foi algo violento e, durante toda a matéria, apenas opiniões dos senadores pró-reforma foram exibidas. “A atitude das senadoras foi condenada por colegas de diversos partidos”, anunciou a repórter, transmitindo a ideia de que foi ampla a suprapartidária a crítica às parlamentares. A matéria trouxe falas de Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), Cristóvam Buarque (PPS-DF) e Eunício Oliveira (presidente da Casa), que tacharam a atitude das senadoras de “ato de força”, “desrespeito total” e “gesto antidemocrático”, de acordo com os três primeiros. Segundo Eunício Oliveira, “nem a ditadura militar ousou ocupar mesa do Congresso Nacional”.

Já os poucos segundos dedicados a explicar o texto votado no Senado, trouxeram uma perspectiva favorável à sua aprovação. “A reforma trabalhista dá força de lei a acordos entre trabalhadores e patrões, respeitando os direitos assegurados pela Constituição, como FGTS e 13º; permite que férias possam ser divididas em até três períodos; acaba com a obrigatoriedade da contribuição sindical, equivalente a um dia de salário do trabalhador; permite que intervalo de almoço possa ser reduzido para 30 minutos, diminuindo a jornada mediante negociação coletiva; e inclui a jornada intermitente, o trabalho em dias alternados ou por algumas horas, como o de trabalhadores de bares ou eventos”. Nenhuma palavra de crítica às reformas, nenhuma palavra das senadoras “antidemocráticas”, nenhuma informação sobre o fechamento de todas as entradas do plenário pelo senador Eunício.

Dois dias depois, em 13 de julho, William Waack associou a reforma trabalhista a uma atualização de uma lei que seria retrógrada: “Até agora essa relação [entre empregados e empregadores] foi submetida a uma legislação com mais de 70 anos de idade”.

O Jornal da Globo seguiu com matéria da repórter Renata Ribeiro, que explicou as mudanças. Segundo ela, a reforma vai permitir contratos de trabalho mais flexíveis e direitos assegurados – como FGTS, 13º salário, licença-maternidade e férias proporcionais ao tempo de trabalho – serão mantidos. A repórter disse ainda que acordos entre trabalhadores e empresas irão prevalecer e anunciou o fim da contribuição sindical. Afirmando que as mudanças foram bem recebidas, Renata ouviu dois especialistas: ambos favoráveis à reforma. Para eles, assim como havia sugerido Waack, nossa lei trabalhista até então em vigor seria atrasada e tornaria o país pouco competitivo.

A defesa das reformas estava presente também meses antes, quando havia uma unanimidade pró-Temer na imprensa hegemônica. Em artigo do Intervozes no blog da CartaCapital, foram analisados o Jornal Nacional, o Jornal da Globo, o Jornal da Band, o Jornal da Record e o Repórter Brasil, da TV Brasil do dia 13 de março. Neste dia, mais de 125 cidades registraram manifestações e paralisações contra as reformas trabalhista e da previdência.

Único canal da comunicação pública analisado, o Repórter Brasil aparentemente havia sofrido censura: o vídeo com gritos de “Fora, Temer!” não foi ao ar no site do jornal. Nos demais telejornais noturnos, “o tom das matérias foi muito mais o impacto das paralisações – sobretudo dos trabalhadores das redes de transporte – do que os atos em si. Flashes rápidos dos protestos, nenhum número sobre o total de participantes e, principalmente, nenhuma entrevista com os organizadores das manifestações foram a maneira escolhida pela mídia de censurar o motivo que levou milhares de brasileiros e brasileiras às ruas”.

Temer ainda vivia sua lua-de-mel com a imprensa, quando estourou a primeira greve geral no país, no dia 28 de abril desse ano. O tom da cobertura foi o mesmo da nota do presidente ilegítimo e da entrevista com o ministro da Justiça Osmar Serraglio: a ordem era não falar em “greve geral”, mas sim em “dia de protestos” e, no máximo, “paralisações”.

Informações de bastidores dão conta de que essa foi também a orientação das chefias de redação em diferentes veículos. A confusão proposital entre “greve geral” e “dia de protestos”, feita por quase toda a imprensa, foi crucial para o tom negativo da cobertura. Ora, o sucesso de uma greve é, visualmente, quase o contrário do de um dia de protestos: ruas vazias, ao invés de cheias. Embora também houvesse manifestações marcadas para aquele dia, não mencionar a greve prejudica gravemente o entendimento daquele 28 de abril.

“Segundo a BandNews, o que houve no Rio de Janeiro ‘não foi uma greve. […] Foi um dia de muitos problemas, de muito caos para as pessoas que seguiam para o trabalho, que queriam tocar a vida’. No Jornal Hoje, da Globo, foram ao ar 40 minutos de matérias sobre a greve sem que a palavra fosse usada. Falou-se em ‘paralisação de 24 horas chamada pelos sindicatos’ [como se sindicatos fossem entes apartados da população]. Na Record, nada da expressão ‘greve geral’. O tom da cobertura deu ênfase para as depredações e nenhuma explicação das motivações do movimento”, conforme análise publicada no dia seguinte à greve.

Como de praxe, a cobertura silenciou manifestantes, mostrou especialmente atos “violentos” cometidos por eles (mas não contra eles) e focou nos transtornos no trânsito e nos serviços, como se pode perceber a partir de algumas manchetes do dia 29: “Protesto de centrais afeta transportes e tem violência” (O Globo), “Greve afeta transporte e comércio e termina com atos de vandalismo” (O Estado de S. Paulo), “Greve afeta transporte e termina em vandalismo” (Correio Braziliense), “Greve atinge transportes e escolas em dia de confronto” (Folha de S. Paulo).

(Na tevê, uma importante exceção foi o Jornal Nacional. Ele foi o único telejornal a falar acerca do conteúdo das reformas trabalhista e da previdência e ouviu diferentes fontes sobre o tema (incluindo Paulinho da Força Sindical, o presidente da CUT Wagner Freitas e o ministro da Justiça Osmar Serraglio). Na GloboNews, uma mudança na linguagem: ela colocou repórteres no chão, sofrendo com o gás lacrimogêneo como os manifestantes. Uma grande diferença na cobertura anteriormente feita com o distanciamento proporcionado pelo “globocop”.)

Nada de novo sob o sol. Como já havia sido analisado, os motivos dos protestos do dia 24 de maio também não foram publicados. Ao invés de ouvir as razões que levaram mais de 100 mil pessoas às ruas naquele dia, a imprensa focou nas chamas e na depredação de parte da Esplanada dos Ministérios. Era a desculpa perfeita para criminalizar todo o movimento social, as cidadãs e cidadãos contrários à perda de direitos levada a cabo pelo governo Temer. O ataque à Esplanada funcionou também para que a mídia justificasse a ação violenta das Forças Armadas.  

Embora uma ressalva no início deste artigo lembre que a luta de classes não é a única chave interpretativa para o entendimento da imprensa, isso não significa que ela não é uma fundamental ótica de análise. Em casos de acirramento dessa luta, como são os de reformas que interferem diretamente nas relações de trabalho, o caráter burguês da imprensa fica ainda mais evidente. E, como dizia Gramsci, em 1916, “para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores”.

Lula e PT sob ataque

Na já famosa “polarização política” na qual o Brasil se viu imerso especialmente desde a vitória apertada de Dilma Rousseff nas eleições de 2014, o posicionamento antipetista da imprensa hegemônica é evidente. Embora os governos Lula e Dilma não tenham feito frente às demandas dos movimentos sociais por uma comunicação mais democrática (entre outras pautas históricas da esquerda), a relação entre governos petistas e mídia não se constituiu numa oposição acirrada – mas também esteve longe de ser um mar de rosas.

Identificados como “esquerda” ou “comunistas” em tempos de debates acalorados nas redes sociais, os petistas foram aceitos pela grande imprensa. Mas apenas aceitos, sem grande entusiasmo. Desde que sua força política mostrou-se mais frágil, não houve titubeio em atuar ativamente pela derrubada da presidenta reeleita em 2014. Mesmo depois da queda, sobram casos que evidenciam a tomada de posição antiPT e, especialmente, antiLula. Comentaremos alguns que consideramos emblemáticos.

Lula e PT sob ataqueConforme publicado na página do Intervozes no Facebook, no dia 10 de maio, a mídia brasileira dedicou-se o dia todo a um único fato: o depoimento do ex-presidente Lula ao juiz Sérgio Moro, em mais uma fase crucial da operação Lava Jato. Ao longo do dia, enquanto o país buscava informações sobre os rumos do depoimento, a GloboNews enfatizou repetidamente a narrativa de “confronto”, “duelo”, no estilo FlaxFlu: “O embate está marcado para essa tarde”; “eles ficarão frente a frente pela primeira vez hoje”, “luta de novela” foram algumas das chamadas feitas durante a programação do canal fechado do Grupo Globo. O clima já havia sido antecipado pelas revistas IstoÉ e Veja.

 

Ao longo do dia, concomitante à narrativa pré-luta, os telejornais da GloboNews foram aos poucos respondendo a essa pergunta. Um dos comentaristas analisou num matutino “O PT quer transformar esse depoimento em fato político. Pelo Lula, ele daria esse depoimento num palanque”. Até às 14h, horário de início do depoimento, nenhuma imagem mostrava os manifestantes que, solidários a Lula, se deslocaram em caravanas até Curitiba. A tentativa de esconder e justificar o injustificável foi escancarada quando a cobertura mostrou repetidas vezes o grande aparato policial montado para o depoimento, na frente na sede da Justiça Federal, sem, sobretudo, justificar o porquê desse esquema de segurança.

Quando já não dava mais para evitar, a poucos minutos de ter início o “duelo”, uma entrada ao vivo de 2 minutos (num total de 1 hora de telejornal) mostrou um pequeno grupo de pessoas pró Lava Jato num bate-boca com um “militante petista”. A narrativa era: o partidário de Lula tinha ido ali provocar e procurar encrenca.

À noite, a mesma GloboNews respondeu de forma definitiva ao questionamento que lançamos acima. No Em Pauta, veiculado às 20h, montou-se um verdadeiro tribunal para julgar o depoimento de Lula. Quatro comentaristas revezaram-se numa espécie de “júri popular midiático” que ocorreu a despeito do trâmite e das prerrogativas exclusivas do Judiciário. Trechos do depoimento de Lula foram transmitidos, comentados e, mais que isso, confrontados.

O Jornal Nacional e o Jornal da Globo tiveram tons bem mais contidos que a TV por assinatura. Mostraram longos trechos dos depoimentos sem comentários “julgadores” como os da Gnews. Na abertura do Jornal Nacional, a âncora justificou o fato de aquela edição não conseguir dar um panorama geral do que tinha sido o depoimento de Lula pelo pouco tempo que tiveram para a montagem do jornal: “Tivemos só 40 minutos para editar todo o depoimento”, disse a certa altura enquanto se comprometia com uma cobertura mais apurada ao longo da programação da emissora no dia seguinte. A essa chamada, seguiu-se uma que enfocava a queda da inflação, a “taxa alcança o patamar mais baixo em dez anos”, pauta favorável ao governo Temer.

A edição dos dois jornais noturnos da Globo se ateve à divulgação de alguns trechos do depoimento, sobretudo aqueles que tematizavam o triplex do Guarujá e seguiram a linha de invisibilizar ou diminuir a manifestação pró-Lula. O JN mostrou imagem do momento da dispersão dos manifestantes.

Outro caso emblemático aconteceu meses depois. Quem passava pelas bancas de revista no dia 5 de setembro e via o jornal O Globo exposto à venda teve um mau entendimento dos fatos envolvendo corrupção no país. A manchete de capa trazia em letras garrafais: “Janot denuncia Lula, Dilma e mais seis por organização criminosa”. Abaixo dela, uma fotografia das malas contendo os 51 milhões de reais descobertos pela Polícia Federal num apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB). O texto referente a essa foto, porém, estava à direita dela, em tamanho menor, com bem menos destaque. A relação espontânea feita pelo olhar ligava a manchete com denúncias contra o PT à fotografia das malas de dinheiro de Geddel. Certamente, os editores e diagramadores do jornal O Globo sabem disso.

Lula e PT sob ataque 2O foco do noticiário em Lula também serviu para tirar a atenção das reformas: em 12 de julho, dia posterior à aprovação da reforma trabalhista no Senado, o Jornal Nacional dedicou 29 minutos e 40 segundos de sua edição a matérias sobre a condenação do ex-presidente pelo juiz Sérgio Moro. Desse total, 15 minutos e 26 segundos foi a duração da matéria que trazia apenas os argumentos utilizados por Moro. Na abertura, William Bonner decretou: “É a primeira vez na história que um ex-presidente da República é condenado por um crime comum no Brasil”. Outro vídeo, de 1 minuto e 57 segundos, citou as sentenças de cada um dos condenados: Lula, Léo Pinheiro (ex-presidente da OAS), Agenor Franklin Magalhães Medeiros (executivo da OAS). Em 3 minutos e 6 segundos, foi explicado o trâmite da condenação: e só então o telespectador ficou sabendo que ela foi feita em primeira instância e ainda cabia apelação por parte da defesa.

Além dessas, foram ao ar, naquela noite, mais três matérias sobre a condenação de Lula. Uma delas, com 3 minutos e 17 segundos, tratou da repercussão no Congresso de maneira equilibrada (apenas 7 segundos a mais para os defensores do ex-presidente). Outra, com 4 minutos e meio, ouviu exclusivamente apoiadores de Lula: seu advogado de defesa, Cristiano Zanin Martins; o vice-presidente do PT, Márcio Macedo; o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Wagner Santana. Também foi citada uma nota do Partido dos Trabalhadores. Em 1 minuto e 24 segundos, os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos informaram que Lula ainda é réu em mais quatro ações penais.

A disparidade de espaço dado para os argumentos condenatórios e os de defesa do ex-presidente evidenciam: no tribunal midiático, a sentença já foi dada.

De olho em 2018

A artilharia contra Lula se mantém pesada e assim deve prosseguir, com o objetivo de inviabilizar sua candidatura nas eleições do ano que vem. Parte da estratégia é fortalecer outros nomes de presidenciáveis. É isso que foi feito no dia 23 de novembro, pelo escancaradamente pró-Temer Estadão. “Aprovação a Huck dispara e atinge 60%, mostra pesquisa” foi a manchete de capa da edição daquela quinta-feira.

De olho em 2018Com o título “Aprovação a Huck cresce 17 pontos, afirma Ipsos”, e o subtítulo “Conforme o Barômetro Político Estadão-Ipsos, apresentador é a personalidade com a melhor avaliação entre os 23 nomes relacionados pelo instituto aos entrevistados”, o jornal deu a entender algo diferente do que está escrito na matéria assinada por Daniel Bramatti.

Apenas no terceiro parágrafo, a matéria explica os dados: “A pesquisa Ipsos não é de intenção de voto. O que os pesquisadores dizem aos entrevistados é o seguinte: ‘Agora vou ler o nome de alguns políticos e gostaria de saber se o (a) senhor (a) aprova ou desaprova a maneira como eles vêm atuando no País’”. No parágrafo seguinte, uma fala de Danilo Cersosimo, diretor do Ipsos, joga água fria no entusiasmo pró-Huck que inicia o texto: “Se a eleição fosse hoje, ele teria um desempenho razoável, mas não esse cacife todo”.

Mas, antes de chegar até esse ponto do texto, o leitor desavisado já construiu uma imagem vitoriosa da candidatura de Huck. E, provavelmente, esqueceu-se de que o próprio Estadão havia noticiado, no dia 19 de setembro, que “Lula lidera intenções de voto em todos os cenários, diz pesquisa da CNT”.

No dia 24 de novembro, o blog Direto da Fonte, do Estadão, afirmou que “Huck pode anunciar hoje estar fora da eleição presidencial”. No dia 27, o próprio Huck publicou artigo na Folha de S. Paulo negando que será candidato. O jornalismo declaratório, sem base em informações seguras, aposta num futuro “talvez” e parece demonstrar que o jogo político está mesmo entrelaçado à imprensa. E que, ao contrário do que a mídia conservadora tem buscado convencer o público, as fake news estão longe de ser um problema exclusivo da internet e das redes sociais.  

Também no dia 24, a Folha de S. Paulo publicou matéria sobre o perigo representado pela possível eleição de Lula: “A eventual vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderia derrubar a Bolsa dos atuais 74 mil pontos para abaixo de 55 mil pontos e deixar o dólar acima de R$ 4,10, indica pesquisa realizada pela XP Investimentos. O levantamento, feito entre os últimos dias 21 e 23, ouviu 211 investidores institucionais, como gestores de recursos, economistas e consultorias”.

O medo do desastre econômico dá o tom da construção da ideia de que a candidatura de Lula representa uma ameaça para o país. Como se investidores representassem os principais interesses da maioria da população brasileira.

#GloboLixo: ataque conservador e questões estruturais

O Brasil não é mesmo para iniciantes. Depois de colocar no ar, no dia 8 de outubro, uma matéria do Fantástico sobre brincadeiras e brinquedos sem distinção de gênero, a hashtag #GloboLixo chegou aos trending topics do Twitter.  

Como já havia sido analisado por Pedro Ekman, a Globo fez mudanças na sua programação que deram a ela ares mais progressistas, especialmente no entretenimento: em programas de humor (como o novo Zorra Total), de auditório (o Amor e Sexo pautou o feminismo em janeiro desse ano) e na dramaturgia (como a já citada série Filhos da Pátria, com suas menções a questões políticas atuais, e a novela Força do Querer, com dois personagens transgêneros, sendo um também interpretado por um homem trans).

Porém, acreditamos que essa seja tanto uma estratégia para a emissora se manter com sua posição hegemônica quanto fruto de brechas e tensões entre as forças conservadoras e progressistas que atuam por dentro da empresa, que obviamente não é monolítica. No primeiro caso, vale lembrar que a Globo, diferente das demais emissoras de televisão, sempre procurou se posicionar como uma vanguarda cultural.

Faz isso, porém, sem abrir mão das pautas político-econômicas neoliberais. Encara a fúria reacionária contrária à – muitas aspas nessa hora – “ideologia de gênero”, mas segue defendendo a perda de direitos trabalhistas e as privatizações, por exemplo. O que coloca inclusive limites à sua postura “feminista” (mais aspas), por não fazer o recorte de gênero ao pautar a reforma trabalhista sem mencionar o quanto ela prejudicará especialmente as mulheres.

Progressista no entretenimento, conservadora no jornalismo, a platinada mantém sua liderança, mas segue de olho nas necessidades de inovação num mercado televisivo cada vez menos atraente para a juventude. Além disso, é preciso lembrar que problemas estruturais como o racismo e o machismo seguem fortes não só na Globo, mas em outras emissoras da TV aberta. Recentemente, o apresentador William Waack foi flagrado proferindo uma fala racista, o que é apenas a ponta do iceberg da subrepresentação de negras e negros nas telas. A população LGBT ainda é alvo de invisibilidade e estereótipos, e as mulheres sofrem violência ao vivo em reality shows, que seguem escalando homens agressores.

Estratégias e armadilhas narrativas

No jogo desigual de ideias, em que as grandes empresas privadas de comunicação são as donas da bola, são recorrentes algumas estratégias para divulgar notícias do ângulo político, ideológico e filosófico de interesse dessas empresas.

Pesquisas, números e dados estatísticos são comumente usados sem nenhum quê de desconfiança, como se fossem verdades exatas. Muitas vezes também os responsáveis pelas pesquisas não aparecem com destaque nas matérias, e saber se as conclusões publicadas como fatos foram extraídas de institutos ligados ao capital financeiro ou à própria imprensa faz toda a diferença. Esse foi o caso das matérias sobre a candidatura de Luciano Huck (que, ainda pior, confundiu aprovação da imagem de uma pessoa com intenção de voto) e da que falava dos riscos para a economia caso Lula seja eleito presidente em 2018.

Também na cobertura antiPT se viu a artimanha de “esconder” a informação principal da notícia. No caso, o destaque dado a um aspecto dos acontecimentos, e não a outros, colocava como mais importante algo que seria desdito adiante. (Pela própria matéria, a candidatura de Luciano Huck não tinha tanta força quanto a manchete afirmava). Além da ordem das informações no texto, a organização das imagens (e a relação imagem-texto) foi outra armadilha narrativa usada pela imprensa, como na já clássica capa d’O Globo com as malas de dinheiro de Geddel.  

As opiniões de especialistas também são usadas para legitimar uma “verdade”. Essa foi a estratégia-mor das matérias sobre as reformas: como duvidar do que diz um economista, que estaria apresentando uma ideia embasada na “isenção” e “neutralidade” científicas? Embora haja exceções (o Estúdio I, da GloboNews, é um oásis de pluralidade de ideias em meio ao deserto midiático), os “isentos” especialistas são escolhidos a dedo para não falar nada que destoe da linha editorial do veículo que o procurou.  

Quem é ouvido nas matérias, aliás, segue sendo uma grande tática para mostrar apenas um lado das questões, invisibilizando ou minimizando atores e atrizes sociais fundamentais para um olhar mais abrangente sobre os temas. Chega a ser inacreditável quando se pensa nos preceitos básicos do jornalismo, mas é muito comum – e escapa ao leitor/telespectador que não está atento – a veiculação de notícias sobre manifestações que não ouvem manifestantes, sobre reformas trabalhistas que não ouvem trabalhadores, sobre o protesto de senadoras de oposição que não ouvem as senadoras etc.

Sem contar na seleção de quem fala e em que momento fala. De acordo com a análise de enquadramento, as primeiras fontes ouvidas dão o tom da matéria; as demais entram na sequência na condição de dar uma resposta a elas, uma posição defensiva que aparece na narrativa, mas não necessariamente condiz com as disputas políticas extratexto.

Por fim, a grande reclamação dos movimentos sociais é de fato uma estratégia eficaz: a simples ausência de certas pautas, fontes e pontos de vista na grande imprensa. Silenciar na mídia é trabalhar para que algo não exista na esfera pública. É diminuir drasticamente as condições de convencimento de boa parte da população da existência de certos problemas e das diferentes maneiras de enfrentá-los. Entre brechas e disputas, a mídia hegemônica segue sendo muito eficiente em excluir do debate público a pluralidade e diversidade que poderiam colaborar de fato com mudanças estruturais na sociedade.

Mônica Mourão é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes

* A análise das coberturas só foi possível graças aos textos produzidos por diferentes militantes do Intervozes ao longo do ano, todos devidamente creditados nos links. A referência a um post na nossa página de Facebook é de um texto de autoria de Iara Moura.

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