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Liberdade de Expressão no Brasil: ainda mais ameaças em 2017

Texto: Ramênia Vieira

O direito à comunicação nunca foi plenamente constituído no Brasil enquanto direito humano básico de todo cidadão. Sendo assim, a liberdade de expressão, um dos pilares desse direito, sempre esteve em risco no nosso país. Em períodos como o atual, de violações à democracia acompanhadas de uma agenda política retrógrada, a liberdade de expressão fica ainda mais ameaçada.

As últimas movimentações pós-golpe dos ocupantes dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) reforçam que a livre manifestação de pensamento não será “tolerada” quando não estiver consonante com a manutenção do status quo vigente. Entidades e militantes dos direitos humanos têm tido que reforçar e reafirmar a cada dia os princípios da liberdade de expressão e de imprensa, assim como o direito à comunicação, como garantias fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente democrática.

E esse cerceamento tem acontecido em diversas frentes. Na manutenção do oligopólio midiático e no desmonte da comunicação pública. Nas decisões judiciais censurando manifestações artísticas e na violenta repressão policial durante protestos. E também nos ataques aos direitos na internet e à liberdade de imprensa. Em todos esses campos, o cenário brasileiro atual revela o objetivo de calar as vozes dissonantes.

Calar Jamais!

Na tentativa de reagir aos ataques e confrontar essa onda de violação e censura que vem ocorrendo em nosso país, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) lançou no ano passado a campanha Calar Jamais!, que teve divulgado em outubro de 2017 seu relatório de um ano de implementação. A publicação traz o balanço das violações à liberdade de expressão registradas na plataforma do Calar Jamais! ao longo desse período.

LogoCalarjamais-1O relatório Calar Jamais! – Um ano de denúncias contra violações à liberdade de expressão” foi organizado em sete categorias: 1) violações contra jornalistas, comunicadores sociais e meios de comunicação; 2) censura a manifestações artísticas; 3) cerceamento a servidores públicos; 4) repressão a protestos, manifestações, movimentos sociais e organizações políticas; 5) repressão e censura nas escolas; 6) censura nas redes sociais; e 7) desmonte da comunicação pública.

Para o FNDC, o conjunto das violações apresentado comprova “que práticas de cerceamento à liberdade de expressão que já ocorriam no Brasil – por exemplo, em episódios constantes de violência a comunicadores e repressão às rádios comunitárias – encontraram um ambiente propício para se multiplicar após a chegada de Michel Temer ao poder, por meio de um golpe parlamentar-jurídico-midiático, que resultou na multiplicação de protestos contra as medidas adotadas pelo governo federal e pelo Congresso Nacional”. Ao todo, o relatório traz 72 denúncias de cerceamento à liberdade de expressão de comunicadores e jornalistas no exercício da sua profissão, de repressão às manifestações e protestos realizados contra medidas do governo Temer (PMDB) e até de censura a servidores públicos, ocorridas no último ano.

Uma das denúncias mostra o caso de um grupo de teatro em Santos cujos componentes foram presos enquanto faziam uma apresentação em praça pública. Outras narram casos de professores que têm sofrido censura em sala de aula por motivações políticas. Ou ainda a repressão física que sofreram os manifestantes que protestavam contra a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que congela os gastos públicos por 20 anos, aprovada em dezembro passado pelo Congresso Nacional.

Em entrevista à rede TVT, Renata Mielli, coordenadora nacional do FNDC, denunciou o papel da imprensa tradicional, que silencia sobre esses abusos e compactua com a estratégia de criminalização dos movimentos sociais. “Esse processo de criminalizar o movimento social não é novo, mas agora eles precisam elevar o tom para dar legitimidade ao processo de golpe que a gente viveu. Assim, seguem retirando os nossos direitos”.

O relatório ainda destaca que a mídia hegemônica, que participou da articulação do golpe parlamentar-jurídico-midiático, colaborou na reprodução sistemática de discursos de ódio que estimulam as intolerâncias religiosa, política, social e cultural, sendo corresponsável pelo avanço da onda conservadora que atinge o país. Esse conservadorismo em voga tem reforçado episódios de censura e de privação da liberdade de expressão justamente em áreas fundamentais para a formação do cidadão, como a educação e a cultura.

Mateus Ferreira da SilvaEsse período de autoritarismo pode ser percebido no relatório Calar Jamais! principalmente no registro de dois casos: os crimes praticados contra o jovem Edvaldo Alves, morto em Pernambuco por um policial que lhe acertou um tiro de bala de borracha, durante um protesto justamente contra a violência; e no caso do estudante universitário Mateus Ferreira da Silva, que teve traumatismo craniano após ser atingido com um golpe na cabeça desferido por um oficial da Polícia Militar durante manifestação em Goiânia. Assim como nos casos de vários professores e estudantes que se tornaram alvo de perseguição política e ideológica na cruzada intitulada “Escola Sem Partido”.

O ano foi bastante tumultuado e opressor para todos os segmentos do setor progressista no país. Como pôde ser constatado na invasão policial à Escola Florestan Fernandes, do Movimento dos Sem Terra (MST), mesmo sem a existência de um mandado de busca e apreensão para a operação. Os policiais chegaram a disparar contra as pessoas na recepção da unidade e prenderam dois militantes. Outra atitude opressora veio diretamente do governo federal, quando Michel Temer suspendeu os direitos constitucionais por meio de decreto presidencial em 24 de maio de 2017, durante ocupação de Brasília por movimentos populares que se manifestavam contra a perda de direitos. O ocupante da Presidência declarou Estado de Defesa e autorizou a ação das Forças Armadas para garantir a “ordem” no país, recuando da decisão dias depois.

Liberdade de expressão e liberdade de imprensa

A vertente mais visível da liberdade de expressão é a liberdade de imprensa, mas estabelecer as diferenças e os limites entre ambas as garantias não é tarefa isenta de polêmicas ou controvérsias. O professor Venício A. de Lima tem uma proposta conceitual que colabora para diminuir as confusões geradas: “A primeira referida à liberdade individual e ao direito humano fundamental da palavra, da expressão. A segunda, à liberdade da ‘sociedade’ e/ou de empresas comerciais – a imprensa ou a mídia – de publicarem o conteúdo que consideram ‘informação jornalística’ e entretenimento”.

A liberdade de expressão diz respeito, portanto, a todos os indivíduos da sociedade, enquanto a liberdade de imprensa se refere especificamente ao trabalho dos jornalistas e dos meios de comunicação. Ambas são essenciais para o exercício da cidadania e para a consolidação da democracia.

Todos os anos, jornalistas são mortos em diferentes regiões do mundo, no exercício de suas funções. Pesquisa lançada em maio de 2017 pela organização não-governamental Artigo 19 relata que, em 2016, foram registradas 31 graves violações contra comunicadores em todas as regiões do país. Entre elas, quatro assassinatos, cinco tentativas de assassinatos e 22 ameaças de morte. A pesquisa sobre o tipo do veículo de comunicação para o qual a vítima atuava revela que, em 52% dos casos, o comunicador era vinculado a meios considerados alternativos, como blogs e pequenos jornais impressos, enquanto o número de graves violações registradas em veículos comerciais foi de 42%.

No que diz respeito aos autores das violações, a pesquisa mantém a tendência verificada nos anos anteriores, com a ampla maioria das violações se concentrando em agentes do Estado, como políticos e policiais. Esse foi o perfil identificado em 77% dos casos verificados em 2016. Mesmo assim, em 39% dos casos de graves violações contra comunicadores, não houve a abertura de investigação por parte da polícia. Outros tipos de violência praticados contra os comunicadores, como a censura judicial e perseguição política, também foram identificados. O número de homicídios caiu de oito para dois entre 2015 e 2016, mas o total de agressões subiu para 205 casos, colocando o Brasil como o quinto país no mundo com mais ataques a jornalistas.

A presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, denuncia que, além da falta de liberdade de expressão para os jornalistas dentro das empresas em que trabalham, os profissionais estão tendo que lidar também com a violência policial durante a realização dos seus serviços. “Os profissionais estão apanhando nas ruas e isso é gravíssimo, porque nós não podemos falar de democratização da comunicação, não podemos falar de liberdade de imprensa e de liberdade de expressão, tratando o profissional com violência. Além disso, temos a violência difusa, como nos casos de censura interna nos veículos de comunicação, que são mais difíceis para denunciar justamente porque há um silêncio tácito da categoria em relação aos casos de censura interna”, ponderou durante audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada em julho deste ano.

Na mesma audiência, foi abordado também o tema da perseguição aos profissionais. O vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Alagoas, Izaías Barbosa de Oliveira relatou a perseguição a um colega de profissão que sequer pode citar o nome de um deputado estadual. Ou seja, ele está impedido de falar o nome do deputado alagoano em qualquer circunstância, não apenas em relação à matéria que produziu. Essa decisão judicial acaba afetando o trabalho do profissional, que cobre exclusivamente a área de política. O caso já foi transitado em julgado no início do ano, ou seja, o jornalista tornou-se um criminoso “perante os olhos da lei por ter feito uma reportagem falando sobre a lentidão do Ministério Público Federal na apuração de um determinado caso”, conforme citado pelo vice-presidente. Casos como esse vêm crescendo em todo o país, principalmente nos estados do eixo Norte-Nordeste, o que evidencia a existência de um coronelismo social na região.

Eduardo GuimarãesAs tentativas sistemáticas de cerceamento ao trabalho dos jornalistas têm provocado temores entre os profissionais. Os jornalistas que atuam na política e que falam sobre as oligarquias ainda existentes no Brasil estão sendo processados rotineiramente. O que, além do desgaste psicológico dos profissionais, causa dificuldades financeiras por conta dos custos dos processos judiciais. Um caso emblemático foi o da condução coercitiva, a pedido do juiz Sérgio Moro, do blogueiro Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, em março deste ano. Caso claro de privação da liberdade de expressão e tentativa de intimidação, já que o blogueiro havia feito uma representação contra o juiz, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2015. Para Guimarães, essa ação da polícia não é uma tentativa apenas de silenciá-lo, mas calar todos que divergem das posições tomadas pela Justiça.

Outro caso que chamou a atenção foi a condenação da atriz e apresentadora da TV Globo Monica Iozzi, que foi obrigada a pagar R$ 30 mil de indenização para o ministro do STF Gilmar Mendes. O processo foi aberto pelo magistrado após a atriz postar nas suas redes sociais uma crítica contra a decisão do ministro, que concedeu habeas corpus a Roger Abdelmassih, condenado por 58 estupros.

Cultura e liberdade de expressão

QueermuseuUma polêmica iniciada no começo de setembro de 2017 com a exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira”, exibida em Porto Alegre, trouxe para o debate público um assunto muito delicado: alguns setores conservadores querem implementar um sistema de classificação indicativa para museus e exposições. A mostra reunia obras de 85 artistas, incluindo os mundialmente conhecidos Alfredo Volpi e Cândido Portinari, e acabou encerrada um mês antes da previsão pelo Santander Cultural após críticas de grupos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), que acusavam a exposição de fazer apologia à pedofilia e à zoofilia. Após essa reação, vários grupos começaram a aparecer em diversos municípios brasileiros questionando outras exposições realizadas.

Desta forma, setores começaram a cobrar dos gestores públicos ações imediatas em relação às exposições, sem debate algum com os demais segmentos da sociedade. Um grande número de projetos de lei apresentados em diversos estados – até o momento são 13 – são um exemplo desta movimentação para limitar e até mesmo censurar a liberdade de expressão em eventos artísticos. O Espírito Santo, por exemplo, aprovou em outubro de 2017 um projeto que proíbe a nudez e a representação de ato sexual em exposições de museus e equipamentos públicos do estado. A proposta foi votada em regime de urgência e ganhou o apoio de quase todos os deputados da casa.

De acordo com o autor, o deputado estadual Euclério Sampaio (PDT), o projeto quer “promover o bem-estar das famílias”. A proibição abrangerá expressões artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes e vídeos que exponham o ato sexual e a nudez humana, exceto quando a exposição tiver fins “estritamente pedagógicos”. O projeto ainda vai à sanção do governador do estado. Caso sancionada a lei, o descumprimento acarretará em multa. Projetos semelhantes já tramitam no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Câmara dos Deputados, em Brasília.

Muitos países já passaram por situações semelhantes, mas nenhum adotou políticas públicas nas quais o Estado se sobreponha a uma decisão dos pais, tomada a partir das orientações e informações fornecidas pelas instituições e artistas. É o que afirma Isabella Henriques, diretora de advocacy do Instituto Alana. Para ela, os responsáveis pelos espaços de artes devem prestar informações suficientes para a proteção da criança, adotando medidas complementares em auxílio às famílias. Mas são estas que devem tomar suas próprias decisões.

Procurado por alguns representantes de igrejas para tratar do assunto, o ministro da Cultura do Brasil, Sérgio Sá Leitão, defendeu que exposições de arte tivessem uma classificação indicativa, a exemplo do que já acontece nos cinemas e em programas de televisão. Vários especialistas em direitos das crianças e organizações de defesa da liberdade de expressão, entretanto, afirmam que a política de classificação indicativa em vigor no Brasil para o cinema, a televisão e os jogos eletrônicos não é o melhor instrumento para tratar dessa questão. De acordo com a Portaria nº 368/2014, do Ministério da Justiça, exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público, tais como as circenses, teatrais e shows musicais, não são classificados. Idem para os museus.

Na avaliação de Veet Vivarta, consultor de mídia e direitos humanos que participou do processo de elaboração e implementação da política de classificação indicativa no Brasil, reconhecida por organismos internacionais, os critérios usados para definir se um conteúdo audiovisual é recomendado ou não para determinada faixa etária não se aplicariam de forma adequada às artes plásticas. Tampouco caberia ao Estado fiscalizar e definir a classificação de museus. Caso os princípios da classificação indicativa fossem aplicados diretamente a um quadro ou escultura de Michelangelo, por exemplo, poderia ser classificada apenas para maiores de 16 anos.Michelangelo

Especialistas e defensores dos direitos humanos são unânimes ao defender que, no que se refere aos museus, galerias e instituições culturais, é preciso um amplo debate entre os agentes culturais e a sociedade para que sejam criadas regras mais claras e de fato aplicáveis às artes plásticas, sem que se comprometa a livre expressão cultural nem a liberdade de expressão. Em nota publicada, o Intervozes e demais entidades se posicionaram sobre o debate em torno da política de Classificação Indicativa, discutindo as especificidades dos centros culturais e defendendo que qualquer decisão normativa conte com o debate envolvendo a participação dos diversos segmentos da sociedade.

Direitos humanos, liberdade de expressão e internet

Quando a internet surgiu no mundo, estudiosos e academia viram nesta um possível espaço para viabilizar a democratização da comunicação. Essas projeções se demonstraram equivocadas, e a realidade é que a rede mundial de computadores, apesar de seu potencial para difusão da diversidade e pluralidade de ideias, tem se tornado um “curral”, com bolhas que limitam o acesso à comunicação variada. Além disso, a presença e a lógica dos grandes monopólios vêm crescendo na rede. No Brasil, precisamos enfrentar ao mesmo tempo o desafio de defender o caráter livre, aberto e plural e garantir a proteção aos direitos humanos na rede, e paralelamente correr atrás da dívida histórica que relegou metade da população a uma vida offline: apenas 54% da população do país têm acesso à rede doméstica.

O Brasil havia assumido um papel de vanguarda ao criar em 2014, após quase três anos de tramitação na Câmara dos Deputados, a Lei 12.965/14, conhecida popularmente como o Marco Civil da Internet. O texto rege o uso da rede no país, definindo direitos e deveres de usuários e provedores da web. Os três pilares do Marco Civil são a liberdade de expressão, privacidade e neutralidade de rede e a universalização do acesso e da governança participativa na internet. Porém, esses pilares estão constantemente ameaçados por forças conservadoras e por interesses econômicos.

A liberdade de expressão já tem sido atacada na internet com a prática do bloqueio a sites e aplicativos em decisões judiciais de primeira instância, como vinha acontecendo com o Whatsapp. O aplicativo teve seu bloqueio determinado a primeira vez em 2015 por um juiz do Piauí num processo que nem ao menos justificava o motivo. Em 2016 a mesma decisão foi tomada por um juiz do Rio de Janeiro que alegava que a empresa se recusou a cumprir uma decisão judicial para fornecer informações para uma investigação policial, num evidente desequilíbrio entre os direitos da maioria dos usuários e a necessidade de investigação e punição de uma minoria deles. Esses casos continuam sendo debatidos pelo STF, a quem caberá uma decisão final.

Neste mesmo contexto de restrição de direitos, também o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) passa por uma série de ataques, promovidos pelo governo, visando a enfraquecer a participação da sociedade e fortalecer as ações das empresas de telecomunicações. A advogada Flávia Lefèvre, conselheira do CGI.br, alerta sobre a importância de se valorizar o espaço. “Temos que fortalecer os mecanismos de gestão da internet, para que as teles não desmontem a participação que se tem hoje. Neste momento, o envolvimento de todos para o processo de revisão do processo de governança multiparticipativa no Brasil é fundamental para a preservação de direitos humanos, direito à comunicação, direito à informação e dos direitos de consumidores”.

Outros ataques à liberdade vêm acontecendo, como a tentativa de “quebra” da neutralidade de rede, o que geraria uma série de mudanças quanto à forma como nos comunicamos de forma online. As empresas querem discriminar o conteúdo que a sociedade usa. Na teoria, paga menos quem usa menos, e quem usa mais paga mais. Porém, a coisa não seria bem assim. Pode ser gerada uma estratificação da rede. As empresas delimitam pacotes e o consumidor que se limite àquele escolhido, como se fosse uma TV por assinatura. Essa discriminação do acesso a conteúdo na rede vai limitar ainda mais a liberdade de expressão daqueles que têm menos condições.

A entidade Coding Rights mapeou propostas de lei que tratam da internet. “Alguns parlamentares acabam apresentando projetos que, na verdade, acabam é atacando a liberdade de expressão”, frisa a ativista Kimberly Anastacio. Ela cita dois exemplos de falta de conhecimento sobre a rede e de compromisso com o cidadão: o projeto de lei que criava o cadastro nacional de usuário da internet, que previa a necessidade da pessoa “logar” cada vez que fosse acessar a rede, e uma emenda dentro do debate da reforma política que tratava da retirada imediata de conteúdo caso houvesse denúncia de que o mesmo tinha origem em robôs ou anônimos. “Essas tentativas de acabar com problemas na internet, mas sem conversar com quem realmente lida com as tecnologias e está na base, não funcionam e são um atentado à liberdade de expressão”, frisa Kimberly.

Concentração

Por fim, a alta concentração de propriedade no mercado da comunicação impõe uma ameaça à liberdade de expressão no Brasil, como ficou comprovada na pesquisa do Monitoramento da Propriedade de Mídia no Brasil (MOM-Brasil). Nem a tecnologia digital e o crescimento da internet, nem esforços regulatórios ocasionais limitaram a formação de oligopólios também na rede. A propriedade cruzada é, segundo André Pasti, coordenador da pesquisa, uma “dimensão central da concentração na mídia brasileira”, sendo naturalizada pelo sistema de comunicação de massa nacional. O caso do grupo Globo, com seu conglomerado de emissoras de rádio e tevês aberta e fechada, jornais, revistas e sites, é o mais conhecido, mas o modelo se reproduz também entre outros grupos.

Nos últimos anos, a pesquisa do MOM mapeou a propriedade da mídia em dez países, além do Brasil: Colômbia, Peru, Camboja, Filipinas, Gana, Ucrânia, Turquia, Sérvia, Tunísia e Mongólia. O Brasil foi identificado como a nação que apresenta maiores riscos à pluralidade e à liberdade de expressão. Essa avaliação se baseia em dez indicadores sobre concentração para cada um dos quatro setores de mídia (impressos, online, tevê e rádio), incluindo a propriedade cruzada, a falta de transparência na divulgação de dados sobre propriedade e o eventual controle político sobre veículos de mídia.

Para Bia Barbosa, jornalista e coordenadora do Intervozes, a concentração de propriedade dos meios de comunicação impacta significativamente sobre o exercício da liberdade de expressão no país. “O Brasil é um dos países que têm o maior quadro de concentração da propriedade dos meios de comunicação. Não falamos em quantidade de veículos, mas sim que esses veículos estão associados a grupos econômicos e, em muitos casos, a grupos familiares, o que é uma característica do sistema midiático brasileiro”.

No país, há uma legislação muito acanhada para barrar a concentração de propriedade dos meios. E um número pequeno de proprietários equivale a uma menor diversidade de conteúdo, o que restringe a pluralidade de opiniões e a própria liberdade de expressão. Sendo assim, a concentração de propriedade dos meios coloca em risco os fundamentos da democracia. Sempre houve omissão do Estado brasileiro na regulação dos meios de comunicação, assim como quase nunca houve preocupação em garantir aquilo que a Constituição Federal estabeleceu como um princípio: a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal de comunicação. A liberdade de expressão é exercício de cidadania e qualifica o debate público – e, consequentemente, a própria sociedade. É um direito fundamental, mas, como todo direito, não é um ganho permanente. Assim, em um Estado que enfrenta graves tempos de crise política e de revogação de direitos, o cidadão precisa estar alerta para que também a liberdade de expressão não seja cerceada.

Ramênia Vieira é jornalista, editora do Observatório do Direito à Comunicação  e integrante do Coletivo Intervozes

Imprensa: personagem político ainda mais complexo em 2017

Texto: Mônica Mourão

Dizer que os jornalistas não devem mentir, inventar, distorcer, caluniar, etc, é como afirmar que as pessoas devem ser honestas. O problema, aqui, é ultrapassar o óbvio, obter um consenso sobre o conceito de honestidade. Quanto ao jornalismo, a dificuldade seria conseguir um acordo sobre o que é a verdade, quais são os fatos que merecem ser relatados e sob que ângulo político, ideológico e filosófico (Genro Filho, 2012, p. 147).

A provocação do professor Adelmo Genro Filho, que faleceu pouco depois de ter publicado sua teoria marxista sobre o jornalismo (no livro O Segredo da Pirâmide), coloca-nos na posição de criticar a ideia de manipulação feita pela imprensa. Afinal, defender que algo foi manipulado significa afirmar que seria possível – desde que dotados de técnicas adequadas e justas intenções – que os jornalistas relatassem a verdade. Ora, não é preciso cair nas armadilhas pós-modernas do relativismo para compreender que não existe uma única verdade sobre um mesmo fato.

Uma outra linha de pensamento, ainda sob a ótica da “manipulação”, é que são os interesses de classe em jogo que levam a imprensa a cobrir os acontecimentos de uma maneira, e não de outra. Mas aí também existe uma armadilha. Como lembra Genro Filho, ao se analisar tudo pela ótica da luta de classes, visto que a imprensa é uma invenção burguesa, seu posicionamento seria sempre de defesa dos valores burgueses. Porém, segundo ele mesmo, primeiro, isso não faz da imprensa uma arma exclusiva da burguesia. Em segundo lugar, e o mais importante para nossa análise, ainda que o veículo seja burguês, nem todos os seus funcionários-jornalistas o são; a ideologia não funciona como uma correia de transmissão automática.

É a partir desses pressupostos que buscamos compreender a cobertura midiática sobre o que consideramos os temas mais candentes de 2017: os posicionamentos a favor e contra Temer; a cobertura das manifestações e das reformas trabalhista e previdenciária; a abordagem da imprensa sobre Lula e o PT; e a incorporação de pautas de grupos minoritários de forma positiva. Nosso principal alvo de análise é a TV Globo, pela força política e liderança cultural que exerce há anos no país, mas outras emissoras e veículos impressos também são incluídos no texto.

Que imprensa é essa?

Primeiramente, não custa reparar no sujo falando do mal lavado. Globo no Fifagate, acusada de pagar propina para conseguir a transmissão dos jogos; SBT, alinhado a Temer, passa propaganda das reformas e retransmite sinal da TV governamental NBR; Record, não é de hoje, financia-se com dinheiro da Igreja Universal; e a Band ocupa, com seu Brasil Urgente, o segundo lugar no ranking de violações aos direitos humanos. É desse tipo de empresas privadas (nesse caso, concessionárias de um serviço público) que estamos falando aqui. Em sua maioria, junto com os impressos, são ligadas a grandes grupos empresariais cujos donos também atuam em outros setores, como o educacional, financeiro, imobiliário, agropecuário, de energia, de transportes, de infraestrutura e de saúde, segundo detalhou a pesquisa “Quem controla a mídia no Brasil?”.

Globo #ForaTemer

“Saem os militares, entram os presidentes civis, a relação é exatamente a mesma. Quer dizer, a Globo não tem uma vocação necessariamente militarista ou ditatorial. Mas ela tem uma vocação governista: onde tem governo está a Rede Globo”. A frase é do jornalista Gabriel Priolli e foi dita em 1993, para o documentário da BBC inglesa “Muito além do Cidadão Kane” – verdadeiro “best seller proibido”.

Há mais de 20 anos, justamente no período da transição democrática – lenta, gradual e segura para os setores conservadores e as elites –, seria inimaginável ver a Globo na posição atual: defendendo a saída do presidente ilegítimo sem sucesso. E o que surpreende é não ter conseguido e se mantido, assim, na “oposição” ao governo federal. Mas, contraditoriamente, não à sua agenda político-econômica.

Até maio desse ano, a cobertura anti-Dilma e pró-impeachment desembocava no óbvio, que era a defesa da legitimidade e da política do governo Temer. Naquele mês, as denúncias dos donos da JBS contra Michel Temer desnudaram de forma indisfarçável o que para os opositores do golpe já estava evidente: a reputação do vice decorativo não era ilibada, já que eleestava mergulhado em corrupção.  

Naquele 17 de maio, William Bonner titubeou e chamou Temer de “ex-presidente” na escalada do Jornal Nacional, corrigindo-se em seguida. Renata Vasconcelos encerrou a edição anunciando que o Jornal da Globo traria mais informações sobre a “notícia bombástica” que Lauro Jardim havia publicado em sua coluna no site d’O Globo algumas horas antes do JN. A bomba foi a gravação feita por Joesley Batista em uma conversa com Temer sobre a “mesada” paga pelo silêncio de Eduardo Cunha, que incluía a resposta do presidente: “Tem que manter isso aí”.

O JN exibiu o áudio, confirmou as informações contidas nele com investigadores da Lava Jato e repercutiu a reação dos parlamentares e do próprio presidente no Palácio do Planalto. Naquela noite, o Jornal Nacional terminou mais cedo. Era quarta-feira, dia de futebol. Mas bem que vinha a calhar um tempinho a mais para afinar o posicionamento da emissora, que parecia realmente pega de surpresa com o furo jornalístico do colunista da mesma organização. Mais tarde, no anunciado Jornal da Globo, William Waack decretou: “O assunto no qual o governo está condenado a se concentrar é um só: a própria sobrevivência”.

A partir daí, o jogo virou. No dia seguinte, a cobertura jornalística da Globo assumiu um caráter escancaradamente antigoverno. Os gritos de #ForaTemer que invadiam os links ao vivo em quase toda situação com um aglomerado de pessoas, antes abafados e censurados, viraram alvo de comentários nas matérias, inclusive durante o festival Rock in Rio. Até num seriado sobre o período da independência do Brasil de Portugal, o Filhos de Pátria, de Bruno Mazzeo, apareceu um “Fora, Pedro” (e também uma frase típica dos golpistas: “Primeiro a gente tira o Pedro, depois a gente vê”.

As articulações pela saída de Temer não ficaram “apenas” na cobertura jornalística do maior grupo de comunicação do país. Segundo noticiado pela Folha de S. Paulo, no domingo seguinte à “notícia bombástica” o vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo, Paulo Tonet Camargo, recebeu em sua residência, em Brasília, a visita de Rodrigo Maia, presidente da Câmara e primeiro lugar na linha sucessória caso se efetivasse a queda de Michel Temer.

No dia seguinte, seria lida a relatoria sobre a denúncia contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), cujo relator, Sergio Zveiter (PMDB-RJ), tem o Grupo Globo como cliente de serviços jurídicos há mais de 40 anos. No Congresso, Zveiter, também considerado próximo a Maia, chega a receber a alcunha de “advogado da Globo”.

Segundo o jornalista Daniel Fonsêca, a atividade de bastidores não é novidade na história da Globo: “Entre os anos 1990 e o começo dos 2000, um alto executivo da Globo chegou a ser apelidado em Brasília de ‘Senador Evandro’. Era Evandro Guimarães, que ocupava na época exatamente o mesmo cargo que hoje ocupa Paulo Tonet, dono da casa no Lago Sul”.

Se apenas a editorialização das matérias já são uma mostra de que a imprensa não exerce apenas o papel de mediação, mas sim de ator político ativo no cenário brasileiro, as movimentações extrajornalísticas evidenciam ainda mais esse caráter. Talvez então a frase de Priolli no início desse texto siga fazendo sentido: a Globo tentou (e atuou para) manter-se alinhada ao governo. Frustrada essa expectativa, porém, seguiu com o viés #ForaTemer, mas desde que mantida a agenda neoliberal de perda de direitos e enfraquecimento dos serviços públicos.

Globo seguiu na oposição em raia própria

Apesar do esforço de interpretação sobre a nova linha editorial da Globo, uma pergunta permanecia no ar: por que a gigante seguiu isolada na oposição ao governo? Para entender melhor esse cenário, o Intervozes acompanhou a cobertura feita pela chamada grande mídia da votação realizada no dia 2 de agosto na Câmara dos Deputados sobre o acatamento ou não das denúncias contra Temer feitas pela Procuradoria Geral da República, em análise feita por Bia Barbosa e Camila Nobrega.

Naquele dia, a Globo suspendeu o Jornal Nacional e a novela Força do Querer para transmitir ao vivo a votação no Congresso, por quatro horas ininterruptas. A análise ficou por conta do Jornal das Dez, da Globonews.

“O governo trabalhou pesado, atendendo no atacado e no varejo, ao longo do dia, os pedidos de seus aliados. Até a última hora e durante a sessão, o Presidente trabalhou pessoalmente para barrar a investigação”, anunciou a âncora Renata LoPrete. Para a comentarista Cristiana Lobo, foi uma vitória “magra”. O tom era de denúncia da compra de votos e de fracasso político, apesar da votação vitoriosa.

Essa também foi a linha defendida no editorial do impresso O Globo de 2 de agosto, assim como nas manchetes online do jornal após a votação: “Com 263 votos, Câmara ignora provas e barra denúncia contra Temer”; “Com sorriso no rosto, Temer diz que resultado não é vitória pessoal”, “Deputado preso em regime semiaberto vota a favor de presidente”, “Internautas promovem vomitaço em rede social de Michel Temer”.

Mais discreta, a Folha de S. Paulo publicou em sua capa no dia seguinte à votação: “Temer usa máquina, demonstra força e barra denúncia”. Dentro do jornal, afirmou: “Balcão de negócios com o recurso público garante vitória governista”, e trouxe duas páginas centrais sob o título “Placar da Denúncia”, com fotos, nomes e partidos dos deputados e como cada um votou.

Entre os veículos que seguiram outra linha, estão a Band e o Estado de S. Paulo.  O Jornal da Noite, da Bandnews, destacou: “Mercado financeiro e empresários defendem continuidade de Michel Temer na Presidência”. Em seguida, uma longa reportagem ouviu empresários de diversos setores que afirmaram ser positiva a permanência de Temer para a continuidade das reformas e para a economia. Encerrada a votação, o destaque do Estadão foi o pronunciamento do Presidente: “Após barrar denúncia, Temer diz que é urgente pôr o país nos trilhos”.

Mais recentemente, o Estadão se mostrou panfletário na defesa do governo Temer. No dia 4 de agosto, em editorial intitulado “Vitória da responsabilidade”, o jornal declarou que “afastar o presidente da República do exercício do cargo seria uma evidente irresponsabilidade, e a Câmara dos Deputados, no cumprimento de suas atribuições constitucionais, rejeitou com acerto tal imprudência”.

Dialogando indiretamente com a posição da Globo, para o Estado de S. Paulo, no mesmo editorial acima, defendia que “ao contrário do que alguns afirmam, o presidente Michel Temer sai fortalecido do episódio, mostrando, uma vez mais, sua capacidade de articulação com o Congresso”.

Com ou sem Temer, imprensa defende perda de direitos

“Cabe agora a Michel Temer, com a máxima urgência, reorganizar o seu governo, estabelecendo as condições para o prosseguimento das reformas, em especial, a reforma da Previdência. Há muito a fazer e nenhum tempo a perder”. Era o que dizia o Estado de S. Paulo, em mais um trecho do editorial de 4 de agosto. O tom de que as reformas são positivas e necessárias ao crescimento econômico tem sido geral na imprensa – inclusive nos veículos do Grupo Globo.

Com ou sem Temer, imprensa defende perda de direitosNa edição de 12 de agosto, o Jornal Nacional anunciou que “um estudo concluiu que a reforma trabalhista, aprovada em 2017, vai criar 1,5 milhão de empregos e estimular o crescimento do país nos próximos quatro anos”. Depois de mostrar uma vendedora de loja de roupas satisfeita por poder dividirsuas férias em três vezes, a matéria revela que o “estudo” (como de praxe no jornalismo, utilizado de maneira pouco ou nada crítica, como se pesquisas fossem isentas) havia sido feito pelo banco Itaú.

A cobertura do Jornal Nacional sobre a votação da reforma trabalhista no Senado, no dia 11 de julho, evidenciava o posicionamento pró-reforma. A abertura do programa dedicou quase 6 minutos abordando a ocupação da mesa diretora pelas senadoras contrárias à votação e apenas 37 segundos para explicar o conteúdo do projeto aprovado.

O tom do JN foi de que o protesto das senadoras foi algo violento e, durante toda a matéria, apenas opiniões dos senadores pró-reforma foram exibidas. “A atitude das senadoras foi condenada por colegas de diversos partidos”, anunciou a repórter, transmitindo a ideia de que foi ampla a suprapartidária a crítica às parlamentares. A matéria trouxe falas de Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), Cristóvam Buarque (PPS-DF) e Eunício Oliveira (presidente da Casa), que tacharam a atitude das senadoras de “ato de força”, “desrespeito total” e “gesto antidemocrático”, de acordo com os três primeiros. Segundo Eunício Oliveira, “nem a ditadura militar ousou ocupar mesa do Congresso Nacional”.

Já os poucos segundos dedicados a explicar o texto votado no Senado, trouxeram uma perspectiva favorável à sua aprovação. “A reforma trabalhista dá força de lei a acordos entre trabalhadores e patrões, respeitando os direitos assegurados pela Constituição, como FGTS e 13º; permite que férias possam ser divididas em até três períodos; acaba com a obrigatoriedade da contribuição sindical, equivalente a um dia de salário do trabalhador; permite que intervalo de almoço possa ser reduzido para 30 minutos, diminuindo a jornada mediante negociação coletiva; e inclui a jornada intermitente, o trabalho em dias alternados ou por algumas horas, como o de trabalhadores de bares ou eventos”. Nenhuma palavra de crítica às reformas, nenhuma palavra das senadoras “antidemocráticas”, nenhuma informação sobre o fechamento de todas as entradas do plenário pelo senador Eunício.

Dois dias depois, em 13 de julho, William Waack associou a reforma trabalhista a uma atualização de uma lei que seria retrógrada: “Até agora essa relação [entre empregados e empregadores] foi submetida a uma legislação com mais de 70 anos de idade”.

O Jornal da Globo seguiu com matéria da repórter Renata Ribeiro, que explicou as mudanças. Segundo ela, a reforma vai permitir contratos de trabalho mais flexíveis e direitos assegurados – como FGTS, 13º salário, licença-maternidade e férias proporcionais ao tempo de trabalho – serão mantidos. A repórter disse ainda que acordos entre trabalhadores e empresas irão prevalecer e anunciou o fim da contribuição sindical. Afirmando que as mudanças foram bem recebidas, Renata ouviu dois especialistas: ambos favoráveis à reforma. Para eles, assim como havia sugerido Waack, nossa lei trabalhista até então em vigor seria atrasada e tornaria o país pouco competitivo.

A defesa das reformas estava presente também meses antes, quando havia uma unanimidade pró-Temer na imprensa hegemônica. Em artigo do Intervozes no blog da CartaCapital, foram analisados o Jornal Nacional, o Jornal da Globo, o Jornal da Band, o Jornal da Record e o Repórter Brasil, da TV Brasil do dia 13 de março. Neste dia, mais de 125 cidades registraram manifestações e paralisações contra as reformas trabalhista e da previdência.

Único canal da comunicação pública analisado, o Repórter Brasil aparentemente havia sofrido censura: o vídeo com gritos de “Fora, Temer!” não foi ao ar no site do jornal. Nos demais telejornais noturnos, “o tom das matérias foi muito mais o impacto das paralisações – sobretudo dos trabalhadores das redes de transporte – do que os atos em si. Flashes rápidos dos protestos, nenhum número sobre o total de participantes e, principalmente, nenhuma entrevista com os organizadores das manifestações foram a maneira escolhida pela mídia de censurar o motivo que levou milhares de brasileiros e brasileiras às ruas”.

Temer ainda vivia sua lua-de-mel com a imprensa, quando estourou a primeira greve geral no país, no dia 28 de abril desse ano. O tom da cobertura foi o mesmo da nota do presidente ilegítimo e da entrevista com o ministro da Justiça Osmar Serraglio: a ordem era não falar em “greve geral”, mas sim em “dia de protestos” e, no máximo, “paralisações”.

Informações de bastidores dão conta de que essa foi também a orientação das chefias de redação em diferentes veículos. A confusão proposital entre “greve geral” e “dia de protestos”, feita por quase toda a imprensa, foi crucial para o tom negativo da cobertura. Ora, o sucesso de uma greve é, visualmente, quase o contrário do de um dia de protestos: ruas vazias, ao invés de cheias. Embora também houvesse manifestações marcadas para aquele dia, não mencionar a greve prejudica gravemente o entendimento daquele 28 de abril.

“Segundo a BandNews, o que houve no Rio de Janeiro ‘não foi uma greve. […] Foi um dia de muitos problemas, de muito caos para as pessoas que seguiam para o trabalho, que queriam tocar a vida’. No Jornal Hoje, da Globo, foram ao ar 40 minutos de matérias sobre a greve sem que a palavra fosse usada. Falou-se em ‘paralisação de 24 horas chamada pelos sindicatos’ [como se sindicatos fossem entes apartados da população]. Na Record, nada da expressão ‘greve geral’. O tom da cobertura deu ênfase para as depredações e nenhuma explicação das motivações do movimento”, conforme análise publicada no dia seguinte à greve.

Como de praxe, a cobertura silenciou manifestantes, mostrou especialmente atos “violentos” cometidos por eles (mas não contra eles) e focou nos transtornos no trânsito e nos serviços, como se pode perceber a partir de algumas manchetes do dia 29: “Protesto de centrais afeta transportes e tem violência” (O Globo), “Greve afeta transporte e comércio e termina com atos de vandalismo” (O Estado de S. Paulo), “Greve afeta transporte e termina em vandalismo” (Correio Braziliense), “Greve atinge transportes e escolas em dia de confronto” (Folha de S. Paulo).

(Na tevê, uma importante exceção foi o Jornal Nacional. Ele foi o único telejornal a falar acerca do conteúdo das reformas trabalhista e da previdência e ouviu diferentes fontes sobre o tema (incluindo Paulinho da Força Sindical, o presidente da CUT Wagner Freitas e o ministro da Justiça Osmar Serraglio). Na GloboNews, uma mudança na linguagem: ela colocou repórteres no chão, sofrendo com o gás lacrimogêneo como os manifestantes. Uma grande diferença na cobertura anteriormente feita com o distanciamento proporcionado pelo “globocop”.)

Nada de novo sob o sol. Como já havia sido analisado, os motivos dos protestos do dia 24 de maio também não foram publicados. Ao invés de ouvir as razões que levaram mais de 100 mil pessoas às ruas naquele dia, a imprensa focou nas chamas e na depredação de parte da Esplanada dos Ministérios. Era a desculpa perfeita para criminalizar todo o movimento social, as cidadãs e cidadãos contrários à perda de direitos levada a cabo pelo governo Temer. O ataque à Esplanada funcionou também para que a mídia justificasse a ação violenta das Forças Armadas.  

Embora uma ressalva no início deste artigo lembre que a luta de classes não é a única chave interpretativa para o entendimento da imprensa, isso não significa que ela não é uma fundamental ótica de análise. Em casos de acirramento dessa luta, como são os de reformas que interferem diretamente nas relações de trabalho, o caráter burguês da imprensa fica ainda mais evidente. E, como dizia Gramsci, em 1916, “para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores”.

Lula e PT sob ataque

Na já famosa “polarização política” na qual o Brasil se viu imerso especialmente desde a vitória apertada de Dilma Rousseff nas eleições de 2014, o posicionamento antipetista da imprensa hegemônica é evidente. Embora os governos Lula e Dilma não tenham feito frente às demandas dos movimentos sociais por uma comunicação mais democrática (entre outras pautas históricas da esquerda), a relação entre governos petistas e mídia não se constituiu numa oposição acirrada – mas também esteve longe de ser um mar de rosas.

Identificados como “esquerda” ou “comunistas” em tempos de debates acalorados nas redes sociais, os petistas foram aceitos pela grande imprensa. Mas apenas aceitos, sem grande entusiasmo. Desde que sua força política mostrou-se mais frágil, não houve titubeio em atuar ativamente pela derrubada da presidenta reeleita em 2014. Mesmo depois da queda, sobram casos que evidenciam a tomada de posição antiPT e, especialmente, antiLula. Comentaremos alguns que consideramos emblemáticos.

Lula e PT sob ataqueConforme publicado na página do Intervozes no Facebook, no dia 10 de maio, a mídia brasileira dedicou-se o dia todo a um único fato: o depoimento do ex-presidente Lula ao juiz Sérgio Moro, em mais uma fase crucial da operação Lava Jato. Ao longo do dia, enquanto o país buscava informações sobre os rumos do depoimento, a GloboNews enfatizou repetidamente a narrativa de “confronto”, “duelo”, no estilo FlaxFlu: “O embate está marcado para essa tarde”; “eles ficarão frente a frente pela primeira vez hoje”, “luta de novela” foram algumas das chamadas feitas durante a programação do canal fechado do Grupo Globo. O clima já havia sido antecipado pelas revistas IstoÉ e Veja.

 

Ao longo do dia, concomitante à narrativa pré-luta, os telejornais da GloboNews foram aos poucos respondendo a essa pergunta. Um dos comentaristas analisou num matutino “O PT quer transformar esse depoimento em fato político. Pelo Lula, ele daria esse depoimento num palanque”. Até às 14h, horário de início do depoimento, nenhuma imagem mostrava os manifestantes que, solidários a Lula, se deslocaram em caravanas até Curitiba. A tentativa de esconder e justificar o injustificável foi escancarada quando a cobertura mostrou repetidas vezes o grande aparato policial montado para o depoimento, na frente na sede da Justiça Federal, sem, sobretudo, justificar o porquê desse esquema de segurança.

Quando já não dava mais para evitar, a poucos minutos de ter início o “duelo”, uma entrada ao vivo de 2 minutos (num total de 1 hora de telejornal) mostrou um pequeno grupo de pessoas pró Lava Jato num bate-boca com um “militante petista”. A narrativa era: o partidário de Lula tinha ido ali provocar e procurar encrenca.

À noite, a mesma GloboNews respondeu de forma definitiva ao questionamento que lançamos acima. No Em Pauta, veiculado às 20h, montou-se um verdadeiro tribunal para julgar o depoimento de Lula. Quatro comentaristas revezaram-se numa espécie de “júri popular midiático” que ocorreu a despeito do trâmite e das prerrogativas exclusivas do Judiciário. Trechos do depoimento de Lula foram transmitidos, comentados e, mais que isso, confrontados.

O Jornal Nacional e o Jornal da Globo tiveram tons bem mais contidos que a TV por assinatura. Mostraram longos trechos dos depoimentos sem comentários “julgadores” como os da Gnews. Na abertura do Jornal Nacional, a âncora justificou o fato de aquela edição não conseguir dar um panorama geral do que tinha sido o depoimento de Lula pelo pouco tempo que tiveram para a montagem do jornal: “Tivemos só 40 minutos para editar todo o depoimento”, disse a certa altura enquanto se comprometia com uma cobertura mais apurada ao longo da programação da emissora no dia seguinte. A essa chamada, seguiu-se uma que enfocava a queda da inflação, a “taxa alcança o patamar mais baixo em dez anos”, pauta favorável ao governo Temer.

A edição dos dois jornais noturnos da Globo se ateve à divulgação de alguns trechos do depoimento, sobretudo aqueles que tematizavam o triplex do Guarujá e seguiram a linha de invisibilizar ou diminuir a manifestação pró-Lula. O JN mostrou imagem do momento da dispersão dos manifestantes.

Outro caso emblemático aconteceu meses depois. Quem passava pelas bancas de revista no dia 5 de setembro e via o jornal O Globo exposto à venda teve um mau entendimento dos fatos envolvendo corrupção no país. A manchete de capa trazia em letras garrafais: “Janot denuncia Lula, Dilma e mais seis por organização criminosa”. Abaixo dela, uma fotografia das malas contendo os 51 milhões de reais descobertos pela Polícia Federal num apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB). O texto referente a essa foto, porém, estava à direita dela, em tamanho menor, com bem menos destaque. A relação espontânea feita pelo olhar ligava a manchete com denúncias contra o PT à fotografia das malas de dinheiro de Geddel. Certamente, os editores e diagramadores do jornal O Globo sabem disso.

Lula e PT sob ataque 2O foco do noticiário em Lula também serviu para tirar a atenção das reformas: em 12 de julho, dia posterior à aprovação da reforma trabalhista no Senado, o Jornal Nacional dedicou 29 minutos e 40 segundos de sua edição a matérias sobre a condenação do ex-presidente pelo juiz Sérgio Moro. Desse total, 15 minutos e 26 segundos foi a duração da matéria que trazia apenas os argumentos utilizados por Moro. Na abertura, William Bonner decretou: “É a primeira vez na história que um ex-presidente da República é condenado por um crime comum no Brasil”. Outro vídeo, de 1 minuto e 57 segundos, citou as sentenças de cada um dos condenados: Lula, Léo Pinheiro (ex-presidente da OAS), Agenor Franklin Magalhães Medeiros (executivo da OAS). Em 3 minutos e 6 segundos, foi explicado o trâmite da condenação: e só então o telespectador ficou sabendo que ela foi feita em primeira instância e ainda cabia apelação por parte da defesa.

Além dessas, foram ao ar, naquela noite, mais três matérias sobre a condenação de Lula. Uma delas, com 3 minutos e 17 segundos, tratou da repercussão no Congresso de maneira equilibrada (apenas 7 segundos a mais para os defensores do ex-presidente). Outra, com 4 minutos e meio, ouviu exclusivamente apoiadores de Lula: seu advogado de defesa, Cristiano Zanin Martins; o vice-presidente do PT, Márcio Macedo; o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Wagner Santana. Também foi citada uma nota do Partido dos Trabalhadores. Em 1 minuto e 24 segundos, os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos informaram que Lula ainda é réu em mais quatro ações penais.

A disparidade de espaço dado para os argumentos condenatórios e os de defesa do ex-presidente evidenciam: no tribunal midiático, a sentença já foi dada.

De olho em 2018

A artilharia contra Lula se mantém pesada e assim deve prosseguir, com o objetivo de inviabilizar sua candidatura nas eleições do ano que vem. Parte da estratégia é fortalecer outros nomes de presidenciáveis. É isso que foi feito no dia 23 de novembro, pelo escancaradamente pró-Temer Estadão. “Aprovação a Huck dispara e atinge 60%, mostra pesquisa” foi a manchete de capa da edição daquela quinta-feira.

De olho em 2018Com o título “Aprovação a Huck cresce 17 pontos, afirma Ipsos”, e o subtítulo “Conforme o Barômetro Político Estadão-Ipsos, apresentador é a personalidade com a melhor avaliação entre os 23 nomes relacionados pelo instituto aos entrevistados”, o jornal deu a entender algo diferente do que está escrito na matéria assinada por Daniel Bramatti.

Apenas no terceiro parágrafo, a matéria explica os dados: “A pesquisa Ipsos não é de intenção de voto. O que os pesquisadores dizem aos entrevistados é o seguinte: ‘Agora vou ler o nome de alguns políticos e gostaria de saber se o (a) senhor (a) aprova ou desaprova a maneira como eles vêm atuando no País’”. No parágrafo seguinte, uma fala de Danilo Cersosimo, diretor do Ipsos, joga água fria no entusiasmo pró-Huck que inicia o texto: “Se a eleição fosse hoje, ele teria um desempenho razoável, mas não esse cacife todo”.

Mas, antes de chegar até esse ponto do texto, o leitor desavisado já construiu uma imagem vitoriosa da candidatura de Huck. E, provavelmente, esqueceu-se de que o próprio Estadão havia noticiado, no dia 19 de setembro, que “Lula lidera intenções de voto em todos os cenários, diz pesquisa da CNT”.

No dia 24 de novembro, o blog Direto da Fonte, do Estadão, afirmou que “Huck pode anunciar hoje estar fora da eleição presidencial”. No dia 27, o próprio Huck publicou artigo na Folha de S. Paulo negando que será candidato. O jornalismo declaratório, sem base em informações seguras, aposta num futuro “talvez” e parece demonstrar que o jogo político está mesmo entrelaçado à imprensa. E que, ao contrário do que a mídia conservadora tem buscado convencer o público, as fake news estão longe de ser um problema exclusivo da internet e das redes sociais.  

Também no dia 24, a Folha de S. Paulo publicou matéria sobre o perigo representado pela possível eleição de Lula: “A eventual vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderia derrubar a Bolsa dos atuais 74 mil pontos para abaixo de 55 mil pontos e deixar o dólar acima de R$ 4,10, indica pesquisa realizada pela XP Investimentos. O levantamento, feito entre os últimos dias 21 e 23, ouviu 211 investidores institucionais, como gestores de recursos, economistas e consultorias”.

O medo do desastre econômico dá o tom da construção da ideia de que a candidatura de Lula representa uma ameaça para o país. Como se investidores representassem os principais interesses da maioria da população brasileira.

#GloboLixo: ataque conservador e questões estruturais

O Brasil não é mesmo para iniciantes. Depois de colocar no ar, no dia 8 de outubro, uma matéria do Fantástico sobre brincadeiras e brinquedos sem distinção de gênero, a hashtag #GloboLixo chegou aos trending topics do Twitter.  

Como já havia sido analisado por Pedro Ekman, a Globo fez mudanças na sua programação que deram a ela ares mais progressistas, especialmente no entretenimento: em programas de humor (como o novo Zorra Total), de auditório (o Amor e Sexo pautou o feminismo em janeiro desse ano) e na dramaturgia (como a já citada série Filhos da Pátria, com suas menções a questões políticas atuais, e a novela Força do Querer, com dois personagens transgêneros, sendo um também interpretado por um homem trans).

Porém, acreditamos que essa seja tanto uma estratégia para a emissora se manter com sua posição hegemônica quanto fruto de brechas e tensões entre as forças conservadoras e progressistas que atuam por dentro da empresa, que obviamente não é monolítica. No primeiro caso, vale lembrar que a Globo, diferente das demais emissoras de televisão, sempre procurou se posicionar como uma vanguarda cultural.

Faz isso, porém, sem abrir mão das pautas político-econômicas neoliberais. Encara a fúria reacionária contrária à – muitas aspas nessa hora – “ideologia de gênero”, mas segue defendendo a perda de direitos trabalhistas e as privatizações, por exemplo. O que coloca inclusive limites à sua postura “feminista” (mais aspas), por não fazer o recorte de gênero ao pautar a reforma trabalhista sem mencionar o quanto ela prejudicará especialmente as mulheres.

Progressista no entretenimento, conservadora no jornalismo, a platinada mantém sua liderança, mas segue de olho nas necessidades de inovação num mercado televisivo cada vez menos atraente para a juventude. Além disso, é preciso lembrar que problemas estruturais como o racismo e o machismo seguem fortes não só na Globo, mas em outras emissoras da TV aberta. Recentemente, o apresentador William Waack foi flagrado proferindo uma fala racista, o que é apenas a ponta do iceberg da subrepresentação de negras e negros nas telas. A população LGBT ainda é alvo de invisibilidade e estereótipos, e as mulheres sofrem violência ao vivo em reality shows, que seguem escalando homens agressores.

Estratégias e armadilhas narrativas

No jogo desigual de ideias, em que as grandes empresas privadas de comunicação são as donas da bola, são recorrentes algumas estratégias para divulgar notícias do ângulo político, ideológico e filosófico de interesse dessas empresas.

Pesquisas, números e dados estatísticos são comumente usados sem nenhum quê de desconfiança, como se fossem verdades exatas. Muitas vezes também os responsáveis pelas pesquisas não aparecem com destaque nas matérias, e saber se as conclusões publicadas como fatos foram extraídas de institutos ligados ao capital financeiro ou à própria imprensa faz toda a diferença. Esse foi o caso das matérias sobre a candidatura de Luciano Huck (que, ainda pior, confundiu aprovação da imagem de uma pessoa com intenção de voto) e da que falava dos riscos para a economia caso Lula seja eleito presidente em 2018.

Também na cobertura antiPT se viu a artimanha de “esconder” a informação principal da notícia. No caso, o destaque dado a um aspecto dos acontecimentos, e não a outros, colocava como mais importante algo que seria desdito adiante. (Pela própria matéria, a candidatura de Luciano Huck não tinha tanta força quanto a manchete afirmava). Além da ordem das informações no texto, a organização das imagens (e a relação imagem-texto) foi outra armadilha narrativa usada pela imprensa, como na já clássica capa d’O Globo com as malas de dinheiro de Geddel.  

As opiniões de especialistas também são usadas para legitimar uma “verdade”. Essa foi a estratégia-mor das matérias sobre as reformas: como duvidar do que diz um economista, que estaria apresentando uma ideia embasada na “isenção” e “neutralidade” científicas? Embora haja exceções (o Estúdio I, da GloboNews, é um oásis de pluralidade de ideias em meio ao deserto midiático), os “isentos” especialistas são escolhidos a dedo para não falar nada que destoe da linha editorial do veículo que o procurou.  

Quem é ouvido nas matérias, aliás, segue sendo uma grande tática para mostrar apenas um lado das questões, invisibilizando ou minimizando atores e atrizes sociais fundamentais para um olhar mais abrangente sobre os temas. Chega a ser inacreditável quando se pensa nos preceitos básicos do jornalismo, mas é muito comum – e escapa ao leitor/telespectador que não está atento – a veiculação de notícias sobre manifestações que não ouvem manifestantes, sobre reformas trabalhistas que não ouvem trabalhadores, sobre o protesto de senadoras de oposição que não ouvem as senadoras etc.

Sem contar na seleção de quem fala e em que momento fala. De acordo com a análise de enquadramento, as primeiras fontes ouvidas dão o tom da matéria; as demais entram na sequência na condição de dar uma resposta a elas, uma posição defensiva que aparece na narrativa, mas não necessariamente condiz com as disputas políticas extratexto.

Por fim, a grande reclamação dos movimentos sociais é de fato uma estratégia eficaz: a simples ausência de certas pautas, fontes e pontos de vista na grande imprensa. Silenciar na mídia é trabalhar para que algo não exista na esfera pública. É diminuir drasticamente as condições de convencimento de boa parte da população da existência de certos problemas e das diferentes maneiras de enfrentá-los. Entre brechas e disputas, a mídia hegemônica segue sendo muito eficiente em excluir do debate público a pluralidade e diversidade que poderiam colaborar de fato com mudanças estruturais na sociedade.

Mônica Mourão é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes

* A análise das coberturas só foi possível graças aos textos produzidos por diferentes militantes do Intervozes ao longo do ano, todos devidamente creditados nos links. A referência a um post na nossa página de Facebook é de um texto de autoria de Iara Moura.

Novos presentes para velhos amigos: mudanças na radiodifusão beneficiam empresários e políticos de sempre

Texto: Mabel Dias

20110106174454_comunicaçãoQuando as primeiras ondas de rádio e, posteriormente, de TV foram transmitidas no Brasil, vieram acompanhadas de uma necessária regulação para organizar os sinais que cortavam o território brasileiro. Como o espectro eletromagnético, por onde passam essas ondas, é finito, é preciso que o Estado defina regras para que sua ocupação se dê de forma organizada, sem que haja interferência nas frequências.
Dessa forma, até mesmo as rádios e TVs comerciais só podem funcionar a partir de uma autorização, permissão ou concessão pública. Para ter esse direito, as emissoras deveriam passar por um processo licitatório e atender diversos requisitos estabelecidos pela própria Constituição Federal de 1988. Critérios como a “promoção da cultura nacional e regional”, conteúdos com finalidades “educativas, artísticas, culturais e informativas”, além da regionalização dessa produção são alguns dos princípios indicados pela carta magna.

Essa definição existe para estimular a diversidade de produção e de conteúdo, ampliando a representatividade e participação da sociedade nos meios de comunicação. E essas exigências nada mais são que a definição das contrapartidas que o concessionário deveria cumprir, afinal de contas, seja para o veículo público, estatal ou privado, a concessão para exploração do sinal é pública e, portanto, deve ter obrigações com a sociedade. Mesmo tendo como objetivo o lucro, as mídias comerciais precisam justificar o seu uso de um bem que é púbico e de direito de toda a população.

No entanto, esses critérios nunca foram levados em consideração para a liberação ou não renovação das concessões. A decisão política de não fiscalizar o cumprimento desses requisitos sempre fez com que o setor privado criasse suas próprias regras, consolidando o imaginário de que as mídias comerciais não precisam prestar contas à sociedade e que são donas de um espectro que, na verdade, é público.

Agravando ainda mais essa “terra sem lei”, o poder público brasileiro também sempre fez vistas grossas à transferência de outorgas para terceiros, abrindo mão de lançar novas licitações, como pleiteava os movimentos. Assim, as emissoras comerciais sempre tiveram suas concessões renovadas de modo praticamente automático, mesmo sem cumprir os requisitos de utilidade pública.

Se esse cenário sempre foi naturalizado pelo poder público, para os movimentos que atuam em defesa do direito à comunicação, essa pauta é fundamental. E o que já estava ruim conseguiu piorar a partir da formalização dessas práticas, após uma série de medidas que o presidente Michel Temer (PMDB) vem executando desde que tomou posse.

Nova Lei para concessões
Em abril de 2017, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 13.424/2017, sancionada pelo presidente Michel Temer. A nova lei tem origem na Medida Provisória 747/2016 (MP 747), que foi enviada ao Congresso no final de 2016 e aprovada praticamente “a toque de caixa” em março de 2017. Ela prevê uma série de alterações na concessão de outorgas para as empresas privadas de rádios e TVs.

Pela nova lei, as empresas de radiodifusão foram anistiadas em relação aos prazos de renovação das outorgas pelo governo federal. Segundo as novas regras, todo concessionário que havia perdido o prazo para renovar suas outorgas ganhou mais 90 dias para fazê-lo. Não interessa se o atraso foi de um mês ou de dois anos. Aquelas emissoras que já haviam pedido a renovação, mas o fizeram fora do prazo – inclusive as que o Executivo já tinha revogado a licença justamente pelo atraso na solicitação da renovação – também ganharam mais uma chance para recolocar seus canais em funcionamento, caso o Congresso Nacional ainda não tivesse se manifestado sobre o caso. A partir de agora, se mais alguém se esquecer de pedir para renovar suas outorgas dentro do prazo, caberá ao governo a tarefa de avisar ao concessionário.

Assim, em vez de abrir novos processos de licitação para que outros interessados tivessem a oportunidade de ocupar as outorgas abandonadas pelas empresas, o governo optou por beneficiar os antigos concessionários, para que voltassem a operar. Ou seja, essa anistia vai na contramão dos movimentos que cobram maior transparência na definição das concessões, com consultas públicas para todos que queiram utilizar o espectro eletromagnético.

Para a jornalista Bia Barbosa, do Coletivo Intervozes e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a aprovação da lei é um “escárnio com a radiodifusão brasileira”. Em entrevista publicada no Observatório do Direito à Comunicação, Bia afirma que “num país em que as concessões sempre foram usadas como moeda de troca política, foi possível piorar o procedimento das licenças. E agora não é nenhum exagero afirmar que o empresariado da radiodifusão pode fazer o que bem entender com este bem que, vale lembrar, é público”.

De acordo com Renata Mielli, coordenadora geral do FNDC, a Lei 13.424/17 aprofunda a ausência de transparência no processo de concessão e restringe ainda mais a possibilidade de haver alguma participação de outros setores que tenham a intenção de receber uma outorga. “O que o FNDC defende não são remendos para beneficiar os atuais concessionários, e sim, a mudança no processo de concessão, através de licitações transparentes, chamadas através de editais, com audiências públicas para que a sociedade possa participar do debate e conferir maior transparência”, afirma Renata.

O direcionamento da MP 747 para antigos empresários era tão evidente, que até as rádios comunitárias foram inicialmente excluídas da anistia. No entanto, após forte pressão de radialistas e entidades, as rádios comunitárias acabaram sendo contempladas.

Para Jerry de Oliveira, do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias, esta inclusão do setor na MP foi “um conto do vigário”. “Alguns segmentos do setor lutaram para que fosse incluído na MP um dispositivo que aumentasse o tempo de renovação das comunitárias, principalmente para as emissoras que perderam o prazo. Se de um lado deu um fôlego para estas emissoras, de outro não se garante que as comunitárias terão suas renovações atendidas”, aponta Jerry.

De acordo com o radialista, a portaria do antigo Ministério das Comunicações – que, a partir do governo Temer foi fundido com outras pastas, transformadas no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) – facilitou várias demandas das rádios comerciais, como as relacionadas às cassações, flexibilização trabalhista e alterações em artigos do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62). “Mas para as comunitárias não se mudou um artigo sequer da Lei 9.612/98, apesar de ganharem uma extensão de prazo para renovação. A possibilidade de cassação é eminente, pois as mudanças na lei das rádios comunitárias não constam na medida provisória”, afirma Jerry. A lei decorrente dessa MP já está em vigor desde março de 2017.

Renovação automática
Outro ponto que a Lei 13.424/2017 altera no sistema de concessão de outorgas para as empresa de radiodifusão é um aprofundamento do processo de renovação de forma praticamente automática.

A previsão de cumprimento de “todas as obrigações legais e contratuais” e o atendimento “ao interesse público” como requisito para o direito à renovação das outorgas foi excluído da lei. No Brasil, o processo de renovação das licenças de rádio e TV já é quase automático, sendo necessário o voto aberto de dois quintos dos deputados e senadores, em sessão conjunta do Parlamento, para que uma concessão não seja renovada.

Agora, as obrigações que tinham de ser respeitadas – pelo menos segundo a letra da lei – desapareceram. Se o extinto Ministério das Comunicações pouco fiscalizava o cumprimento dessas obrigações legais e contratuais e nada olhava para o atendimento “ao interesse público” no momento de renovar licenças, agora isso nem mais será solicitado.

Concessão pública x posse particular
Comemorada pelos empresários radiodifusores, a lei 13.424 é justificada pelo governo como uma forma de desburocratizar o setor. No entanto, mudanças significativas reduzem o controle social e a própria fiscalização do Estado, desconfigurando o que deveria ser uma concessão pública. Assim, as empresas ganham mais liberdade para tratar a outorga como uma posse particular, diminuindo a prestação de contas para o governo e para a sociedade.

Cessões de cotas e ações que alterassem o controle societário das empresas e alterações nos objetivos sociais das concessionárias deveriam ser previamente autorizadas pelo Executivo. Agora, isso não será mais preciso. Basta que as empresas informem ao governo sobre as alterações realizadas. Aquelas que fizeram alterações ilegalmente sem a autorização prévia do Ministério, quando a lei anterior ainda valia, ganharam sessenta dias a partir de março de 2017 para informar ao governo das mudanças, sem qualquer prejuízo para continuarem funcionando normalmente.

O que segue dependendo de autorização prévia do Estado é somente a transferência total e integral da concessão para outra empresa, numa prática já bastante conhecida, chamada “comércio de outorgas”. Além disso, agora os radiodifusores também ganharam mais uma ajuda: a transferência está liberada inclusive para as outorgas que estiverem funcionando em caráter precário, ou seja, que ainda não tiverem seus processos de renovação concluídos.

Tais medidas privilegiam os antigos radiodifusores comerciais e fragilizam suas obrigações. Se essa já era a perspectiva da lei aprovada em março, consolidou-se em agosto de 2017, após um novo decreto do presidente Temer. De número 9.138/17, ele modifica consideravelmente o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, revogando o decreto 88.066/1983 e alterando o 52.795/1963.

De acordo com o atual decreto, o contrato de concessão não precisa trazer, como cláusula obrigatória, os preceitos e obrigações das emissoras estabelecidos no artigo 28 do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. A norma continua em vigor, mas sua menção explícita desaparece dos contratos de concessão. Já o termo aditivo firmado na renovação da outorga não precisa mais ser remetido ao Tribunal de Contas, reduzindo os mecanismos de fiscalização do setor.

O decreto também reduz uma série de exigências para a solicitação da renovação das outorgas. Anteriormente, se exigia vinte e três documentos, enquanto que agora só serão cobrados doze, com a promessa do Ministério de melhorar o fluxo de análise dos processos e acelerar o tempo de resposta às emissoras. Estima-se que o período de tramitação dessas análises caia de oito para dois anos.

Entre os documentos que não serão mais cobrados das empresas estão, por exemplo, o projeto de investimento que demonstre a origem dos recursos a serem aplicados no empreendimento. Também deixam de ser exigidos os pareceres de dois auditores independentes demonstrando a capacidade econômica da empresa de realizar os investimentos necessários à prestação do serviço pretendido.

Além da simplificação dos documentos para concessão e renovação das outorgas, o decreto também incorpora, no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, aspectos já aprovados pela Lei 13.424/07. Entre eles, a dispensa de anuência prévia do MCTIC para a alteração contratual das outorgas e a autorização de transferência de outorgas. Da mesma forma, modifica o tipo de declaração exigida para empresas que possuem até 30% de capital financeiro estrangeiro em sua composição societária.

Algumas infrações anteriormente previstas também deixam de existir a partir desse decreto, como em relação à execução dos serviços de radiodifusão não exibir pronunciamentos em cadeia nacional ou descumprir as exigências referentes à propaganda eleitoral.

Também deixa de ser uma infração destruir os textos dos programas, inclusive noticiosos, antes de decorrido o prazo de 10 dias contados a partir da data de sua transmissão e não conservar as gravações dos programas de debates ou políticos, bem como pronunciamentos da mesma natureza, pelo prazo de 5 a 10 dias (de acordo com a potência da emissora) depois de transmitido o conteúdo. A partir de agora, a emissora é obrigada a conservar a gravação da programação irradiada somente durante as 24 horas subsequentes ao encerramento dos trabalhos diários da emissora.

Deixa ainda de ser uma infração prevista no Regulamento o desrespeito ao direito de resposta reconhecido por decisão judicial. Ou seja, apesar de ter que cumprir a ordem da lei, se uma empresa detentora de outorga não o fizer, não estará infringindo o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão.

Ao mesmo tempo, passam a ser consideradas infrações “colaborar na prática de rebeldia, desordem ou manifestações proibidas” e “utilizar equipamentos diversos dos aprovados ou instalações fora das especificações técnicas constantes da Portaria que as tenha aprovado”.

De positivo, o decreto 9.138 traz algumas mudanças que refletem no quadro societário das empresas. A nova legislação determina o afastamento do sócio ou diretor da concessionária em alguns casos: quando este participe do quadro societário ou diretivo de outra empresa radiodifusora na mesma localidade; em caso de ser eleito para mandato eletivo que lhe assegure imunidade parlamentar ou para cargos ou funções dos quais decorra foro especial; e em caso de condenação por órgão colegiado de uma série de crimes previstos na legislação brasileira.

Soma-se a esse decreto a Portaria no 5774, enviada pelo MCTIC nas últimas semanas de 2016, alterando a regulamentação das sanções administrativas aplicadas contra as entidades prestadoras dos serviços de radiodifusão. Com as mudanças, se flexibilizou a punição para os radiodifusores infratores.

Com a portaria, todas as emissoras e canais de rádio e TV comerciais que descumprirem a lei passam a ter a possibilidade de converter a pena de cassação da licença em multa. Tal decisão fica a cargo do Secretário de Radiodifusão.

Anteriormente, um canal de rádio ou retransmissora de TV perderia esse benefício caso somasse 20 pontos no rol de infrações praticadas. Com a flexibilização trazida pela nova portaria, o limite chega a 80 pontos. Portanto, fica ainda mais difícil a cassação da licença de radiodifusores infratores.

Plano Nacional de Outorgas e o golpe nas rádios comunitárias
Em abril de 2016, durante o governo de Dilma Roussef (PT), o então ministro das Comunicações, André Figueiredo, assinou três planos nacionais de outorgas, sendo dois para a radiodifusão comunitária e um para a educativa. Na ocasião, o ministro afirmou que, com o Plano Nacional de Outorgas (PNO), todos os municípios brasileiros contariam com radiodifusão comunitária.

Dos dois planos para radiodifusão comunitária, o primeiro contém editais que incluem povos e comunidades tradicionais, totalizando 123 municípios de todos os estados e do Distrito Federal. O segundo foi dividido em 14 editais, que atingiriam todos os 1.264 municípios brasileiros que não dispõem de rádio comunitária. A previsão do Ministério, no período de lançamento do PNO, era que estes anúncios dos editais acontecessem entre maio de 2017 e julho de 2019.

Já o plano de radiodifusão educativa era composto de 761 municípios, que seriam contemplados com 879 editais. A primeira fase começaria no período de agosto de 2016 a maio de 2017, alcançando 237 localidades, sendo 235 para FM e duas para TV.

Porém, após o afastamento de Dilma, o então presidente-interino Michel Temer suspendeu a publicação dos editais do PNO. De acordo com o coordenador executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), Geremias Santos, o serviço de radiodifusão comunitária foi um dos mais prejudicados. “O atual governo revogou o Plano Nacional de Outorgas e não publicou os editais para os anos de 2016/18, que estabeleceriam mais de mil e duzentas novas concessões de rádios comunitárias, possibilitando que cada município brasileiro tivesse, pelo menos, acesso a uma estação”, pontua Geremias.

O radialista informa ainda que mais de 500 processos de rádios comunitárias, autorizados pelo Congresso Nacional para apreciação e votação das outorgas foram devolvidos para o MCTIC, voltando à estaca zero.

Essa suspensão do PNO compromete ainda mais o funcionamento das rádios que atualmente já operam. O cenário de perseguição às rádios comunitárias, contínuo nos últimos governos, segue inviabilizando a sobrevivência desse segmento.

É o caso da rádio Canal Mais FM, que opera no município de Bauru, em São Paulo. Seu dirigente, Cirineu Fedriz, aponta que em menos de um ano no ar, a rádio já sofreu duas fiscalizações da Anatel. “A nossa rádio completou um ano de transmissão no final de setembro e a nossa licença esperávamos há mais de 15 anos. Só conseguimos porque acionamos o Judiciário, que obrigou a outorga da rádio”, informa Cirineu.

Direito à comunicação negado
A suspensão do Plano Nacional de Outorgas representou ainda mais a negação do direito à comunicação. Ao abortar a proposta de ampliação da radiodifusão pelo país, o governo inviabilizou a operação de novas rádios e TVs comunitárias e educativas. Em um cenário de extrema concentração midiática no Brasil, a existência de mais emissoras representaria maior diversidade nos meios de comunicação e a oportunidade de mais pessoas exercerem sua liberdade de expressão, além da própria sociedade que aumentaria seu rol de opções para ver e ouvir o que desejasse.

As medidas do governo federal também apontam para o sentido inverso do que é defendido pelos movimentos em defesa da democratização da comunicação e até mesmo de experiências de governos latino e norte-americanos, e europeus.

Enquanto muitos países desses continentes já adotam ações mais severas para combater a concentração midiática, fortalecer a radiodifusão pública e reforçar as exigências para as concessões, no Brasil todo esse processo tem retrocedido, após décadas de passos lentos.

O atual projeto político inviabiliza o surgimento de novas entidades radiodifusoras, privilegiando os poucos e antigos donos da mídia. A falta de transparência nas licitações das outorgas e a redução da fiscalização sobre os concessionários diminui a possibilidade de uma comunicação que cumpra a sua função social.

Todo esse “pacote de bondades” do governo Temer, através de medidas provisórias, leis e portarias, fragiliza ainda mais as exigências para se obter, manter e renovar as concessões. Os radiodifusores passam a ter cada vez menos obrigações com o Estado, para justificar as outorgas, distanciando-se do compromisso que deveriam ter com a sociedade ao fazer uso de um bem público.

Dessa forma, a garantia do direito à comunicação passa a dispor de menos mecanismos, uma vez que o sistema de radiodifusão comercial ganha mais liberdade para tratar a comunicação como mercadoria, contrariando os preceitos constitucionais. Nega-se uma vez mais, portanto, o direito à comunicação para a maior parte da população brasileira.

Mabel Dias – jornalista e integrante do Coletivo Intervozes.

A comunicação pública brasileira: resistência e sobrevivência

Texto: Gésio Passos *

A comunicação pública brasileira volta a buscar sua sobrevivência no momento de reascensão da pauta neoliberal em meio à crise econômica. Frente a governos descompromissados com a missão pública das instituições e incapazes de dialogar com a sociedade, as mídias públicas sofrem com a falta de seu reconhecimento para a garantia da pluralidade da sociedade, cumprindo sua missão de dar voz à população frente a um sistema de mídia altamente concentrado.

ebc fica

O presidente Michel Temer (PMDB), com sua intervenção na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), deu um exemplo de sua forma de governar: mudanças autoritárias, sufocamento financeiro e nenhuma abertura à participação social. A EBC, que administra duas emissoras de TV, sete de rádio e duas agências de notícias, criada há 10 anos para inaugurar uma nova fase na comunicação brasileira, foi o primeiro alvo de desmantelamento da gestão Temer. Por todo país, as experiências de comunicação pública buscam formas de sobreviver com autonomia financeira, independência editorial e participação da sociedade.

EBC: mudanças trazem riscos

Com a posse do presidente Michel Temer, em 2016, um dos seus primeiros alvos foram justamente as mudanças na comunicação pública federal. Temer trocou o comando da EBC exonerando o então presidente Ricardo Melo e nomeando Laerte Rímoli como novo mandatário. A empresa pública foi criada em 2008 com a unificação das emissoras federais, a partir de uma nova legislação que reorganizava e normatizava a comunicação pública no país.

A mudança dos presidentes não era amparada pela legislação, que previa um mandato de quatro anos para Melo, exatamente para garantir a independência da Empresa. Ricardo Melo havia sido empossado por Dilma Rousseff (PT) ainda em 2016. Com a nomeação de Rímoli, uma série de mudanças nos postos de comando da empresa se sucedeu. Mas um novo golpe aconteceu quando Temer editou a Medida Provisória 744/2016.

A mudança alterou a legislação, acabando com o mandato de quatro anos para presidente da EBC, possibilitando ao governo trocar o mandatário da empresa a qualquer momento. Também extinguiu o Conselho Curador, principal meio de participação da sociedade civil e que dava o caráter público da empresa. Dessa forma, o governo acabou com os mecanismos de independência da comunicação pública, retomando um modelo de comunicação estatal a serviço do governo federal, reinante até a criação da EBC.

O Congresso Nacional ainda tentou remediar o golpe instalado. O substitutivo do senador Lasier Martins (PSD-RS) foi aprovado em fevereiro de 2017, modificando a Medida Provisória, criando um novo Comitê Editorial e de Programação que pudesse ter alguma ingerência na empresa, além de permitir que o Senado pudesse sabatinar o presidente indicado para a estatal. Mas todas essas propostas foram solenemente ignoradas por Temer, que vetou as principais alterações que o Congresso realizou, alegando que elas contrariariam a motivação central da MP de conferir maior flexibilidade e eficiência à empresa pública. A decisão do governo acabou não sendo questionada no Congresso e o veto não foi derrubado em agosto de 2017, após toda a articulação do governo para impedir que a primeira denúncia por corrupção de um presidente no exercício fosse investigada no Supremo Tribunal Federal (STF).

A sociedade civil organizada buscou reagir contra as mudanças da Lei 11.652, que criou a EBC. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) no STF para reverter os ataques do governo à comunicação pública. A coordenadora geral do Fórum, Renata Mielli, afirmou à época que “essa MP é inconstitucional do ponto de vista formal e material, impõe censura às emissoras tuteladas pela EBC e não resolve os problemas da empresa – pelo contrário, agravando-os”.

Para o FNDC não há justificativa na urgência da Medida Provisória, que restringiu a autonomia da empresa e o cumprimento dos princípios da comunicação pública. O Fórum ressalta que as mudanças resultam em censura aos profissionais da empresa, subordinando-a ao governo federal. O fim do Conselho Curador tornaria mais graves os problemas de independência da EBC, restringindo a participação e controle social sobre a empresa pública.

O Ministério Público Federal, a partir da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), também se posicionou. Em setembro de 2017, a PFDC solicitou à nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, representação ao STF pedindo a inconstitucionalidade das mudanças na lei da EBC. Os procuradores afirmam que as alterações resultarão em grave retrocesso social em matéria de direitos fundamentais – tanto na liberdade de expressão e de imprensa quanto no caráter democrático que deve existir no sistema público de comunicação social.

O impacto nas redações da EBC

As mudanças orquestradas pelo governo Temer na EBC reverberaram de imediato dentro da empresa pública. Sob o comando de Laerte Rímoli, toda a diretoria e parte dos gestores da EBC foram substituídos e iniciou-se uma mudança editorial sem precedentes na história da empresa. Até o Comitê Editorial de Jornalismo, órgão interno previsto no Manual de Jornalismo da EBC e composto por jornalistas eleitos por redação, foi paralisado pela diretoria. A última reunião do Comitê foi no final de 2016. Após críticas dos empregados à cobertura vigente, ele nunca mais foi convocado pela Diretoria de Jornalismo. Esse Comitê Editorial de Jornalismo não deve ser confundido com o Comitê Editorial e de Programação, instituído pela Medida Provisória proposta por Temer e que sequer chegou a ser empossado.

As mudanças para uma linha editorial pró-governo geraram reflexos diretos no trabalho dos jornalistas da empresa pública. As entidades representativas dos trabalhadores começaram a se manifestar constantemente sobre as mudanças na EBC. Nos dias anteriores ao carnaval de 2017, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal denunciou a orientação da direção da EBC para que, durante a festa, os jornalistas não cobrissem temas políticos, não fazendo imagens de faixas e cartazes críticos a políticos e governos. Era instalada a proibição do “Fora Temer” na empresa pública. A intervenção editorial mudou até a programação da Rádio Nacional, com a veiculação de programas do governo federal em defesa da reforma da previdência social. O Sindicato de Brasília ainda denunciou as trocas de repórteres setoristas nas áreas de política e social, com anos de experiência, na Agência Brasil e na Rádio Nacional, como forma de tolher o livre exercício da profissão e aprofundar as práticas de censura.

Brasília- DF 02-09-2016  Reunião prototesto dos membros do conselho curador da EBC. Foto Lula Marques/Agência PT
Foto Lula Marques/Agência PT

Em março de 2017, os trabalhadores da EBC, em assembleia, aprovaram uma moção em repúdio à ação da diretoria da empresa. A nota diz: “temos enfrentado, de forma cotidiana e generalizada, ingerência no trabalho jornalístico. Um exemplo simbólico aconteceu no dia 15 de março, Dia Nacional de Paralisações contra a reforma da previdência e trabalhista, no qual, diferente da tradição estabelecida na EBC, os jornalistas receberam a ordem de focar sua cobertura nas consequências sobre o trânsito. É a linha adotada na cobertura de outras manifestações dos movimentos sociais, o que limita o direito à informação do cidadão brasileiro”.

As práticas ultrapassaram a censura e ampliaram a cultura de assédio moral dentro das redações da EBC. Em agosto de 2017, após denúncia coletiva de assédio do gerente da Agência Brasil a um correspondente do veículo, assinada por mais de 90 jornalistas da empresa, a EBC anunciou o fim do programa de correspondentes da Agência, que contava com cinco jornalistas em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Ceará, com a justificativa de necessidade de redução de custos. Até o Ministério Público do Trabalho apresentou uma proposta de Termo de Ajustamento de Conduta para que a empresa adotasse medidas efetivas no combate ao assédio moral organizacional. A EBC se negou a assinar o acordo com o Ministério Público, abriu investigação contra o repórter assediado e nada fez sobre o gerente.

A própria ouvidoria da EBC, órgão que ficou resguardado aos ataques do governo com a mudança na lei, apresentou em seus relatórios os reflexos dessa mudança editorial. A ouvidora Joseti Marques, a única que ainda mantém estabilidade legal pelo cargo dentro da empresa pública, continuou desempenhando seu papel de ombudsman com autonomia. A ouvidoria cita diversos casos de parcialidade e insuficiência na cobertura de temas como as greves gerais, reforma da previdência e trabalhista, fazendo proselitismo em favor do governo federal. Além do contínuo tom oficialista nas matérias produzidas pelos veículos da empresa e a implementação do temor dentro da redação, um governismo até então nunca visto desde a fundação da empresa, com perseguição e censura aos jornalistas.

Estrangulamento da comunicação pública

Toda a mudança da linha editorial da EBC foi acompanhada por um início de enxugamento da empresa pública. Contratos de programação foram extintos, a manutenção das sedes foram revistas, diárias e viagens para produção de conteúdo minguaram. Tudo acompanhado do corte brutal do orçamento da EBC, que asfixia a empresa pública.

Levantamento no Portal da Transparência mostra o contingenciamento dos recursos aportados na EBC. Até setembro de 2017, os recursos da empresa pública chegaram a apenas 52% do orçamento previsto para o ano. Grande parte dos recursos foi destinada ao pagamento da folha de pessoal, chegando a R$ 206,1 milhões dos R$ 324,5 milhões disponíveis. Sobrando cerca de R$ 120 milhões para o custeio, com pagamento de fornecedores, aquisição de programas, infraestrutura e investimentos.

Quando a EBC foi criada, foi aprovada a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, a partir de taxação de serviços de telecomunicações. Os recursos garantiriam a autonomia financeira da empresa. Mas, desde sua criação, grande parte desse fundo continua judicializado pelas empresas de telecomunicações, o que soma mais de R$ 2 bilhões. Outro R$ 1,4 bilhão disponível da Contribuição também continua contingenciado pelo governo federal, recursos que poderiam garantir as necessidades orçamentárias da empresa pública. Os dados são de Edvaldo Cuaio, representante dos trabalhadores da EBC no Conselho de Administração da empresa.

Além dos ataques editoriais, o estrangulamento financeiro vem a cada dia impedindo que a empresa cumpra sua missão. Desde março de 2017, a Rádio Nacional da Amazônia está silenciada. O centro de transmissores de Brasília acabou não resistindo a um incêndio que atingiu a subestação de energia onde se localizavam os transmissores da Rádio Nacional da Amazônia Ondas Curtas e parte dos transmissores da Rádio Nacional de Brasília AM. Com isso, a rádio da Amazônia saiu do ar e a de Brasília perdeu sua amplitude de potência.

A Rádio Nacional da Amazônia, que em 2017 completou 40 anos, é uma das poucas fontes de informação e cultura para milhões de brasileiros na região de mais difícil acesso do país. Precariamente, com um pequeno gerador, a rádio voltou ao ar em pequena potência, não atingindo 5% de sua capacidade de alcance. Em setembro, a EBC prometeu uma resolução do problema, com o deslocamento de um gerador de emergência da sede da empresa para o parque de transmissão. A solução arranjada não resolverá o problema, sendo que a capacidade ainda será reduzida para um gerador que só tem autonomia de 8 horas de funcionamento por dia.

O corte de recursos também é utilizado pela diretoria da EBC como justificativa para seguidos cortes editoriais em programas que compunham a grade da TV Brasil. Dois programas históricos de crítica de mídia, o Observatório da Imprensa e o VerTV, foram sacados da programação da emissora. Outros, como Arte do Artista, do teatrólogo Aderbal Freire Filho, sucessor do programa Arte com Sérgio Britto, também teve sua continuidade interrompida. Eles fizeram companhia a outros programas extintos em 2016, como Brasilianas e Espaço Público. Mas as mesmas justificativas não foram dadas para a contratação de jornalistas com longa passagem pela mídia privada, que levaram ao ar novos programas “jornalísticos” com linha editorial identificada profundamente com os interesses do governo federal, como Corredores do Poder ancorado por Roseann Kennedy, ex-CBN, e Cenário Econômico, comandado por Adalberto Piotto, ex-CBN e Jovem Pan.

As tradicionais rádios Nacional de Brasília AM e Nacional do Rio de Janeiro AM tiveram sua programação unificada sem qualquer diálogo com as equipes das emissoras e com os ouvintes. O discurso de criação de uma rádio all news, que teria seu foco em notícias, no momento em que a empresa sofre com falta de recursos, serviu para limitar o caráter local da programação das emissoras. Outros jornalistas com tradição nas emissoras privadas e de alinhamento ao governo também passaram a atuar à frente do microfone da rádio, como Anchieta Filho, ex-Jovem Pan.

O processo de cortes na empresa atingiu também a programação esportiva da TV Brasil, que nos últimos anos vinha conquistando audiência com a exibição do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol da Série C e Série D e do Campeonato Brasileiro Feminino de Futebol.

Mas o maior retrocesso na gestão da EBC se deu na manutenção da Rede Pública de Televisão. Com apenas quatro geradoras em Brasília, São Luiz, Rio de Janeiro e São Paulo, essa última em um canal marginal no espectro, a TV Brasil depende das emissoras afiliadas para que o seu sinal chegue em todo país. A previsão de repasse financeiro para as emissoras públicas/estatais que compõe cessaram há alguns anos. Algumas emissoras públicas deixaram a rede da TV Brasil, como a TV Educativa de Alagoas, rumo à rede da TV Cultura de São Paulo. A falta de liderança da EBC na construção da rede pública levou até as emissoras estaduais a criar um espaço de articulação, o Fórum das TVs Públicas Estaduais, abandonando a tradicional Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, que historicamente articulava as emissoras do setor público. Enquanto isso, somente em 2017, a EBC desligou ao menos seis retransmissoras do sinal da televisão pelo país. Em um processo final de desligamento do sinal analógico da televisão nas capitais brasileiras, pode levar a própria TV Brasil a um apagão, já que as próprias emissoras estaduais vivem dificuldades nesse processo.

A Comunicação Pública pelo Brasil

A comunicação pública brasileira não se resume somente à EBC e aos seus veículos. Desde o início do rádio no Brasil, espalharam iniciativas locais de emissoras por iniciativa dos estados, muitas ainda em operação pelo país. Com o começo das transmissões de televisão, iniciativas educativas por universidades e pelo poder público alavancaram o início de uma comunicação não comercial. Após a Constituição de 1988, foram essas iniciativas que ousaram se mover em direção ao novo conceito de comunicação pública, mesmo pecando pela falta de participação da sociedade em sua estrutura, as dificuldades de se tornarem independentes editorialmente de seus mantenedores e a falta de autonomia financeira. A crise econômica dos últimos anos também trouxe ainda mais ameaças para essa vasta rede que busca compor a comunicação pública brasileira. Para exemplificar essa situação, será avaliado o atual quadro de três estados emblemáticos em 2017: Rio Grande do Sul, Pernambuco e Minas Gerais.

Rio Grande do Sul: o fim da Fundação Piratini

Os ataques à experiência gaúcha de comunicação pública seguem como o maior retrocesso no setor no último período. A Fundação Piratini, responsável pela TVE-RS e pela Rádio Cultura FM, é um dos alvos do governo de José Ivo Sartori (PMDB) na tentativa de desmontar as estruturas do estado, alavancado pelo ideal neoliberal privatista.

Em dezembro de 2016, Sartori aprovou na Assembleia Legislativa um projeto que permitia a extinção da Fundação Piratini em conjunto com outras sete fundações públicas, com argumento de necessidade de enxugamento do Estado frente à crise econômica. Mesmo sob protesto de milhares de servidores, o governo conseguiu a aprovação do que – dizia – poderia dar um fôlego financeiro ao estado.

A TVE gaúcha foi criada em 1974 dentro da política de utilizar as ferramentas de comunicação para expansão da educação, que foi o fruto da criação da maior parte das emissoras estaduais brasileiras. A rádio Cultura FM só surgiu após a criação da Fundação Piratini, ainda nos anos 1980. As emissoras que tinham forte inserção na cultura gaúcha passaram de uma hora para outra para o estágio de total indefinição com a ação do governo de Sartori.

A reação dos trabalhadores da Fundação Piratini foi imediata, deflagrando greve, em protesto. A direção da Fundação respondeu proibindo a entrada dos funcionários na instituição e anunciou a demissão em massa de seus empregados. Por ser uma fundação pública de direito privado, os trabalhadores são empregados públicos, regidos pela CLT, e não servidores estatutários com garantia de estabilidade plena. Em ato de resistência, o Sindicato dos Jornalistas e o Sindicato dos Radialistas do Rio Grande do Sul conseguiram evitar a demissão em massa na Justiça do Trabalho, em processo ainda em curso. Uma resistência que tende a ser rompida em breve, pois o governo do estado buscou o STF para sustar a negociação das demissões. Outra trincheira de batalha contra a extinção da Fundação ocorre no Tribunal de Contas do RS. O Ministério Público de Contas questiona as motivações das extinções das fundações sem nenhum estudo técnico.

Iniciou-se o movimento “Salve, Salve TVE e FM Cultura”, angariando apoio de funcionários, diversos grupos artísticos e intelectuais, para a realização de várias atividades em defesa da Fundação Piratini, mostrando a relevância da comunicação pública gaúcha. O Conselho Deliberativo da Fundação Piratini, espaço de participação social na instituição, também reagiu, deixando de aprovar as indicações do governo para presidência e diretorias da fundação. O governo estadual ainda se retirou da rede da TV Brasil, da EBC, filiando-se à TV Cultura de São Paulo, e buscou interferir cada vez mais na programação da emissora.

Fundação Piratini

Com o fim da Piratini, o governo do estado afirma que as emissoras de TV e de rádio serão incorporadas pela Secretaria de Comunicação, que criará um novo modelo de gestão, terceirizando via alguma organização social ou pela iniciativa privada. Mas há rumores de que o governo poderá até extinguir os veículos.

“O discurso de modernização do estado esconde o que tem mais arcaico na comunicação pública no país. Busca transformar duas emissoras com inserção pública, com identidade com os gaúchos, em veículos governamentais, alinhados com o projeto de comunicação estatal que está vigente”, afirma Cristina Charão, empregada da Fundação.

Mesmo se continuar viva durante o governo Sartori, a TVE terá dificuldades para chegar aos gaúchos. Antes do desligamento do sinal analógico em Porto Alegre, previsto para janeiro de 2018, a TVE já havia desligado seu sinal analógico, restringindo sua cobertura, com a justificativa de economia de recursos. Até as retransmissoras do sinal da TV no interior sofrem com os cortes.

Pernambuco: o abandono da vanguarda

Em 2013, Pernambuco avançou na regulamentação da comunicação pública do estado. A criação da Empresa Pernambucana de Comunicação (EPC), inspirada até no nome na EBC, para gerir a TV Pernambuco (TVPE), representou uma novidade no fortalecimento do sistema público pelo país. Com um processo amplo de mobilização e participação, a empresa seria administrada conjuntamente por indicados pelo governo e pela sociedade, através do Conselho de Administração, composto por seis representantes eleitos da sociedade, seis indicados pelas secretarias do estado e um da Associação Municipalista de Pernambuco.

A TV Pernambuco, que iniciou suas operações como TV Tropical, teve início ainda na década de 1980, vinculada ao Departamento de Telecomunicações de Pernambuco (Detelpe), responsável pela instalação de retransmissoras de TV pelo interior do estado para atender as emissoras comerciais. A TVPE, durante um longo tempo, foi filiada às redes nacionais privadas, como o SBT e a Bandeirantes, tendo inclusive sua grade de programação arrendada para terceiros.

Mas o tempo passou e a esperança de fortalecimento da TVPE reproduziu os antigos erros do sistema público brasileiro. Com a crise econômica atingindo todos os estados, o governo de Pernambuco mais uma vez abandonou a comunicação pública estadual. Com a sede da geradora da TV em Caruaru, mas retransmissão em Recife e em 28 regiões do estado, a empresa continuou sem estrutura para produção, funcionando a partir de poucos empregados comissionados. A gestão compartilhada não foi capaz de garantir recursos para a empresa se fortalecer.

O cúmulo do abandono chegou em julho de 2017, com a migração digital das emissoras de TV de Recife. A nova empresa pública não se preparou para a transição e, sem recursos, quase ficou fora do ar na capital do estado. Sem aporte e planejamento, a solução imediata foi a transmissão do sinal pela TV da Assembleia de Pernambuco, que cedeu um subcanal para que a emissora não saísse do ar. De emergência, o legislativo local conseguiu aprovar R$ 4,2 milhões necessários para que a EPC criasse o parque de transmissão digital na capital.

A falta de compromisso do governo local reverbera na administração da empresa. O mandato dos membros da sociedade civil no Conselho de Administração da EPC venceu em 2016. Houve um processo de eleição para os novos indicados, mas até setembro de 2017 os eleitos não haviam sido empossados. Enquanto o orçamento da empresa em 2016 foi de apenas R$ 2,7 milhões, o governo do estado gastou mais de R$ 70 milhões com publicidade nos veículos comerciais.

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Em paralelo à construção da EPC, entidades da sociedade civil vem lutando para a concretização da rádio Frei Caneca FM. Depois de 56 anos de sua aprovação por lei, a rádio, vinculada à Prefeitura do Recife, iniciou sua operação de forma experimental em junho de 2016. Mas, desde então, a rádio opera apenas como uma “playlist”, tocando música 24 horas por dia. A rádio ganhou o ar, mas ainda sem nenhuma estrutura, orçamento, funcionários e, principalmente, a participação da sociedade.

Em Pernambuco, opera ainda a TVU em Recife, sendo a primeira TV Educativa do país, inaugurada em 1968, e as Rádios Universitárias FM e AM, operadas pela Universidade Federal de Pernambuco. A TV conseguiu sua migração para o digital dentro do prazo, mas o conjunto de veículos ainda carece de uma abertura à participação social na emissora. Em 2015, foi finalizada uma proposta de Conselho Curador para as emissoras da Universidade, o que, até o momento, não se concretizou.

Renato Feitosa, do Centro de Cultura Luiz Freire, eleito para o Conselho da EPC, afirma que os movimentos sociais têm uma década de acúmulo sobre as emissoras públicas da Empresa, com propostas e demandas construídas. “Mas o que não estamos conseguindo é pressionar os governos para que as coisas andem. O que se gasta em publicidade oficial poderia financiar as emissoras”, conclui.

Minas Gerais: mudanças afobadas

Minas Gerais também passou por transformações em suas emissoras públicas no último período. Em setembro de 2016, o governo do estado aprovou a criação da Empresa Mineira de Comunicação (EMC), mais uma inspirada na experiência da EBC. A nova empresa aglutinaria a Rádio Inconfidência, surgida em 1936, que era operada como empresa pública, e a Rede Minas de TV, criada em 1984, que era mantida pela Fundação TV Minas – Cultural e Educativa, que seria extinta.

A ideia da empresa pública surgiu na Assembleia Legislativa ainda em 2013, mas se viabilizou a partir da posse do governador Fernando Pimentel (PT), que aprovou no legislativo estadual um novo projeto. O resultado da nova legislação garantiu a criação de um Conselho Curador na empresa, mesmo sem determinar seu papel e como ele seria composto. A proposta sequer tocou em um tema tão necessário para emissoras públicas brasileiras, que são os instrumentos efetivos para garantir a autonomia financeira. O Comitê Mineiro do FNDC, durante o processo de aprovação da lei, questionou a falta de discussão sobre a nova empresa, sendo que o texto não contemplava pontos prioritários para o movimento, “como compromisso em fortalecer a autonomia da mídia pública, valorização da diversidade da produção regional e garantia de condições ótimas de trabalho”.

Dentro do projeto aprovado pelos deputados mineiros para a EMC, o movimento de comunicação conseguiu uma mudança importante para a construção de políticas de comunicação no estado, com uma nova normatização do Conselho Estadual de Comunicação, previsto na Constituição de Minas Gerais. O Conselho, que não funcionou em décadas, manteria sua composição original, com participação de representantes do governo, da EMC, da Assembleia, de sindicatos patronais e de trabalhadores e também de três cidadãos de ilibada reputação, mas agora com o objetivo de aprovar um Plano Estadual de Comunicação Social.

Passado o processo da criação da EMC, a extinção da Fundação TV Minas ainda não foi realizada. A pendência maior reside na concessão de TV educativa da emissora, que não se enquadraria dentro do escopo de uma empresa pública. Os servidores da fundação vivem um momento de indefinições, já que a legislação prevê a remoção dos mesmos para a Secretaria de Cultura e sua provável cessão para a EMC. Isso após anos de luta para que a fundação realizasse concurso público: a operação da TV Minas era feita de forma terceirizada por uma OSCIP.

Já a Rádio Inconfidência acabou fortalecida pela nova empresa, pois não havia nenhum instrumento de participação na rádio e o número de empregados já era muito reduzido. Romina Farcae, diretora da Associação dos Servidores Públicos da Rede Minas, reclama da falta de diálogo no processo de criação da nova empresa, não respeitando as distinções históricas entre as duas emissoras. “Houve uma luta de anos para a realização de concurso que desse autonomia para os servidores da TV e que foi ignorada. Não se pensou nos preceitos da fundação, que gere uma emissora educativa, enquanto a Rádio Inconfidência opera como uma emissora comercial, inclusive vendendo comercial. Essas singularidades foram desprezadas”, afirma.

Mas grande parte das promessas, um ano após a criação da nova EMC, não se concretizou. O destaque se deu para a inauguração da nova sede da Rádio Inconfidência e Rede Minas de TV, que passou a ocupar um espaço compartilhado também com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, com estrutura ampla e renovada. Mas até setembro de 2017, o Conselho da nova empresa pública não teve nenhum sinal de sair do papel. A falta de recurso continuou uma constante nos dois veículos. Com o impasse sobre a outorga educativa da TV, a solução para a extinção da Fundação caminha a passos lentos. O Conselho de Comunicação também seguiu sendo apenas um texto em uma lei aprovada, que após um ano continuou sem ser instalado.

Durante esse processo, ainda no final de 2016, a troca do comando da emissora gerou apreensão dos próprios movimentos sociais, temendo um redirecionamento editorial a uma linha mais próxima dos interesses do governo do estado. Em junho de 2017, o FNDC-MG criticou, em carta, a postura do governador Fernando Pimentel de não priorizar a emissora, alegando que os recursos para os veículos públicos foram de R$ 35 milhões, enquanto a despesa publicitária do governo chegou a quase R$ 100 milhões; além de cobrar a instalação do Conselho da EMC e do Conselho Estadual de Comunicação e a convocação de uma nova Conferência Estadual de Comunicação.

Em outubro de 2017, os trabalhadores da Rádio Inconfidência e da Rede Minas entraram conjuntamente em greve contra os baixos salários, os cortes de benefícios já concedidos e pela regularização das jornadas de jornalistas e radialistas. O movimento ainda criticou a falta de diálogo na implementação da EMC, além de apresentarem vários problemas nas instalações do edifício inaugurado para as emissoras, que, mesmo que novo, não garante ainda as condições de trabalho e funcionamento dos veículos.

A busca por um sistema público

O movimento iniciado de fortalecimento e expansão de uma comunicação pública autônoma, que privilegiasse a participação da sociedade e a independência dos governos e do mercado, encontra-se hoje em uma encruzilhada. Com a crise econômica e uma nova ascensão do neoliberalismo, as diversas iniciativas de comunicação pública sofrem diretamente o dilema político brasileiro.

A falta de uma regulamentação completa do artigo 223 da Constituição Federal, que delimitasse cada um dos três sistemas previstos – privado, estatal e público –, dificulta um reconhecimento objetivo da sociedade sobre as diferenças e as finalidades de cada um dos sistemas previstos. Impede, principalmente, a distinção do sistema público frente aos demais e sua interseção com o sistema estatal e o sistema privado associativo sem fins lucrativos – como rádios e TVs comunitárias. O momento de dificuldades da economia e o avanço de grupos conservadores neoliberais coloca em risco as experiências públicas de comunicação dos últimos 40 anos.

A situação de fragilidade em que a Empresa Brasil de Comunicação se encontra, com ataques contínuos à sua autonomia editorial, financeira e participativa, representa um retrocesso na construção de um sistema público robusto e relevante. Governos estaduais descompromissados também comprometem o projeto de comunicação pública, com garantia de independência editorial, autonomia financeira e uma real participação da sociedade na sua construção.

Em todo país, a distância dos recursos repassados em publicidade para os veículos privados e o investimento nas mídias públicas/estatais, mostram a dificuldade de avançar no fortalecimento de um sistema público. Ainda mais desregulamentado, principalmente após os ataques à legislação da EBC, as diversas experiências pelo país sofrem com a falta de autonomia que garanta sua relevância social, além da falta de compromisso com a participação direta da sociedade na própria gestão desse sistema.

*Gésio Passos é mestre em comunicação pela Universidade de Brasília, jornalista do quadro efetivo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), coordenador geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e associado ao Intervozes. Pesquisa temas ligados à comunicação pública, políticas de comunicação e história da mídia brasileira.

Direitos humanos e mídia no Brasil: desafios na era da convergência

Texto: Iara Moura

Em abril deste ano, a expulsão de um dos participantes do Big Brother Brasil, reality da Rede Globo, aqueceu o debate sobre violência contra a mulher e a responsabilidade da mídia no respeito e garantia dos direitos humanos. Durante várias semanas, milhares de telespectadores/as acompanharam ao vivo o desenrolar de uma situação de agressão que marcou o relacionamento abusivo entre Marcos Harter e sua parceira no programa. As cenas geraram indignação em telespectadoras e telespectadores que se manifestaram nas redes sociais exigindo a saída do agressor da casa. Pressionada pela sociedade, a emissora decidiu pela expulsão do participante, após uma intervenção da Polícia Federal.

Recentemente, o caso voltou à tona, quando Marcos, acompanhado de Yuri, outro ex-BBB também acusado de violência contra a mulher, foram anunciados como participantes do reality A Fazenda, desta vez da Record.

Marcos e Yuri dois ex-BBB acusados de violência contra a mulher
Marcos e Yuri dois ex-BBB acusados de violência contra a mulher

O episódio gerou debate dentro e fora das redes. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha para um caso de violência que se desenrolou num reality show foi um dos temas. A responsabilização da Rede Globo, que prolongou a convivência da vítima com agressor no BBB17, alimentando-se da audiência gerada pela suposta polêmica até que o ato chegasse à violência física, também. Em nota, a Rede Mulher e Mídia, que reúne entidades da sociedade civil, pediu a atuação do Ministério Público Federal no caso:

“Numa sociedade em que uma mulher é agredida a cada 5 minutos, aproveitar-se de uma situação de violência para acumular índices de audiência, até o ponto em que uma agressão física chega a ser praticada de fato, é, para nós, mais que omissão. É cumplicidade”, defendeu.

O caso descrito traz pistas importantes para compreender como a chamada mídia tradicional (rádio e TV) e as novas mídias (Internet) podem ser utilizadas para violar ou para promover direitos.

O novo e o velho coexistem

Se a reprodução de desigualdades e opressões na mídia não é propriamente algo novo, é certo que a popularização do uso da Internet e suas ferramentas tornou ainda mais complexa uma equação outrora caracterizada por posições estáticas no que diz respeito a quem emite e quem recebe a mensagem. A possibilidade de gerar conteúdos próprios e através deles criar narrativas, emitir opiniões, expressar ideias e questionar, inclusive, as mensagens transmitidas pelas poderosas empresas de radiodifusão é uma das aberturas propiciadas pela Internet.

A percepção dessa potencialidade da rede levou a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH/OEA a publicar uma declaração em 2011 ratificando que a liberdade de expressão, direito previsto no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, se aplica também à Internet. Em informe publicado em 2013, a Relatoria estabelece cinco princípios orientadores para a defesa deste direito na rede: o acesso universal, a não discriminação, o pluralismo, a diversidade e a neutralidade de rede.

Por outro lado, a defesa de tais princípios e do próprio funcionamento da rede em consonância com uma arquitetura aberta, horizontal e livre, como previsto no Marco Civil da Internet, esbarra na conclusão de que velhas opressões e violências se reproduzem no ambiente online e voltam a recair sobre a população mais vulnerável: crianças, mulheres, jovens, LGBTs e negros e negras.

“A Internet fez avançar muito os grupos historicamente excluídos e discrimininados, mas ela é também um campo muito aberto à violência, à discriminação e à homofobia”, destaca Carlos Magno, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersex (ABGLT).

Quando se fala da violência contra as mulheres, os casos de perseguição, disseminação não consentida de imagens íntimas (NCII), ameaça, assédio, violência psicológica, censura e falsificação de identidade vêm se multiplicando. O racismo também se espraia nas redes culminando, para além dos discursos de ódio, ameaças e injúrias, em ataques coordenados (trollagem) de derrubada de perfis e páginas. Também este ano, a artista negra Michele Mattiuzzi sentiu na pele o ódio de grupos neofascistas.

A escritora e performer liderava a fase final de um certame, o prêmio Pipa, quando assistiu ao terceiro colocado na votação popular ultrapassar vertiginosamente sua posição. A virada foi resultado de uma ação articulada para impedir que ela viesse a ser vencedora. Ao mesmo tempo em que os votos para o concorrente cresciam exponencialmente, a artista foi alvo de mensagens e manifestações racistas, misóginas e gordofóbicas em seu perfil pessoal do Facebook e em suas postagens que denunciavam a suspeita virada.

Outra vítima dos ataques cibernéticos foi a cantora Pablo Vittar. Em agosto último, a artista teve o seu canal no Youtube, com quase 3 milhões de seguidores, invadido por hackers que excluíram o seu videoclipe “K.O.”, incluíram uma fotografia do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e adicionaram três vídeos com letras ofensivas, associando a cantora à pedofilia.

Também no que diz respeito aos direitos das crianças em sua relação com a mídia, observa-se que algumas situações e problemas coexistem nos meios tradicionais e na Internet. É o caso, por exemplo, da busca por firmar classificação etária para as programações (ou para as aplicações, no caso da Internet) e de pensar limites aos apelos comerciais da propaganda direcionada a esse público nas programações das TVs e nos canais do Youtube. Dados levantados pela pesquisadora Luciana Bittencourt, da ESPM, demonstram que, dos 100 canais mais vistos do Youtube, 1/3 são de conteúdo infantil. A pesquisa TICs domicílios de 2015 apurou que 79% das crianças e adolescentes brasileiras de 9 a 17 anos estão conectadas (cerca de 23 milhões, contra 3,6 milhões que nunca acessaram a rede). Desses, 1,4 milhão declararam que se sentiram discriminados na rede ou sofreram alguma violência no ano da pesquisa.

Em 2016, o Supremo Tribunal Federal derrubou a vinculação à classificação indicativa nas emissoras de TV, fragilizando ainda mais o instrumento de proteção da infância em sua relação com a mídia. No mesmo ano, o MPF aceitou uma denúncia do Instituto Alana relacionada ao caso de 15 empresas que oferecem produtos às crianças para que elas anunciem para outras crianças. “No nosso entendimento a abusividade é das empresas. A criança que faz o meio de campo nessa prática está também na condição de dupla vulnerabilidade, sendo anunciante e estando exposta a esse tipo de mensagem”, explica Renato Godoy, assessor de Relações Governamentais do Instituto.

Neste cenário, é desafiador pensar a proteção e promoção de direitos humanos num contexto midiático onde convivem analógico e digital, online e offline, no qual novas práticas políticas, sociais e identitárias esbarram na ressaca de ondas reacionárias.

Enquanto isso, na TV

Segundo dados da “Pesquisa Brasileira de Mídia 2016”, divulgada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência, quase 90% dos/as brasileiros/as se informam pela televisão sobre o que acontece no país, sendo que 63% têm na TV o principal meio de informação. A internet está em segundo lugar, como meio preferido de 26% dos entrevistados e citada como uma das duas principais fontes de informação por 49%.

Embora a TV aberta lidere com bastante folga os índices de penetração, o aumento do alcance do acesso às tecnologias de streaming, de vídeo sob demanda (VOD) e da própria TV por assinatura há algum tempo tiraram os produtores de conteúdo e radiodifusores da zona de conforto. As redes de TV erigidas sob poderosos monopólios nacionais vêm correndo atrás do prejuízo com a produção de conteúdo online e até com mudanças nas narrativas, com tramas mais rápidas e outras características próprias das séries estrangeiras, por exemplo.

Porém, a esse esforço de acompanhar os novos tempos, somam-se velhas formas de disputa de audiência, marcadas por opções estéticas e políticas de exploração da violência, apelos sensacionalistas, erotização precoce, manipulação político-religiosa, dentre outras estratégias que culminam na violação de direitos.

O caso dos programas policialescos é destaque nesse cenário. Em 2015, um monitoramento da Rede Andi em parceria com o Intervozes assistiu a 28 destes programas durante 30 dias e revelou a ocorrência de 4,5 mil violações de direitos e 15.761 infrações a leis brasileiras e a acordos multilaterais ratificados pelo Brasil. As violações mais comuns identificadas foram: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime, à violência e à desobediência às leis ou às decisões judiciais; exposição indevida de pessoas e famílias; discurso de ódio e preconceito; identificação de adolescente em conflito com a lei e violação do direito ao silêncio, tortura psicológica e tratamento degradante.

De lá para cá pouco mudou o cenário. Uma busca rápida no conteúdo disponibilizado online pelo programa Cidade Alerta RJ, por exemplo, exibido pela Record, é reveladora da exploração da violência contra a mulher. Somente no dia 19/09/2017, das 10 reportagens destaques no site do programa, três tratavam deste tipo de crime. Nas três, os detalhes das ocorrências são acompanhados da exposição de vítimas, parentes e acusados por meio de fotos e entrevistas. Em uma delas, é veiculado o vídeo do momento em que uma das vítimas é agredida a facadas. Apresentadores, repórteres e entrevistados/as levantam hipóteses sobre a motivação dos crimes: “a gravidez teria motivado”, “ele encontrou fotos íntimas dela mantendo relações sexuais com outro cara”, “segundo testemunhas, o homem não aceitava o fim do relacionamento”. Não há em nenhum momento referência à Lei Maria da Penha.

Neste contexto, o assassinato da jovem musicista Mayara Amaral, em julho deste ano, trouxe à tona o debate sobre o enquadramento da violência contra a mulher pela mídia. Inicialmente, os acusados de matarem a vítima a marteladas e depois carbonizar o corpo foram enquadrados no crime de latrocínio. Depois, a defesa alegou o uso de drogas por parte de um dos suspeitos. Em post no Facebook, a irmã da vítima defendeu a tese de feminicídio e criticou as narrativas veiculadas pela mídia:

“Quando escrevem que Mayara era a ‘mulher achada carbonizada’ que foi ensaiar com a banda, ela está em uma foto como uma menina. Quando a suspeita envolvia ‘namorado’, hiper-sexualizam a imagem dela. Quando a notícia fala que a cena do crime é um motel, minha irmã aparece vulnerável, molhada na praia. Quando falam da inspiração de Mayara, associam-na com a história do pai e avô e a foto muda: é ela com o violão, porém com sua face cortada. Esse tipo de tratamento não representa quem minha irmã foi. Isso é desumanização”, defende. Diante da polêmica, o Cidade Alerta MS, no programa que foi ao ar em 31/07/2017, chegou a convidar um advogado criminalista para explicar no estúdio a diferença entre as tipificações e penas de feminicídio e latrocínio.

Não obstante este aumento de visibilidade que se dá quando da ocorrência de crimes bárbaros com o de Mayara, de Eloá e de tantas outros que tiveram forte apelo midiático, a violência contra a mulher é explorada de maneira recorrente não só nos programas policialescos, mas em outras programações da TV aberta. Como relatamos no início deste texto, é também usada como instrumento para gerar polêmica e atrair audiência nos realities shows. E, nestes programas, as violações não se restringem aos direitos das mulheres.

Em A Casa, também da TV Record, exibido em julho deste ano, há uma competição entre 100 participantes que são colocados numa casa de 120 metros quadrados, com infraestrutura e espaço para uma família de quatro pessoas e que devem sobreviver em condições degradantes e humilhantes, como falta de lugar para dormir, comida escassa e ausência de condições mínimas de higiene. Por conta disso, o reality foi denunciado ao Ministério Público e, de acordo com o colunista da UOL Maurício Stycer, um dos participantes teve um surto e ameaçou se matar, após ser afastado por ter contraído conjuntivite.

Os humorísticos também fazem uso recorrente da banalização da violência em busca de atrair audiência. Os ataques recorrentes do humorista Danilo Gentili, atualmente à frente do The Noite, exibido pelo SBT, à deputada Maria do Rosário (PT/RS) são exemplares disso. Num dos mais recentes, em maio deste ano, o apresentador publicou um vídeo em sua página pessoal do Facebook no qual ofende a parlamentar e rasga uma notificação da Procuradoria Parlamentar que o avisava de uma denúncia de difamação aberta por Maria do Rosário. No vídeo, Gentili esconde a primeira e a última sílaba da palavra deputada, deixando visível a inscrição “puta”. Após isso, rasga a intimação e coloca os pedaços dentro da calça. Embora a acusação de Rosário refira-se a ofensas e injúrias feitas pelo apresentador em suas contas pessoais no Twitter e no Facebook, o apresentador já utilizou de seu expediente na TV aberta para debochar de violência sexual contra a mulher e fazer apologia a violações de direitos e desrespeito às leis.

Diante desta situação, vale questionar: quais as diferenças no tratamento e nas respostas às violações de direitos cometidas por emissoras de rádio e TV daquelas praticadas no ambiente online?

Diferente funcionamento, diferente regulação

Como visto, em sua busca incansável por audiência e lucro, as emissoras não têm tido uma atitude ativa no sentido de prevenir e combater violações de direitos humanos. E tal atitude não seria um favor ou uma ação de caridade cristã por parte das empresas: é previsão que consta na Constituição Federal e em diversos pactos e tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A própria Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, estabelece como tipos de violência contra a mulher a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. E determina, em seu artigo 8º, inciso III, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.

O problema é que o Brasil não conta com um órgão autônomo que faça o papel de fiscalizar essas situações. Com uma atuação frágil e pouco efetiva, cabe ao Ministério das Comunicações, hoje fundido no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), tal responsabilidade. Experiências de outros países mostram que caminhos diferentes são possíveis.

Em 2012, a Argentina criou a Defensoria do Público, órgão de Estado independente com prerrogativas de fiscalizar os canais de rádio e TV e propor políticas públicas na promoção e defesa do direito à comunicação e à liberdade de expressão no país.

Na França, em 2011, o Conselho Superior do Audiovisual (CSA), após realizar dezenas de audiências públicas sobre os reality shows, lançou um documento com recomendações às emissoras relacionadas à proteção dos direitos humanos.

O documento solicita aos produtores dos programas cuidados na seleção dos/as participantes que incluam acompanhamento médico e psicológico antes, durante e depois do programa; encoraja a identificação da faixa etária indicada; lembra que, qualquer que seja o conceito do reality, os/as participantes não deverão ser colocados em situações degradantes ou que os/as levem a adotar ou se submeter a atitudes humilhantes; e pede que os contratos com os/as participantes fiquem sujeitos à análise do CSA nas questões de sua competência.

Além disso, orienta que “os produtores e diretores reflitam sobre a sua responsabilidade social e ética em relação aos valores veiculados nos reality shows, susceptíveis de serem assistidos pelo público jovem qualquer que seja a faixa etária definida, e que podem encontrar eco particularmente forte na Internet, notadamente nos espaços comunitários (fóruns, blogs, redes sociais…) onde os conteúdos são menos regulados”.

A preocupação do órgão francês com o fato dos conteúdos transmitidos pelas redes de TV encontrarem eco também nas redes sociais aponta outro desafio que há que se ter em vista. Por ter um funcionamento diferente, a regulação da Internet também se dá de maneiras díspares da regulação dos meios tradicionais. Sendo assim, as respostas cabíveis ao Estado, às empresas, ao Judiciário e à sociedade civil, também.

A afirmativa de que os conteúdos são menos regulados na rede diz da dificuldade de se identificar e circunscrever responsabilidades num cenário de multi produtores e de atualização em tempo real. Quando se trata de uma rede de TV, concessão pública, com transmissão de conteúdo para milhares de pessoas ao mesmo tempo, é mais fácil identificar a autoria e sentido das violações. O que, por outro lado, não necessariamente resulta em ações efetivas por parte do Estado ou das empresas, como já apontado.

Pensando o problema da violência contra a mulher na Internet, Thandara Santos, da Marcha Mundial das Mulheres, traz uma reflexão interessante para se pensar a conexão entre os mundos online e offline na reprodução do machismo e as formas de combatê-lo. Para ela, é fundamental entender a Internet como um espaço importante de articulação das mulheres, como nos casos da mobilização gerados em torno das hashtags #MeuPrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e #NiUnaMenos. Ao mesmo tempo, a ativista alerta para urgência de se construir formas de enfrentamento às violências de gênero online.

“Um primeiro alerta é não ficar preso aos episódios da violência da mulher na rede e entender o debate de uma forma mais complexa. Entender violência contra a mulher de uma forma estruturante diz respeito à maneira como esse sistema capitalista está engendrado também nas redes. Se a gente fica preso em alguns casos, a gente pode acabar comprando a ideia de que a resposta é o aumento do controle sobre a Internet, o aumento da interferência do capital sobre essa rede e sobre a neutralidade da rede”, explica.

Violência de gênero online

A cientista social e fotógrafa Manu Justo teve, em setembro deste ano, uma postagem censurada no Facebook. O post tratava-se de um convite para a exposição Puta Que Pariu, projeto que reúne autorretratos de mulheres mães e explora a relação entre gênero e sexualidade. A foto era a imagem de uma vagina com uma breve descrição e convite. Ao postar, ela recebeu uma mensagem que justificava a remoção do conteúdo por não seguir os “padrões da comunidade Facebook”.

Convite para a exposição Puta Que Pariu censurado pelo Facebook
Convite para a exposição Puta Que Pariu censurado pelo Facebook

Como este, são recorrentes os casos de censura a imagens de mulheres amamentando ou de peito de fora durante manifestações políticas. Em 2015, a censura a uma foto de uma indígena que faz parte do acervo do Ministério da Cultura chamou atenção para a prática e gerou questionamentos quanto aos parâmetros estabelecidos pela plataforma e os limites colocados à liberdade de expressão. Neste sentido, a falta de transparência das políticas da plataforma e do próprio funcionamento dos algoritmos é algo central.

As violações de direitos no ambiente online, porém, estão longe de ficar a cargo apenas das plataformas. As velhas conhecidas práticas de invasão, hackeamento, vazamento de dados pessoais, roubo de identidade, criação de perfis fakes, ameaças de violência física, estupro, assédio, perseguição e ameaça às mulheres, por parte de parceiros ou ex-parceiros, ou de grupos LGBTfóbicos, racistas e machistas, se reproduzem no ambiente online e ganham graves contornos.

Num dos casos mais recentes e notórios, a justiça do Piauí determinou, em agosto de 2017, a prisão provisória por 30 dias de um homem acusado do crime de “estupro virtual”. Segundo a ação, o acusado vinha exigindo que sua ex-namorada se masturbasse e lhe enviasse fotos e vídeos do ato, sob ameaça de divulgar imagens dela nua nas redes sociais (“sextorsion”).

A inovação jurídica consiste no fato de que, embora não exista o tipo “estupro virtual” no Código Penal brasileiro, o acusado foi enquadrado com base no artigo 213, que prevê a condenação de quem obriga alguém a praticar qualquer tipo de ação de cunho sexual contra sua vontade, sob ameaça ou uso de violência.

Pensando neste cenário, Patricia Cornils, da Actantes, aponta a necessidade de que as mulheres se empoderem das ferramentas que as novas mídias possibilitam e das estratégias de autoproteção como forma também de contrapor-se às violências e proteger a rede do controle abusivo por parte das corporações e do Estado.

Mariana Valente, do InternetLab, defende a busca por soluções conjuntas do Estado, da sociedade civil e das empresas e aponta caminhos possíveis para além da criminalização. “Em 2017, a gente já sabe que a nossa vida e a Internet estão muito misturadas. A gente sabe que ela tem servido tanto pra ativismo quanto pra prática de violência contra grupos subalternizados. Isso mostra que a gente tem que sentar na mesma mesa e procurar soluções em novos termos. Primeiro em multicamadas e depois pensar um pouco fora da caixinha. Por que não pensar em comissões multissetoriais pra lidar com a questão de censura e violência na Internet? Isso é uma coisa que a Nova Zelândia está fazendo”, aponta.

Estas são algumas propostas apontadas pela Associação para o Progresso das Comunicações (APC), rede internacional que reúne entidades da sociedade civil que atuam no tema. Na publicação, resultado de um encontro internacional, são listados 15 Princípios para uma Internet Feminista que vão desde a garantia do direito ao acesso, o combate à violência online e a importância de manter preservada a privacidade, até o anonimato e a proteção de crianças e adolescentes.

Desafios entre o online e o offline

Em 2018, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos de existência. Junto dela, a concepção de que seres humanos são dotados de direitos inalienáveis, interdependentes e indivisíveis vem trilhando um caminho de consolidação que alterna períodos de refluxos e de ascendência.

No que tange à Internet, o Brasil precisa enfrentar, a um só tempo, o desafio de defender o caráter livre, aberto e plural e garantir a proteção aos direitos humanos na rede, e paralelamente correr atrás da dívida histórica que relegou metade da população a uma vida offline, no que se refere aos índices de acesso domiciliar.

Neste sentido, ficam as questões: como garantir a universalização do acesso num contexto em que a lógica de mercado se impõe, privilegiando regiões e parcelas da sociedade com maior poder aquisitivo? Como cobrar das plataformas maior transparência quanto às suas políticas de conteúdo, de privacidade e o funcionamento dos algoritmos? Como garantir espaços de participação e decisão multissetorial na governança da Internet (e contrapor-se aos ataques ao Conselho Gestor da Internet)? Como buscar respostas mais rápidas e eficazes às vítimas de violência online sem, necessariamente, recorrer à criminalização?

Enquanto os usos da Internet impõem alguns novos desafios como os dispostos, na radiodifusão persistem as questões conhecidas e enfrentadas desde o início deste século: como inverter a lógica dos grandes monopólios, centrados no lucro e na busca pela audiência a qualquer custo? Como aumentar a diversidade e pluralidade neste contexto? Como garantir uma participação da sociedade civil em todas as etapas do circuito, passando pela produção, recepção e consumo? Que papel cabe ao Estado na fiscalização e promoção dos direitos quando falamos de concessões públicas, como é o caso do rádio e da TV?

No Brasil atual, assiste-se a um período de crise político-econômica marcado pelo retrocesso na garantia e proteção de direitos, compreendidos em seu sentido mais amplo, abarcando os Direitos Humanos Econômicos Sociais, Culturais e Ambientais (Dhescas). Tal cenário tem reverberações profundas na vida cotidiana de mulheres, indígenas, LGBTs, crianças, jovens, negros e negras, defensores e defensoras de direitos humanos. O agravamento das condições materiais de existência, o aumento da violência contra a mulher, LGBTs, comunidades tradicionais e os ataques aos direitos civis são algumas delas.

O aumento exponencial no número de mortos nas favelas e periferias, nos presídios e as chacinas no campo também é revelador desta situação. Neste sentido, outro episódio paradigmático da relação entre mídia e direitos humanos foi o brutal ataque desferido contra os índios Gamela, na localidade de Viana, interior do Maranhão, em maio deste ano. A barbárie que resultou em pelo menos 13 indígenas gravemente feridos (com golpes de facas e membros decepados) foi antecedida por uma verdadeira campanha levada a cabo pela rádio local, conclamando e justificando a violência contra as vítimas.

No programa, que foi ao ar dois dias antes do fato, transmitido pela Rádio Maracu, ouve-se por diversas vezes: “dizem que são índios”, “arruaceiros”, “pseudo-índios” e “precisamos acabar com isso”, “não vamos tolerar”. São 41 minutos onde se sucedem no microfone políticos locais que, a despeito do que coloca a Constituição Federal, são sócios proprietários do grupo que detém a rádio. Destaca-se a fala do deputado federal Aluísio Mendes (PTN-MA), também reproduzindo discurso preconceituoso e de incitação à violência.

A partir desta imagem, pensar a proteção de direitos em sua relação com a mídia no Brasil é pensar desafios que se desenrolam não só no âmbito dos meios tradicionais ou das novas mídias, mas também dizem respeito a processos econômicos, sociais e políticos amplos que reproduzem desigualdades e violências em várias camadas da vida e, por isso mesmo, necessitam ser enfrentados de maneira estrutural.