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Proteção de dados: lei apresenta avanços, mas não esgota desafios à privacidade e liberdade de expressão

Texto: Luciano Gallas*

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) foi sancionada em agosto de 2018 com o objetivo de “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”, conforme determinado em seu Artigo 1º. Ela entraria em vigor em fevereiro de 2020, 18 meses após a aprovação e depois de pelo menos oito anos de debates envolvendo o poder público e os diversos setores da sociedade, mas uma Medida Provisória de dezembro de 2018 adiou a vigência para agosto de 2020. O período anterior à entrada em vigor da legislação, conhecido como “vacatio legis” no meio jurídico, é tido como necessário para a adequação dos diversos atores que serão afetados por ela.

A Lei 13.709/2018 é considerada um avanço significativo em termos de proteção à privacidade e à liberdade de expressão no Brasil, tanto no meio on-line quanto no off-line, constituindo uma base legal de segurança para transações e o intercâmbio internacional de dados. Sua aprovação tardia em relação a outros países demonstra o quanto o Brasil ficou atrasado em termos de regulação de coleta e tratamento de dados pessoais. Somente na América do Sul, Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai já contam atualmente com legislações específicas no setor – os dois primeiros, com leis implementadas nos anos 2000 e 1999, respectivamente. Na América Latina, ainda Costa Rica, Honduras, México, Nicarágua, Panamá e República Dominicana, entre outros países, possuem normativas do tipo. Em todo o mundo, são mais de 125 países com legislações de proteção de dados.

Na Europa, praticamente todas as nações já têm legislação regulatória para a coleta e processamento de dados. No continente, data de janeiro de 1981 a publicação de texto normativo para a proteção de dados de caráter pessoal, o qual constituiu a base para a elaboração de uma diretiva de 1995. Esta, por sua vez, viria a ser revogada pela publicação do Regulamento nº 679 do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, de abril de 2016, que entrou em vigor em maio de 2018. A norma europeia regula, inclusive, as relações comerciais entre as nações europeias e países de outros continentes, pois se aplica ao tratamento de dados de pessoas residentes na Europa em qualquer caso, mesmo quando a empresa responsável pela coleta e/ou o tratamento das informações tenha sede em outros continentes. A criação da lei brasileira se torna, portanto, uma condição para que o Brasil preserve suas relações comerciais com os países europeus.

“A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais vem para tentar regular um mercado de coleta massiva e indiscriminada de dados dos cidadãos e de tratamento, compartilhamento e, muitas vezes, venda destas informações, no setor privado e até mesmo pelo poder público”, afirma Bia Barbosa, coordenadora executiva do Intervozes, entidade integrante da Coalizão Direitos na Rede. Segundo ela, a lei é fundamental para combater discriminações. “Um serviço pode ter cobranças diferenciadas em função dos perfis de consumo, por exemplo, como no caso do plano de saúde que tem acesso ao tipo de medicamento que você usa e cuja compra está sendo monitorada sem você saber. Ou pode ocorrer discriminação em um emprego, em função de dados pessoais que chegaram ao conhecimento daquela empresa sem que você soubesse”, explica a jornalista.

Créditos: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Créditos: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Do ponto de vista do setor privado, também há uma avaliação positiva quanto à criação da legislação. “A Lei procura dar mais transparência e traçar limites na maneira como hoje os dados pessoais são usados e dar direitos aos titulares”, diz Andriei Gutierrez, coordenador do Comitê Regulatório da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES) e cofundador do Movimento Brasil, País Digital. Para ele, a Lei 13.709/2018 tem também o papel de “estimular a confiança do cidadão de que ele pode seguir usando serviços e dispositivos, pois, de uma certa maneira, ele vai estar amparado juridicamente”. “Se a Lei for usada de uma maneira transparente e que atenda às expectativas, o cidadão vai ter mecanismos de apelação jurídica. E essa confiança é essencial para fazer avançar todo o desenvolvimento econômico e social baseado em dados”, completa.

Apesar dos avanços obtidos com a futura vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, há ainda muitos desafios a serem enfrentados. O principal deles é a atuação independente de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) prevista na legislação, a qual foi criada por medida provisória no apagar das luzes do governo Michel Temer, no dia 28 de dezembro de 2018.

Autoridade vinculada à Casa Civil

Em uma legislação tão complexa como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, é essencial a atuação autônoma e independente de uma agência reguladora. É papel desta autoridade fiscalizar o cumprimento da lei tanto pelo setor privado quanto pelo poder público e orientar quanto às formas previstas na legislação para a coleta e o tratamento dos dados. No entanto, o texto da legislação sofreu vários vetos por parte do Poder Executivo, o principal deles justamente à criação de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Na última sexta-feira do mês de dezembro, entre os atos derradeiros de Michel Temer à frente do Executivo, foi publicada no Diário Oficial da União a Medida Provisória (MP) 869/2018 de criação da autoridade, mas com sérias limitações à sua autonomia. A MP tem validade de 60 dias, prorrogável por mais 60, período em que deve ser aprovada pelas duas casas do Congresso para que efetivamente entre em vigência.

O presidente Michel Temer discursa na cerimônia de sanção da Lei Geral de Proteção de Dados, no Palácio do Planalto. Créditos:  Valter Campanato/Agência Brasil
O presidente Michel Temer discursa na cerimônia de sanção da Lei Geral de Proteção de Dados, no Palácio do Planalto. Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil

A criação tanto da Autoridade Nacional de Proteção de Dados quanto do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade estava prevista, respectivamente, nas seções I e II do capítulo IX da Lei 13.709. Contudo, a MP de Temer criou um órgão vinculado à Casa Civil – e, consequentemente, à Presidência da República, o que compromete a independência de suas decisões e sua autonomia orçamentária, deixando-a a mercê dos interesses econômicos e políticos do governo de turno. Também compromete a separação de poderes, pois um órgão vinculado ao Poder Executivo Federal deverá fiscalizar a coleta e o tratamento de dados pelos poderes Legislativo e Judiciário, assim como pelos demais entes federativos (municípios, estados e Distrito Federal). Além disso, a MP altera a Lei 13.709/2018, abrindo espaço para que os pedidos de revisão feitos por usuários sobre decisões automáticas tomadas nos sistemas de tratamento de dados não tenham que ser feitos necessariamente por seres humanos – ao contrário do que ocorre na regra europeia, por exemplo.

A Medida Provisória de Temer ainda desvincula a nomeação dos cinco membros do Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados de sua aprovação ou sabatina pelo Congresso Nacional, diferentemente do que ocorre hoje, por exemplo, com outras duas autoridades reguladoras: a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que fiscaliza a telefonia fixa e móvel e as transmissões de rádio e televisão, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que apura situações de abuso do poder econômico. Além de facilitar o compartilhamento de dados entre o poder público e o setor privado, comprometendo a privacidade dos usuários e enfraquecendo a Lei antes mesmo de sua entrada em vigor.

Em reunião com o setor privado à época da aprovação da lei, Michel Temer apontava entre suas restrições à criação da ANPD a possibilidade de questionamentos jurídicos futuros sobre um ato do Congresso Nacional criar uma estrutura administrativa no âmbito do Poder Executivo, o que para ele caracterizaria um “vício de iniciativa” – já que este tipo de órgão só poderia ser criado por um ato do Executivo. Outra ressalva do ex-presidente dizia respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal, dadas as limitações impostas para a criação de novos gastos nos últimos seis meses de governo. Por fim, um terceiro fator motivador para o veto à criação da autoridade reguladora alegado por Temer durante a reunião dizia respeito especialmente à autonomia funcional que a ANPD teria diante do governo. Ou seja, na visão de Michel Temer, a independência de atuação da autoridade, que seria justamente a característica essencial para que pudesse atuar efetivamente como uma agência reguladora, era vista por Michel Temer como um possível problema para o governo.

Sem independência, lei será enfraquecida

A atuação independente de uma agência reguladora é essencial para que a lei possa ser aplicada adequadamente. Do contrário, a legislação será mais uma entre tantas a existirem somente no papel, sem ter efeito prático na organização social. A sua independência administrativa também é imprescindível quando se leva em conta que tal autoridade deve fiscalizar o próprio poder público, que igualmente precisa responder à legislação. “Caso essa autoridade esteja subordinada à Casa Civil ou à Presidência da República, está muito claro que seu poder de fiscalização e de sanção sobre os órgãos públicos vai ser muito comprometido”, destacava Bia Barbosa antes da publicação MP 869/2018, lembrando que todas as esferas federativas terão que respeitar as formas de tratamento e os cuidados previstos na Lei em relação aos dados pessoais dos cidadãos. E ressaltava que “é por isso que a imensa maioria dos países que têm leis de proteção de dados pessoais têm também a atuação de autoridades independentes, para poder garantir a fiscalização do cumprimento da legislação por parte do poder público”.

Para Flávia Lefèvre, membro do Intervozes e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), sem a atuação independente e autônoma de uma autoridade com efetivos poderes regulatórios, “a lei passa quase a ser inócua, na medida em que a regulação e fiscalização por um órgão especializado são fundamentais no setor, dada a complexidade da tecnologia envolvida”. Ela enfatiza que não há como os cidadãos controlarem todos os aspectos da aplicação da lei sem a atuação autônoma de uma agência reguladora provida de “ferramentas institucionais que promovam a aplicação da lei sobre os agentes econômicos”.

A advogada aponta que são justamente os governos que mais coletam e tratam dados dos cidadãos, especialmente informações sensíveis, e que, até para fortalecer suas relações comerciais junto à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil “precisa atender a uma série de requisitos, entre eles, possuir não só uma lei de proteção de dados pessoais, mas também um organismo de regulação e controle”. E ressalta que

a lei perde efetividade sem uma Autoridade de Proteção de Dados que tenha de fato autonomia e independência em relação ao governo.

Andriei Gutierrez também considera a atuação da ANPD como fundamental para a aplicação da lei, principalmente em pontos da legislação que ainda carecem de regulamentação. Para ele, o mais importante da autoridade não seria a regulamentação em si ou a aplicação da lei e de multas. “Eu considero que o mais importante dessa autoridade está relacionado à transparência e a um uso responsável dos dados, ela tem o papel fundamental de ajudar a sociedade brasileira a mudar sua mentalidade”, pondera.

De acordo com o coordenador do Comitê Regulatório da ABES, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados terá, assim, o papel fundamental de organizar campanhas de educação e de treinamento, especialmente dedicadas a pequenas e médias empresas para que melhorem suas práticas, mas também direcionadas à conscientização dos usuários em geral sobre a importância do tema. Para ele,

talvez o maior desafio seja mudar a mentalidade do setor privado, do governo e do cidadão. É preciso que tenha alguém pensando isso e a Autoridade de Proteção de Dados tem essa função. Mais importante até do que multar e regulamentar.

Um consenso possível

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais foi gestada ao longo de toda a última década, tendo recebido contribuições de amplos setores da sociedade para a sua elaboração. Ainda em 2010, ocorreu o primeiro processo de consulta pública sobre seu teor, retomado depois, em 2015, com uma segunda consulta. Neste intervalo de cinco anos, as discussões sobre a necessidade de uma lei que protegesse o direito à privacidade dos usuários e a liberdade de expressão no meio digital continuaram no contexto das organizações da sociedade civil. Ao mesmo tempo, outras concepções, focadas majoritariamente no interesse econômico, defendiam uma legislação que concedesse maior liberdade para o tratamento e compartilhamento das informações. Somente após a segunda consulta pública é que o texto foi apresentado na Câmara dos Deputados, na forma do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 53/2018. Na Casa, foi então tema de diversas audiências públicas.

De acordo com o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais na Câmara, a legislação tem um caráter principiológico: “Consolidamos conceitos de forma precisa, como o de dado pessoal, dado sensível, dado anônimo, legítimo interesse, consentimento, segurança da informação e responsabilidades para quem violar a privacidade”. Segundo ele, a lei proposta também é flexível para que se adapte às inovações tecnológicas, além de ter incorporado “o que há de mais avançado na legislação internacional”.

O parlamentar enfatiza que a legislação tornou-se ainda mais urgente depois do mega escândalo de vazamento de dados de 87 milhões de usuários do Facebook no início de 2018, o que afetou diretamente 443 mil brasileiros. Também lembra que, desde maio de 2018, entrou em vigência plena o Regulamento da União Europeia que veda a transferência internacional de dados para países que não possuam legislação capaz de garantir a mesma proteção de dados estabelecida na Europa. Sem uma lei que regule de modo eficaz a coleta e o tratamento de dados pessoais, portanto, o Brasil pode perder investimentos e se isolar cada vez mais no cenário mundial, ficando ultrapassado em termos de inovação tecnológica.

Brasília - Comissão Especial sobre Tratamento e Proteção de Dados Pessoais (PL 4.060/12) promove audiência pública para debater o legítimo interesse.  Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil
Comissão Especial sobre Tratamento e Proteção de Dados Pessoais (PL 4.060/12) promove audiência pública para debater o legítimo interesse. Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil

 

“O texto final foi o mais consensuado e equilibrado possível, dentro de uma tensão existente entre liberdade e direitos fundamentais e os interesses econômicos no tratamento dos dados pessoais”, avalia Bruno Bioni, advogado do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto Br/NIC.br e membro da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). Para ele, houve ampla participação da sociedade civil tanto nas consultas públicas como também nos debates realizados no Congresso Nacional, o que gera um saldo positivo. “A lei aprovada contempla uma função dupla de qualquer lei de proteção de dados pessoais: proteger as liberdades fundamentais do cidadão e, ao mesmo tempo, garantir o uso dos dados pessoais dentro de várias atividades econômicas dependentes destes dados, não só no âmbito do setor privado, mas também no âmbito do setor público”, sintetiza.

A avaliação é corroborada por Andriei Gutierrez. “Nem todos saíram contentes. Há elementos [na Lei] que poderiam estar mais adequados, do ponto de vista do desenvolvimento de ecossistemas de inovação. Certamente não fomos atendidos 100%, como imagino que sociedades de defesa dos direitos humanos, de defesa dos consumidores, também têm pontos que não foram atendidos. Mas, ela vem pacificar esse tema e é resultado da busca pelo equilíbrio”, destaca ele.

Na avaliação de Bioni, os debates públicos realizados pelo Ministério da Justiça serviram para aproximar atores com posicionamentos distantes e montar um consenso mínimo para aprovação da proposta no Legislativo. Quando o projeto foi apresentado na Câmara, “os atores que tinham interesses antagônicos e conflitantes, já tinham feito contribuições que ensaiassem o meio termo para suas respectivas posições e isso facilitou o debate feito no Congresso Nacional”, pondera o advogado, destacando a importância dos processos de consultas públicas para aproximar interesses de diferentes espectros e amadurecer debates em curso.

Flávia Lefèvre, por sua vez, entende que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais “é fundamental num cenário em que as relações entre consumidores e fornecedores, cidadãos e governos se dão cada vez mais no ambiente da Internet, com coleta e tratamento de dados cada vez mais intensos. O que viabiliza um monitoramento profundo de informações a nosso respeito e, consequentemente, uma invasão indesejada e abusiva da nossa privacidade”. Situação, portanto, que precisava ser regulada por meio da legislação.

Segundo Lefèvre, ao estabelecer obrigações como a de que o titular deve declarar consentimento para que possa ocorrer o tratamento dos seus dados, a Lei 13.709/2018 torna-se “um grande passo institucional e civilizatório, tanto no campo pessoal quanto no campo do comércio internacional, que cada vez mais exige que os países possuam suas leis e autoridades regulatórias e fiscalizadoras da exploração econômica”.

Ameaças à liberdade de expressão e à democracia

Atualmente, muito da informação que recebemos e a partir da qual formamos nossas opiniões sobre os fatos públicos são acessadas por meio das redes sociais e dos sites de buscas. Em muitos casos, essas informações nos são disponibilizadas com base em um perfil composto sobre nossos interesses e preferências, a partir do nosso histórico de uso dessas mesmas plataformas. Em última análise, a nosso acesso à informação é limitado pela coleta e tratamento de nossos dados pessoais, o que tem implicações diretas também no exercício da liberdade de expressão.

“Um grande reflexo disso é o chamado efeito bolha: você tem acesso a informações que são condizentes com um perfil pré-formado, pré-concebido, sobre uma série de assuntos”, aponta Bruno Bioni. “Isso dificulta que você tenha acesso a informações que são contrárias às suas e com as quais você poderia até mesmo refletir criticamente e mudar de posição e isso pode reforçar o ódio e a intolerância”, explica. Segundo ele,

numa dinâmica em que o acesso à informação é calibrado pelo uso de nossos dados, o direito à liberdade de expressão é cada vez mais congestionado pelo direito à proteção de dados pessoais.

“Por conta disso, a gente costuma dizer que o direito à proteção dos dados pessoais e também o direito à privacidade são como um guarda-chuva para outras liberdades, entre elas a liberdade de expressão”, complementa o advogado.

Flávia Lefèvre concorda que a plena liberdade de expressão não será possível se o direito à privacidade for desrespeitado. “Num ambiente em que ficamos expostos, sem a proteção dos dados que revelam nossos aspectos de personalidade e que permite um monitoramento constante de nossas atividades, não há como exercer plenamente a liberdade de expressão” diz. “Isso traz efeitos negativos para o livre fluxo de informações e, consequentemente, para os processos educacionais e de formação e desenvolvimento dos indivíduos, como também para as construções sociais e políticas”, pondera a advogada, para quem a exposição dos dados pessoais resulta em um alto grau de insegurança.

Bia Barbosa também ressalta que quanto maior a vigilância, mais riscos há à liberdade de expressão e, consequentemente, à democracia. “Uma parte importante da coleta e tratamento de dados é feita pelo poder público. Em Estados autoritários, isso certamente alimenta mecanismos de vigilância. E sabemos que, o que você está fazendo, os lugares que está visitando, as manifestações das quais está participando ou a opinião que está expressando em diferentes espaços, tudo isso pode ser usado contra você no cenário de países de baixa democracia ou de democracia ameaçada”, ilustra a jornalista.

Limitações para coleta e processamento

Um dos grandes avanços da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais foi introduzir critérios para a coleta e o processamento de dados. Em seu artigo 7º, ela traz dez hipóteses em que isso seria permitido. Uma delas é a do consentimento informado do titular. “O cidadão precisa saber que seus dados estão sendo coletados e precisa poder dizer ‘concordo com essa coleta de dados’”, explica Bia Barbosa. Mas há outras hipóteses previstas. “Você pode ter seus dados coletados também para o desenvolvimento de políticas públicas, por exemplo, desde que o poder público utilize os dados única e exclusivamente para aquela finalidade com a qual foram coletados”, ressalta a jornalista.

Outra das hipóteses previstas na Lei para a qual é justificada a coleta e tratamento de dados, objeto do artigo 4º da legislação, é a do uso das informações para fins exclusivamente jornalísticos e artísticos. O mesmo ocorre quando se trata do uso de dados para fins de pesquisa. Tal entendimento busca o equilíbrio entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão, impedindo que a proteção aos dados pessoais seja utilizada como justificativa para restringir a realização de reportagens investigativas, por exemplo. “Seja quando blinda atividades como jornalísticas, seja quando prevê a aplicação para fins de atividade de pesquisa, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais tem dentro da sua alma, do seu perfil, algo preocupado com a liberdade de expressão e com o acesso à informação”, alega Bruno Bioni.

Apesar das limitações impostas pela lei, Bia Barbosa ressalta que ela não tem como objetivo proibir a coleta e o tratamento de dados, mas “regular e estabelecer algumas condições em que as empresas e o poder público podem coletar e tratar esses dados”. Segundo ela, isso se deve ao entendimento de que “o compartilhamento massivo e o tratamento para finalidades diferentes daquelas para as quais houve a coleta podem gerar danos ao titular dos dados, ou seja, ao cidadão”.

Para além do uso para fins jornalísticos, artísticos e de pesquisa, a lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado para fins de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado e atividades de investigação e repressão de infrações penais. O que significa que, além das forças de defesa e segurança nacional, também as forças da segurança pública, incluindo as polícias Militar e Civil e os demais atores das forças de repressão interna, não têm suas atividades submetidas às regras de proteção de dados.

A exclusão desses setores gerou críticas por parte da sociedade civil, pois pode trazer prejuízos diretos à proteção da privacidade e ao pleno exercício da liberdade de expressão. Para Bia Barbosa, uma exceção tão ampla é um grande problema da legislação, principalmente por conta “dos aspectos do vigilantismo e da criminalização, que podem ser exacerbados em governos mais autoritários”. “Vigilância tem tudo a ver com o exercício da liberdade de expressão, não só porque os movimentos sociais têm que poder organizar suas manifestações, organizar seus protestos, conduzir sua atuação para lutar por direitos, para reivindicar melhorias nas condições de vida no país, mas também porque um jornalista que vai denunciar um abuso policial tem que ter privacidade no diálogo com as suas fontes”, alerta ela.

Escândalos de vazamentos de dados

A coleta massiva e o armazenamento por tempo indeterminado de dados pessoais para os mais variados fins introduz também fragilidades de segurança aos sistemas informáticos que podem implicar em vazamentos de dados. Essa situação é potencialmente mais lesiva se ocorrer de modo simultâneo à concentração econômica. A concentração dessas informações em grandes conglomerados traz grave ameaça à privacidade, à liberdade de expressão e mesmo à concorrência entre as companhias.

Entre os graves escândalos recentes de vazamento de informações, está o episódio que afetou 87 milhões de usuários do Facebook no início de 2018, evento este que serviu como motivador para a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil. Os perfis afetados tiveram seus dados acessados indevidamente por um aplicativo de teste de personalidade, que foram depois repassados à Cambridge Analytica, empresa criada em 2013 pelo milionário estadunidense Robert Mercer, apoiador de causas políticas conservadoras. As suspeitas são de que a consultoria britânica tenha usado os dados coletados na base do Facebook para induzir resultados de processos eleitorais e políticos ao redor do mundo. Entre os casos emblemáticos de atuação da empresa, estão as eleições à Presidência dos Estados Unidos que resultaram na vitória de Donald Trump e o plebiscito sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), ambos ocorridos em 2016.

Créditos: Anthony Quintano/Wikimedia Commons
Créditos: Anthony Quintano/Wikimedia Commons

 

O vazamento foi tornado público depois que um ex-funcionário da Cambridge Analytica denunciou o fato a órgãos de imprensa dos Estados Unidos e Reino Unido, relatando a atuação da consultoria nas respectivas eleições. A grande maioria das pessoas afetadas, cerca de 70 milhões, reside nos Estados Unidos, mas o Facebook estima que 443 mil usuários do Brasil também tenham sido afetados.

Mas este não foi o único escândalo de vazamento de dados ocorrido em 2018 que envolveu o Facebook. No final de setembro, a rede social anunciou que hackers tinham acessado cerca de 50 milhões de perfis por meio de uma vulnerabilidade existente na função “ver como”, que permitia aos invasores terem acesso ao token de um dado usuário. O token é um substitutivo da senha de acesso à conta, gerado no momento do login justamente para que a senha não precise ser informada a cada acesso a partir de um mesmo dispositivo e navegador ou aplicativo. O vazamento foi identificado pelo Facebook no momento em que os invasores automatizaram o processo, gerando picos de acesso.

O ano ainda marcou a divulgação de um gigantesco escândalo de vazamento de dados envolvendo a rede Marriott de hotéis, proprietária dos hotéis Le Meredien e Sheraton, entre outros. O vazamento, que vinha ocorrendo desde 2014, resultou no acesso indevido a informações pessoais de cerca de 500 milhões de hóspedes no mundo todo, inclusive seus dados sobre cartões de crédito e passaportes. Após investigação, divulgada em setembro, foi constatado que o vazamento ocorreu a partir do banco de dados da rede Starwood, que se fundiu à Marriott em 2016. Foram acessados dados como nome, data de nascimento, gênero, telefones, endereço, e-mail, datas de chegada e de partida de reservas, canais preferenciais de comunicação, informações da conta bancária e números de passaporte e do cartão de crédito.

Também o Google enfrentou problemas de vazamento durante 2018, mais precisamente em sua rede social Google+, e anunciou que a mesma será desativada a em agosto de 2020 – a partir de então, somente a versão para empresas permanecerá ativa. O escândalo pode ter afetado até 500 mil contas por meio de uma falha de software, que permitiu acesso dos desenvolvedores a informações como nome, idade, gênero, profissão e e-mail do usuário, mesmo em se tratando de perfis privados. O vazamento teria ocorrido no mês de março, na mesma época em que o aplicativo MyFitnessPal, da empresa do ramo esportivo Under Armour, teve o banco de dados de mais de 150 milhões de usuários comprometido com o acesso a informações como nome, e-mail e senhas dos clientes. Estes foram notificados pela empresa a a mudar suas senhas imediatamente.

Eleições e o uso indevido dos dados pessoais

No Brasil, as eleições de 2018 foram igualmente marcadas por denúncias de uso ilegal de bases de dados, o que é vedado pela legislação brasileira em se tratando de publicidade eleitoral. De acordo com informações divulgadas inicialmente pelo jornal Folha de S. Paulo, a campanha do então candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) teria se utilizado dessas bases. De acordo com a apuração realizada pelo jornal, foram gastos cerca de R$ 12 milhões na compra de cada contrato de disparos de milhões de mensagens pelo WhatsApp com conteúdo contrário ao candidato Fernando Haddad (PT), que concorria com Bolsonaro no segundo turno das eleições. Ainda conforme o jornal, uma das empresas que teria feito a contratação dos disparos massivos de mensagens, o que configuraria doação à campanha de Bolsonaro não declarada à Justiça, seria a rede de lojas Havan. Os fatos seguem sob análise do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

“O que aconteceu neste processo eleitoral demonstra o quanto a proteção dos nossos dados pessoais já fez falta. Os escândalos envolveram o uso de CPF das pessoas para habilitação de chips de celular para disparo de notícias falsas, o uso de dados obtidos em cadastros de empresas para disparo de mensagens de WhatsApp e a inclusão do número de telefone das pessoas em grupos. O uso de dados pessoais de eleitores sem sua autorização já tem impacto direto na nossa democracia”, avalia Bia Barbosa.

Bruno Bioni explica que o uso de dados pessoais é fundamental para certas estratégias de campanha política e inclusive de desinformação, como a observada nas eleições brasileiras de 2018. “Quanto mais uma outra parte sabe sobre você, maior é o poder dela de te levar a tomar certos tipos de decisão, de te levar a decidir de determinadas formas e de fazer inferências sobre você”, pondera. Segundo ele, a manipulação da informação em um contexto político a partir do uso indiscriminado de dados pessoais é um dos grandes danos à democracia que pode ser observado quando não há uma regulação adequada.

“Para além do conteúdo, isso só se torna potente porque se sabe qual é a narrativa que tem que ser construída com base no perfil do destinatário dessa informação. E essa precisão só se tornou possível porque, agora, se tem os dados pessoais dessas pessoas ou grupos. Com eles, se sabe como seduzir melhor o destinatário desta informação. E as técnicas de processamento de dados estão aí para isso”, enfatiza o advogado.

De acordo com Bia Barbosa, os escândalos de vazamento evidenciam a forma como as empresas coletam e tratam dados: sem maiores cuidados com a privacidade das pessoas e sem garantir nenhuma segurança a esses dados. Neste sentido, ela ressalta que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais traz garantias inéditas na legislação brasileira. “A Lei é muito positiva na responsabilização de quem não trata esses dados de uma maneira correta e que permite esse tipo de vazamento, de invasão nos bancos de dados”, avalia. Resta agora que a Lei 13.709/2018 seja efetivamente aplicada, inclusive por uma autoridade que tenha independência e autonomia para exercer seu papel de agência reguladora.

* Jornalista, com graduação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Possui mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). É integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Donos de rádio e TV se beneficiam eleitoralmente das concessões públicas

Texto: Eduardo Amorim*

O complexo sistema de desinformação que funcionou nas eleições brasileiras de 2018 deu condições para resultados surpreendentes. Muito se fala do escândalo envolvendo o envio massivo de mensagens via WhatsApp e da força das redes sociais na campanha, evidenciados principalmente pelo crescimento de candidatos antes pouco conhecidos ligados ou filiados ao Partido Social Liberal (PSL). No entanto, o poderio da mídia tradicional continua sendo grande no Brasil, uma vez que essas empresas ao mesmo tempo dominam a radiodifusão e atuam como grandes produtoras de conteúdo para os meios digitais.

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Em um país caracterizado por um sistema de mídia historicamente concentrado e pouco plural, os meios de comunicação de massas podem contribuir com a polarização política ao compartilhar visões parciais de mundo de acordo com linhas editoriais determinadas pelos interesses de seus detentores. E, em períodos eleitorais, associações entre meios de comunicação e políticos podem ser centrais para a vitória de determinados candidatos.

Políticos donos da mídia são eleitos e empossados

Efetivamente, pouca gente sabe que no Brasil de 2018 muitos políticos são também detentores de meios de comunicação, que são utilizados de acordo com seus interesses eleitorais. Levantamento do Intervozes em dez estados apontou que pelo menos 24 candidatos às eleições possuíam concessões de rádio ou televisão em cidades com mais de 100 mil habitantes. Os donos de mídia listados concorreram aos cargos de deputado federal (11), senador (6), deputado estadual (16) e governador (1). A maior parte são políticos de carreira: 16 tentaram a reeleição, cinco possuíam outros cargos políticos eletivos no momento e sete já tiveram cargos eletivos no passado.

Outros 23 candidatos se destacaram por sua participação em programas de rádio e televisão, especialmente nos chamados “policialescos”. Embora a legislação eleitoral impeça a aparição dos candidatos na programação normal das emissoras durante o período de campanha, não há uma legislação específica que coíba a presença de políticos com mandatos em vigência na apresentação de programas de rádio e TV e eles também utilizam deste espaço para fazer crescer suas redes sociais e tornar conhecidos seus nomes.

O levantamento também mostra que a maior parte desses apresentadores e repórteres participa das eleições 2018 em partidos que tem a família e a religião como bandeira, numa posição que vai de encontro ao discurso de ódio pregado em parte significativa dos programas em que atuam. O Intervozes apontou ainda que, nos estados pesquisados, os candidatos e candidatas às eleições oriundos das forças de segurança (Polícia Militar, Civil, Exército, Bombeiros, entre outras) ultrapassaram 800.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, o número de políticos que também eram sócios de empresas de radiodifusão diminuiu de 2014 para 2018 de 40 para 28. Isso porque nas eleições anteriores quatro não se candidataram e 11 não se elegeram, enquanto 25 se reelegeram e outros três novos donos de rádios entraram para a Câmara dos Deputados.

Um fator importante nesse processo é que o Ministério Público Federal (MPF), por pressão da sociedade civil, deu início em 2015 a uma série de ações judiciais questionando a participação de políticos em empresas concessionárias de rádio ou TV. Muitos deixaram as sociedades em que participavam, porém alguns se utilizam de familiares para continuarem controlando a pauta das emissoras. É o caso de Jader Barbalho, que passou a empresa para os filhos. Helber Barbalho, porém, foi eleito no Pará e é um dos três governadores citados na reportagem da Folha como dono de concessão de radiodifusão junto com Ratinho Júnior (Paraná) e Wilson Lima (Amazonas).

O MPF contesta a mudança no quadro societário das concessionárias públicas de radiodifusão como estratégia dos políticos donos da mídia para se esquivar de processos judiciais. Para o órgão, a mudança não altera a irregularidade – em especial se o empresário já detinha um mandato quando da obtenção da concessão da emissora, seja ela de rádio ou de televisão. Em São Paulo existem três ações tramitando contra políticos donos da mídia.

Candidatos radiodifusores se beneficiam ilegalmente

O pesquisador em Ciência Política, Cristiano Aguiar Lopes, aponta como a propriedade de uma concessão de radiodifusão beneficiou candidatos às eleições municipais. Ele levantou os casos de 1.058 candidatos aos pleitos de 2000, 2004, 2008, 2012 e 2016. “Podemos concluir que, no agregado das cinco eleições municipais realizadas no período entre 2000 e 2016, a propriedade de uma outorga de radiodifusão local foi um fator que ampliou em 30,36% as chances de um candidato radiodifusor se eleger, quando comparado à população em geral”, conclui.

Segundo a pesquisa, “a exploração de uma emissora de rádio em municípios nos quais esse tipo de mídia conta com o monopólio sobre a difusão de conteúdos locais amplia significativamente as chances de eleição do seu proprietário”. Os resultados positivos para os candidatos donos da mídia nas localidades que contam apenas com o rádio como meio de comunicação local independe da competitividade eleitoral.

Apesar de não configurar ilegalidade, foram muitos os casos também de políticos que se elegeram depois de se tornarem figuras conhecidas por apresentarem programas nas emissoras de televisão. Os casos de repórteres policialescos que se apresentaram como candidatos e conseguiram “surfar” no discurso do combate à violência não são raros. Um exemplo ocorreu no município de Caruaru, onde o apresentador Fernando Rodolfo se elegeu na sua primeira tentativa eleitoral para deputado federal.

Um dos apresentadores locais da TV Jornal Interior, Rodolfo conseguiu fazer um vídeo viralizar na Internet após ser demitido e propagar a informação de que estaria saindo da emissora por sua atuação enquanto jornalista e por ter denunciado irregularidades na Secretaria de Planejamento do Governo do Estado de Pernambuco. A diretora de Jornalismo da TV e Rádio Jornal, no entanto, divulgou nota explicando que o jornalista teria comunicado sua intenção de ser candidato nas eleições de 2018 e, seguindo as normas da empresa, foi oficializado seu afastamento.

Cristiano Aguiar Lopes acredita que o número de candidatos radiodifusores pode estar diminuindo lentamente, mas pretende seguir analisando o tema nas eleições de 2020. Para ele, independentemente dessa queda quantitativa, os donos de emissoras ainda controlam o que sai nos meios de comunicação. “Os meios de comunicação de massas promovem uma desigualdade de cobertura não só durante as eleições, mas também ao longo do mandato, pois têm poder para controlar a agenda pública”, afirma.

Emissoras favorecem candidatos de forma irregular

Novidade nas eleições de 2018 foi a adesão explícita de algumas emissoras à candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República. A ação gerou uma representação ao Ministério Público Federal (MPF), assinada em conjunto pelo Intervozes e pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).

Créditos: José Cruz/Agência Brasil
Créditos: José Cruz/Agência Brasil

O documento relata os casos em que a Rede Record, RedeTV, TV Bandeirantes, Rádio Jovem Pan e TV Cidade/SBT Pará favoreceram o então candidato. As entidades exigiam que o MPF tomasse as devidas providências para garantir o respeito à legislação em vigor no país, sobretudo a Lei Eleitoral. A Lei 9.504/1997, que estabelece as normas eleitorais determina, em seu Artigo 45, que: “[e]ncerrado o prazo para a realização das convenções no ano das eleições, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e em seu noticiário: IV – Dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação”.

O texto cita ainda a resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que prevê as multas a serem aplicadas no caso de desrespeito a esse artigo da Lei Eleitoral citado acima; o artigo 53 da Lei 4.117/1962, que estabelece que “[c]onstitui abuso, no exercício de liberdade da radiodifusão, o emprego desse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País”.

Leia a representação do Intervozes e FNDC na íntegra aqui.

No dia 28 de setembro, a Rede TV veiculou entrevista exclusiva, por 26 minutos, no programa RedeTV News, com candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL). No mesmo dia, a TV Bandeirantes exibiu conteúdo semelhante por 45 minutos, no programa Brasil Urgente. Na noite do dia 4 de outubro de 2018, às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais, a Rede Record de televisão também privilegiou o candidato Jair Bolsonaro, concedendo a ele 26 minutos de exposição exclusiva, em entrevista exibida em telejornal noturno. Poucos dias antes, o candidato recebeu o apoio público do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário da Record.

Pesquisadores analisam eleição presidencial

Pesquisador Fullbright na Tulane University (Estados Unidos) e professor da Universidade Católica de Pernambuco, Juliano Domingues acompanha atentamente o cenário político brasileiro. Para ele, os meios de comunicação tradicionais vêm perdendo relevância na determinação dos resultados eleitorais desde 2006. “Quando o ex-presidente Lula foi reeleito, ficou um tanto mais evidente o quanto a grande mídia é uma condição, mas não suficiente para se chegar e manter no poder”, afirma. Ele acredita que naquelas eleições houve uma oposição muito forte da grande mídia e mesmo assim Lula foi reeleito.

Apesar disso, parece evidente que a grande mídia continua influenciando as eleições majoritárias e sendo fundamental em eleições de candidatos proporcionais. Como no famoso caso da edição do debate da TV Globo nas eleições de 1989, em que Fernando Collor foi beneficiado e acabou derrotando Lula, o processo eleitoral de 2018 também tem potencial para se tornar um caso a ser debatido pelas próximas gerações de jornalistas a saírem das universidades.

Domingues, que atuou como repórter da TV Globo em Pernambuco no início da sua carreira, acredita que um processo a ser analisado é a aproximação do agora presidente eleito com a segunda maior emissora de televisão do país. Nas eleições de 2018, para ele, “o que chama atenção em relação às empresas de radiodifusão é um ensaio de Bolsonaro no sentido de estabelecer de maneira clara a Record como sua emissora aliada em oposição à TV Globo, isso se torna um tanto claro naquele momento em que no último debate a Record transmitiu uma entrevista exclusiva com Bolsonaro e é reforçado quando Bolsonaro uma vez eleito concede a primeira entrevista após eleito à Record e agradece no início da entrevista a cobertura isenta do jornalismo da Record, se a gente pensa esse tipo de gesto no contexto mais amplo de alianças políticas e de aproximação entre o Bispo Edir Macedo e Bolsonaro ainda durante as eleições, ajuda a gente a montar um quebra-cabeças sobre o que pode vir pela frente”.

Ele acredita que não temos segurança para prever um cenário para o futuro das nossas principais emissoras televisivas nos próximos quatro anos, mas tende a achar que a Record pode se fortalecer e a Globo perder espaço no Governo Bolsonaro. No entanto, diferentes emissoras de radiodifusão nem de longe beneficiaram apenas o presidente eleito no pleito de 2018 e certamente a vantagem (ilegal) dos radio-difusores nos pleitos ainda permanecerá sendo vista por algum tempo.

Audiência das principais emissoras no dia do último debate do primeiro turno
Emissora Programa Audiência
Globo Debate com candidatos à Presidência 22%
Record O Voto na Record: entrevista com Jair Bolsonaro (das 22h05 às 22h32) 13,6%
SBT Chiquititas 11,3%

Fonte: Com entrevista de Bolsonaro, Record dobra audiência e ofusca debate da Globo / UOL

Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Intervozes, Helena Martins, afirma que “o fato de a Record ter beneficiado um candidato, no caso Jair Bolsonaro, deixa muito nítido o uso político dos meios de comunicação, o uso político de concessões públicas por parte dos grupos que detém essas concessões e que deveriam prestar um serviço com esse caráter público, mas acabam se valendo desses espaços para promoverem seus próprios interesses”. Para ela a situação também evidencia “a falta de mecanismos de denúncia, cobrança e de responsabilização, inclusive dos meios de comunicação, diante de flagrante ilegalidade”.

Helena pontua que a ação beneficiou o candidato dada a grande audiência da TV Record, a segunda maior emissora aberta do Brasil. “As emissoras abertas têm uma penetração muito grande no nosso país, a Record tem entre 14% e 18% da audiência”, diz. “São milhões de pessoas que tiveram acesso privilegiado a um determinado conteúdo e outros candidatos não tiveram o direito de ter esse espaço tão importante”. A pesquisadora considera ainda que, pela lógica integrada dos veículos de comunicação, a aparição de um candidato com tanto destaque em uma emissora reverbera em outros veículos e também na Internet, o que implica em uma visibilidade ainda maior. “Numa eleição absolutamente disputada e muito polarizada, esse tipo de projeção pode sim ter tido um impacto no resultado eleitoral: o lugar da mídia nessa sociedade é muito grande e afeta vários campos da vida social”, opina.

Judiciário se ausentou no debate eleitoral e ficou longe de ser isento

Atualmente, tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) três Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) sobre a propriedade de meios de comunicação por parte de políticos.

As ADPFs 246 e 379, de iniciativa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do Intervozes, requerem que o STF declare inconstitucional a participação de políticos como sócios em empresas de radiodifusão. As ações se baseiam no artigo 54 da Constituição Federal, que proíbe que deputados federais e senadores sejam donos de canais de rádio e TV. Em 2015, o MPF moveu ações em diversos estados solicitando o cancelamento de outorgas que estavam em nome de 32 deputados federais e oito senadores.

Uma terceira ADPF (429) foi instaurada pela Presidência da República, em 7 de novembro de 2016, durante o governo de Michel Temer, em contraponto às anteriores. A ação pede que seja declarada a constitucionalidade da posse de emissoras por políticos com mandatos, evidenciando a relação intrínseca de certos grupos no poder com esta prática que claramente fere os preceitos explicitados na Constituição Federal. A Procuradoria Geral da República (PGR) se pronunciou sobre o tema, sustentando o não cabimento da ADPF 429.

“Concessão ou manutenção da exploração do serviço de radiodifusão por pessoas jurídicas das quais participem, como sócios ou associados, detentores de mandato eletivo choca-se com a isenção e independência que deve haver no exercício dessas funções, viola frontalmente os arts. 54, I, a, e 54, II, a, da Constituição, e contraria as finalidades buscadas pelos arts. 22, IV, e 223 da Constituição”, afirma o texto assinado pela PGR, Raquel Dodge, no último dia 18 de dezembro.

Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil
Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil

Logo após dar entrada na ADPF 429, o governo de Michel Temer tentou, sem sucesso, suspender todas as ações nos estados por meio de liminar. A tentativa parece refletir preocupação por parte do governo com as decisões positivas que deixam claro que efetivamente a Constituição Federal proíbe a posse de emissoras de rádio e TV por políticos com mandatos.

A ADPF 246 foi impetrada em 2011. São oito anos de espera por um posicionamento do STF em um tema que é de extrema importância para a democracia brasileira. O MPF pede nos mais recentes pareceres em relação à temática que o Supremo reconheça a inconstitucionalidade de políticos que são sócios de empresas de radiodifusão. Isso permitiria, por exemplo, que o Judiciário não mais diplome políticos que sejam sócios de empresas de radiodifusão por violação ao Artigo 54.

Levantamento da Folha de S. Paulo indica que 55 concessões no país são de propriedade de deputados e senadores que tomarão posse na próxima legislatura.

Regulação, responsabilização e fiscalização são o caminho

De acordo com o pesquisador Cristiano Lopes, se um processo de outorga de radiodifusão comunitária é “apadrinhado” por um político, ele tem 47,7% mais chance de ter sucesso do que aqueles que não estão ligados a um parlamentar. Ou seja, se não começarmos a frear o uso da mídia por políticos isso continuará causando problemas cada vez mais graves.

Helena Martins resume um caminho a se traçar na luta pelo direito à comunicação. Para ela são necessários “mecanismos de regulação da mídia, de denúncia de irresponsabilidade, de responsabilização dos veículos e das empresas que chegarem a cometer alguma irregularidade”. Ela lembra que os serviços de radiodifusão são essencialmente públicos e que, por mais que sejam ofertados por empresas privadas por meio de concessões, eles devem servir ao público e não aos donos da mídia e a possíveis apoiadores e parceiros desses empresários.

Sem uma cobrança de toda a sociedade e uma real mudança na postura do Judiciário, a tendência é que os próximos pleitos continuem sendo exemplos para o mundo de como não se deve realizar eleições numa democracia.

* Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Violência contra ativistas e comunicadores compromete liberdade de expressão em 2018

Texto: Alex Hercog*

“Mataram um negro, não vou me calar!”. Assim gritavam os manifestantes no Pelourinho e nas ruas de Salvador durante os diversos atos realizados em homenagem a Mestre Moa do Katendê, capoeirista assassinado após o primeiro turno das eleições. Envolvido em uma discussão política com um eleitor de Bolsonaro, Mestre Moa acabou recebendo 12 facadas que lhe tiraram a vida.

O episódio simboliza o clima de ódio, violência e tentativa de silenciamento que pautaram as eleições presidenciais no Brasil. A tática da intimidação prevaleceu, transpondo para as ruas a tensão que há muito dominava as redes sociais. Ataques individuais, repressão policial e omissão do poder público comprometeram a já abalada democracia no ano em que a população foi às urnas eleger seus futuros representantes.

Impedido de disputar a eleição, o ex-presidente Lula esteve no centro do debate. Após ser preso, em abril deste ano, diversas manifestações foram realizadas contrárias à decisão. Cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba registraram violenta repressão policial contra os manifestantes. Na capital paranaense nove pessoas – incluindo duas crianças – ficaram feridas e uma ordem judicial proibiu novos protestos nas imediações da Superintendência da Polícia Federal. Também foram realizadas manifestações contrárias ao ex-presidente, mas em nenhuma houve ocorrência de violência policial.

O próprio Lula já havia sido alvo de um atentado contra sua caravana, em março deste ano antes de sua prisão. Ao passar pelo interior do Paraná, um dos ônibus foi alvejado por tiros. O ex-presidente não estava no veículo e ninguém ficou ferido. A Polícia Civil afirmou que o ataque foi planejado, mas os autores dos disparos não foram identificados e o inquérito permanece sem solução.

O crime ocorreu duas semanas após o assassinato de Marielle Franco. Quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro, eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) –, mulher, negra, bissexual, oriunda da favela da Maré, Marielle foi executada no centro da cidade com pelo menos cinco tiros que a atingiram na cabeça. O ataque vitimou também seu motorista Anderson Gomes. As investigações relacionam o caso às denúncias feitas pela vereadora contra as milícias que atuam no município do Rio.

Nove meses após o assassinato de Marielle, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Richard Nunes, declarou que os interesses dos mandantes estavam relacionados à grilagem de terra. Segundo ele, os milicianos acreditavam que a vereadora poderia atrapalhar seus negócios ilícitos.

Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O atentado à caravana do ex-presidente Lula e os assassinatos de Marielle e Mestre Moa, por motivações políticas, não foram casos isolados no ano de 2018. Durante o período eleitoral, diversos ataques foram notificados.

De um lado, o então candidato Jair Bolsonaro (PSL) pregava publicamente o desejo de “metralhar a petralhada”, “banir” os “marginais vermelhos” e colocar um “ponto final em todos os ativismos no Brasil”. Sempre seguido pelo seu principal gesto de simular uma arma e acompanhado de manifestantes portando revólver. Nada disso provocou reação ou punição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Nas ruas, vários ataques foram registrados em todo o país. Um levantamento produzido pela Agência Pública em parceria com a Open Knowledge Brasil revelou que ao menos 70 ataques foram denunciados durante o período eleitoral. Destes, 50 cometidos por apoiadores de Bolsonaro e seis contra seus eleitores, além de 15 agressões indefinidas.

Atropelamento, socos, chutes e espancamento foram alguns dos tipos de ataques registrados. A própria Polícia Militar é acusada de participar das agressões. Em São Paulo, a cozinheira Luisa Alencar afirmou à Pública ter sido agredida por policiais após ser abordada quando pintava um estêncil escrito “Ele Não” – expressão usada principalmente por mulheres para repudiar o candidato Jair Bolsonaro e suas pautas.

De acordo com Luisa, os policiais lhe jogaram no chão e lhe agrediram com chutes. Enquanto torciam o seu braço e lhe algemavam, ela conta que um dos policiais lhe gritava ao ouvido: “Sua puta, ele sim. Sua puta, sua vagabunda, ele sim”. A manifestante também afirma ter sido encarcerada sem roupas e exposta na cela às vistas de outros homens.

O clima de violência que marcou o ano eleitoral, o ódio disseminado nas redes sociais e as ameaças feitas pelo então candidato Bolsonaro também atingiram o próprio futuro presidente. Durante comício na cidade de Juiz de Fora (MG) no início de setembro, Bolsonaro levou uma facada na barriga e teve que passar por cirurgias e internamento.

O autor acusado pelo atentado foi Adélio Bispo de Oliveira, preso imediatamente após o ataque. De acordo com a investigação da Polícia Federal, Adélio agiu sozinho, rebatendo as acusações que circularam nas redes sociais que atribuíam ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao PSOL envolvimento com o crime. Na delegacia, Adélio afirmou que praticou o atentado “a mando de Deus”.

Declínio nos índices de liberdade de expressão no Brasil e no mundo

Os recorrentes casos de repressão contra manifestantes e violência contra políticos e eleitores também atingiram comunicadores pelo país. Um dos episódios mais recentes foi o ataque à rádio comunitária Educadora de Gurupá (PA), que foi invadida e incendiada por autores ainda não identificados.

No Recife, uma jornalista que portava um crachá de imprensa foi agredida após deixar sua zona eleitoral. De acordo com a vítima, um dos agressores usava uma camisa de Jair Bolsonaro e teria afirmado que “quando o comandante ganhasse, a imprensa toda ia morrer”. Ela foi espancada, teve o rosto e braços cortados e foi ameaçada de estupro.

Segundo dados publicados pela entidade internacional Press Emblem Campaign (PEC), o Brasil foi o oitavo país no mundo com mais assassinatos de comunicadores em 2018: quatro. Jefferson Pureza (Goiás), Jairo de Souza (Pará), Ueliton Brizon (Rondônia) e Marlon Carvalho (Bahia) foram os jornalistas mortos. De acordo com o mapeamento da PEC, o Brasil teve 22 registros de homicídios a comunicadores entre 2014 e 2018, aparecendo, assim, na lista dos 10 países com mais assassinatos, no ranking liderado pela Síria, México, Afeganistão e Iraque.

Estudos realizados pela organização não-governamental Artigo 19 apontam que 70% dos crimes cometidos contra comunicadores no país são praticados ou encomendados por agentes públicos, sobretudo políticos e policiais. Jornalistas de veículos de pequeno porte, blogueiros e radialistas comunitários são os principais alvos, de acordo com documento lançado pela organização em dezembro de 2018.

O relatório também aponta que a impunidade e negligência das autoridades em relação a esses casos é uma constante no país. O documento denuncia ainda o corte no orçamento de instituições e enfraquecimento de leis de proteção a ativistas, a partir do governo de Michel Temer. Além disso, é destacada a incitação ao ódio e à violência contra defensores de direitos humanos, a partir de empresários, políticos e líderes religiosos na televisão, jornais e internet. Segundo dados da Artigo 19, o Brasil foi o país que mais matou ativistas em 2017, com o maior índice de assassinatos já registrado no mundo em um único ano: 57.

O documento analisou o panorama do direito à liberdade de expressão em diversos países e apontou uma tendência global de declínio da garantia desse direito, sobretudo nos três últimos anos, incluindo ataques à liberdade de imprensa e intimidação de comunicadores.

O Brasil é o segundo país em que o índice de liberdade de expressão mais decaiu desde 2014. A maior queda se refere à liberdade de expressão em ambientes on-line e no espaço público comum, a exemplo de manifestações. O documento ainda cita segmentos vulneráveis a esse tipo de ataque, como ativistas LGBTI, ambientalistas e ativistas ligados à causa indígena e quilombola.

América em chamas

Essa tendência internacional de queda de liberdade de expressão também se nota nos demais países do continente americano. Nos Estados Unidos, os conflitos raciais se destacam, com episódios de manifestantes negros sendo alvos de ataques de supremacistas brancos e seguidores da Ku Klux Klan. Nos confrontos, a exemplo do que ocorreu na Virgínia1, os policiais são acusados de não coibirem as agressões promovidas por grupos racistas.

Na Venezuela, casos de repressão a manifestantes se repetem. Um relatório divulgado pela agência de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) classificou como “lamentável” a situação no país e destacou o uso generalizado e sistemático de força excessiva e arbitrária do Estado contra manifestantes e opositores do governo do presidente Nicolás Maduro. O Chefe de Direitos Humanos da ONU chegou a pedir investigação internacional para apurar as violações cometidas pelo governo venezuelano.

Já a Argentina experimentou ao longo de 2018 uma série de manifestações contra os pacotes de medidas neoliberais do presidente Mauricio Macri, incluindo uma greve geral. A violenta repressão policial foi denunciada em diversos protestos, especialmente a que resultou na detenção de 27 manifestantes contrários ao projeto orçamentário aprovado em outubro. Dentre eles, quatro eram comunicadores da revista La Garganta Poderosa, que cobriam o protesto.

Mas a situação mais crítica no continente americano acontece na Nicarágua. Protestos que se iniciaram contra as mudanças na Previdência propostas pelo governo de Daniel Ortega foram violentamente atacados por grupos “pró-governo”. Esses ataques desencadearam uma série de manifestações ao longo do ano, com uma escalada de repressão e violência que vitimou centenas de pessoas.

A estudante brasileira Raynéia Lima foi uma das vítimas, após ser alvejada por um vigilante próximo à universidade em que estudava. A princípio, o caso não tem relação com os protestos, ainda que o reitor da Universidade Americana em Manágua tenha acusado um suposto envolvimento de paramilitares no caso.

A Associação Nicaraguense dos Direitos Humanos apresentou um relatório afirmando que 448 pessoas foram mortas. Não há dados oficiais do governo sobre o número exato de assassinatos. Além da polícia, grupos “pró-governo” formado por franco atiradores são os principais acusados pelo massacre contra os manifestantes contrários a Ortega, formados, sobretudo, por estudantes universitários. Entidades como a Lafede.cat e o Centro Nicaragüense de Derechos Humanos vêm acusando o governo de perseguir e criminalizar organizações não-governamentais que atuam na Nicarágua.

Instituições de Ensino, Ativistas e Movimentos Sociais na mira

Após a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições presidenciais brasileiras, parlamentares aliados aproveitaram o momento para pôr em tramitação projetos polêmicos que afetam diretamente os movimentos sociais e o ambiente acadêmico e escolar: Lei Antiterrorismo e “Escola Sem Partido”.

O primeiro projeto foi incluído na pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado pelo senador Magno Malta (PR) – um dos principais cabos eleitorais de Bolsonaro durante as eleições. O texto apresentado tende a criminalizar os movimentos sociais, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), apontados pelo presidente eleito como “organizações criminosas”.

Créditos: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Créditos: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A Lei Antiterrorismo atual foi sancionada em 2016 pela presidenta Dilma Rousseff (PT) para atender a exigências internacionais visando à realização da Copa do Mundo no Brasil. Muito criticado pelos movimentos sociais, o projeto sofreu vetos da presidenta e modificações no Legislativo em pontos considerados fundamentais para os movimentos, a exemplo do artigo adicionado que excluía “manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosas e de classe” do conceito de “terrorismo”.

Já o projeto atual proposto pelos aliados de Bolsonaro propõe resgatar os artigos vetados por Dilma e tornar mais subjetivo a definição de prática terrorista. Após ter a tramitação suspensa pela Comissão, que entendeu que deveriam haver audiências públicas para debater o tema, o projeto poderá ser votado já em 2019.

Na opinião de Thiago Ferreira, mestre e doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal da Bahia e que pesquisa o ciclo de manifestações de Junho de 2013 até 2018, projetos como esse fazem parte de uma estratégia retórica do futuro governo de “colocar a esquerda como bode expiatório, desviando a atenção” de outras propostas polêmicas, a exemplo da Reforma da Previdência que deverá ser votada no primeiro semestre de 2019, de acordo com o atual presidente.

No entanto, Ferreira ressalta que é possível que o futuro governo não fique apenas na retórica e, de fato, implemente medidas como perseguição aos sindicatos e criminalização dos movimentos sociais. Essa expectativa ganha ainda mais força após decreto de Bolsonaro que atribuiu à Secretaria de Governo, via Medida Provisória 870, a função de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar” as organizações não-governamentais que atuam no país. Em nota a Associação Brasileira de ONGs (Abong) afirmou que não reconhece a legitimidade da MP e que irá “interpelar administrativamente o Governo Bolsonaro para que adeque os termos da MP às normas constitucionais”.

Ainda assim, Ferreira acredita que, em um primeiro momento o perigo está mais associado ao que pode ser feito pelos seguidores de Bolsonaro “ali na esquina” do que em medidas de governo, que ainda perpassariam por outros poderes institucionais. “Mas partidos e ativistas estão sob ameaça, a exemplo de duas lideranças do MST que foram recentemente assassinadas”, complementa. Ele se refere a Rodrigo Caetano e José Bernardo da Silva, coordenadores do acampamento do MST em Alhambra (PB), que foram executados por homens encapuzados que invadiram o acampamento no dia 9 de dezembro de 2018.

Outra proposta colocada para tramitar na Câmara de Deputados logo após a vitória de Bolsonaro é o “Escola Sem Partido”, projeto que já havia tido destaque nas eleições municipais de 2016 e que é uma das principais bandeiras defendidas pelos movimentos que apoiaram a candidatura de Bolsonaro, a exemplo do Movimento Brasil Livre (MBL).

O argumento dos seus defensores é de que o projeto visa impedir a “doutrinação ideológica” nas salas de aula, supostamente praticadas por professores “marxistas” e de “esquerda”. O projeto sofreu a reação de centenas de entidades da área da educação e direitos humanos, que, de acordo com um relatório da ONU, pode resultar em “censura e ou autocensura significativa nos professores”. O projeto foi arquivado na Câmara dos Deputados em 2018, mas poderá ser retomado com a nova legislatura.

Para a jornalista Renata Mielli, que é coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), responsável pela CalarJamais! – campanha que denuncia violações à liberdade de expressão –, o “Escola Sem Partido” é um dos exemplos mais emblemáticos de 2018, no que se refere à tentativa de censura.

“Essa ofensiva contra a liberdade de expressão e pensamento livre nas escolas e universidades acabou tendo projeção internacional”, destaca Mielli. Para a jornalista, o que os defensores do projeto querem com o ‘Escola sem Partido’ é “a defesa de uma escola com o partido deles, que propague o pensamento deles”.

Ela também cita a censura praticada nas universidades durante o período eleitoral, quando policiais e fiscais de tribunais regionais desencadearam operações em universidades de ao menos cinco estados para proibir manifestações contrárias ao fascismo. O caso mais emblemático ocorreu na Universidade Federal Fluminense, onde fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) chegaram a ordenar a retirada de uma faixa com a mensagem “Direito UFF Antifascista”. No entanto, mais de 25 universidades foram afetadas por intervenções.

A seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) afirmou, em nota, que as decisões da Justiça Eleitoral tentaram “censurar a liberdade de expressão dos estudantes e professores da faculdade de Direito, que, como todos os cidadãos, têm o direito constitucional de se manifestar politicamente”.

Também em nota, entidades da área da educação questionaram as ações nas universidades do país: “por que panfletos, debates e palestras que discutem a democracia, as eleições e o que é o fascismo estão sendo considerados como propaganda pela Justiça Eleitoral em todo o Brasil”, questionam.

As ações policiais e dos TREs nas universidades repercutiram nacionalmente, provocando reação do Supremo Tribunal Federal (STF). A pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), a ministra Cármen Lúcia suspendeu todos os efeitos das ações da Justiça Eleitoral que vetavam manifestações nas universidades públicas. “Pensamento único é para ditadores”, afirmou a ministra no seu despacho.

Quem também se pronunciou foi o ministro Marco Aurélio Mello que, além do STF, integra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele classificou as ações nas universidades de “indevida” e “incabível”. “Universidade é campo de saber. O saber pressupõe liberdade, liberdade no pensar, liberdade de expressar ideias. Interferência externa é, de regra, indevida. Vinga a autonomia universitária”, afirmou.

O papel do Judiciário

Os recentes casos de violações à liberdade de expressão expõem o Judiciário e revelam suas contradições. Alternando posições contrárias e favoráveis aos princípios da liberdade, a atuação das diversas instâncias deixa um clima de incerteza sobre a atuação desse Poder durante o mandato do próximo governo.

Em 2018 foram diversas ações que Renata Mielli classifica como “judicialização da censura”, destacando medidas judiciais para a retirada de conteúdos da Internet e a proibição de veiculação de reportagens com denúncias. Outro caso de violação à liberdade de expressão, destacado pela jornalista, foi a proibição à Folha de São Paulo de entrevistar o ex-presidente Lula, que tinha conseguido autorização concedida pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski.

Antes da realização do primeiro turno eleitoral, o ministro do Supremo Luiz Fux acatou um pedido liminar do Partido Novo e proibiu que o ex-presidente concedesse entrevista ao jornal Folha ou a qualquer outro meio de comunicação. A veiculação de possíveis entrevistas realizadas antes dessa decisão, no período em que Lula esteve preso, também teve sua divulgação proibida, sob pena de “crime de desobediência”, afirmou o ministro no seu despacho.

A Folha se manifestou, condenando o que chamou de “censura prévia”. Patrícia Mello, colunista do jornal, fez uma publicação questionando a decisão e ressaltando que Adélio – que esfaqueou Jair Bolsonaro – pôde ser entrevistado por jornalistas ainda na cadeia, enquanto a entrevista com Lula foi negada.

O FNDC também se posicionou sobre o caso, afirmando que o ministro Fux violou o artigo 5º da Constituição que garante a liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de expressão e direito ao acesso à informação. A coordenadora geral do Fórum, Renata Mielli, ressaltou que essa decisão expõe as contradições do Judiciário.

Para ela, a recorrência é de que as decisões de primeira instância endossem a “escalada de violação à liberdade de expressão”, com juízes “dando sentenças favoráveis a medidas de retirada de conteúdo, de censura, de proibição de divulgação de conteúdos e de entrevistas”. Ela atribui isso à pressão sofrida pelos juízes que, em muitas vezes, “ficam reféns de poderes políticos e econômicos locais para dar sentenças favoráveis à violação da liberdade de expressão”.

No entanto, Mielli destaca que alguns posicionamentos das instâncias superiores são conflituosos, variando de acordo com o contexto político. Apesar de decisões do STF como a da proibição de Lula em conceder entrevista, o Supremo teve “posições firmes em relação à garantia da liberdade de expressão nas escolas e universidades”, aponta.

Liberdade de Expressão como um direito fundamental

A compreensão de que a garantia da liberdade de expressão é algo fundamental para o funcionamento das democracias motivou a compromissos nacionais e a adesão a acordos internacionais para a proteção a esse direito. O capítulo V da Constituição Federal já afirma que nenhuma lei pode constituir “embaraço à plena liberdade de imprensa”. No seu artigo 220, é dito que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação” não sofrerão “qualquer restrição”.

A Constituição de 1988 surge no contexto de redemocratização do país, no período pós-Ditadura. Durante as duas décadas de regime autoritário no Brasil, que se iniciou em 1964, a censura era institucionalizada e a repressão aos movimentos considerados de “esquerda” e a jornalistas resultou em perseguição, prisões, torturas e assassinatos promovidos pelas forças do Estado.2

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas após a II Guerra Mundial, em seu artigo 19, determina que “todo ser humano tem direito à liberdade de expressão”, resguardando o direito à livre opinião21.Portanto, o combate à censura e a garantia do direito à manifestação foram condições indispensáveis para a transição democrática. Esses valores se alinhavam com diversos tratados ao redor do mundo, incluindo os que o Brasil passou a ser signatário.

Tais princípios também serviram de influência para o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado em 1966 e promulgado pelo Brasil em 199222. O acordo internacional afirma que “ninguém poderá ser molestado por suas opiniões”, que não violem o “respeito dos direitos e à reputação de demais pessoas”. O Pacto também cita a liberdade de expressão e o direito de “procurar, receber e difundir informações”.

Esse acordo foi também reafirmado em 1969, na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)23 e que envolveu países do continente americano. O tratado internacional assinado pelo Brasil dispõe sobre os direitos fundamentais na perspectiva democrática. A liberdade de expressão, a vedação de censura prévia e a proteção da imprensa são princípios que constam no acordo que foi ratificado pelo Brasil em 1992.

O Brasil de Bolsonaro

O período eleitoral de 2018 expôs um ambiente hostil na política brasileira. As ameaças feitas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, contra ativistas, jornais, movimentos sociais e partidos de oposição, em especial o PT, deixa uma incógnita sobre o futuro do país em relação à liberdade de expressão.

De acordo com o professor Thiago Ferreira, o perigo inicial está nas ações aleatórias dos seguidores de Bolsonaro, apostando nos limites institucionais da presidência e no poder de mediação das instituições e do próprio Judiciário. Para a jornalista Renata Mielli, o STF pode se reposicionar e assumir “uma posição mais efetiva pela garantia dos direitos constitucionais”.

Segundo a Artigo 19, o Brasil poderá passar por dificuldades caso se confirme a tendência que surgiu na corrida eleitoral. O relatório relaciona governos com tendências autocráticas ao declínio no índice de liberdade de expressão.

Já a Anistia Internacional se posicionou após o resultado das eleições, classificando a vitória de Bolsonaro como um “enorme risco para os povos indígenas e quilombolas, comunidades tradicionais, pessoas LGBTI, jovens negros, mulheres, ativistas e organizações da sociedade civil, caso sua retórica seja transformada em política pública”.

A tendência é de agravamento das violações à liberdade de expressão no país. Essa afirmação considera os recorrentes casos de repressão, perseguição e violência por motivações políticas e que não receberam do poder público uma resposta à altura.

Além disso, o próprio presidente eleito manifesta suas ameaças, que reverbera em seus simpatizantes, capazes de cometer violência, como ocorreu durante o período eleitoral. O desejo dos movimentos sociais e entidades em defesa dos direitos humanos, portanto, é de que Bolsonaro não cumpra o que prometeu durante a campanha e que as instituições funcionem para resguardar a democracia e garantir as liberdades individuais, a exemplo do direito à comunicação e à liberdade de expressão.

1. Desde 2017, as tensões raciais vêm aumentando em Charlottesville (Vírginia), quando uma marcha racista resultou na morte de uma mulher e deixou mais de 30 feridos, após confrontos com manifestantes antifascistas. Em 2018 a marcha voltou a se repetir, mas atraindo menos pessoas e sem conflitos registrados.

2.Um dos casos mais emblemáticos foi o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, que foi torturado e executado dentro da cela onde estava preso. O crime, ocorrido em 1975, nunca teve seu inquérito concluído. Em 2018, o Ministério Público Federal reabriu as investigações, após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos das Organizações dos Estados Americanos que determinou que o assassinato de Herzog representa um crime contra a humanidade.

* Relações Públicas, membro do Intervozes– Coletivo Brasil de Comunicação Social, articulador do Coletivo Baiano pelo Direito à Comunicação (CBCom) e representante do Intervozes no Conselho Estadual de Comunicação Social da Bahia.

Desinformação: violação do direito à comunicação e arma contra a democracia

Texto: Helena Martins*

“Sem precedentes”. Assim a presidenta da missão de observadores da Organização de Estados Americanos (OEA) para as eleições brasileiras, Laura Chinchilla, classificou o fenômeno da difusão de notícias falsas em nosso país. Um dos fatores para a eleição do ultradireitista Jair Bolsonaro à presidência da República, a desinformação já era alvo de preocupações e ações por parte de instituições públicas e da sociedade civil, mas as medidas adotadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelas plataformas, especialmente o WhatsApp, não foram suficientes para conter a prática, que deve ser entendida como uma violação do direito à comunicação, pois impacta a circulação de ideias, a interação, o diálogo e o debate público.

A presença da desinformação no contexto das eleições brasileiras tem sido constatada por diversas pesquisas. A realizada pelo instituto IDEA Big Data, a pedido da organização Avaaz, mostrou que 93% dos eleitores do presidente eleito relataram ter sido expostos a conteúdos sobre supostas fraudes nas urnas eletrônicas, com 74% afirmando ter acreditado na informação. O IDEA ouviu 1.491 pessoas em todo o Brasil, entre os dias 26 e 29 de outubro. Já o levantamento feito pelo Ibope Inteligência junto a duas mil pessoas, entre os dias 18 e 22 de outubro, apontou que 90% dos entrevistados disseram ter recebido algum tipo de desinformação. Por outro lado, apenas 4% e 5% afirmaram confiar em conteúdos compartilhados por meio das plataformas WhatsApp e Facebook, respectivamente, o que mostra a dificuldade de definir o impacto real no pleito.

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Embora seja necessário afastar determinismos e explicações monocausais sobre a ascensão da direita ao cargo máximo da República, é impossível negar a contaminação debate público por mentiras. O instituto Atlas Político, por exemplo, mostrou que duas notícias desmentidas por agências de checagem teriam alcançado cerca de um terço do eleitorado: a de que o candidato Fernando Haddad (PT) teria criado um “kit gay” e a de que o jornal Folha de São Paulo teria sido “comprado pelo Partido dos Trabalhadores (PT)”. A presença das redes também é um fator importante a ser considerado. Segundo a empresa Whstsapp, mais de 120 milhões de brasileiros possuem o aplicativo instalado em dispositivos móveis. O Facebook, por sua vez, em 2018 somava 127 milhões de usuários ativos mensais no país, atingindo quase dois terços da população.

Antes mesmo das eleições, outras discussões públicas já vinham sendo marcadas pela desinformação. Em março, a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados na cidade do Rio de Janeiro. A comoção pública que fez com que milhares de pessoas tomassem ruas do Brasil e de outros países para clamar por justiça também foi acompanhada por uma avalanche de notícias falsas. “Ex-esposa de Marcinho VP”, “defensora de facção rival e eleita pelo Comando Vermelho” e “engajada com bandidos” foram algumas das afirmações disparadas contra Marielle nas redes sociais, levando a família e o PSOL a acionarem a Justiça. Parte dessas declarações falsas partiu do então deputado Alberto Fraga (DEM-DF) e da desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) Marilia Castro Neves, o que mostra a conexão da prática da desinformação com as institucionalidades constituídas e com a mídia tradicional, que deu visibilidade às agressões.

Desinformação em escala industrial

A estratégia de lançar mão de inverdades, informações descontextualizadas ou distorcidas não é nova. Na história da imprensa, são comuns registros de notícias falsas. Para ficarmos em um exemplo recente, vale lembrar o caso que ganhou a alcunha de “bolinha de papel”. Em 2010, o então candidato do PSDB à presidência, José Serra, foi atingido na cabeça por um objeto, o que o fez encerrar a caminhada que fazia com correligionários e partir em busca de um hospital para fazer exames. A extensa cobertura midiática, com direito à reconstituição do episódio e contratação de perito para análise de imagens, endossou a versão da agressão com “objeto contundente”. Depois, veio à tona que ele havia sido atingido por uma bolinha de papel.

Ocorre que, além dos padrões de manipulação da informação característicos da imprensa, como a ocultação e a fragmentação de fatos, outras formas de desvirtuamento emergem com as redes sociais, como explica o professor de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rogério Christofoletti. Para ele, estratégia, volume e automatização de processos dão novos contornos às práticas de manipulação no atual ecossistema informacional.

O viés estratégico dessa operação por parte da campanha do candidato Jair Bolsonaro (PSL) ficou nítido após denúncia do jornal Folha de S. Paulo. Publicada no dia 18 de outubro, reportagem da jornalista Patrícia Campos Mello mostrou que empresários estavam bancando campanha contra o PT e seu candidato, Fernando Haddad, pelo WhatsApp, sem declarar tal gasto à Justiça Eleitoral. Os contratos feitos com empresas de marketing para impulsionar notícias falsas somavam R$ 12 milhões. A revelação foi parar na Justiça. Ao TSE, o PT pediu que Bolsonaro fosse declarado inelegível por oito anos. O candidato de extrema-direita negou participação em esquema de proliferação de fake news. A denúncia segue sendo investigada.

Créditos: José Cruz/Agência Brasil
Créditos: José Cruz/Agência Brasil

Citando o caso como exemplo, Christofoletti explica que “há uma lógica de ocultação dos processos e das intencionalidades que vão guiar essas práticas de desinformação”. “Há um mercado muito rentável hoje – cada vez mais estamos informados sobre isso – envolvendo um complexo ecossistema com pequenas, médias e até grandes indústrias de fabricação de informação, principalmente para guiar interesses político-partidários e para guiar interesses econômicos ou financeiros”, afirma.

A intencionalidade referida como estratégia pelo pesquisador revela-se também no conteúdo, com formatos que vão além daquele da notícia tradicional, abrigando propaganda, conteúdos humorísticos, imagens e outros. O que importa é que sejam conteúdos de fácil circulação, detalha. Para o funcionamento dessa engrenagem, outra violação do direito à comunicação é ativada. Trata-se do chamado zero rating, prática de disponibilização de acessos a determinados aplicativos escolhidos pelas operadoras de telefonia, sem desconto de franquia. Assim, muitas vezes é impossível até abrir um link externo ao aplicativo para ler o conteúdo antes de divulgá-lo, o que dificulta a confirmação das informações recebidas ou a busca de detalhes sobre elas. A prática reflete os desafios à inclusão digital no Brasil.

Quanto ao volume, se antes falávamos em reportagens que podiam ser vistas nos poucos meios de comunicação existentes no Brasil, dada a concentração midiática marcante no país, agora a difusão ocorre de forma direta por meio de redes sociais e aplicativos de mensagens e as visualizações são contadas aos milhares, o que dificulta também o acompanhamento do que está ocorrendo em grupos de WhatsApp que podem reunir até 250 pessoas. É o que mostra estudo realizado pelos professores Pablo Ortellado (USP), Fabrício Benvenuto (UFMG) e pela agência de checagem de fatos Lupa em 347 grupos de WhatsApp. Neles, circularam 846 mil mensagens, entre textos, vídeos, imagens e links externos, entre os dias 16 de setembro de 7 outubro. Diante da impossibilidade de analisar todas elas, os pesquisadores destacaram e analisaram as 50 imagens mais compartilhadas e concluíram que apenas quatro delas eram verdadeiras (8%), oito (16%) eram falsas e quatro (8%), insustentáveis. As demais eram reais, mas nove faziam alusão a teorias da conspiração sem comprovação e sete continham fotos retiradas do contexto.

Por outro lado, o volume de canais não significa fim da concentração na produção das informações. Pesquisadores do grupo Tecnologias da Comunicação e Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), monitoraram 90 grupos existentes no WhatsApp e constataram que 99,11% dos perfis que interagem neles estão conectados direta ou indiretamente por meio de uma rede de pessoas. Integrante do grupo, o pesquisador João Guilherme Santos aponta que há uma estrutura de conexões entre os grupos analisados, a qual propicia a viralização de conteúdos, subvertendo o uso da plataforma como espaço originalmente pensado para conversação interpessoal.

Esse processo se dá em diferentes etapas: “Você pode ter uma primeira etapa mais profissionalizada de envio massivo; uma segunda em que há esse engajamento mais voluntário, que pode não ter nenhuma relação direta com aquela construção profissional, e, por fim, você tem um contingente enorme de pessoas que recebe, mesmo sem estar envolvida na produção ou na circulação, como por meio de grupos de família”, detalha.

O grupo da UERJ dedicou-se, sobretudo, à análise da segunda etapa, que é a da difusão das mensagens. Com as pesquisas, “o que a gente conseguiu comprovar foi que os grupos interessados em política funcionam com uma lógica de rede, por meio da qual se dá a viralização. É isso o que faz com que todo esse impacto seja possível. Sem viralização, o custo para envio de mensagens seria proibitivo, mas como você tem uma rede de voluntários que viraliza o conteúdo, o custo é mínimo. Na prática, você paga uma mensagem e ela acaba chegando a milhares de pessoas”, explica João Guilherme. Há, portanto, uma lógica de continuidade entre uma ação coordenada de produção de conteúdos e sua distribuição por meio de pessoas que voluntariamente se engajam na difusão das mensagens.

Outros fatores têm contribuído para a disseminação de notícias falsas, conforme pesquisadores do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio). Eles monitoraram 110 grupos políticos abertos no WhatsApp entre os dia 17 e 23 de outubro, parte do segundo turno do pleito, e perceberam a existência de “fortes indícios” de ação automatizada em múltiplos grupos, bem como um alto grau de interconexão. O fato de haver um número elevado de administradores e membros que os grupos compartilham entre si é exemplo disso. Ademais, a partir da análise de uma amostra de mensagens, foi observado que os usuários mais ativos enviavam mensagens em uma média 25 vezes maior do que a média geral dos participantes. O tempo entre os envios – de 1 a 20 segundos – e o uso de fotos impessoais nos perfis também contaram para que os estudiosos concluíssem que “existem elementos que apontam para grande probabilidade desses usuários serem produto de automação, total ou parcial, para a difusão de conteúdo, podendo ser classificados como bots (automação total) ou ciborgues (automação parcial)”.

Dados pessoais como insumo da fábrica da desinformação

Esses estudos evidenciam uma transformação no uso das redes sociais. No caso do WhatsApp, dificilmente o aplicativo poderia ser hoje descrito como um mensageiro privado, já que ganhou expressiva dimensão pública e de agregação de contatos. “Os canais de distribuição se desenvolveram e mudaram de perfil de maneira surpreendente nos últimos anos. O motivo para isso não foi porque as pessoas passaram a se comunicar mais, mas porque o uso de dados pessoais possibilitou apontar, por exemplo, quais pessoas poderiam ser mais ou menos suscetíveis a determinados conteúdos”, avalia o professor do mestrado em Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público e consultor do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), Danilo Doneda.

Para Doneda, o problema das chamadas fake news hoje está mais associado à proteção de dados pessoais do que à discussão sobre verdade. “Sem uma utilização abusiva de dados pessoais, a gente não teria tido essa difusão absurda de notícias falsas”, opina, acrescentando que essa disponibilidade de informações levou ao refinamento de técnicas de manipulação de informações que já eram utilizadas por agências de marketing. Como exemplo de dados disponíveis na plataforma, ele cita os nomes das pessoas e seus contatos. “Seu número, diferente do que ocorre no Telegram, fica visível no grupo, portanto ele pode ser catalogado e utilizado para outro fim”, detalha.

Outras formas de mineração de dados pessoais têm permitido a disseminação da desinformação. A partir da reunião e do processamento de informações como sites visitados e palavras utilizadas, é possível direcionar mensagens para públicos criteriosamente identificados e definidos. No Facebook, esse envio pode ser feito de forma aberta ou por meio do chamado dark post, tipo de postagem que fica oculta na timeline de quem a produziu, aparecendo apenas para a audiência definida previamente. Isso permite uma adaptação dos discursos aos gostos dos públicos – e, como resultado disso, um debate público marcado por informações parciais ou mesmo discordantes que levam à polarização.

Esse direcionamento de informações e seus impactos na esfera pública motivaram debates, inclusive junto ao TSE, que nos últimos anos tem discutido regras para a propaganda na Internet. Com a Minirreforma Eleitoral (Lei 13.488), em 2017, passaram a ser permitidos o impulsionamento de conteúdo e a priorização paga de conteúdos em mecanismos de busca. Depois, a Resolução 23.551/2017 detalhou que as mensagens com essa finalidade deveriam estar identificadas e definiu a necessidade das publicações trazerem as informações sobre o candidato ou partido, como os nomes e o CPF ou CNPJ do patrocinador, o que foi adotado pelo Facebook durante o pleito.

Propostas que garantiriam direitos foram negligenciadas

Desde a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, o problema das chamadas notícias falsas veio à tona e passou a ser reconhecido por diversas instituições. A descoberta de toda uma lógica de uso de dados pessoais para segmentação de informações, muitas delas inverídicas ou descontextualizadas, mostrou não se tratar apenas da existência das chamadas fake news, mas de um processo complexo e orientado de manipulação. Diante desse cenário, em 2017 foi divulgada a “Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e ‘Notícias Falsas’ (‘Fake News’), Desinformação e Propaganda”, assinada, entre outras organizações, pela Relatoria Especial das Nações Unidas (ONU) para Liberdade de Opinião e Expressão e pela Relatoria Especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a Liberdade de Expressão. Nela, consta que “a desinformação e a propaganda são muitas vezes concebidas e implementadas com o propósito de confundir a população e para interferir no direito do público de conhecer e no direito das pessoas de procurar e receber, e também transmitir, informação e ideias de todos os tipos, independentemente de fronteiras, que são direitos alcançados por garantias legais internacionais dos direitos à liberdade de expressão e opinião”.

O documento completo pode ser encontrado aqui.

Mais recentemente, ao lançar consulta pública sobre o impacto da desinformação no contexto eleitoral, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/RELE), junto ao Departamento de Cooperação Eleitoral (DECO) e o Departamento de Direito Internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA), divulgou texto em que explicita que a desinformação é “entendida como disseminação massiva de informação falsa que se faz (i) sabendo-se de sua falsidade e (ii) com a intenção de enganar o público ou uma fração dele”. Trata-se, portanto, de uma violação dos direitos à comunicação e à liberdade de expressão, entendidos como o direito de receber informações e também de produzir, interagir, participar livremente do processo de comunicação.

Por reconhecer a importância do tema, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), órgão colegiado responsável por promover e defender os direitos no Brasil, aprovou, em junho de 2018, a Recomendação n° 4/2018, na qual apresentou medidas de combate às chamadas notícias falsas e para a garantia do direito à liberdade de expressão, destacadamente na Internet. Uma das recomendações foi direcionada às plataformas Facebook, Twitter e Google e propunha “a adoção de políticas que garantam transparência sobre o seu funcionamento e as regras das suas comunidades e que ampliem o controle dos usuários sobre os conteúdos que publicam e acessam, incidindo sobre o chamado efeito bolha e a estrutura de monetização que estimula a criação e difusão das chamadas ‘notícias falsas’”.

Coordenadora da Comissão Permanente Direito à Comunicação e à Liberdade de Expressão do CNDH e coordenadora do Intervozes, a jornalista Iara Moura explica que o documento objetivava também afirmar a defesa da liberdade de expressão, em um contexto em que o Congresso Nacional discutia dezenas de projetos sobre fake news, o TSE criava comissão para tratar sobre o tema e até mesmo o então presidente da Corte, Luiz Fux, sinalizava que poderia anular o resultado das eleições se ele fosse decorrência da difusão massiva de notícias falsas.

“Nossa preocupação era a de agir em resposta a algumas indicações do Poder Legislativo, do Executivo e do Judiciário com relação à criação de instrumentos legais para combater as chamadas fake news, porque nos preocupava a possibilidade de criminalização da produção e compartilhamento do que se consideram notícias falsas. Em primeiro lugar, porque a gente entende que as definições ainda são muito genéricas. Fica muito difícil delimitar o que é ou não uma notícia falsa e tentativas nesse sentido poderiam trazer riscos para a liberdade de expressão na rede. Por exemplo, havia a proposta de criminalizar o usuário ou responsabilizá-lo pela disseminação de notícias falsas, o que poderia gerar censura e a própria judicialização. Ao mesmo tempo, nos preocupava a formação do comitê para acompanhamento das fake news pelo TSE, porque seria um comitê formado por membros da Abin [Agência Brasileira de Inteligência] e do Exército”, explica Iara.

Créditos: José Cruz/Agência Brasil
Créditos: José Cruz/Agência Brasil

Buscando uma abordagem positiva para o tema, o CNDH propôs a aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 53/18 sobre proteção de dados pessoais e a admissão, em geral, de iniciativas legislativas que respeitassem os padrões internacionais de direitos humanos, à liberdade de expressão e informação e que promovessem a diversidade na Internet por meio do fortalecimento da comunicação plural, diversa e qualificada, em vez de legislar com enfoque na lógica de criminalização dos usuários. Sugeriu ainda a adoção de políticas públicas de alfabetização midiática e informacional, educação para a mídia e de promoção de práticas de empoderamento digital, como o “fomento à produção de conteúdos positivos e contra-narrativas que engajem a sociedade num debate mais qualificado balizado pelo respeito aos direitos humanos e aos princípios de pluralidade e diversidade, conforme recomenda a Unesco”.

Apesar da mobilização do Conselho e, no mesmo sentido, de organizações da sociedade civil em prol de uma agenda positiva para o tema ter marcado o ano de 2018, pouco se avançou quanto ao combate à desinformação. No Congresso, foi aprovada a Lei de Proteção de Dados Pessoais em julho. O texto foi sancionado, com vetos, em agosto, mas seus efeitos não incidiram nas regras do jogo eleitoral, que já estava em curso. Em relação às medidas propostas pelo TSE, o Facebook criou um sistema de contas de anúncios e exigiu a comprovação da documentação de responsáveis por eles. A empresa também passou a identificar as postagens pagas por candidatos.

Quanto ao WhatsApp, não houve regulamentação voltada ao canal, que acabou sendo amplamente explorado para a promoção da desinformação. Antes do início oficial das eleições, a plataforma, que é de propriedade do Facebook, reduziu a possibilidade de encaminhamento de mensagens de 250 para 20. Os conteúdos encaminhados também passaram a ser identificados. De acordo com informações divulgadas à época pela empresa, o objetivo era o de reduzir a disseminação de notícias falsas. O Facebook apoiou ainda ações de entidades de checagem de fatos no Brasil, como o Projeto Comprova, formado por 24 organizações de notícias. Em novembro, o consórcio anunciou que recebeu mais de 20.000 denúncias de informações falsas e publicou essas descobertas para ajudar as pessoas a distinguir entre o que é verdadeiro e falso.

Essas iniciativas, contudo, foram incapazes de conter a maré da desinformação, avalia Danilo Doneda, para quem teria sido possível implementar ações mais eficazes. Doneda integrou o Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições do TSE e conta que, ainda em março de 2018, foram apresentadas contribuições para o aperfeiçoamento das resoluções do Tribunal sobre as eleições de 2018. Entre as 14 propostas formuladas pela organização SaferNet, assinadas também pelo especialista, estavam: “vedação à utilização como critérios para impulsionamento características do público-alvo relacionadas a atributos sensíveis como origem racial ou étnica, convicções religiosas, a filiação a sindicatos ou organizações de caráter religioso, dados referentes à saúde ou à vida sexual; vedação aos chamamos ‘hidden posts’ ou ‘dark posts’ (sic), postagens pagas direcionadas a um público específico que o resto da população não consegue ver; vedação do pagamento de anúncios e impulsionamento de conteúdo político em moeda estrangeira”, conforme o documento.

As medidas não foram assimiladas pelo Tribunal. Já o Conselho Consultivo vivenciou um hiato de reuniões. “De fato, talvez no momento em que fosse mais útil a iniciativa política do grupo, que foi justamente nos quatro ou cinco meses anteriores à eleição, não houve reuniões. Quando começou a eleição de fato, já não havia muito o que fazer além de apagar incêndios”, detalha Doneda. Ao longo do primeiro turno do pleito, o Conselho sequer chegou a se reunir.

Um dos incêndios foi justamente a crescente divulgação de informações falsas, descontextualizadas, agressivas ou mesmo caluniosas pelo WhatsApp. A fim de pleitear ações para a garantia de um ambiente comunicacional equilibrado, a SaferNet enviou para a companhia propostas de alterações específicas, em dois eixos: medidas técnicas a serem consideradas para mitigar o risco do mensageiro ser utilizado para espalhar desinformação e ações para conscientização dos usuários, verificação de fatos e pesquisa baseada em evidências.

Os especialistas sugeriram que fosse considerada a definição de um “número razoável” de assinaturas do grupo permitido a um usuário único e reduzido o número de encaminhamentos para cinco em vez de 20 chats, como feito na Índia, e de grupos criados por um usuário único de 9.999 a 499. Além disso, eles pautaram a necessidade de a plataforma apresentar mecanismos de checagem de fatos e verificação de notícias falsas, incluir ferramentas para indicar seus usuários de antemão se algum conteúdo de mídia que eles pretendem enviar a grupos ou múltiplos destinatários é considerado uma desinformação por mecanismos certificados, além de trabalhar em conjunto com o TSE, os meios de comunicação e a sociedade civil para desenvolver uma nova educação, conscientização, segurança e aprendizado sobre a disseminação de desinformação no país, com vistas à adoção de melhorias.

Após o primeiro turno das eleições, cresceu a pressão para que medidas garantidoras de um ambiente comunicacional equilibrado sejam efetivadas. João Guilherme Santos aponta, nesse sentido, que é possível “identificar padrões de fluxo de informações e interferir de novo na quantidade de vezes que essa informação pode ser compartilhada”. Danilo Doneda defende também a adoção de recursos que diminuam a capacidade de viralização nas redes e destaca que a proteção de dados pessoais é parte essencial desse processo.

Até agora, contudo, não houve mudanças no funcionamento das redes. No fim do ano, o site WABetaInfo, especializado na cobertura do WhatsApp, noticiou que a plataforma reduziria a possibilidade de encaminhamento para cinco conversas. Nossa reportagem procurou a empresa para confirmar a informação. Ao Intervozes, sua assessoria explicou que esse é um teste que está sendo feito, mas que testes não são comentados oficialmente. Ela também enviou nota em que lista ações que estão sendo tomadas para combater o problema. Além das medidas já citadas, como a parceria com as agências de checagem, apontou a expansão de campanha de educação com anúncios em jornais, sites e rádios em todo o Brasil “para ensinar as pessoas sobre como identificar notícias falsas e bloquear a disseminação destas”, a realização de “treinamentos com tribunais eleitorais regionais e nacionais, partidos políticos, polícia e promotores sobre as regras de como usar o WhatsApp para ajudar a explicar que o app é uma plataforma de mensagens privadas e que contas com comportamentos de spam serão banidas” e o “contato com especialistas em alfabetização digital”, a exemplo das iniciativas Énois Conteúdo, que treina estudantes entre 17 e 21 anos para se tornarem verificadores de fatos em seus próprios grupos familiares e círculos de amizade, e InternetLab, parceira da plataforma na produção de vídeos educativos sobre como identificar e agir contra a desinformação e outros tipos de conteúdo problemático.

“Dada a natureza privada das mensagens do app, o foco do WhatsApp é educar as pessoas sobre desinformação e capacitar os usuários com novas opções de controle dentro do aplicativo”, diz o texto enviado à reportagem. As assessorias do TSE e do Facebook foram procuradas, mas não responderam nossos contatos até a finalização desta matéria.

A batalha continua

2019 começou já marcado pela perpetuação da lógica da desinformação. Nos discursos oficiais e nas redes, multiplicam-se conteúdos sobre o regime socialista que vinha, supostamente, sendo adotado no Brasil e sobre a também suposta doutrinação marxista a que seriam submetidos os estudantes em escolas e universidades. Outro exemplo mostra como a desinformação tem sido utilizada para legitimar propostas do novo governo. Em meio aos anúncios de ações de desmonte do sistema de proteção ambiental, o novo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usou sua conta pessoal no Twitter para criticar um contrato de locação de veículos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e foi rebatido pela presidenta do órgão Suely Araújo. Após publicar nota contextualizando a necessidade dos gastos, ela pediu exoneração do cargo.

Os exemplos mostram que a batalha da informação não será encerrada. Para a coordenadora do Intervozes, Bia Barbosa, ela se dará não só pelo efeito que a prática massiva e indiscriminada do uso da desinformação teve no processo eleitoral, mas porque o Brasil convive com um cenário de concentração dos meios de comunicação e de falta de educação para a mídia, problemas que ganham um alcance exponencial em função da tecnologia, a qual tem sido instrumentalizada para o desvirtuamento do debate público.

“O Brasil é um país com ampla concentração dos meios de comunicação e que registra casos históricos de desinformações produzidas pelos veículos tradicionais. Com a Internet, a gente ganha uma velocidade e um alcance exponencial dessa desinformação, mas não podemos tratar dessa questão de maneira dissociada do contexto do sistema de comunicação”, defende. “O fato de a sociedade ter baixa percepção sobre notícias deliberadamente fraudulentas, de compartilhar informações desse tipo e de não opor forte reação à questão, tudo isso faz parte de um problema muito mais amplo que passa por educação e regulação e que a gente precisa enfrentar nesse debate”, pontua.

A jornalista defende a adoção de medidas capazes de reverter esse quadro, mas alerta que é preciso “não cair na tentação de achar que teremos uma solução simplista para esse enfrentamento”. De acordo com Bia, há pelo menos 30 projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional sobre o tema e novos que surgem a cada semana que caminham nesse sentido. Segundo ela, eles estão baseados em duas questões: a criminalização, com penas altíssimas de cadeia, até do cidadão que compartilha notícia falsa e a outra a mudança do Marco Civil da Internet para obrigar as plataformas a identificar e remover conteúdos falsos.

Quanto à primeira problemática, Bia aponta que a criminalização, com a criação de um novo tipo penal relativo à produção e compartilhamento das fake news, consiste em uma resposta punitivista ao problema que oferece riscos à liberdade de expressão e desconsidera os inúmeros problemas do sistema prisional, como a seletividade, a morosidade e a superlotação dos presídios. Sobre a transferência de responsabilidades para as plataformas, considera perigoso, “pois elas, muitas vezes, funcionam com base em lógicas, princípios e critérios muito diferentes do que a legislação brasileira estabelece”. “Se o dever de definir o que é verdade ou não é verdade, se o poder de definir o que circula ou não na Internet estiver nas mãos das plataformas, não tenhamos dúvidas de que nós, defensores de direitos humanos, mulheres, negros e negras, seremos os mais prejudicados por isso”, pontua.

Isso não significa que as plataformas não tenham responsabilidades e não devam ser reguladas. “Essa falsa dicotomia precisa ser superada, porque existem leis neste país, como leis que combatem a injúria, a difamação e mesmo a lei eleitoral que trata de impulsionamento, uso de banco de dados e outras questões e a omissão diante de flagrantes violações precisa gerar responsabilização”, acrescenta.

Para o Intervozes, é preciso garantir o respeito às leis existentes, inclusive à nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. “Enquanto o cidadão estiver tendo uma coleta massiva de seus dados pessoais que permita a criação de perfis para o direcionamento específico de conteúdos, o efeito da produção e da disseminação vai seguir sendo muito avassalador no país”, detalha Bia. Em paralelo, é preciso que a Polícia Federal investigue casos de desinformação para se descobrir como essas notícias estão sendo produzidas e disseminadas e que a Justiça atue de maneira célere a partir disso.

Para combater a indústria da desinformação, a organização defende que outro passo necessário é a adoção de medidas de transparência sobre o funcionamento das plataformas e de ampliação do controle dos usuários sobre os conteúdos que publicam e acessam, desmontando os efeitos bolha e a estrutura de monetização que estimula a criação e difusão das chamadas notícias falsas. O caminho para a solução do problema é longo e complexo, mas só será trilhado com mais e não menos informações e direitos.

* Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante da Coordenação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Banalização do ódio e ódio político on-line marcam 2018 e ameaçam liberdade de expressão

Texto: Paulo Victor Melo*

Lixo, fedorenta, nojenta. Feia, macaca. Me empresta seu cabelo aí pra eu lavar louça. Te pago com banana.

Mais de cinquenta anos após a filósofa judia Hannah Arendt desenvolver o conceito de banalidade do mal para compreender as práticas do nazismo como fruto da aceitação passiva de homens e mulheres comuns, pode-se afirmar que o Brasil do século XXI vive tempos de banalização do ódio.

Maju Coutinho, em junho de 2015; Taís Araújo, em novembro do mesmo ano; Negra Li, em julho de 2016; e Rita Batista, em outubro deste ano. Quatro mulheres negras com visibilidade midiática – duas jornalistas, uma atriz e uma cantora – são apenas alguns exemplos das vítimas do ódio com raiz racista na Internet nos últimos anos.

Pesquisa de doutorado defendida na Universidade de Southampton, na Inglaterra, confirma que os discursos contra Maju, Taís, Negra Li e Rita representam um fenômeno mais amplo: sejam ou não conhecidas publicamente, as mulheres negras são as principais vítimas do ódio nas redes sociais.

O autor do estudo, o pesquisador brasileiro Luiz Valério Trindade, analisou 109 páginas e 16 mil perfis no Facebook, além de 224 artigos jornalísticos entre 2012 e 2016, e constatou que aproximadamente 80% dos discursos com conteúdo de ódio têm as mulheres negras como alvo.

Créditos:  Rovena Rosa/Agência Brasil
Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil

As vozes que incomodam

Mulher, negra, comunicadora. É assim que a jornalista Rita Batista se apresenta nas redes sociais. Apresentadora de televisão na Bahia, Rita relata que o ódio contra as mulheres negras gera uma série de consequências negativas, inclusive em termos de autoestima e aceitação. “As mulheres negras são massacradas a todo tempo. Pela estética, o cabelo, o corpo, o nariz. Muitas, inclusive, passam por cima de características da própria raça negra para poder se enquadrar num perfil que não nos cabe”, diz.

Influente nas redes sociais, ambiente que utiliza para fazer reflexões constantes sobre as questões étnico-raciais e de gênero, a jornalista defende a própria estética negra como instrumento de libertação e acredita que ainda há um longo caminho na superação do racismo. “O bonito é ser livre e a nossa estética é também um componente de luta, de resistência. Não são 130 anos de abolição da escravatura que vão apagar uma história cruel, perversa e que ainda hoje infelizmente a gente debate, discute e muita gente não entende ou entende e quer diminuir a nossa dor, fazendo achar que é bobagem, que ‘deixa pra lá, vamos passar por cima disso’”, defende Rita.

Com mais de 116 mil seguidores, Rita é uma das lideranças que teve sua atuação potencializada pela Internet nos últimos anos. São parte desse mesmo movimento Alma Preta Jornalismo, Preta e Acadêmica, Blogueiras Negras, Tia Má, Djamila Ribeiro, entre outras. São todas, como diz Elza Soares em seu disco “Deus é mulher”, vozes usadas para dizer o que se cala: falam a partir do olhar, da vivência e do local de fala da mulher negra.

Para a integrante do InternetLab, Natália Neris, essa crescente presença de mulheres negras na Internet e o acesso dos grupos vulnerabilizados ao ensino superior são também fatores que geram a ofensiva conservadora que caracteriza o ódio. “Apesar das desigualdades permanecerem no Brasil, nos últimos anos temos o crescimento de iniciativas de mulheres negras na Internet, com os seus discursos se tornando mais audíveis. Temos blogueiras negras e muitas Youtubers negras que discutem desigualdade racial e começaram a fazer discursos sobre si. E isso incomodou muito. O discurso de ódio é também uma reação a essas pessoas que conseguiram furar de alguma maneira barreiras de classe econômica”, acredita.

Sua opinião é compartilhada também por Trindade, que identificou que boa parte das mulheres negras ofendidas nas redes exercem profissões como médicas, jornalistas, advogadas e engenheiras. “Ao disseminar estes discursos preconceituosos e racistas nas redes sociais, estes indivíduos estão, na verdade, negando legitimidade à crescente ascensão social das mulheres negras e ‘punindo-as’ por ultrapassarem a linha invisível que separa as fortes hierarquias sociais e raciais brasileiras (em outras palavras, é como se dissessem que determinados lugares de destaque e privilégio não lhes pertence). Na medida em que elas deixam de ocupar predominantemente papéis sociais associados à subserviência e baixa escolaridade e assumem posturas muito mais ativas na sociedade e, sobretudo, associadas a maior escolaridade, isso causa um profundo incômodo nos defensores de ideologias preconceituosas”, afirmou ele em artigo.

Mas não é somente contra as mulheres negras que o ódio na rede se manifesta. Os números de ocorrências assustam. A Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da ONG Safernet Brasil contabilizou nos últimos 12 anos quase 4 milhões de denúncias relacionadas a crimes de ódio e violações de direitos na Internet. São, em média, 2500 denúncias por dia de páginas contendo evidências de crimes como racismo, neonazismo, intolerância religiosa, xenofobia, LGBTIfobia e apologia e incitação a crimes contra a vida, dentre outros.

A tabela apresenta a quantidade de denúncias por alguns tipos de conteúdos de ódio recebidas pela Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos.

Tipo de conteúdo Denúncias (12 anos)
Apologia/incitação de crimes contra a vida 702.698
Racismo 567.497
Intolerância religiosa 268.030
Neonazismo 235.237
Xenofobia 150.367
LGBTIfobia 137.312

Fonte: http://indicadores.safernet.org.br/

Das redes para as ruas

Organizações da sociedade civil têm alertado que o discurso de ódio na Internet é, em si mesmo, um ato de violência, que se relaciona diretamente com atos e manifestações de violência fora da Internet. Em outros termos, os dados levantados pela Safernet têm a ver também com os altos índices, por exemplo, de crimes com motivação racista, misógina e LGBTIfóbica no Brasil.

“O que temos visto é uma cultura do discurso de ódio que gera violência física, porque o discurso de ódio já é uma violência simbólica que tem consequências emocionais, psicológicas, que estimula atos de violência física, que causam até morte. Exemplos não faltam, como o assassinato da vereadora Marielle Franco, vítima de um crime político, mas também por ser uma mulher negra”, aponta Renata Mielli, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC), que congrega centenas de entidades comprometidas com a diversidade e o pluralismo na mídia.

Quem também avalia como complementar a relação entre as expressões de ódio na internet e o que acontece nas ruas é Beatriz Buarque, fundadora do projeto Words Heal the World. Segundo ela, “algumas pesquisas têm mostrado que quando a pessoa se cerca muito de conteúdo de violência na Internet, ela fica inclinada a assumir uma postura e adotar uma atitude prática. Além disso, as mídias sociais possibilitam a troca de informações e fazem com que pessoas que odeiam homossexuais, por exemplo, se encontrem, conversem e a partir daí até comecem a pensar ações juntos”.

Ódio político

O processo eleitoral de 2018 foi particularmente marcado por discursos permeados pelo ódio e a relação entre o que se diz na rede e o que se pratica nas ruas foi estreitada. Foram diversos os exemplos de ataques nas diversas partes do país. Apenas para citar alguns episódios:

  • Na primeira semana de outubro, um grupo de apoiadores de Jair Bolsonaro, então candidato a Presidente, ameaçou cidadãos em um metrô de São Paulo gritando “ô bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar veado!”;
  • Em 8 de outubro, um dia após o primeiro turno das eleições, o mestre de capoeira Moa do Katendê, de 63 anos, foi morto, em Salvador, após ser atingido por 12 facadas por um agressor que defendia o apoio a Jair Bolsonaro;
  • Uma semana depois, uma travesti identificada como “Priscila” também foi esfaqueada, na madrugada do dia 16, na região do Largo do Arouche, em São Paulo. Conforme relato de diferentes testemunhas, os agressores gritavam “Com Bolsonaro presidente, a caça aos veados vai ser legalizada”.

Todos os ataques aconteceram em paralelo, por exemplo, à criação de um jogo on-line em que um personagem que imita Jair Bolsonaro precisa espancar negros, mulheres, membros da população LGBTI, militantes do movimento sem-terra, petistas até “matá-los” virtualmente. Lançado pela australiana BS Studios e o hospedado no site Steam, o jogo “Bolsomito 2k18” custa R$ 9,99 e em sua descrição convoca os internautas a serem “o herói que vai livrar uma nação da miséria”. A descrição segue: “[e]steja preparado para enfrentar os mais diferentes tipos de inimigos que pretendem instaurar uma ditadura ideológica criminosa no país. Muita porrada e boas risadas”. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) abriu inquérito para investigar seus criadores afirmando que o jogo “causa danos morais coletivos aos movimentos sociais, gays e feministas”.

Outras vítimas de inúmeras mensagens de ódio nas redes durante as eleições presidenciais foram os nordestinos” identificados pelos agressores como responsáveis por impedir a vitória de Bolsonaro no primeiro turno.

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Nos dias entre o primeiro e o segundo turno das eleições deste ano houve, de acordo com outro levantamento da ONG Safernet, um crescimento significativo das denúncias de discurso de ódio na Internet. A tabela a seguir compara a quantidade de denúncias feitas no primeiro (16 de agosto a 7 de outubro) e segundo (8 a 28 de outubro) turnos.

Tipo de conteúdo Denúncias (1º turno) Denúncias (2º turno)
Apologia/incitação de crimes contra a vida 1.746 11.009
Racismo 531 1.159
Intolerância religiosa 195 283
Neonazismo 254 1.393
Xenofobia 338 8.009
LGBTIfobia 422 1.478
Violência/discriminação contra as mulheres 1.437 1.232

Fonte: www.denuncie.org.br

Cabe observar que ainda que a tabela mostre uma aparente queda em números absolutos de denúncias de violência ou discriminação contra as mulheres, o segundo turno foi de apenas 21 dias, enquanto o primeiro de 53. Isso significa que o número absoluto de denúncias deste tipo teve uma queda de apenas 14,26% em menos da metade do tempo. Vale lembrar que à época foram realizadas centenas de manifestações protagonizadas por mulheres com o lema #EleNão. Além disso, muitos dos registros de ameaça e assédio contra jornalistas se direcionava contra mulheres.

Ainda de acordo com o levantamento feito pela Safernet, a maior parte do conteúdo denunciado estava no Facebook. Entre 16 de agosto e 28 de outubro, 13.592 denúncias indicavam links dessa rede social. Em segundo lugar esteve o Twitter, com 1.509 denúncias, seguido de Instagram, com 1.088, e do YouTube, com 400.

Em comparação com a eleição presidencial anterior, o número total de denúncias recebidas pela Safernet mais do que dobrou, passando de 14.653 em 2014 para 39.316 neste ano.

De onde vem o ódio?

Em declaração à BBC Brasil, o presidente da Safernet, Thiago Tavares, atribuiu esse crescimento também ao fenômeno das notícias falsas. “Isso se deve à produção e difusão em escala industrial de conteúdos enganosos criados para incentivar o ódio, o preconceito e a discriminação. Boa parte das fake news tinham alvos claros: mulheres, negros e a população LGBTI. Então, não surpreendeu que esses grupos fossem vítimas desses ataques”, avalia.

Coordenadora de projetos de combate ao extremismo e ao ódio, Beatriz Buarque ressalta também a desinformação, a sobreposição das emoções sobre a racionalidade e o desconhecimento sobre uso das redes sociais como fatores que contribuem para a irradiação do ódio pela internet. “Se tornou irrelevante se o que é dito é verdade ou mentira, na dita sociedade da pós-verdade o que é relevante hoje são as emoções. E nisso ganha força o ato de compartilhar. E quando você compartilha você está alimentando aquela mensagem, então o que a gente tem hoje? A gente tem pessoas que concordam com aquelas mensagens e ficam ali reverberando e a gente tem também as pessoas que não concordam e que ficam chocadas, mas que também ficam reverberando, porque não têm esse entendimento. Então, é um movimento cíclico acelerado pela Internet que está tomando proporções nunca vistas antes”, analisa.

Entidades com atuação na área do direito à comunicação e liberdade de expressão também destacam como fatores que contribuem com a disseminação do ódio na Internet a ausência de uma iniciativa oficial de sistematização dos dados, a inexistência do discurso de ódio como categoria de crime em termos jurídicos e as diversas opressões institucionais na atuação do Estado brasileiro ao lidar com a questão.

Natália Neris afirma que esses fatores são identificados, por exemplo, em decisões do Poder Judiciário sobre o tema. “Os casos que envolvem racismo e misoginia não estão chegando muito ao Judiciário e quando chegam não há o reconhecimento dessas condutas como racistas ou misóginas. Elas ficam no campo da brincadeira, do não-intencional, sem propósito da ofensa”, acredita.

Essa omissão do Poder Judiciário alimenta, de acordo com Neris, um ciclo perigoso de desconfiança dos segmentos vítimas do ódio na atuação do Estado. Para ela, isso pode ter um impacto muito negativo nas vítimas. “A ausência do Estado para lidar com esse tema pode fazer com que muitas pessoas não se sintam incentivadas a falar sobre ele ou buscar algum tipo de reparação”, diz.

Liberdade de expressão não protege o ódio

Ainda que seja utilizada como argumento em defesa de certos tipos de discurso de ódio, cabe lembrar que a liberdade de expressão não é absoluta, como ressaltam os próprios padrões internacionais sobre o tema. Renata Mielli frisa que “a liberdade de expressão não pode ser guarda-chuva para discursos que estimulam e incitam a violência contra grupos específicos nem pode colidir com direitos de outras pessoas”.

De fato, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966, e o Pacto de San José da Costa Rica, de 1992, ao mesmo tempo em que garantem a liberdade de expressão determinam responsabilidades no seu exercício e restringem a apologia ao ódio, especialmente contra grupos sociais, étnicos e religiosos, dentre outros.

Para o juiz e professor de direito Ingo Sarlet, um dos principais desafios na perspectiva do Direito é “assegurar um equilíbrio entre o exercício pleno da liberdade de expressão nas suas mais diversas dimensões e a necessária proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos de personalidade dos indivíduos”.

Como saídas para reduzir a quantidade e gravidade das consequências do discurso de ódio na Internet, Sarlet aponta a importância tanto de medidas na área da educação, quanto jurídicas. Para ele, “a inclusão digital, incluindo a capacitação para o uso responsável da Internet, e a difusão de uma cultura do respeito e da tolerância, bem como eventualmente a criação de algo como um código de ética, poderá, de fato, ter resultados mais efetivos e duradouros”.

Respostas

A profusão dos discursos de ódio na Internet em escala global tem preocupado também organismos internacionais, que buscam oferecer subsídios para o enfrentamento ao fenômeno. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) elaborou em 2015 um estudo em que analisa os quadros normativos internacionais, regionais e nacionais desenvolvidos para abordar o tema e suas repercussões para a liberdade de expressão. A pesquisa dá ênfase particularmente aos mecanismos sociais que podem ajudar a combater a produção, divulgação e impacto das mensagens de ódio on-line.

De acordo com o documento, é preciso investimento dos Estados em iniciativas de educação para a cidadania, alfabetização midiática e cidadania digital com três objetivos fundamentais: transmissão de informações sobre as características do discurso de ódio; análise crítica dos diferentes tipos de ódio on-line, identificando suas causas comuns e compreendendo as suas hipóteses subjacentes e preconceitos; incentivo aos indivíduos e coletivos a tomarem medidas e ações concretas no sentido de combater os atos de ódio.

Não descartando a importância das políticas relacionadas ao ambiente digital, Natália Neris acredita ser fundamental iniciativas que afirmem o caráter de violência que possui o discurso de ódio. “O primeiro passo é desnaturalizar esses discursos antes ainda de pensar no digital, porque essa é uma questão social também, não é só sobre Internet. Isso é um tipo de violência. São importantes políticas públicas em educação para as relações de gênero e em educação para as relações raciais”, defende.

Ela propõe também a implementação de medidas junto aos operadores do direito para atuar especificamente com temas relacionados aos direitos humanos de grupos vulnerabilizados. Em sua opinião, delegados, juízes e promotores não estão acostumados a discutir questões de gênero em sua carreira e, por conta disso, não estão preparados para lidar com esses casos.

Neris critica respostas baseadas na ampliação de medidas punitivistas. “Eu acho que o Direito Penal não serve às minorias, mas se já existem leis – independentemente do que eu acredito – elas precisam ser cumpridas”, diz.

Opinião semelhante tem Renata Mielli. Para a coordenadora do FNDC, não há necessidade de criação de novos tipos penais ou ampliação de punições. Ela defende o cumprimento das legislações em vigor, a exemplo da que criminaliza o racismo (Lei 7.716/89), da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) e das medidas referentes à retirada de conteúdos mediante ordem judicial presentes no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14).

Mielli defende também a realização de projetos no ambiente escolar e no campo da leitura crítica dos meios de comunicação. “É necessário que o Estado brasileiro desenvolva políticas públicas de educação digital e que estimule o olhar crítico da mídia, tendo as escolas como espaço de discussão e identificação do discurso de ódio”, sugere.

Resistências e contra-narrativas

Na resistência aos discursos de ódio, diversas são as iniciativas individuais e coletivas de produção de narrativas que afirmam direitos e se mobilizam por uma vida mais digna e um mundo mais justo.

Uma delas é a Conexão Feminista, fruto do desejo de duas amigas de compartilharem os seus papos sobre feminismo com o mundo. Nesse “compartilhar” as suas visões, descobertas e experiências, Renata Senlle e Heloísa Righetto também aprenderam muito ao longo dos três anos de Conexão.

Segundo Renata, o trabalho as ajudou a compreender questões como interseccionalidade, lugar de fala e privilégios. “Talvez a nossa audiência seja muito parecida com a gente: classe média, branca, com alguns privilégios. Então, colocar esse lugar de interseccionalidade no nosso conteúdo também é revelador para algumas outras pessoas que assistem e que passam a ver a importância de entender as relações de classe, gênero, raça e orientação sexual”, reflete.

Heloísa concorda e opina que, reconhecendo os privilégios da condição étnico-racial, cabe a elas tornar a Conexão Feminista um espaço de compartilhamento de poder com outros grupos vulnerabilizados.

Sobre a estratégia para o enfrentamento aos discursos de ódio e construção de outras narrativas, Heloísa diz que “não vê outra alternativa que não seja pedagógica”. Renata, por sua vez, defende encontrar o caminho da mediação. “Eu acho que a única forma da gente criar um caminho que não use da mesma estrutura de ódio que faz o ódio se espalhar”.

Com o feminismo utópico, com o caráter pedagógico nas ações e com muita afinidade e parceria, Helô e Rê, como se tratam as amigas, têm desempenhado um trabalho fundamental de cultura de paz e respeito à diversidade aos direitos humanos, por meio de podcasts, vídeos e artigos publicados nas redes do Conexão.

Outro projeto de intervenção social que busca criar discursos alternativos ao ódio on-line é o Words Heal the World, criado por Beatriz Buarque, jornalista formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Trabalhando com universidades no Brasil e no Reino Unido, diversas escolas de Ensino Médio e organizações da sociedade, a Words Heal the World – em português, “Palavras curam o Mundo” – tem como centro das ações o público jovem. “O foco realmente está nos jovens, por três motivos: primeiro, porque eles são o principal alvo de grupos radicais; segundo, porque eles têm uma criatividade e uma familiaridade com a Internet que falta aos adultos, eles já tem isso na veia; e terceiro, porque quando surgiu essa radicalização criou-se um mercado em torno disso, hoje em dia existem várias empresas, várias instituições produzindo conteúdo contra o extremismo, trabalhando para evitar a radicalização, tentando identificar conteúdo terrorista ou extremista na Internet, mas nenhuma dessas organizações coloca os jovens como principais atores”, explica Beatriz. “Com a Words Heal, colocamos os jovens realmente como atores, porque a gente entende que a partir do desenvolvimento de ações e estratégias onde eles se sentem ouvidos, acontecem mudanças”, completa.

No futuro, Beatriz pretende focar na América Latina. “Temos uma explosão de ódio, de racismo, LGBTIfobia e intolerância religiosa na América Latina e precisamos trazer esse tema do extremismo e do discurso de ódio para a mesa, porque é um tema muito relevante e urgente”, defende.

A ousadia de Beatriz em levar a frente um projeto dessa relevância sem apoio financeiro é a mesma ousadia que faz o site da sua organização ter uma aba intitulada “O rosto do extremismo”, em que identifica grupos de extrema-direita com atuação pelo mundo, além de apresentar as suas estratégias de recrutamento e financiamento.

Respostas legislativas merecem atenção

Muitos projetos de lei tramitam no Congresso buscando restringir a circulação de conteúdos on-line. Entre as justificativas apontadas estão o combate ao discurso de ódio em diferentes aspectos, como a liberdade religiosa e de crença (PL 8862/2017) e o preconceito ou incitação à violência motivada por etnia, raça, cor, nacionalidade, origem regional, idade, deficiência física ou mental, religião, sexo ou orientação sexual (PLS 323/2017 e PL 8540/2017). As estratégias propostas vão desde a possibilidade de responsabilização das plataformas de Internet que disponibilizarem conteúdos deste tipo, até a criação de novos tipos penais ou o aumento das penas existentes para discriminação via Internet.

Esses projetos merecem acompanhamento, principalmente no que diz respeito à definição do que seria caracterizado como discurso de ódio e o que poderia ser enquadrado como um conteúdo legítimo, segundo os padrões internacionais de proteção da liberdade de expressão. O desafio é complexo e a linha pode ser tênue ao ponto de que possíveis novas leis ou tipos penais sejam utilizados para coibir manifestações críticas legítimas. No Brasil temos exemplos de uso abusivo de mecanismos penais relacionados a crimes contra a honra para silenciar ativistas e jornalistas independentes, como no caso do jornalista Cristian Góes.

Além disso, há de se ter um cuidado especial com propostas de responsabilização das plataformas por conteúdos de terceiros, já que podem estimular um aumento da vigilância e controle privado dos discursos dos usuários e usuárias. No caso de iniciativas de jornalismo independentes ou menores, medidas desse tipo poderiam implicar em limitações nas possibilidades de interação via comentários, por exemplo.

Mais informações sobre os projetos de lei em tramitação relacionados ao tema podem ser encontrados no portal Radar Legislativo.

O Intervozes é membro da Coalizão Direitos na Rede, que monitora a atividade legislativa buscando consolidar a proteção da liberdade de expressão on-line em equilíbrio com os demais direitos humanos. Acompanhe a atuação da Coalizão em https://direitosnarede.org.br/.

* Jornalista, doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas na Universidade Federal da Bahia. Mestre em Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Pesquisador do Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM).