Liberdade de Expressão no Brasil: ainda mais ameaças em 2017

Texto: Ramênia Vieira

O direito à comunicação nunca foi plenamente constituído no Brasil enquanto direito humano básico de todo cidadão. Sendo assim, a liberdade de expressão, um dos pilares desse direito, sempre esteve em risco no nosso país. Em períodos como o atual, de violações à democracia acompanhadas de uma agenda política retrógrada, a liberdade de expressão fica ainda mais ameaçada.

As últimas movimentações pós-golpe dos ocupantes dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) reforçam que a livre manifestação de pensamento não será “tolerada” quando não estiver consonante com a manutenção do status quo vigente. Entidades e militantes dos direitos humanos têm tido que reforçar e reafirmar a cada dia os princípios da liberdade de expressão e de imprensa, assim como o direito à comunicação, como garantias fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente democrática.

E esse cerceamento tem acontecido em diversas frentes. Na manutenção do oligopólio midiático e no desmonte da comunicação pública. Nas decisões judiciais censurando manifestações artísticas e na violenta repressão policial durante protestos. E também nos ataques aos direitos na internet e à liberdade de imprensa. Em todos esses campos, o cenário brasileiro atual revela o objetivo de calar as vozes dissonantes.

Calar Jamais!

Na tentativa de reagir aos ataques e confrontar essa onda de violação e censura que vem ocorrendo em nosso país, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) lançou no ano passado a campanha Calar Jamais!, que teve divulgado em outubro de 2017 seu relatório de um ano de implementação. A publicação traz o balanço das violações à liberdade de expressão registradas na plataforma do Calar Jamais! ao longo desse período.

LogoCalarjamais-1O relatório Calar Jamais! – Um ano de denúncias contra violações à liberdade de expressão” foi organizado em sete categorias: 1) violações contra jornalistas, comunicadores sociais e meios de comunicação; 2) censura a manifestações artísticas; 3) cerceamento a servidores públicos; 4) repressão a protestos, manifestações, movimentos sociais e organizações políticas; 5) repressão e censura nas escolas; 6) censura nas redes sociais; e 7) desmonte da comunicação pública.

Para o FNDC, o conjunto das violações apresentado comprova “que práticas de cerceamento à liberdade de expressão que já ocorriam no Brasil – por exemplo, em episódios constantes de violência a comunicadores e repressão às rádios comunitárias – encontraram um ambiente propício para se multiplicar após a chegada de Michel Temer ao poder, por meio de um golpe parlamentar-jurídico-midiático, que resultou na multiplicação de protestos contra as medidas adotadas pelo governo federal e pelo Congresso Nacional”. Ao todo, o relatório traz 72 denúncias de cerceamento à liberdade de expressão de comunicadores e jornalistas no exercício da sua profissão, de repressão às manifestações e protestos realizados contra medidas do governo Temer (PMDB) e até de censura a servidores públicos, ocorridas no último ano.

Uma das denúncias mostra o caso de um grupo de teatro em Santos cujos componentes foram presos enquanto faziam uma apresentação em praça pública. Outras narram casos de professores que têm sofrido censura em sala de aula por motivações políticas. Ou ainda a repressão física que sofreram os manifestantes que protestavam contra a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que congela os gastos públicos por 20 anos, aprovada em dezembro passado pelo Congresso Nacional.

Em entrevista à rede TVT, Renata Mielli, coordenadora nacional do FNDC, denunciou o papel da imprensa tradicional, que silencia sobre esses abusos e compactua com a estratégia de criminalização dos movimentos sociais. “Esse processo de criminalizar o movimento social não é novo, mas agora eles precisam elevar o tom para dar legitimidade ao processo de golpe que a gente viveu. Assim, seguem retirando os nossos direitos”.

O relatório ainda destaca que a mídia hegemônica, que participou da articulação do golpe parlamentar-jurídico-midiático, colaborou na reprodução sistemática de discursos de ódio que estimulam as intolerâncias religiosa, política, social e cultural, sendo corresponsável pelo avanço da onda conservadora que atinge o país. Esse conservadorismo em voga tem reforçado episódios de censura e de privação da liberdade de expressão justamente em áreas fundamentais para a formação do cidadão, como a educação e a cultura.

Mateus Ferreira da SilvaEsse período de autoritarismo pode ser percebido no relatório Calar Jamais! principalmente no registro de dois casos: os crimes praticados contra o jovem Edvaldo Alves, morto em Pernambuco por um policial que lhe acertou um tiro de bala de borracha, durante um protesto justamente contra a violência; e no caso do estudante universitário Mateus Ferreira da Silva, que teve traumatismo craniano após ser atingido com um golpe na cabeça desferido por um oficial da Polícia Militar durante manifestação em Goiânia. Assim como nos casos de vários professores e estudantes que se tornaram alvo de perseguição política e ideológica na cruzada intitulada “Escola Sem Partido”.

O ano foi bastante tumultuado e opressor para todos os segmentos do setor progressista no país. Como pôde ser constatado na invasão policial à Escola Florestan Fernandes, do Movimento dos Sem Terra (MST), mesmo sem a existência de um mandado de busca e apreensão para a operação. Os policiais chegaram a disparar contra as pessoas na recepção da unidade e prenderam dois militantes. Outra atitude opressora veio diretamente do governo federal, quando Michel Temer suspendeu os direitos constitucionais por meio de decreto presidencial em 24 de maio de 2017, durante ocupação de Brasília por movimentos populares que se manifestavam contra a perda de direitos. O ocupante da Presidência declarou Estado de Defesa e autorizou a ação das Forças Armadas para garantir a “ordem” no país, recuando da decisão dias depois.

Liberdade de expressão e liberdade de imprensa

A vertente mais visível da liberdade de expressão é a liberdade de imprensa, mas estabelecer as diferenças e os limites entre ambas as garantias não é tarefa isenta de polêmicas ou controvérsias. O professor Venício A. de Lima tem uma proposta conceitual que colabora para diminuir as confusões geradas: “A primeira referida à liberdade individual e ao direito humano fundamental da palavra, da expressão. A segunda, à liberdade da ‘sociedade’ e/ou de empresas comerciais – a imprensa ou a mídia – de publicarem o conteúdo que consideram ‘informação jornalística’ e entretenimento”.

A liberdade de expressão diz respeito, portanto, a todos os indivíduos da sociedade, enquanto a liberdade de imprensa se refere especificamente ao trabalho dos jornalistas e dos meios de comunicação. Ambas são essenciais para o exercício da cidadania e para a consolidação da democracia.

Todos os anos, jornalistas são mortos em diferentes regiões do mundo, no exercício de suas funções. Pesquisa lançada em maio de 2017 pela organização não-governamental Artigo 19 relata que, em 2016, foram registradas 31 graves violações contra comunicadores em todas as regiões do país. Entre elas, quatro assassinatos, cinco tentativas de assassinatos e 22 ameaças de morte. A pesquisa sobre o tipo do veículo de comunicação para o qual a vítima atuava revela que, em 52% dos casos, o comunicador era vinculado a meios considerados alternativos, como blogs e pequenos jornais impressos, enquanto o número de graves violações registradas em veículos comerciais foi de 42%.

No que diz respeito aos autores das violações, a pesquisa mantém a tendência verificada nos anos anteriores, com a ampla maioria das violações se concentrando em agentes do Estado, como políticos e policiais. Esse foi o perfil identificado em 77% dos casos verificados em 2016. Mesmo assim, em 39% dos casos de graves violações contra comunicadores, não houve a abertura de investigação por parte da polícia. Outros tipos de violência praticados contra os comunicadores, como a censura judicial e perseguição política, também foram identificados. O número de homicídios caiu de oito para dois entre 2015 e 2016, mas o total de agressões subiu para 205 casos, colocando o Brasil como o quinto país no mundo com mais ataques a jornalistas.

A presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, denuncia que, além da falta de liberdade de expressão para os jornalistas dentro das empresas em que trabalham, os profissionais estão tendo que lidar também com a violência policial durante a realização dos seus serviços. “Os profissionais estão apanhando nas ruas e isso é gravíssimo, porque nós não podemos falar de democratização da comunicação, não podemos falar de liberdade de imprensa e de liberdade de expressão, tratando o profissional com violência. Além disso, temos a violência difusa, como nos casos de censura interna nos veículos de comunicação, que são mais difíceis para denunciar justamente porque há um silêncio tácito da categoria em relação aos casos de censura interna”, ponderou durante audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada em julho deste ano.

Na mesma audiência, foi abordado também o tema da perseguição aos profissionais. O vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Alagoas, Izaías Barbosa de Oliveira relatou a perseguição a um colega de profissão que sequer pode citar o nome de um deputado estadual. Ou seja, ele está impedido de falar o nome do deputado alagoano em qualquer circunstância, não apenas em relação à matéria que produziu. Essa decisão judicial acaba afetando o trabalho do profissional, que cobre exclusivamente a área de política. O caso já foi transitado em julgado no início do ano, ou seja, o jornalista tornou-se um criminoso “perante os olhos da lei por ter feito uma reportagem falando sobre a lentidão do Ministério Público Federal na apuração de um determinado caso”, conforme citado pelo vice-presidente. Casos como esse vêm crescendo em todo o país, principalmente nos estados do eixo Norte-Nordeste, o que evidencia a existência de um coronelismo social na região.

Eduardo GuimarãesAs tentativas sistemáticas de cerceamento ao trabalho dos jornalistas têm provocado temores entre os profissionais. Os jornalistas que atuam na política e que falam sobre as oligarquias ainda existentes no Brasil estão sendo processados rotineiramente. O que, além do desgaste psicológico dos profissionais, causa dificuldades financeiras por conta dos custos dos processos judiciais. Um caso emblemático foi o da condução coercitiva, a pedido do juiz Sérgio Moro, do blogueiro Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, em março deste ano. Caso claro de privação da liberdade de expressão e tentativa de intimidação, já que o blogueiro havia feito uma representação contra o juiz, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2015. Para Guimarães, essa ação da polícia não é uma tentativa apenas de silenciá-lo, mas calar todos que divergem das posições tomadas pela Justiça.

Outro caso que chamou a atenção foi a condenação da atriz e apresentadora da TV Globo Monica Iozzi, que foi obrigada a pagar R$ 30 mil de indenização para o ministro do STF Gilmar Mendes. O processo foi aberto pelo magistrado após a atriz postar nas suas redes sociais uma crítica contra a decisão do ministro, que concedeu habeas corpus a Roger Abdelmassih, condenado por 58 estupros.

Cultura e liberdade de expressão

QueermuseuUma polêmica iniciada no começo de setembro de 2017 com a exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira”, exibida em Porto Alegre, trouxe para o debate público um assunto muito delicado: alguns setores conservadores querem implementar um sistema de classificação indicativa para museus e exposições. A mostra reunia obras de 85 artistas, incluindo os mundialmente conhecidos Alfredo Volpi e Cândido Portinari, e acabou encerrada um mês antes da previsão pelo Santander Cultural após críticas de grupos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), que acusavam a exposição de fazer apologia à pedofilia e à zoofilia. Após essa reação, vários grupos começaram a aparecer em diversos municípios brasileiros questionando outras exposições realizadas.

Desta forma, setores começaram a cobrar dos gestores públicos ações imediatas em relação às exposições, sem debate algum com os demais segmentos da sociedade. Um grande número de projetos de lei apresentados em diversos estados – até o momento são 13 – são um exemplo desta movimentação para limitar e até mesmo censurar a liberdade de expressão em eventos artísticos. O Espírito Santo, por exemplo, aprovou em outubro de 2017 um projeto que proíbe a nudez e a representação de ato sexual em exposições de museus e equipamentos públicos do estado. A proposta foi votada em regime de urgência e ganhou o apoio de quase todos os deputados da casa.

De acordo com o autor, o deputado estadual Euclério Sampaio (PDT), o projeto quer “promover o bem-estar das famílias”. A proibição abrangerá expressões artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes e vídeos que exponham o ato sexual e a nudez humana, exceto quando a exposição tiver fins “estritamente pedagógicos”. O projeto ainda vai à sanção do governador do estado. Caso sancionada a lei, o descumprimento acarretará em multa. Projetos semelhantes já tramitam no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Câmara dos Deputados, em Brasília.

Muitos países já passaram por situações semelhantes, mas nenhum adotou políticas públicas nas quais o Estado se sobreponha a uma decisão dos pais, tomada a partir das orientações e informações fornecidas pelas instituições e artistas. É o que afirma Isabella Henriques, diretora de advocacy do Instituto Alana. Para ela, os responsáveis pelos espaços de artes devem prestar informações suficientes para a proteção da criança, adotando medidas complementares em auxílio às famílias. Mas são estas que devem tomar suas próprias decisões.

Procurado por alguns representantes de igrejas para tratar do assunto, o ministro da Cultura do Brasil, Sérgio Sá Leitão, defendeu que exposições de arte tivessem uma classificação indicativa, a exemplo do que já acontece nos cinemas e em programas de televisão. Vários especialistas em direitos das crianças e organizações de defesa da liberdade de expressão, entretanto, afirmam que a política de classificação indicativa em vigor no Brasil para o cinema, a televisão e os jogos eletrônicos não é o melhor instrumento para tratar dessa questão. De acordo com a Portaria nº 368/2014, do Ministério da Justiça, exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público, tais como as circenses, teatrais e shows musicais, não são classificados. Idem para os museus.

Na avaliação de Veet Vivarta, consultor de mídia e direitos humanos que participou do processo de elaboração e implementação da política de classificação indicativa no Brasil, reconhecida por organismos internacionais, os critérios usados para definir se um conteúdo audiovisual é recomendado ou não para determinada faixa etária não se aplicariam de forma adequada às artes plásticas. Tampouco caberia ao Estado fiscalizar e definir a classificação de museus. Caso os princípios da classificação indicativa fossem aplicados diretamente a um quadro ou escultura de Michelangelo, por exemplo, poderia ser classificada apenas para maiores de 16 anos.Michelangelo

Especialistas e defensores dos direitos humanos são unânimes ao defender que, no que se refere aos museus, galerias e instituições culturais, é preciso um amplo debate entre os agentes culturais e a sociedade para que sejam criadas regras mais claras e de fato aplicáveis às artes plásticas, sem que se comprometa a livre expressão cultural nem a liberdade de expressão. Em nota publicada, o Intervozes e demais entidades se posicionaram sobre o debate em torno da política de Classificação Indicativa, discutindo as especificidades dos centros culturais e defendendo que qualquer decisão normativa conte com o debate envolvendo a participação dos diversos segmentos da sociedade.

Direitos humanos, liberdade de expressão e internet

Quando a internet surgiu no mundo, estudiosos e academia viram nesta um possível espaço para viabilizar a democratização da comunicação. Essas projeções se demonstraram equivocadas, e a realidade é que a rede mundial de computadores, apesar de seu potencial para difusão da diversidade e pluralidade de ideias, tem se tornado um “curral”, com bolhas que limitam o acesso à comunicação variada. Além disso, a presença e a lógica dos grandes monopólios vêm crescendo na rede. No Brasil, precisamos enfrentar ao mesmo tempo o desafio de defender o caráter livre, aberto e plural e garantir a proteção aos direitos humanos na rede, e paralelamente correr atrás da dívida histórica que relegou metade da população a uma vida offline: apenas 54% da população do país têm acesso à rede doméstica.

O Brasil havia assumido um papel de vanguarda ao criar em 2014, após quase três anos de tramitação na Câmara dos Deputados, a Lei 12.965/14, conhecida popularmente como o Marco Civil da Internet. O texto rege o uso da rede no país, definindo direitos e deveres de usuários e provedores da web. Os três pilares do Marco Civil são a liberdade de expressão, privacidade e neutralidade de rede e a universalização do acesso e da governança participativa na internet. Porém, esses pilares estão constantemente ameaçados por forças conservadoras e por interesses econômicos.

A liberdade de expressão já tem sido atacada na internet com a prática do bloqueio a sites e aplicativos em decisões judiciais de primeira instância, como vinha acontecendo com o Whatsapp. O aplicativo teve seu bloqueio determinado a primeira vez em 2015 por um juiz do Piauí num processo que nem ao menos justificava o motivo. Em 2016 a mesma decisão foi tomada por um juiz do Rio de Janeiro que alegava que a empresa se recusou a cumprir uma decisão judicial para fornecer informações para uma investigação policial, num evidente desequilíbrio entre os direitos da maioria dos usuários e a necessidade de investigação e punição de uma minoria deles. Esses casos continuam sendo debatidos pelo STF, a quem caberá uma decisão final.

Neste mesmo contexto de restrição de direitos, também o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) passa por uma série de ataques, promovidos pelo governo, visando a enfraquecer a participação da sociedade e fortalecer as ações das empresas de telecomunicações. A advogada Flávia Lefèvre, conselheira do CGI.br, alerta sobre a importância de se valorizar o espaço. “Temos que fortalecer os mecanismos de gestão da internet, para que as teles não desmontem a participação que se tem hoje. Neste momento, o envolvimento de todos para o processo de revisão do processo de governança multiparticipativa no Brasil é fundamental para a preservação de direitos humanos, direito à comunicação, direito à informação e dos direitos de consumidores”.

Outros ataques à liberdade vêm acontecendo, como a tentativa de “quebra” da neutralidade de rede, o que geraria uma série de mudanças quanto à forma como nos comunicamos de forma online. As empresas querem discriminar o conteúdo que a sociedade usa. Na teoria, paga menos quem usa menos, e quem usa mais paga mais. Porém, a coisa não seria bem assim. Pode ser gerada uma estratificação da rede. As empresas delimitam pacotes e o consumidor que se limite àquele escolhido, como se fosse uma TV por assinatura. Essa discriminação do acesso a conteúdo na rede vai limitar ainda mais a liberdade de expressão daqueles que têm menos condições.

A entidade Coding Rights mapeou propostas de lei que tratam da internet. “Alguns parlamentares acabam apresentando projetos que, na verdade, acabam é atacando a liberdade de expressão”, frisa a ativista Kimberly Anastacio. Ela cita dois exemplos de falta de conhecimento sobre a rede e de compromisso com o cidadão: o projeto de lei que criava o cadastro nacional de usuário da internet, que previa a necessidade da pessoa “logar” cada vez que fosse acessar a rede, e uma emenda dentro do debate da reforma política que tratava da retirada imediata de conteúdo caso houvesse denúncia de que o mesmo tinha origem em robôs ou anônimos. “Essas tentativas de acabar com problemas na internet, mas sem conversar com quem realmente lida com as tecnologias e está na base, não funcionam e são um atentado à liberdade de expressão”, frisa Kimberly.

Concentração

Por fim, a alta concentração de propriedade no mercado da comunicação impõe uma ameaça à liberdade de expressão no Brasil, como ficou comprovada na pesquisa do Monitoramento da Propriedade de Mídia no Brasil (MOM-Brasil). Nem a tecnologia digital e o crescimento da internet, nem esforços regulatórios ocasionais limitaram a formação de oligopólios também na rede. A propriedade cruzada é, segundo André Pasti, coordenador da pesquisa, uma “dimensão central da concentração na mídia brasileira”, sendo naturalizada pelo sistema de comunicação de massa nacional. O caso do grupo Globo, com seu conglomerado de emissoras de rádio e tevês aberta e fechada, jornais, revistas e sites, é o mais conhecido, mas o modelo se reproduz também entre outros grupos.

Nos últimos anos, a pesquisa do MOM mapeou a propriedade da mídia em dez países, além do Brasil: Colômbia, Peru, Camboja, Filipinas, Gana, Ucrânia, Turquia, Sérvia, Tunísia e Mongólia. O Brasil foi identificado como a nação que apresenta maiores riscos à pluralidade e à liberdade de expressão. Essa avaliação se baseia em dez indicadores sobre concentração para cada um dos quatro setores de mídia (impressos, online, tevê e rádio), incluindo a propriedade cruzada, a falta de transparência na divulgação de dados sobre propriedade e o eventual controle político sobre veículos de mídia.

Para Bia Barbosa, jornalista e coordenadora do Intervozes, a concentração de propriedade dos meios de comunicação impacta significativamente sobre o exercício da liberdade de expressão no país. “O Brasil é um dos países que têm o maior quadro de concentração da propriedade dos meios de comunicação. Não falamos em quantidade de veículos, mas sim que esses veículos estão associados a grupos econômicos e, em muitos casos, a grupos familiares, o que é uma característica do sistema midiático brasileiro”.

No país, há uma legislação muito acanhada para barrar a concentração de propriedade dos meios. E um número pequeno de proprietários equivale a uma menor diversidade de conteúdo, o que restringe a pluralidade de opiniões e a própria liberdade de expressão. Sendo assim, a concentração de propriedade dos meios coloca em risco os fundamentos da democracia. Sempre houve omissão do Estado brasileiro na regulação dos meios de comunicação, assim como quase nunca houve preocupação em garantir aquilo que a Constituição Federal estabeleceu como um princípio: a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal de comunicação. A liberdade de expressão é exercício de cidadania e qualifica o debate público – e, consequentemente, a própria sociedade. É um direito fundamental, mas, como todo direito, não é um ganho permanente. Assim, em um Estado que enfrenta graves tempos de crise política e de revogação de direitos, o cidadão precisa estar alerta para que também a liberdade de expressão não seja cerceada.

Ramênia Vieira é jornalista, editora do Observatório do Direito à Comunicação  e integrante do Coletivo Intervozes

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