Novos presentes para velhos amigos: mudanças na radiodifusão beneficiam empresários e políticos de sempre

Texto: Mabel Dias

20110106174454_comunicaçãoQuando as primeiras ondas de rádio e, posteriormente, de TV foram transmitidas no Brasil, vieram acompanhadas de uma necessária regulação para organizar os sinais que cortavam o território brasileiro. Como o espectro eletromagnético, por onde passam essas ondas, é finito, é preciso que o Estado defina regras para que sua ocupação se dê de forma organizada, sem que haja interferência nas frequências.
Dessa forma, até mesmo as rádios e TVs comerciais só podem funcionar a partir de uma autorização, permissão ou concessão pública. Para ter esse direito, as emissoras deveriam passar por um processo licitatório e atender diversos requisitos estabelecidos pela própria Constituição Federal de 1988. Critérios como a “promoção da cultura nacional e regional”, conteúdos com finalidades “educativas, artísticas, culturais e informativas”, além da regionalização dessa produção são alguns dos princípios indicados pela carta magna.

Essa definição existe para estimular a diversidade de produção e de conteúdo, ampliando a representatividade e participação da sociedade nos meios de comunicação. E essas exigências nada mais são que a definição das contrapartidas que o concessionário deveria cumprir, afinal de contas, seja para o veículo público, estatal ou privado, a concessão para exploração do sinal é pública e, portanto, deve ter obrigações com a sociedade. Mesmo tendo como objetivo o lucro, as mídias comerciais precisam justificar o seu uso de um bem que é púbico e de direito de toda a população.

No entanto, esses critérios nunca foram levados em consideração para a liberação ou não renovação das concessões. A decisão política de não fiscalizar o cumprimento desses requisitos sempre fez com que o setor privado criasse suas próprias regras, consolidando o imaginário de que as mídias comerciais não precisam prestar contas à sociedade e que são donas de um espectro que, na verdade, é público.

Agravando ainda mais essa “terra sem lei”, o poder público brasileiro também sempre fez vistas grossas à transferência de outorgas para terceiros, abrindo mão de lançar novas licitações, como pleiteava os movimentos. Assim, as emissoras comerciais sempre tiveram suas concessões renovadas de modo praticamente automático, mesmo sem cumprir os requisitos de utilidade pública.

Se esse cenário sempre foi naturalizado pelo poder público, para os movimentos que atuam em defesa do direito à comunicação, essa pauta é fundamental. E o que já estava ruim conseguiu piorar a partir da formalização dessas práticas, após uma série de medidas que o presidente Michel Temer (PMDB) vem executando desde que tomou posse.

Nova Lei para concessões
Em abril de 2017, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 13.424/2017, sancionada pelo presidente Michel Temer. A nova lei tem origem na Medida Provisória 747/2016 (MP 747), que foi enviada ao Congresso no final de 2016 e aprovada praticamente “a toque de caixa” em março de 2017. Ela prevê uma série de alterações na concessão de outorgas para as empresas privadas de rádios e TVs.

Pela nova lei, as empresas de radiodifusão foram anistiadas em relação aos prazos de renovação das outorgas pelo governo federal. Segundo as novas regras, todo concessionário que havia perdido o prazo para renovar suas outorgas ganhou mais 90 dias para fazê-lo. Não interessa se o atraso foi de um mês ou de dois anos. Aquelas emissoras que já haviam pedido a renovação, mas o fizeram fora do prazo – inclusive as que o Executivo já tinha revogado a licença justamente pelo atraso na solicitação da renovação – também ganharam mais uma chance para recolocar seus canais em funcionamento, caso o Congresso Nacional ainda não tivesse se manifestado sobre o caso. A partir de agora, se mais alguém se esquecer de pedir para renovar suas outorgas dentro do prazo, caberá ao governo a tarefa de avisar ao concessionário.

Assim, em vez de abrir novos processos de licitação para que outros interessados tivessem a oportunidade de ocupar as outorgas abandonadas pelas empresas, o governo optou por beneficiar os antigos concessionários, para que voltassem a operar. Ou seja, essa anistia vai na contramão dos movimentos que cobram maior transparência na definição das concessões, com consultas públicas para todos que queiram utilizar o espectro eletromagnético.

Para a jornalista Bia Barbosa, do Coletivo Intervozes e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a aprovação da lei é um “escárnio com a radiodifusão brasileira”. Em entrevista publicada no Observatório do Direito à Comunicação, Bia afirma que “num país em que as concessões sempre foram usadas como moeda de troca política, foi possível piorar o procedimento das licenças. E agora não é nenhum exagero afirmar que o empresariado da radiodifusão pode fazer o que bem entender com este bem que, vale lembrar, é público”.

De acordo com Renata Mielli, coordenadora geral do FNDC, a Lei 13.424/17 aprofunda a ausência de transparência no processo de concessão e restringe ainda mais a possibilidade de haver alguma participação de outros setores que tenham a intenção de receber uma outorga. “O que o FNDC defende não são remendos para beneficiar os atuais concessionários, e sim, a mudança no processo de concessão, através de licitações transparentes, chamadas através de editais, com audiências públicas para que a sociedade possa participar do debate e conferir maior transparência”, afirma Renata.

O direcionamento da MP 747 para antigos empresários era tão evidente, que até as rádios comunitárias foram inicialmente excluídas da anistia. No entanto, após forte pressão de radialistas e entidades, as rádios comunitárias acabaram sendo contempladas.

Para Jerry de Oliveira, do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias, esta inclusão do setor na MP foi “um conto do vigário”. “Alguns segmentos do setor lutaram para que fosse incluído na MP um dispositivo que aumentasse o tempo de renovação das comunitárias, principalmente para as emissoras que perderam o prazo. Se de um lado deu um fôlego para estas emissoras, de outro não se garante que as comunitárias terão suas renovações atendidas”, aponta Jerry.

De acordo com o radialista, a portaria do antigo Ministério das Comunicações – que, a partir do governo Temer foi fundido com outras pastas, transformadas no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) – facilitou várias demandas das rádios comerciais, como as relacionadas às cassações, flexibilização trabalhista e alterações em artigos do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62). “Mas para as comunitárias não se mudou um artigo sequer da Lei 9.612/98, apesar de ganharem uma extensão de prazo para renovação. A possibilidade de cassação é eminente, pois as mudanças na lei das rádios comunitárias não constam na medida provisória”, afirma Jerry. A lei decorrente dessa MP já está em vigor desde março de 2017.

Renovação automática
Outro ponto que a Lei 13.424/2017 altera no sistema de concessão de outorgas para as empresa de radiodifusão é um aprofundamento do processo de renovação de forma praticamente automática.

A previsão de cumprimento de “todas as obrigações legais e contratuais” e o atendimento “ao interesse público” como requisito para o direito à renovação das outorgas foi excluído da lei. No Brasil, o processo de renovação das licenças de rádio e TV já é quase automático, sendo necessário o voto aberto de dois quintos dos deputados e senadores, em sessão conjunta do Parlamento, para que uma concessão não seja renovada.

Agora, as obrigações que tinham de ser respeitadas – pelo menos segundo a letra da lei – desapareceram. Se o extinto Ministério das Comunicações pouco fiscalizava o cumprimento dessas obrigações legais e contratuais e nada olhava para o atendimento “ao interesse público” no momento de renovar licenças, agora isso nem mais será solicitado.

Concessão pública x posse particular
Comemorada pelos empresários radiodifusores, a lei 13.424 é justificada pelo governo como uma forma de desburocratizar o setor. No entanto, mudanças significativas reduzem o controle social e a própria fiscalização do Estado, desconfigurando o que deveria ser uma concessão pública. Assim, as empresas ganham mais liberdade para tratar a outorga como uma posse particular, diminuindo a prestação de contas para o governo e para a sociedade.

Cessões de cotas e ações que alterassem o controle societário das empresas e alterações nos objetivos sociais das concessionárias deveriam ser previamente autorizadas pelo Executivo. Agora, isso não será mais preciso. Basta que as empresas informem ao governo sobre as alterações realizadas. Aquelas que fizeram alterações ilegalmente sem a autorização prévia do Ministério, quando a lei anterior ainda valia, ganharam sessenta dias a partir de março de 2017 para informar ao governo das mudanças, sem qualquer prejuízo para continuarem funcionando normalmente.

O que segue dependendo de autorização prévia do Estado é somente a transferência total e integral da concessão para outra empresa, numa prática já bastante conhecida, chamada “comércio de outorgas”. Além disso, agora os radiodifusores também ganharam mais uma ajuda: a transferência está liberada inclusive para as outorgas que estiverem funcionando em caráter precário, ou seja, que ainda não tiverem seus processos de renovação concluídos.

Tais medidas privilegiam os antigos radiodifusores comerciais e fragilizam suas obrigações. Se essa já era a perspectiva da lei aprovada em março, consolidou-se em agosto de 2017, após um novo decreto do presidente Temer. De número 9.138/17, ele modifica consideravelmente o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, revogando o decreto 88.066/1983 e alterando o 52.795/1963.

De acordo com o atual decreto, o contrato de concessão não precisa trazer, como cláusula obrigatória, os preceitos e obrigações das emissoras estabelecidos no artigo 28 do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. A norma continua em vigor, mas sua menção explícita desaparece dos contratos de concessão. Já o termo aditivo firmado na renovação da outorga não precisa mais ser remetido ao Tribunal de Contas, reduzindo os mecanismos de fiscalização do setor.

O decreto também reduz uma série de exigências para a solicitação da renovação das outorgas. Anteriormente, se exigia vinte e três documentos, enquanto que agora só serão cobrados doze, com a promessa do Ministério de melhorar o fluxo de análise dos processos e acelerar o tempo de resposta às emissoras. Estima-se que o período de tramitação dessas análises caia de oito para dois anos.

Entre os documentos que não serão mais cobrados das empresas estão, por exemplo, o projeto de investimento que demonstre a origem dos recursos a serem aplicados no empreendimento. Também deixam de ser exigidos os pareceres de dois auditores independentes demonstrando a capacidade econômica da empresa de realizar os investimentos necessários à prestação do serviço pretendido.

Além da simplificação dos documentos para concessão e renovação das outorgas, o decreto também incorpora, no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, aspectos já aprovados pela Lei 13.424/07. Entre eles, a dispensa de anuência prévia do MCTIC para a alteração contratual das outorgas e a autorização de transferência de outorgas. Da mesma forma, modifica o tipo de declaração exigida para empresas que possuem até 30% de capital financeiro estrangeiro em sua composição societária.

Algumas infrações anteriormente previstas também deixam de existir a partir desse decreto, como em relação à execução dos serviços de radiodifusão não exibir pronunciamentos em cadeia nacional ou descumprir as exigências referentes à propaganda eleitoral.

Também deixa de ser uma infração destruir os textos dos programas, inclusive noticiosos, antes de decorrido o prazo de 10 dias contados a partir da data de sua transmissão e não conservar as gravações dos programas de debates ou políticos, bem como pronunciamentos da mesma natureza, pelo prazo de 5 a 10 dias (de acordo com a potência da emissora) depois de transmitido o conteúdo. A partir de agora, a emissora é obrigada a conservar a gravação da programação irradiada somente durante as 24 horas subsequentes ao encerramento dos trabalhos diários da emissora.

Deixa ainda de ser uma infração prevista no Regulamento o desrespeito ao direito de resposta reconhecido por decisão judicial. Ou seja, apesar de ter que cumprir a ordem da lei, se uma empresa detentora de outorga não o fizer, não estará infringindo o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão.

Ao mesmo tempo, passam a ser consideradas infrações “colaborar na prática de rebeldia, desordem ou manifestações proibidas” e “utilizar equipamentos diversos dos aprovados ou instalações fora das especificações técnicas constantes da Portaria que as tenha aprovado”.

De positivo, o decreto 9.138 traz algumas mudanças que refletem no quadro societário das empresas. A nova legislação determina o afastamento do sócio ou diretor da concessionária em alguns casos: quando este participe do quadro societário ou diretivo de outra empresa radiodifusora na mesma localidade; em caso de ser eleito para mandato eletivo que lhe assegure imunidade parlamentar ou para cargos ou funções dos quais decorra foro especial; e em caso de condenação por órgão colegiado de uma série de crimes previstos na legislação brasileira.

Soma-se a esse decreto a Portaria no 5774, enviada pelo MCTIC nas últimas semanas de 2016, alterando a regulamentação das sanções administrativas aplicadas contra as entidades prestadoras dos serviços de radiodifusão. Com as mudanças, se flexibilizou a punição para os radiodifusores infratores.

Com a portaria, todas as emissoras e canais de rádio e TV comerciais que descumprirem a lei passam a ter a possibilidade de converter a pena de cassação da licença em multa. Tal decisão fica a cargo do Secretário de Radiodifusão.

Anteriormente, um canal de rádio ou retransmissora de TV perderia esse benefício caso somasse 20 pontos no rol de infrações praticadas. Com a flexibilização trazida pela nova portaria, o limite chega a 80 pontos. Portanto, fica ainda mais difícil a cassação da licença de radiodifusores infratores.

Plano Nacional de Outorgas e o golpe nas rádios comunitárias
Em abril de 2016, durante o governo de Dilma Roussef (PT), o então ministro das Comunicações, André Figueiredo, assinou três planos nacionais de outorgas, sendo dois para a radiodifusão comunitária e um para a educativa. Na ocasião, o ministro afirmou que, com o Plano Nacional de Outorgas (PNO), todos os municípios brasileiros contariam com radiodifusão comunitária.

Dos dois planos para radiodifusão comunitária, o primeiro contém editais que incluem povos e comunidades tradicionais, totalizando 123 municípios de todos os estados e do Distrito Federal. O segundo foi dividido em 14 editais, que atingiriam todos os 1.264 municípios brasileiros que não dispõem de rádio comunitária. A previsão do Ministério, no período de lançamento do PNO, era que estes anúncios dos editais acontecessem entre maio de 2017 e julho de 2019.

Já o plano de radiodifusão educativa era composto de 761 municípios, que seriam contemplados com 879 editais. A primeira fase começaria no período de agosto de 2016 a maio de 2017, alcançando 237 localidades, sendo 235 para FM e duas para TV.

Porém, após o afastamento de Dilma, o então presidente-interino Michel Temer suspendeu a publicação dos editais do PNO. De acordo com o coordenador executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), Geremias Santos, o serviço de radiodifusão comunitária foi um dos mais prejudicados. “O atual governo revogou o Plano Nacional de Outorgas e não publicou os editais para os anos de 2016/18, que estabeleceriam mais de mil e duzentas novas concessões de rádios comunitárias, possibilitando que cada município brasileiro tivesse, pelo menos, acesso a uma estação”, pontua Geremias.

O radialista informa ainda que mais de 500 processos de rádios comunitárias, autorizados pelo Congresso Nacional para apreciação e votação das outorgas foram devolvidos para o MCTIC, voltando à estaca zero.

Essa suspensão do PNO compromete ainda mais o funcionamento das rádios que atualmente já operam. O cenário de perseguição às rádios comunitárias, contínuo nos últimos governos, segue inviabilizando a sobrevivência desse segmento.

É o caso da rádio Canal Mais FM, que opera no município de Bauru, em São Paulo. Seu dirigente, Cirineu Fedriz, aponta que em menos de um ano no ar, a rádio já sofreu duas fiscalizações da Anatel. “A nossa rádio completou um ano de transmissão no final de setembro e a nossa licença esperávamos há mais de 15 anos. Só conseguimos porque acionamos o Judiciário, que obrigou a outorga da rádio”, informa Cirineu.

Direito à comunicação negado
A suspensão do Plano Nacional de Outorgas representou ainda mais a negação do direito à comunicação. Ao abortar a proposta de ampliação da radiodifusão pelo país, o governo inviabilizou a operação de novas rádios e TVs comunitárias e educativas. Em um cenário de extrema concentração midiática no Brasil, a existência de mais emissoras representaria maior diversidade nos meios de comunicação e a oportunidade de mais pessoas exercerem sua liberdade de expressão, além da própria sociedade que aumentaria seu rol de opções para ver e ouvir o que desejasse.

As medidas do governo federal também apontam para o sentido inverso do que é defendido pelos movimentos em defesa da democratização da comunicação e até mesmo de experiências de governos latino e norte-americanos, e europeus.

Enquanto muitos países desses continentes já adotam ações mais severas para combater a concentração midiática, fortalecer a radiodifusão pública e reforçar as exigências para as concessões, no Brasil todo esse processo tem retrocedido, após décadas de passos lentos.

O atual projeto político inviabiliza o surgimento de novas entidades radiodifusoras, privilegiando os poucos e antigos donos da mídia. A falta de transparência nas licitações das outorgas e a redução da fiscalização sobre os concessionários diminui a possibilidade de uma comunicação que cumpra a sua função social.

Todo esse “pacote de bondades” do governo Temer, através de medidas provisórias, leis e portarias, fragiliza ainda mais as exigências para se obter, manter e renovar as concessões. Os radiodifusores passam a ter cada vez menos obrigações com o Estado, para justificar as outorgas, distanciando-se do compromisso que deveriam ter com a sociedade ao fazer uso de um bem público.

Dessa forma, a garantia do direito à comunicação passa a dispor de menos mecanismos, uma vez que o sistema de radiodifusão comercial ganha mais liberdade para tratar a comunicação como mercadoria, contrariando os preceitos constitucionais. Nega-se uma vez mais, portanto, o direito à comunicação para a maior parte da população brasileira.

Mabel Dias – jornalista e integrante do Coletivo Intervozes.

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