Desinformação: violação do direito à comunicação e arma contra a democracia

Texto: Helena Martins*

“Sem precedentes”. Assim a presidenta da missão de observadores da Organização de Estados Americanos (OEA) para as eleições brasileiras, Laura Chinchilla, classificou o fenômeno da difusão de notícias falsas em nosso país. Um dos fatores para a eleição do ultradireitista Jair Bolsonaro à presidência da República, a desinformação já era alvo de preocupações e ações por parte de instituições públicas e da sociedade civil, mas as medidas adotadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelas plataformas, especialmente o WhatsApp, não foram suficientes para conter a prática, que deve ser entendida como uma violação do direito à comunicação, pois impacta a circulação de ideias, a interação, o diálogo e o debate público.

A presença da desinformação no contexto das eleições brasileiras tem sido constatada por diversas pesquisas. A realizada pelo instituto IDEA Big Data, a pedido da organização Avaaz, mostrou que 93% dos eleitores do presidente eleito relataram ter sido expostos a conteúdos sobre supostas fraudes nas urnas eletrônicas, com 74% afirmando ter acreditado na informação. O IDEA ouviu 1.491 pessoas em todo o Brasil, entre os dias 26 e 29 de outubro. Já o levantamento feito pelo Ibope Inteligência junto a duas mil pessoas, entre os dias 18 e 22 de outubro, apontou que 90% dos entrevistados disseram ter recebido algum tipo de desinformação. Por outro lado, apenas 4% e 5% afirmaram confiar em conteúdos compartilhados por meio das plataformas WhatsApp e Facebook, respectivamente, o que mostra a dificuldade de definir o impacto real no pleito.

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Embora seja necessário afastar determinismos e explicações monocausais sobre a ascensão da direita ao cargo máximo da República, é impossível negar a contaminação debate público por mentiras. O instituto Atlas Político, por exemplo, mostrou que duas notícias desmentidas por agências de checagem teriam alcançado cerca de um terço do eleitorado: a de que o candidato Fernando Haddad (PT) teria criado um “kit gay” e a de que o jornal Folha de São Paulo teria sido “comprado pelo Partido dos Trabalhadores (PT)”. A presença das redes também é um fator importante a ser considerado. Segundo a empresa Whstsapp, mais de 120 milhões de brasileiros possuem o aplicativo instalado em dispositivos móveis. O Facebook, por sua vez, em 2018 somava 127 milhões de usuários ativos mensais no país, atingindo quase dois terços da população.

Antes mesmo das eleições, outras discussões públicas já vinham sendo marcadas pela desinformação. Em março, a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados na cidade do Rio de Janeiro. A comoção pública que fez com que milhares de pessoas tomassem ruas do Brasil e de outros países para clamar por justiça também foi acompanhada por uma avalanche de notícias falsas. “Ex-esposa de Marcinho VP”, “defensora de facção rival e eleita pelo Comando Vermelho” e “engajada com bandidos” foram algumas das afirmações disparadas contra Marielle nas redes sociais, levando a família e o PSOL a acionarem a Justiça. Parte dessas declarações falsas partiu do então deputado Alberto Fraga (DEM-DF) e da desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) Marilia Castro Neves, o que mostra a conexão da prática da desinformação com as institucionalidades constituídas e com a mídia tradicional, que deu visibilidade às agressões.

Desinformação em escala industrial

A estratégia de lançar mão de inverdades, informações descontextualizadas ou distorcidas não é nova. Na história da imprensa, são comuns registros de notícias falsas. Para ficarmos em um exemplo recente, vale lembrar o caso que ganhou a alcunha de “bolinha de papel”. Em 2010, o então candidato do PSDB à presidência, José Serra, foi atingido na cabeça por um objeto, o que o fez encerrar a caminhada que fazia com correligionários e partir em busca de um hospital para fazer exames. A extensa cobertura midiática, com direito à reconstituição do episódio e contratação de perito para análise de imagens, endossou a versão da agressão com “objeto contundente”. Depois, veio à tona que ele havia sido atingido por uma bolinha de papel.

Ocorre que, além dos padrões de manipulação da informação característicos da imprensa, como a ocultação e a fragmentação de fatos, outras formas de desvirtuamento emergem com as redes sociais, como explica o professor de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rogério Christofoletti. Para ele, estratégia, volume e automatização de processos dão novos contornos às práticas de manipulação no atual ecossistema informacional.

O viés estratégico dessa operação por parte da campanha do candidato Jair Bolsonaro (PSL) ficou nítido após denúncia do jornal Folha de S. Paulo. Publicada no dia 18 de outubro, reportagem da jornalista Patrícia Campos Mello mostrou que empresários estavam bancando campanha contra o PT e seu candidato, Fernando Haddad, pelo WhatsApp, sem declarar tal gasto à Justiça Eleitoral. Os contratos feitos com empresas de marketing para impulsionar notícias falsas somavam R$ 12 milhões. A revelação foi parar na Justiça. Ao TSE, o PT pediu que Bolsonaro fosse declarado inelegível por oito anos. O candidato de extrema-direita negou participação em esquema de proliferação de fake news. A denúncia segue sendo investigada.

Créditos: José Cruz/Agência Brasil
Créditos: José Cruz/Agência Brasil

Citando o caso como exemplo, Christofoletti explica que “há uma lógica de ocultação dos processos e das intencionalidades que vão guiar essas práticas de desinformação”. “Há um mercado muito rentável hoje – cada vez mais estamos informados sobre isso – envolvendo um complexo ecossistema com pequenas, médias e até grandes indústrias de fabricação de informação, principalmente para guiar interesses político-partidários e para guiar interesses econômicos ou financeiros”, afirma.

A intencionalidade referida como estratégia pelo pesquisador revela-se também no conteúdo, com formatos que vão além daquele da notícia tradicional, abrigando propaganda, conteúdos humorísticos, imagens e outros. O que importa é que sejam conteúdos de fácil circulação, detalha. Para o funcionamento dessa engrenagem, outra violação do direito à comunicação é ativada. Trata-se do chamado zero rating, prática de disponibilização de acessos a determinados aplicativos escolhidos pelas operadoras de telefonia, sem desconto de franquia. Assim, muitas vezes é impossível até abrir um link externo ao aplicativo para ler o conteúdo antes de divulgá-lo, o que dificulta a confirmação das informações recebidas ou a busca de detalhes sobre elas. A prática reflete os desafios à inclusão digital no Brasil.

Quanto ao volume, se antes falávamos em reportagens que podiam ser vistas nos poucos meios de comunicação existentes no Brasil, dada a concentração midiática marcante no país, agora a difusão ocorre de forma direta por meio de redes sociais e aplicativos de mensagens e as visualizações são contadas aos milhares, o que dificulta também o acompanhamento do que está ocorrendo em grupos de WhatsApp que podem reunir até 250 pessoas. É o que mostra estudo realizado pelos professores Pablo Ortellado (USP), Fabrício Benvenuto (UFMG) e pela agência de checagem de fatos Lupa em 347 grupos de WhatsApp. Neles, circularam 846 mil mensagens, entre textos, vídeos, imagens e links externos, entre os dias 16 de setembro de 7 outubro. Diante da impossibilidade de analisar todas elas, os pesquisadores destacaram e analisaram as 50 imagens mais compartilhadas e concluíram que apenas quatro delas eram verdadeiras (8%), oito (16%) eram falsas e quatro (8%), insustentáveis. As demais eram reais, mas nove faziam alusão a teorias da conspiração sem comprovação e sete continham fotos retiradas do contexto.

Por outro lado, o volume de canais não significa fim da concentração na produção das informações. Pesquisadores do grupo Tecnologias da Comunicação e Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), monitoraram 90 grupos existentes no WhatsApp e constataram que 99,11% dos perfis que interagem neles estão conectados direta ou indiretamente por meio de uma rede de pessoas. Integrante do grupo, o pesquisador João Guilherme Santos aponta que há uma estrutura de conexões entre os grupos analisados, a qual propicia a viralização de conteúdos, subvertendo o uso da plataforma como espaço originalmente pensado para conversação interpessoal.

Esse processo se dá em diferentes etapas: “Você pode ter uma primeira etapa mais profissionalizada de envio massivo; uma segunda em que há esse engajamento mais voluntário, que pode não ter nenhuma relação direta com aquela construção profissional, e, por fim, você tem um contingente enorme de pessoas que recebe, mesmo sem estar envolvida na produção ou na circulação, como por meio de grupos de família”, detalha.

O grupo da UERJ dedicou-se, sobretudo, à análise da segunda etapa, que é a da difusão das mensagens. Com as pesquisas, “o que a gente conseguiu comprovar foi que os grupos interessados em política funcionam com uma lógica de rede, por meio da qual se dá a viralização. É isso o que faz com que todo esse impacto seja possível. Sem viralização, o custo para envio de mensagens seria proibitivo, mas como você tem uma rede de voluntários que viraliza o conteúdo, o custo é mínimo. Na prática, você paga uma mensagem e ela acaba chegando a milhares de pessoas”, explica João Guilherme. Há, portanto, uma lógica de continuidade entre uma ação coordenada de produção de conteúdos e sua distribuição por meio de pessoas que voluntariamente se engajam na difusão das mensagens.

Outros fatores têm contribuído para a disseminação de notícias falsas, conforme pesquisadores do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio). Eles monitoraram 110 grupos políticos abertos no WhatsApp entre os dia 17 e 23 de outubro, parte do segundo turno do pleito, e perceberam a existência de “fortes indícios” de ação automatizada em múltiplos grupos, bem como um alto grau de interconexão. O fato de haver um número elevado de administradores e membros que os grupos compartilham entre si é exemplo disso. Ademais, a partir da análise de uma amostra de mensagens, foi observado que os usuários mais ativos enviavam mensagens em uma média 25 vezes maior do que a média geral dos participantes. O tempo entre os envios – de 1 a 20 segundos – e o uso de fotos impessoais nos perfis também contaram para que os estudiosos concluíssem que “existem elementos que apontam para grande probabilidade desses usuários serem produto de automação, total ou parcial, para a difusão de conteúdo, podendo ser classificados como bots (automação total) ou ciborgues (automação parcial)”.

Dados pessoais como insumo da fábrica da desinformação

Esses estudos evidenciam uma transformação no uso das redes sociais. No caso do WhatsApp, dificilmente o aplicativo poderia ser hoje descrito como um mensageiro privado, já que ganhou expressiva dimensão pública e de agregação de contatos. “Os canais de distribuição se desenvolveram e mudaram de perfil de maneira surpreendente nos últimos anos. O motivo para isso não foi porque as pessoas passaram a se comunicar mais, mas porque o uso de dados pessoais possibilitou apontar, por exemplo, quais pessoas poderiam ser mais ou menos suscetíveis a determinados conteúdos”, avalia o professor do mestrado em Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público e consultor do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), Danilo Doneda.

Para Doneda, o problema das chamadas fake news hoje está mais associado à proteção de dados pessoais do que à discussão sobre verdade. “Sem uma utilização abusiva de dados pessoais, a gente não teria tido essa difusão absurda de notícias falsas”, opina, acrescentando que essa disponibilidade de informações levou ao refinamento de técnicas de manipulação de informações que já eram utilizadas por agências de marketing. Como exemplo de dados disponíveis na plataforma, ele cita os nomes das pessoas e seus contatos. “Seu número, diferente do que ocorre no Telegram, fica visível no grupo, portanto ele pode ser catalogado e utilizado para outro fim”, detalha.

Outras formas de mineração de dados pessoais têm permitido a disseminação da desinformação. A partir da reunião e do processamento de informações como sites visitados e palavras utilizadas, é possível direcionar mensagens para públicos criteriosamente identificados e definidos. No Facebook, esse envio pode ser feito de forma aberta ou por meio do chamado dark post, tipo de postagem que fica oculta na timeline de quem a produziu, aparecendo apenas para a audiência definida previamente. Isso permite uma adaptação dos discursos aos gostos dos públicos – e, como resultado disso, um debate público marcado por informações parciais ou mesmo discordantes que levam à polarização.

Esse direcionamento de informações e seus impactos na esfera pública motivaram debates, inclusive junto ao TSE, que nos últimos anos tem discutido regras para a propaganda na Internet. Com a Minirreforma Eleitoral (Lei 13.488), em 2017, passaram a ser permitidos o impulsionamento de conteúdo e a priorização paga de conteúdos em mecanismos de busca. Depois, a Resolução 23.551/2017 detalhou que as mensagens com essa finalidade deveriam estar identificadas e definiu a necessidade das publicações trazerem as informações sobre o candidato ou partido, como os nomes e o CPF ou CNPJ do patrocinador, o que foi adotado pelo Facebook durante o pleito.

Propostas que garantiriam direitos foram negligenciadas

Desde a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, o problema das chamadas notícias falsas veio à tona e passou a ser reconhecido por diversas instituições. A descoberta de toda uma lógica de uso de dados pessoais para segmentação de informações, muitas delas inverídicas ou descontextualizadas, mostrou não se tratar apenas da existência das chamadas fake news, mas de um processo complexo e orientado de manipulação. Diante desse cenário, em 2017 foi divulgada a “Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e ‘Notícias Falsas’ (‘Fake News’), Desinformação e Propaganda”, assinada, entre outras organizações, pela Relatoria Especial das Nações Unidas (ONU) para Liberdade de Opinião e Expressão e pela Relatoria Especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a Liberdade de Expressão. Nela, consta que “a desinformação e a propaganda são muitas vezes concebidas e implementadas com o propósito de confundir a população e para interferir no direito do público de conhecer e no direito das pessoas de procurar e receber, e também transmitir, informação e ideias de todos os tipos, independentemente de fronteiras, que são direitos alcançados por garantias legais internacionais dos direitos à liberdade de expressão e opinião”.

O documento completo pode ser encontrado aqui.

Mais recentemente, ao lançar consulta pública sobre o impacto da desinformação no contexto eleitoral, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/RELE), junto ao Departamento de Cooperação Eleitoral (DECO) e o Departamento de Direito Internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA), divulgou texto em que explicita que a desinformação é “entendida como disseminação massiva de informação falsa que se faz (i) sabendo-se de sua falsidade e (ii) com a intenção de enganar o público ou uma fração dele”. Trata-se, portanto, de uma violação dos direitos à comunicação e à liberdade de expressão, entendidos como o direito de receber informações e também de produzir, interagir, participar livremente do processo de comunicação.

Por reconhecer a importância do tema, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), órgão colegiado responsável por promover e defender os direitos no Brasil, aprovou, em junho de 2018, a Recomendação n° 4/2018, na qual apresentou medidas de combate às chamadas notícias falsas e para a garantia do direito à liberdade de expressão, destacadamente na Internet. Uma das recomendações foi direcionada às plataformas Facebook, Twitter e Google e propunha “a adoção de políticas que garantam transparência sobre o seu funcionamento e as regras das suas comunidades e que ampliem o controle dos usuários sobre os conteúdos que publicam e acessam, incidindo sobre o chamado efeito bolha e a estrutura de monetização que estimula a criação e difusão das chamadas ‘notícias falsas’”.

Coordenadora da Comissão Permanente Direito à Comunicação e à Liberdade de Expressão do CNDH e coordenadora do Intervozes, a jornalista Iara Moura explica que o documento objetivava também afirmar a defesa da liberdade de expressão, em um contexto em que o Congresso Nacional discutia dezenas de projetos sobre fake news, o TSE criava comissão para tratar sobre o tema e até mesmo o então presidente da Corte, Luiz Fux, sinalizava que poderia anular o resultado das eleições se ele fosse decorrência da difusão massiva de notícias falsas.

“Nossa preocupação era a de agir em resposta a algumas indicações do Poder Legislativo, do Executivo e do Judiciário com relação à criação de instrumentos legais para combater as chamadas fake news, porque nos preocupava a possibilidade de criminalização da produção e compartilhamento do que se consideram notícias falsas. Em primeiro lugar, porque a gente entende que as definições ainda são muito genéricas. Fica muito difícil delimitar o que é ou não uma notícia falsa e tentativas nesse sentido poderiam trazer riscos para a liberdade de expressão na rede. Por exemplo, havia a proposta de criminalizar o usuário ou responsabilizá-lo pela disseminação de notícias falsas, o que poderia gerar censura e a própria judicialização. Ao mesmo tempo, nos preocupava a formação do comitê para acompanhamento das fake news pelo TSE, porque seria um comitê formado por membros da Abin [Agência Brasileira de Inteligência] e do Exército”, explica Iara.

Créditos: José Cruz/Agência Brasil
Créditos: José Cruz/Agência Brasil

Buscando uma abordagem positiva para o tema, o CNDH propôs a aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 53/18 sobre proteção de dados pessoais e a admissão, em geral, de iniciativas legislativas que respeitassem os padrões internacionais de direitos humanos, à liberdade de expressão e informação e que promovessem a diversidade na Internet por meio do fortalecimento da comunicação plural, diversa e qualificada, em vez de legislar com enfoque na lógica de criminalização dos usuários. Sugeriu ainda a adoção de políticas públicas de alfabetização midiática e informacional, educação para a mídia e de promoção de práticas de empoderamento digital, como o “fomento à produção de conteúdos positivos e contra-narrativas que engajem a sociedade num debate mais qualificado balizado pelo respeito aos direitos humanos e aos princípios de pluralidade e diversidade, conforme recomenda a Unesco”.

Apesar da mobilização do Conselho e, no mesmo sentido, de organizações da sociedade civil em prol de uma agenda positiva para o tema ter marcado o ano de 2018, pouco se avançou quanto ao combate à desinformação. No Congresso, foi aprovada a Lei de Proteção de Dados Pessoais em julho. O texto foi sancionado, com vetos, em agosto, mas seus efeitos não incidiram nas regras do jogo eleitoral, que já estava em curso. Em relação às medidas propostas pelo TSE, o Facebook criou um sistema de contas de anúncios e exigiu a comprovação da documentação de responsáveis por eles. A empresa também passou a identificar as postagens pagas por candidatos.

Quanto ao WhatsApp, não houve regulamentação voltada ao canal, que acabou sendo amplamente explorado para a promoção da desinformação. Antes do início oficial das eleições, a plataforma, que é de propriedade do Facebook, reduziu a possibilidade de encaminhamento de mensagens de 250 para 20. Os conteúdos encaminhados também passaram a ser identificados. De acordo com informações divulgadas à época pela empresa, o objetivo era o de reduzir a disseminação de notícias falsas. O Facebook apoiou ainda ações de entidades de checagem de fatos no Brasil, como o Projeto Comprova, formado por 24 organizações de notícias. Em novembro, o consórcio anunciou que recebeu mais de 20.000 denúncias de informações falsas e publicou essas descobertas para ajudar as pessoas a distinguir entre o que é verdadeiro e falso.

Essas iniciativas, contudo, foram incapazes de conter a maré da desinformação, avalia Danilo Doneda, para quem teria sido possível implementar ações mais eficazes. Doneda integrou o Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições do TSE e conta que, ainda em março de 2018, foram apresentadas contribuições para o aperfeiçoamento das resoluções do Tribunal sobre as eleições de 2018. Entre as 14 propostas formuladas pela organização SaferNet, assinadas também pelo especialista, estavam: “vedação à utilização como critérios para impulsionamento características do público-alvo relacionadas a atributos sensíveis como origem racial ou étnica, convicções religiosas, a filiação a sindicatos ou organizações de caráter religioso, dados referentes à saúde ou à vida sexual; vedação aos chamamos ‘hidden posts’ ou ‘dark posts’ (sic), postagens pagas direcionadas a um público específico que o resto da população não consegue ver; vedação do pagamento de anúncios e impulsionamento de conteúdo político em moeda estrangeira”, conforme o documento.

As medidas não foram assimiladas pelo Tribunal. Já o Conselho Consultivo vivenciou um hiato de reuniões. “De fato, talvez no momento em que fosse mais útil a iniciativa política do grupo, que foi justamente nos quatro ou cinco meses anteriores à eleição, não houve reuniões. Quando começou a eleição de fato, já não havia muito o que fazer além de apagar incêndios”, detalha Doneda. Ao longo do primeiro turno do pleito, o Conselho sequer chegou a se reunir.

Um dos incêndios foi justamente a crescente divulgação de informações falsas, descontextualizadas, agressivas ou mesmo caluniosas pelo WhatsApp. A fim de pleitear ações para a garantia de um ambiente comunicacional equilibrado, a SaferNet enviou para a companhia propostas de alterações específicas, em dois eixos: medidas técnicas a serem consideradas para mitigar o risco do mensageiro ser utilizado para espalhar desinformação e ações para conscientização dos usuários, verificação de fatos e pesquisa baseada em evidências.

Os especialistas sugeriram que fosse considerada a definição de um “número razoável” de assinaturas do grupo permitido a um usuário único e reduzido o número de encaminhamentos para cinco em vez de 20 chats, como feito na Índia, e de grupos criados por um usuário único de 9.999 a 499. Além disso, eles pautaram a necessidade de a plataforma apresentar mecanismos de checagem de fatos e verificação de notícias falsas, incluir ferramentas para indicar seus usuários de antemão se algum conteúdo de mídia que eles pretendem enviar a grupos ou múltiplos destinatários é considerado uma desinformação por mecanismos certificados, além de trabalhar em conjunto com o TSE, os meios de comunicação e a sociedade civil para desenvolver uma nova educação, conscientização, segurança e aprendizado sobre a disseminação de desinformação no país, com vistas à adoção de melhorias.

Após o primeiro turno das eleições, cresceu a pressão para que medidas garantidoras de um ambiente comunicacional equilibrado sejam efetivadas. João Guilherme Santos aponta, nesse sentido, que é possível “identificar padrões de fluxo de informações e interferir de novo na quantidade de vezes que essa informação pode ser compartilhada”. Danilo Doneda defende também a adoção de recursos que diminuam a capacidade de viralização nas redes e destaca que a proteção de dados pessoais é parte essencial desse processo.

Até agora, contudo, não houve mudanças no funcionamento das redes. No fim do ano, o site WABetaInfo, especializado na cobertura do WhatsApp, noticiou que a plataforma reduziria a possibilidade de encaminhamento para cinco conversas. Nossa reportagem procurou a empresa para confirmar a informação. Ao Intervozes, sua assessoria explicou que esse é um teste que está sendo feito, mas que testes não são comentados oficialmente. Ela também enviou nota em que lista ações que estão sendo tomadas para combater o problema. Além das medidas já citadas, como a parceria com as agências de checagem, apontou a expansão de campanha de educação com anúncios em jornais, sites e rádios em todo o Brasil “para ensinar as pessoas sobre como identificar notícias falsas e bloquear a disseminação destas”, a realização de “treinamentos com tribunais eleitorais regionais e nacionais, partidos políticos, polícia e promotores sobre as regras de como usar o WhatsApp para ajudar a explicar que o app é uma plataforma de mensagens privadas e que contas com comportamentos de spam serão banidas” e o “contato com especialistas em alfabetização digital”, a exemplo das iniciativas Énois Conteúdo, que treina estudantes entre 17 e 21 anos para se tornarem verificadores de fatos em seus próprios grupos familiares e círculos de amizade, e InternetLab, parceira da plataforma na produção de vídeos educativos sobre como identificar e agir contra a desinformação e outros tipos de conteúdo problemático.

“Dada a natureza privada das mensagens do app, o foco do WhatsApp é educar as pessoas sobre desinformação e capacitar os usuários com novas opções de controle dentro do aplicativo”, diz o texto enviado à reportagem. As assessorias do TSE e do Facebook foram procuradas, mas não responderam nossos contatos até a finalização desta matéria.

A batalha continua

2019 começou já marcado pela perpetuação da lógica da desinformação. Nos discursos oficiais e nas redes, multiplicam-se conteúdos sobre o regime socialista que vinha, supostamente, sendo adotado no Brasil e sobre a também suposta doutrinação marxista a que seriam submetidos os estudantes em escolas e universidades. Outro exemplo mostra como a desinformação tem sido utilizada para legitimar propostas do novo governo. Em meio aos anúncios de ações de desmonte do sistema de proteção ambiental, o novo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usou sua conta pessoal no Twitter para criticar um contrato de locação de veículos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e foi rebatido pela presidenta do órgão Suely Araújo. Após publicar nota contextualizando a necessidade dos gastos, ela pediu exoneração do cargo.

Os exemplos mostram que a batalha da informação não será encerrada. Para a coordenadora do Intervozes, Bia Barbosa, ela se dará não só pelo efeito que a prática massiva e indiscriminada do uso da desinformação teve no processo eleitoral, mas porque o Brasil convive com um cenário de concentração dos meios de comunicação e de falta de educação para a mídia, problemas que ganham um alcance exponencial em função da tecnologia, a qual tem sido instrumentalizada para o desvirtuamento do debate público.

“O Brasil é um país com ampla concentração dos meios de comunicação e que registra casos históricos de desinformações produzidas pelos veículos tradicionais. Com a Internet, a gente ganha uma velocidade e um alcance exponencial dessa desinformação, mas não podemos tratar dessa questão de maneira dissociada do contexto do sistema de comunicação”, defende. “O fato de a sociedade ter baixa percepção sobre notícias deliberadamente fraudulentas, de compartilhar informações desse tipo e de não opor forte reação à questão, tudo isso faz parte de um problema muito mais amplo que passa por educação e regulação e que a gente precisa enfrentar nesse debate”, pontua.

A jornalista defende a adoção de medidas capazes de reverter esse quadro, mas alerta que é preciso “não cair na tentação de achar que teremos uma solução simplista para esse enfrentamento”. De acordo com Bia, há pelo menos 30 projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional sobre o tema e novos que surgem a cada semana que caminham nesse sentido. Segundo ela, eles estão baseados em duas questões: a criminalização, com penas altíssimas de cadeia, até do cidadão que compartilha notícia falsa e a outra a mudança do Marco Civil da Internet para obrigar as plataformas a identificar e remover conteúdos falsos.

Quanto à primeira problemática, Bia aponta que a criminalização, com a criação de um novo tipo penal relativo à produção e compartilhamento das fake news, consiste em uma resposta punitivista ao problema que oferece riscos à liberdade de expressão e desconsidera os inúmeros problemas do sistema prisional, como a seletividade, a morosidade e a superlotação dos presídios. Sobre a transferência de responsabilidades para as plataformas, considera perigoso, “pois elas, muitas vezes, funcionam com base em lógicas, princípios e critérios muito diferentes do que a legislação brasileira estabelece”. “Se o dever de definir o que é verdade ou não é verdade, se o poder de definir o que circula ou não na Internet estiver nas mãos das plataformas, não tenhamos dúvidas de que nós, defensores de direitos humanos, mulheres, negros e negras, seremos os mais prejudicados por isso”, pontua.

Isso não significa que as plataformas não tenham responsabilidades e não devam ser reguladas. “Essa falsa dicotomia precisa ser superada, porque existem leis neste país, como leis que combatem a injúria, a difamação e mesmo a lei eleitoral que trata de impulsionamento, uso de banco de dados e outras questões e a omissão diante de flagrantes violações precisa gerar responsabilização”, acrescenta.

Para o Intervozes, é preciso garantir o respeito às leis existentes, inclusive à nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. “Enquanto o cidadão estiver tendo uma coleta massiva de seus dados pessoais que permita a criação de perfis para o direcionamento específico de conteúdos, o efeito da produção e da disseminação vai seguir sendo muito avassalador no país”, detalha Bia. Em paralelo, é preciso que a Polícia Federal investigue casos de desinformação para se descobrir como essas notícias estão sendo produzidas e disseminadas e que a Justiça atue de maneira célere a partir disso.

Para combater a indústria da desinformação, a organização defende que outro passo necessário é a adoção de medidas de transparência sobre o funcionamento das plataformas e de ampliação do controle dos usuários sobre os conteúdos que publicam e acessam, desmontando os efeitos bolha e a estrutura de monetização que estimula a criação e difusão das chamadas notícias falsas. O caminho para a solução do problema é longo e complexo, mas só será trilhado com mais e não menos informações e direitos.

* Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante da Coordenação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Banalização do ódio e ódio político on-line marcam 2018 e ameaçam liberdade de expressão

Texto: Paulo Victor Melo*

Lixo, fedorenta, nojenta. Feia, macaca. Me empresta seu cabelo aí pra eu lavar louça. Te pago com banana.

Mais de cinquenta anos após a filósofa judia Hannah Arendt desenvolver o conceito de banalidade do mal para compreender as práticas do nazismo como fruto da aceitação passiva de homens e mulheres comuns, pode-se afirmar que o Brasil do século XXI vive tempos de banalização do ódio.

Maju Coutinho, em junho de 2015; Taís Araújo, em novembro do mesmo ano; Negra Li, em julho de 2016; e Rita Batista, em outubro deste ano. Quatro mulheres negras com visibilidade midiática – duas jornalistas, uma atriz e uma cantora – são apenas alguns exemplos das vítimas do ódio com raiz racista na Internet nos últimos anos.

Pesquisa de doutorado defendida na Universidade de Southampton, na Inglaterra, confirma que os discursos contra Maju, Taís, Negra Li e Rita representam um fenômeno mais amplo: sejam ou não conhecidas publicamente, as mulheres negras são as principais vítimas do ódio nas redes sociais.

O autor do estudo, o pesquisador brasileiro Luiz Valério Trindade, analisou 109 páginas e 16 mil perfis no Facebook, além de 224 artigos jornalísticos entre 2012 e 2016, e constatou que aproximadamente 80% dos discursos com conteúdo de ódio têm as mulheres negras como alvo.

Créditos:  Rovena Rosa/Agência Brasil
Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil

As vozes que incomodam

Mulher, negra, comunicadora. É assim que a jornalista Rita Batista se apresenta nas redes sociais. Apresentadora de televisão na Bahia, Rita relata que o ódio contra as mulheres negras gera uma série de consequências negativas, inclusive em termos de autoestima e aceitação. “As mulheres negras são massacradas a todo tempo. Pela estética, o cabelo, o corpo, o nariz. Muitas, inclusive, passam por cima de características da própria raça negra para poder se enquadrar num perfil que não nos cabe”, diz.

Influente nas redes sociais, ambiente que utiliza para fazer reflexões constantes sobre as questões étnico-raciais e de gênero, a jornalista defende a própria estética negra como instrumento de libertação e acredita que ainda há um longo caminho na superação do racismo. “O bonito é ser livre e a nossa estética é também um componente de luta, de resistência. Não são 130 anos de abolição da escravatura que vão apagar uma história cruel, perversa e que ainda hoje infelizmente a gente debate, discute e muita gente não entende ou entende e quer diminuir a nossa dor, fazendo achar que é bobagem, que ‘deixa pra lá, vamos passar por cima disso’”, defende Rita.

Com mais de 116 mil seguidores, Rita é uma das lideranças que teve sua atuação potencializada pela Internet nos últimos anos. São parte desse mesmo movimento Alma Preta Jornalismo, Preta e Acadêmica, Blogueiras Negras, Tia Má, Djamila Ribeiro, entre outras. São todas, como diz Elza Soares em seu disco “Deus é mulher”, vozes usadas para dizer o que se cala: falam a partir do olhar, da vivência e do local de fala da mulher negra.

Para a integrante do InternetLab, Natália Neris, essa crescente presença de mulheres negras na Internet e o acesso dos grupos vulnerabilizados ao ensino superior são também fatores que geram a ofensiva conservadora que caracteriza o ódio. “Apesar das desigualdades permanecerem no Brasil, nos últimos anos temos o crescimento de iniciativas de mulheres negras na Internet, com os seus discursos se tornando mais audíveis. Temos blogueiras negras e muitas Youtubers negras que discutem desigualdade racial e começaram a fazer discursos sobre si. E isso incomodou muito. O discurso de ódio é também uma reação a essas pessoas que conseguiram furar de alguma maneira barreiras de classe econômica”, acredita.

Sua opinião é compartilhada também por Trindade, que identificou que boa parte das mulheres negras ofendidas nas redes exercem profissões como médicas, jornalistas, advogadas e engenheiras. “Ao disseminar estes discursos preconceituosos e racistas nas redes sociais, estes indivíduos estão, na verdade, negando legitimidade à crescente ascensão social das mulheres negras e ‘punindo-as’ por ultrapassarem a linha invisível que separa as fortes hierarquias sociais e raciais brasileiras (em outras palavras, é como se dissessem que determinados lugares de destaque e privilégio não lhes pertence). Na medida em que elas deixam de ocupar predominantemente papéis sociais associados à subserviência e baixa escolaridade e assumem posturas muito mais ativas na sociedade e, sobretudo, associadas a maior escolaridade, isso causa um profundo incômodo nos defensores de ideologias preconceituosas”, afirmou ele em artigo.

Mas não é somente contra as mulheres negras que o ódio na rede se manifesta. Os números de ocorrências assustam. A Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da ONG Safernet Brasil contabilizou nos últimos 12 anos quase 4 milhões de denúncias relacionadas a crimes de ódio e violações de direitos na Internet. São, em média, 2500 denúncias por dia de páginas contendo evidências de crimes como racismo, neonazismo, intolerância religiosa, xenofobia, LGBTIfobia e apologia e incitação a crimes contra a vida, dentre outros.

A tabela apresenta a quantidade de denúncias por alguns tipos de conteúdos de ódio recebidas pela Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos.

Tipo de conteúdo Denúncias (12 anos)
Apologia/incitação de crimes contra a vida 702.698
Racismo 567.497
Intolerância religiosa 268.030
Neonazismo 235.237
Xenofobia 150.367
LGBTIfobia 137.312

Fonte: http://indicadores.safernet.org.br/

Das redes para as ruas

Organizações da sociedade civil têm alertado que o discurso de ódio na Internet é, em si mesmo, um ato de violência, que se relaciona diretamente com atos e manifestações de violência fora da Internet. Em outros termos, os dados levantados pela Safernet têm a ver também com os altos índices, por exemplo, de crimes com motivação racista, misógina e LGBTIfóbica no Brasil.

“O que temos visto é uma cultura do discurso de ódio que gera violência física, porque o discurso de ódio já é uma violência simbólica que tem consequências emocionais, psicológicas, que estimula atos de violência física, que causam até morte. Exemplos não faltam, como o assassinato da vereadora Marielle Franco, vítima de um crime político, mas também por ser uma mulher negra”, aponta Renata Mielli, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC), que congrega centenas de entidades comprometidas com a diversidade e o pluralismo na mídia.

Quem também avalia como complementar a relação entre as expressões de ódio na internet e o que acontece nas ruas é Beatriz Buarque, fundadora do projeto Words Heal the World. Segundo ela, “algumas pesquisas têm mostrado que quando a pessoa se cerca muito de conteúdo de violência na Internet, ela fica inclinada a assumir uma postura e adotar uma atitude prática. Além disso, as mídias sociais possibilitam a troca de informações e fazem com que pessoas que odeiam homossexuais, por exemplo, se encontrem, conversem e a partir daí até comecem a pensar ações juntos”.

Ódio político

O processo eleitoral de 2018 foi particularmente marcado por discursos permeados pelo ódio e a relação entre o que se diz na rede e o que se pratica nas ruas foi estreitada. Foram diversos os exemplos de ataques nas diversas partes do país. Apenas para citar alguns episódios:

  • Na primeira semana de outubro, um grupo de apoiadores de Jair Bolsonaro, então candidato a Presidente, ameaçou cidadãos em um metrô de São Paulo gritando “ô bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar veado!”;
  • Em 8 de outubro, um dia após o primeiro turno das eleições, o mestre de capoeira Moa do Katendê, de 63 anos, foi morto, em Salvador, após ser atingido por 12 facadas por um agressor que defendia o apoio a Jair Bolsonaro;
  • Uma semana depois, uma travesti identificada como “Priscila” também foi esfaqueada, na madrugada do dia 16, na região do Largo do Arouche, em São Paulo. Conforme relato de diferentes testemunhas, os agressores gritavam “Com Bolsonaro presidente, a caça aos veados vai ser legalizada”.

Todos os ataques aconteceram em paralelo, por exemplo, à criação de um jogo on-line em que um personagem que imita Jair Bolsonaro precisa espancar negros, mulheres, membros da população LGBTI, militantes do movimento sem-terra, petistas até “matá-los” virtualmente. Lançado pela australiana BS Studios e o hospedado no site Steam, o jogo “Bolsomito 2k18” custa R$ 9,99 e em sua descrição convoca os internautas a serem “o herói que vai livrar uma nação da miséria”. A descrição segue: “[e]steja preparado para enfrentar os mais diferentes tipos de inimigos que pretendem instaurar uma ditadura ideológica criminosa no país. Muita porrada e boas risadas”. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) abriu inquérito para investigar seus criadores afirmando que o jogo “causa danos morais coletivos aos movimentos sociais, gays e feministas”.

Outras vítimas de inúmeras mensagens de ódio nas redes durante as eleições presidenciais foram os nordestinos” identificados pelos agressores como responsáveis por impedir a vitória de Bolsonaro no primeiro turno.

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Nos dias entre o primeiro e o segundo turno das eleições deste ano houve, de acordo com outro levantamento da ONG Safernet, um crescimento significativo das denúncias de discurso de ódio na Internet. A tabela a seguir compara a quantidade de denúncias feitas no primeiro (16 de agosto a 7 de outubro) e segundo (8 a 28 de outubro) turnos.

Tipo de conteúdo Denúncias (1º turno) Denúncias (2º turno)
Apologia/incitação de crimes contra a vida 1.746 11.009
Racismo 531 1.159
Intolerância religiosa 195 283
Neonazismo 254 1.393
Xenofobia 338 8.009
LGBTIfobia 422 1.478
Violência/discriminação contra as mulheres 1.437 1.232

Fonte: www.denuncie.org.br

Cabe observar que ainda que a tabela mostre uma aparente queda em números absolutos de denúncias de violência ou discriminação contra as mulheres, o segundo turno foi de apenas 21 dias, enquanto o primeiro de 53. Isso significa que o número absoluto de denúncias deste tipo teve uma queda de apenas 14,26% em menos da metade do tempo. Vale lembrar que à época foram realizadas centenas de manifestações protagonizadas por mulheres com o lema #EleNão. Além disso, muitos dos registros de ameaça e assédio contra jornalistas se direcionava contra mulheres.

Ainda de acordo com o levantamento feito pela Safernet, a maior parte do conteúdo denunciado estava no Facebook. Entre 16 de agosto e 28 de outubro, 13.592 denúncias indicavam links dessa rede social. Em segundo lugar esteve o Twitter, com 1.509 denúncias, seguido de Instagram, com 1.088, e do YouTube, com 400.

Em comparação com a eleição presidencial anterior, o número total de denúncias recebidas pela Safernet mais do que dobrou, passando de 14.653 em 2014 para 39.316 neste ano.

De onde vem o ódio?

Em declaração à BBC Brasil, o presidente da Safernet, Thiago Tavares, atribuiu esse crescimento também ao fenômeno das notícias falsas. “Isso se deve à produção e difusão em escala industrial de conteúdos enganosos criados para incentivar o ódio, o preconceito e a discriminação. Boa parte das fake news tinham alvos claros: mulheres, negros e a população LGBTI. Então, não surpreendeu que esses grupos fossem vítimas desses ataques”, avalia.

Coordenadora de projetos de combate ao extremismo e ao ódio, Beatriz Buarque ressalta também a desinformação, a sobreposição das emoções sobre a racionalidade e o desconhecimento sobre uso das redes sociais como fatores que contribuem para a irradiação do ódio pela internet. “Se tornou irrelevante se o que é dito é verdade ou mentira, na dita sociedade da pós-verdade o que é relevante hoje são as emoções. E nisso ganha força o ato de compartilhar. E quando você compartilha você está alimentando aquela mensagem, então o que a gente tem hoje? A gente tem pessoas que concordam com aquelas mensagens e ficam ali reverberando e a gente tem também as pessoas que não concordam e que ficam chocadas, mas que também ficam reverberando, porque não têm esse entendimento. Então, é um movimento cíclico acelerado pela Internet que está tomando proporções nunca vistas antes”, analisa.

Entidades com atuação na área do direito à comunicação e liberdade de expressão também destacam como fatores que contribuem com a disseminação do ódio na Internet a ausência de uma iniciativa oficial de sistematização dos dados, a inexistência do discurso de ódio como categoria de crime em termos jurídicos e as diversas opressões institucionais na atuação do Estado brasileiro ao lidar com a questão.

Natália Neris afirma que esses fatores são identificados, por exemplo, em decisões do Poder Judiciário sobre o tema. “Os casos que envolvem racismo e misoginia não estão chegando muito ao Judiciário e quando chegam não há o reconhecimento dessas condutas como racistas ou misóginas. Elas ficam no campo da brincadeira, do não-intencional, sem propósito da ofensa”, acredita.

Essa omissão do Poder Judiciário alimenta, de acordo com Neris, um ciclo perigoso de desconfiança dos segmentos vítimas do ódio na atuação do Estado. Para ela, isso pode ter um impacto muito negativo nas vítimas. “A ausência do Estado para lidar com esse tema pode fazer com que muitas pessoas não se sintam incentivadas a falar sobre ele ou buscar algum tipo de reparação”, diz.

Liberdade de expressão não protege o ódio

Ainda que seja utilizada como argumento em defesa de certos tipos de discurso de ódio, cabe lembrar que a liberdade de expressão não é absoluta, como ressaltam os próprios padrões internacionais sobre o tema. Renata Mielli frisa que “a liberdade de expressão não pode ser guarda-chuva para discursos que estimulam e incitam a violência contra grupos específicos nem pode colidir com direitos de outras pessoas”.

De fato, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966, e o Pacto de San José da Costa Rica, de 1992, ao mesmo tempo em que garantem a liberdade de expressão determinam responsabilidades no seu exercício e restringem a apologia ao ódio, especialmente contra grupos sociais, étnicos e religiosos, dentre outros.

Para o juiz e professor de direito Ingo Sarlet, um dos principais desafios na perspectiva do Direito é “assegurar um equilíbrio entre o exercício pleno da liberdade de expressão nas suas mais diversas dimensões e a necessária proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos de personalidade dos indivíduos”.

Como saídas para reduzir a quantidade e gravidade das consequências do discurso de ódio na Internet, Sarlet aponta a importância tanto de medidas na área da educação, quanto jurídicas. Para ele, “a inclusão digital, incluindo a capacitação para o uso responsável da Internet, e a difusão de uma cultura do respeito e da tolerância, bem como eventualmente a criação de algo como um código de ética, poderá, de fato, ter resultados mais efetivos e duradouros”.

Respostas

A profusão dos discursos de ódio na Internet em escala global tem preocupado também organismos internacionais, que buscam oferecer subsídios para o enfrentamento ao fenômeno. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) elaborou em 2015 um estudo em que analisa os quadros normativos internacionais, regionais e nacionais desenvolvidos para abordar o tema e suas repercussões para a liberdade de expressão. A pesquisa dá ênfase particularmente aos mecanismos sociais que podem ajudar a combater a produção, divulgação e impacto das mensagens de ódio on-line.

De acordo com o documento, é preciso investimento dos Estados em iniciativas de educação para a cidadania, alfabetização midiática e cidadania digital com três objetivos fundamentais: transmissão de informações sobre as características do discurso de ódio; análise crítica dos diferentes tipos de ódio on-line, identificando suas causas comuns e compreendendo as suas hipóteses subjacentes e preconceitos; incentivo aos indivíduos e coletivos a tomarem medidas e ações concretas no sentido de combater os atos de ódio.

Não descartando a importância das políticas relacionadas ao ambiente digital, Natália Neris acredita ser fundamental iniciativas que afirmem o caráter de violência que possui o discurso de ódio. “O primeiro passo é desnaturalizar esses discursos antes ainda de pensar no digital, porque essa é uma questão social também, não é só sobre Internet. Isso é um tipo de violência. São importantes políticas públicas em educação para as relações de gênero e em educação para as relações raciais”, defende.

Ela propõe também a implementação de medidas junto aos operadores do direito para atuar especificamente com temas relacionados aos direitos humanos de grupos vulnerabilizados. Em sua opinião, delegados, juízes e promotores não estão acostumados a discutir questões de gênero em sua carreira e, por conta disso, não estão preparados para lidar com esses casos.

Neris critica respostas baseadas na ampliação de medidas punitivistas. “Eu acho que o Direito Penal não serve às minorias, mas se já existem leis – independentemente do que eu acredito – elas precisam ser cumpridas”, diz.

Opinião semelhante tem Renata Mielli. Para a coordenadora do FNDC, não há necessidade de criação de novos tipos penais ou ampliação de punições. Ela defende o cumprimento das legislações em vigor, a exemplo da que criminaliza o racismo (Lei 7.716/89), da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) e das medidas referentes à retirada de conteúdos mediante ordem judicial presentes no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14).

Mielli defende também a realização de projetos no ambiente escolar e no campo da leitura crítica dos meios de comunicação. “É necessário que o Estado brasileiro desenvolva políticas públicas de educação digital e que estimule o olhar crítico da mídia, tendo as escolas como espaço de discussão e identificação do discurso de ódio”, sugere.

Resistências e contra-narrativas

Na resistência aos discursos de ódio, diversas são as iniciativas individuais e coletivas de produção de narrativas que afirmam direitos e se mobilizam por uma vida mais digna e um mundo mais justo.

Uma delas é a Conexão Feminista, fruto do desejo de duas amigas de compartilharem os seus papos sobre feminismo com o mundo. Nesse “compartilhar” as suas visões, descobertas e experiências, Renata Senlle e Heloísa Righetto também aprenderam muito ao longo dos três anos de Conexão.

Segundo Renata, o trabalho as ajudou a compreender questões como interseccionalidade, lugar de fala e privilégios. “Talvez a nossa audiência seja muito parecida com a gente: classe média, branca, com alguns privilégios. Então, colocar esse lugar de interseccionalidade no nosso conteúdo também é revelador para algumas outras pessoas que assistem e que passam a ver a importância de entender as relações de classe, gênero, raça e orientação sexual”, reflete.

Heloísa concorda e opina que, reconhecendo os privilégios da condição étnico-racial, cabe a elas tornar a Conexão Feminista um espaço de compartilhamento de poder com outros grupos vulnerabilizados.

Sobre a estratégia para o enfrentamento aos discursos de ódio e construção de outras narrativas, Heloísa diz que “não vê outra alternativa que não seja pedagógica”. Renata, por sua vez, defende encontrar o caminho da mediação. “Eu acho que a única forma da gente criar um caminho que não use da mesma estrutura de ódio que faz o ódio se espalhar”.

Com o feminismo utópico, com o caráter pedagógico nas ações e com muita afinidade e parceria, Helô e Rê, como se tratam as amigas, têm desempenhado um trabalho fundamental de cultura de paz e respeito à diversidade aos direitos humanos, por meio de podcasts, vídeos e artigos publicados nas redes do Conexão.

Outro projeto de intervenção social que busca criar discursos alternativos ao ódio on-line é o Words Heal the World, criado por Beatriz Buarque, jornalista formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Trabalhando com universidades no Brasil e no Reino Unido, diversas escolas de Ensino Médio e organizações da sociedade, a Words Heal the World – em português, “Palavras curam o Mundo” – tem como centro das ações o público jovem. “O foco realmente está nos jovens, por três motivos: primeiro, porque eles são o principal alvo de grupos radicais; segundo, porque eles têm uma criatividade e uma familiaridade com a Internet que falta aos adultos, eles já tem isso na veia; e terceiro, porque quando surgiu essa radicalização criou-se um mercado em torno disso, hoje em dia existem várias empresas, várias instituições produzindo conteúdo contra o extremismo, trabalhando para evitar a radicalização, tentando identificar conteúdo terrorista ou extremista na Internet, mas nenhuma dessas organizações coloca os jovens como principais atores”, explica Beatriz. “Com a Words Heal, colocamos os jovens realmente como atores, porque a gente entende que a partir do desenvolvimento de ações e estratégias onde eles se sentem ouvidos, acontecem mudanças”, completa.

No futuro, Beatriz pretende focar na América Latina. “Temos uma explosão de ódio, de racismo, LGBTIfobia e intolerância religiosa na América Latina e precisamos trazer esse tema do extremismo e do discurso de ódio para a mesa, porque é um tema muito relevante e urgente”, defende.

A ousadia de Beatriz em levar a frente um projeto dessa relevância sem apoio financeiro é a mesma ousadia que faz o site da sua organização ter uma aba intitulada “O rosto do extremismo”, em que identifica grupos de extrema-direita com atuação pelo mundo, além de apresentar as suas estratégias de recrutamento e financiamento.

Respostas legislativas merecem atenção

Muitos projetos de lei tramitam no Congresso buscando restringir a circulação de conteúdos on-line. Entre as justificativas apontadas estão o combate ao discurso de ódio em diferentes aspectos, como a liberdade religiosa e de crença (PL 8862/2017) e o preconceito ou incitação à violência motivada por etnia, raça, cor, nacionalidade, origem regional, idade, deficiência física ou mental, religião, sexo ou orientação sexual (PLS 323/2017 e PL 8540/2017). As estratégias propostas vão desde a possibilidade de responsabilização das plataformas de Internet que disponibilizarem conteúdos deste tipo, até a criação de novos tipos penais ou o aumento das penas existentes para discriminação via Internet.

Esses projetos merecem acompanhamento, principalmente no que diz respeito à definição do que seria caracterizado como discurso de ódio e o que poderia ser enquadrado como um conteúdo legítimo, segundo os padrões internacionais de proteção da liberdade de expressão. O desafio é complexo e a linha pode ser tênue ao ponto de que possíveis novas leis ou tipos penais sejam utilizados para coibir manifestações críticas legítimas. No Brasil temos exemplos de uso abusivo de mecanismos penais relacionados a crimes contra a honra para silenciar ativistas e jornalistas independentes, como no caso do jornalista Cristian Góes.

Além disso, há de se ter um cuidado especial com propostas de responsabilização das plataformas por conteúdos de terceiros, já que podem estimular um aumento da vigilância e controle privado dos discursos dos usuários e usuárias. No caso de iniciativas de jornalismo independentes ou menores, medidas desse tipo poderiam implicar em limitações nas possibilidades de interação via comentários, por exemplo.

Mais informações sobre os projetos de lei em tramitação relacionados ao tema podem ser encontrados no portal Radar Legislativo.

O Intervozes é membro da Coalizão Direitos na Rede, que monitora a atividade legislativa buscando consolidar a proteção da liberdade de expressão on-line em equilíbrio com os demais direitos humanos. Acompanhe a atuação da Coalizão em https://direitosnarede.org.br/.

* Jornalista, doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas na Universidade Federal da Bahia. Mestre em Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Pesquisador do Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM).

É tempo dos defensores de direitos trabalharem em rede

Por Eduardo Amorim*

O mais trágico dos resultados precisa trazer aprendizados para quem sofre a derrota. A vitória de Bolsonaro, a formação de uma ampla bancada de extrema direita no Congresso Nacional e a ascensão de políticos extremamente conservadores em estados como o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais ainda vai começar a ser assimilada pelos defensores dos direitos humanos no Brasil.

Sem se deixar levar pelo discurso fácil de que fomos vencidos pelas redes sociais, um ponto que precisa ser consensual é que o debate do Direito à Comunicação terá de ser realizado com muito mais prioridade no próximo período. A ampla aliança democrática que se formou em torno das candidaturas de Fernando Haddad e Manuela D`Ávila não conseguiu romper uma narrativa que focou em grupos específicos do eleitorado e obteve assim a vitória.

Os números mostram que como em eleições passadas um grande percentual de brasileiros preferiu se abster e houve um crescimento bastante relevante do número de votos nulos, que vinham desde 2002 ficando nos 4% e no segundo turno de 2018 chegou a 7,44%. Somados com 2,15% de abstenções e 21,25% de abstenções, 42 milhões de pessoas não conseguiram escolher entre as propostas de Haddad e Bolsonaro.

Já antes do segundo turno, o futuro presidente tentava se despregar da imagem de defensor da violência contra grupos vulnerabilizados. Não foi diferente após sua vitória. “Como defensor da liberdade vou guiar um governo que defenda e proteja os direitos do cidadão, que cumpre seus deveres e respeita as leis. Elas são para todos, porque assim será o nosso governo, constitucional e democrático”, afirmou.

No entanto, a narrativa não condiz com momentos chave como a morte da vereadora Marielle Franco, que sensibilizou a população brasileira e ganhou do então candidato à Presidência da República um silêncio absoluto.

No dia da eleição do primeiro turno, o assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê também teve uma repercussão bastante grande. Perguntado pela imprensa sobre o crime cometido por um defensor da sua candidatura, Bolsonaro disse que não tinha como se responsabilizar por todos os seus eleitores e garantiu que a violência vinha “do outro lado”, lembrando a facada que sofreu na véspera do 7 de setembro.

Ao continuar dando vazão a uma narrativa de embate, Bolsonaro abriu espaço para o que se seguiu durante a campanha e pelo menos em quatro casos a violência chegou ao extremo da morte. Além de Moa do Katendê, pelo menos outras quatro pessoas morreram também em crimes atribuídos a eleitores do candidato do PSL.

Charlione Lessa Albuquerque, jovem de 23 anos, foi atingido por disparos à bala enquanto participava de uma carreata a favor de Fernando Haddad em Pacajus, no Ceará, na véspera do segundo turno. No Largo do Arouche, a travesti Priscila foi assassinada e testemunha relatou ao Brasil de Fato ter ouvido grupos de que “com Bolsonaro, a caça aos veados vai ser legalizada”.

O caso do Centro de São Paulo, infelizmente, não é isolado. Dois dias depois desse assassinato, Laysa Fortuna foi morta pelo mesmo motivo absurdo em Aracaju. No dia 21 de outubro, Kharoline foi assassinada em Santo André, na Região Metropolitana de São Paulo. Os LGBT começam a se organizar para enfrentar a violência.

Os cinco casos de assassinatos são os mais brutais destas eleições. Mas a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) documentou 141 casos de ameaças e violência somente contra jornalistas que cobriam as eleições. A maioria deles é atribuída a partidários de Bolsonaro.

Após a vitória de Bolsonaro, evidentemente houve comemoração em diversas cidades. Em Rodelas, no Sertão da Bahia, o grupo de eleitores do candidato do PSL fez questão de invadir a Aldeia Tuxá e provocar a população indígena. Apesar de ter tido apenas 27,31% dos votos dos baianos, os eleitores do PSL se empoderaram com a vitória do seu candidato e se sentem no direito de provocar em território majoritariamente petista.

O caso que relato por ter ido até o Sertão da Bahia para acompanhar o voto da minha esposa baiana pode parecer banal. Porém, pode explicar um outro trecho da fala de Jair Bolsonaro: “Nosso governo vai quebrar paradigmas: vamos confiar nas pessoas. Vamos desburocratizar, simplificar e permitir que o cidadão, o empreendedor, tenha mais liberdade para criar e construir e seu futuro. Vamos “desamarrar” o Brasil”.

O discurso do empreendedorismo pode vir a ser uma arma contra direitos como os conquistados por indígenas e quilombolas, que em áreas remotas do Brasil como o Sertão nordestino vêm lutando com suas vidas pelas terras demarcadas. Na beira do Rio São Francisco, a fronteira agrícola da fruticultura irrigada é um ponto chave, mas a defesa dos direitos dessas populações precisa ser feita em todo o Brasil, assim como o de diversas outras comunidades urbanas e rurais.

Se eu puder dizer alguma coisa para os indígenas que se sentiram ameaçados será no sentido de pedir para que resistam e fortaleçam sua organização em redes. A eleição trouxe pouquíssimas novidades positivas, mas na minha ótima a melhor notícia em meio ao caos foi o do fortalecimento da rede feminista no Brasil.

Mesmo criticado até mesmo dentro da esquerda, o movimento feminista conseguiu levar também para a política eleitoral ainda no primeiro turno um grande manifesto em torno do #EleNão. Silenciado pela imprensa, assim como as denúncias do Caixa 2 de Bolsonaro, mas que poderia ter tido no primeiro turno o mesmo resultado que teria a denúncia do crime relacionado ao envio de mensagens por WhatsApp na semana passada.

A organização em redes é fundamental, mas depende também da luta para criar um ambiente democrático de comunicação. Por isso, acredito que a organização dos movimentos que atuam em articulações em defesa do Direito à Comunicação deve estar articulada com todos esses movimentos, para que consigamos resistir e ampliar as lutas.

*Eduardo Amorim é jornalista, membro do Intervozes, Doutorando em Comunicação no Ppgcom-Ufpe e vice-presidente da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco

A Telebras, a Nação e a Geopolítica das Telecomunicações no Brasil  

Por: Brígido Roland Ramos e Clemilton Saraiva

A humanidade vem sofrendo rápidas e velozes transformações nas suas relações de interesses. Uma intensa batalha se trava de maneira surda e virulenta nas entranhas do cyber mundo, pois os negócios, ou seja, os interesses econômicos dependem da obtenção e envio de informações. A infraestrutura para levar e trazer os resultados destas novas configurações das relações econômicas, sociais e políticas, tão estratégicas para defesa e sustentabilidade do conceito de nação, são as estradas eletrônicas que um país precisa ter para manter a sobrevivência do modelo de Estado que dispõe.

Segundo Alvin Toffler, autor de Powershift: As mudanças do poder – Um perfil da sociedade do século 21 pela análise das transformações na natureza do poder, 1990, editora Record. O Poder, sob a ótica de Toffler, deve ser considerado como uma combinação de elementos que transformam uma sociedade (coesão), submissão às regras, dinheiro (a força do capital) e conhecimento (informação como ativo e valor).

Na linha de entendimento do autor, se avaliarmos o conceito moderno de desenvolvimento humano em ondas, considerando que o capital é sinônimo de riqueza e que isto posto a trabalhar gera produção, iremos observar que estes valores provocaram profundas transformações no modelo de sociedade em que vivemos. Acelerar a construção e ter controle desse novo conceito de estrada, segundo Toffler, tem similarmente a mesma urgência que construir rodovias e ferrovias no século XIX, quando se considerava que o destino de uma nação estava ligado às extensões dos seus sistemas rodoviários e ferroviários.

Diante deste entendimento há que se observar a magnitude e a importância da Telebras na gestão do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), instituído pelo Decreto nº 7.175, de 12 de maio de 2010, que visa criar oportunidades, acelerar o desenvolvimento econômico e social, promover a inclusão digital, reduzir as desigualdades sociais e regionais, gerar emprego e renda, ampliar os serviços de governo eletrônico, facilitar aos cidadãos o acesso aos serviços do Estado, promover a capacitação da população para o uso das tecnologias de informação e aumentar a autonomia tecnológica e a competitividade brasileiras.

Quando o Estado traz para si a coordenação e o controle de um plano desta importância, eleva à categoria máxima a gestão da rede “neural” do desenvolvimento da nação brasileira. Para Toffler, quando somos capazes de ver e tocar um telefone ou um computador não percebemos as redes que os ligam com o mundo; pois estamos diante de um grande sistema nervoso que controla a sociedade moderna.

Rogério Santanna, Presidente da Telebrás, em 2010, afirmava que o Estado brasileiro precisava fazer a diferença usando a infraestrutura de rede de telecomunicações que já dispunha, a fim de democratizar o acesso à Internet no Brasil e contribuir para incluir milhares de cidadãos brasileiros na sociedade da informação. Santana acrescentava, à época, que tínhamos um monopólio privado na área de telecomunicações que não tinha nenhum interesse social no país. Fato que perdura e é responsável pela atual situação de baixa inclusão digital que afeta os setores educação, saúde e segurança pública. Assegurava, Santana, que a ação devia ser iniciada de imediato pela implementação de uma infraestrutura de fibras ópticas do governo brasileiro, capaz de atender às demandas urgentes relacionadas à qualificação da gestão pública e à transparência dos atos governamentais. A iniciativa permitiria, também, ampliar e qualificar o governo eletrônico, apoiar a política de inclusão digital, bem como introduzir a concorrência no mercado de serviços e proteger a soberania nacional.

Diante dessa perspectiva, naquela época as operadoras de telecomunicações abriram desde então uma verdadeira guerra contra a Telebrás, onde o pano de fundo são os interesses das empresas no controle estratégico e econômico das redes para prestação e oferta de serviços ao Estado brasileiro da ordem de 5 bilhões de reais. Na coordenação dessa guerra se encontra o SindiTelebrasil, “sindicato” que representa os grupos transnacionais que controlam as grandes operadoras do mercado de telecomunicações (redes, serviços e gestão de informação e conhecimento) que engloba americanos, europeus (Itália, Portugal e Espanha) e mexicanos, nações que possuem atividades e interesses integrados na mesma união política e geoeconômica.

Esses grupos agem de forma diversionista pois usam atualmente o argumento da segurança nacional contra a Telebrás frente ao contrato associativo estabelecido com a Viasat e o início de operação do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégias (SGDC), foto, quando lhes interessam, mas nunca destacam que a privatização do setor de telecom, iniciado em 1998, colocou a segurança nacional nas mãos dos mexicanos que passaram a ser os donos da Embratel(Claro) que controlou o Brasilsat I e II, satélites brasileiros que serviam às forças armadas brasileiras até o último ano.

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Ao tentarem escapar dos assuntos que causam desconforto aos seus interesses, as teles desviam o foco das atenções do assunto principal (assunto ingrato ao sujeito) para um outro assunto menos polêmico às mesmas, ou mais polêmico para outrem levando a “disputa” ou “competição” aos tribunais em um flagrante uso da justiça brasileira, por meio do ingresso de infindáveis ações e recursos judiciais, como forma de garotear, protelando e atrasando  o desenvolvimento dos objetivos da Telebrás de levar banda larga, internet para todos, para os mais de 5.500 municípios brasileiros, ser uma rede de governo e garantir a segurança nacional por meio da gestão conjunta do satélite brasileiro com as forças armadas do país.

Não estamos somente diante de disputas meramente comerciais, estamos diante de uma revolução silenciosa de valores e de modelo de gestão do Estado e de uma nova forma de soberania nacional e conceito de nação livre. O desenvolvimento de novas habilidades e a retenção de conhecimentos, oriundos dos velocíssimos conteúdos de informações que trafegam nas autoestradas eletrônicas da nova economia. Para Toffler, a informação é o mais fluido dos recursos, e fluidez cuja a produção e a distribuição dependem de trocas simbólicas e que funciona como um sistema nervoso sem regras bem definidas.

Ademais, Alvin Toffler afirma que o que importa para uma nação a longo prazo são os produtos das atividades mentais: pesquisa científica e tecnológica… educação da força de trabalho… aplicativos de computadores sofisticados… administração mais inteligente… comunicações avançadas… atividades financeiras eletrônicas. Por fim, estes são os atuais recursos-chaves do poder e armas importantes para produção do conhecimento, geradores dos novos modelos geopolíticos e econômicos das nações livres e soberanas.

*Brígido Roland Ramos, Engenheiro de Telecomunicações, formado pela UnB, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do Distrito Federal – Sinttel-DF e Clemilton Saraiva, Formado em Direito pela Universidade Católica de Brasília e Pós graduado em Regulação de Serviços de Telecomunicações, Inatel, Autor de: O PAÍS, O PNBL, A TELEBRÁS E A ECONOMIA COGNITIVA, publicado em: https://obscom.intervozes.org.br/?p=25214  

Fonte das Ilustrações: Internet

MCI: Ameaças no Congresso e Judiciário ainda não abalam a Constituição da Internet no Brasil

A conselheira do CGI.br, Flávia Lefévre diz que os ataques são normais, mas estamos evoluindo em termos de subsídios para defender os princípios da lei

Marina Pita

As ameaças ao Marco Civil da Internet (Lei 12.485) estão vindo do Judiciário, enquanto estamos atentos ao Congresso Nacional, e das empresas que defendemos ao criar o arcabouço legal para a Internet, defendeu o promotor de justiça Frederico Ceroy, coordenador da Comissão de Proteção de Dados Pessoais do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, referindo-se à ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra os dispositivos de bloqueio de aplicativos e de priobição de operação no Brasil.

Para Ceroy, é fundamental manter os dispositivos de sanções legais caso as empresas não cumpram com a legislação vigente, ou há um grande risco de o MCI virar apenas uma carta de boas intenções, afirmou durante debate sobre direitos digitais, durante a Semana de Política de Tecnologia de Brasília, organizada pelo Intervozes em parceria com a fellow da Mozilla, Marília Monteiro.

A questão neste processo, lembra Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes e que mediou a mesa, é que a possibilidade de bloqueio está sendo usada de forma equivocada. “O bloqueio está previsto para, apenas, em caso de a empresa ferir as regras de privacidade, e não quando deixa de entregar dados.”

E, no entanto, a própria disposição de bloqueio de aplicações pode ser um problema, ao infringir o direito à liberdade de expressão, na avaliação da coordenadora do programa de Direitos Digitais da ONG Artigo 19 no Brasil, Laura Tresca. A organização, explicou Tresca, está avaliando a aplicação do MCI no judiciário brasileiro e, ainda que o levantamento ainda não esteja concluído, já se pode notar que há mudança nas decisões quanto à responsabilidade das plataformas online quanto ao conteúdo postado por terceiros – o MCI estabelece, para proteger a liberdade de expressão – que os intermediários só poderão ser responsabilizados quando houver notificação judicial a respeito de algum conteúdo específico. Já no quesito coleta de dados e garantia de neutralidade de rede, o Judiciário não tem aplicado o MCI da mesma forma, apontou.

Mas se o Judiciário tem avançado na garantia de proteção dos intermediários quanto ao conteúdo disponibilizado por terceiros, há intenso debate no Congresso para reverter esta disposição no MCI, especialmente para obrigar a retirada de conteúdo sem ordem judicial, lembrou o deputado federal Alessandro Molon, relator do projeto de lei que deu origem à legislação em questão. “Vem gente com a ideia de retirar conteúdo, bastando alguém dizer que é uma notícia falsa. Imagine isso!”.

A advogada da Proteste, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), Flávia Lefévre, comparou os ataques que o MCI vem sofrendo com aqueles que seguiram à aprovação do Código de Defesa do Consumidor. Segundo ela, houve muita resistência, descrença de os princípios do CDC poderiam ser aprovados e implementados, mas hoje o valor da lei consumerista é indiscutível, o que imagina que acontecerá também com o MCI.

A aprovação do decreto que regulamenta o MCI (Decreto nº 8771) ocorreu há apenas um ano e meio e dele dependiam definições sobre questões importantes como neutralidade de rede e privacidade, lembra Flávia. Ou seja, ainda estamos no início de um processo de consolidação.

Ainda, esse sistema de acompanhamento e fiscalização dos direitos garantidos no MCI, de forma colaborativa, envolvendo Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), seguindo diretrizes técnicas e estratégias desenvolvidas pelo CGI.br, apenas agora poderá contar com o documento de referência do Comitê.

“No CGI.br privilegia-se a construção por consenso. Então trabalhamos muito para editar um documento com essas diretrizes básicas. E agora que está público, precisamos nos apropriar dele, do MCI, do Decreto e fazer esta interlocução com CGI, Anatel, Cade e Senacon para ver como faremos o acompanhamento e o cumprimento desses direitos”, defendeu Lefévre.

Para Fábio Lúcio Koleski, gerente de Interações Institucionais, Satisfação e Educação para o Consumo da Superintendência de Relações com o Consumidor da Anatel, a agência, bem como os demais atores que devem garantir o princípio da neutralidade de rede ainda engatinham nesse terreno porque o assunto é muito novo e o desenho institucional é complexo. “É muito difícil entender o que é essa separação das competências de CADE, Anatel e Senacon. Mesmo o judiciário ainda engatinha para entender quem é quem nesta cadeia.”

Por Marina Pita – Especial para o Observatório do Direito à Comunicação