Decreto que regulamenta Marco Civil é essencial para garantir direitos

Ameaçado por Temer, decreto que regulamentou a lei reforça neutralidade e restringe guarda de dados, medidas centrais para a democracia nas redes

Por Marina Pita*

Antes de ser afastada do Planalto, a presidenta Dilma e seus assessores lembraram de deixar uma porta aberta para que os movimentos sociais e organizações da sociedade civil sigam na luta pela garantia de direitos e pela democracia também na internet.

Em um de seus últimos atos em exercício, Dilma publicou o decreto que regulamentou oMarco Civil da Internet (MCI), sedimentando conquistas centrais para que a rede – apesar dos ataques das operadoras de telecomunicações, das mega corporações de direitos autorais e de setores públicos vigilantistas – possa continuar sendo o principal veículo das vozes dissonantes e dos desprovidos de meios, de capital e de antena.

Outra boa notícia foi que o decreto regulamentador do MCI saiu melhor do que o texto discutido na última consulta pública prévia a sua publicação, avançando no sentido do que sempre defendeu a sociedade civil organizada.

No caso da neutralidade da rede, o decreto excluiu a hipótese genérica que autorizava o gerenciamento de tráfego (ou seja, a gestão dos pacotes de dados que transitam na rede) para o “tratamento de questões imprescindíveis para a adequada fruição das aplicações”.

De acordo com o texto, este tipo de prática só será autorizado em casos como a priorização de serviços de emergência ou para atender a requisitos técnicos indispensáveis como questões de segurança de redes.

Mas um dos pontos mais importantes do decreto explicita que não pode haver priorização comercial de pacotes de dados em função de acordos comerciais.

Ou seja, o texto proíbe o chamado “zero rating”, ao determinar que “as ofertas comerciais e os modelos de cobrança de acesso à internet devem preservar uma internet única, de natureza aberta, plural e diversa, compreendida como um meio para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória”.

Outro artigo veda “condutas unilaterais” ou “acordos entre o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento e provedores de aplicação” nas situações que “I) comprometam o caráter público e irrestrito do acesso à Internet, bem como os fundamentos, princípios e objetivos do uso da internet no Brasil; II) priorizem pacotes de dados em razão de arranjos comerciais; ou III) privilegiem aplicações ofertadas pelo próprio responsável pela transmissão, comutação ou roteamento, ou por empresas integrantes de seu grupo econômico”.

Assim, planos de internet que favoreçam, por meio da “gratuidade” do acesso, determinadas aplicações poderão ser considerados ilegais.

Estes pontos são centrais para garantir o futuro da web, já que o decreto acaba com os debates e sentencia: a internet NÃO pode ser fatiada em aplicações (dar acesso apenas a uma plataforma a critério das operadoras) ou funcionalidade (apenas e-mails, apenas redes sociais, apenas vídeo sob demanda etc).

Desta forma, a regulamentação do Marco Civil avançou para impedir que os interesses das teles transformem a rede em uma TV a cabo, em que é preciso assinar cada canal de interesse, ou pacotes pré-estabelecidos, e onde quem paga mais tem acesso a uma maior gama de conteúdo.

Este seria um modelo excludente mais do que, que traria retrocessos enormes em termos da garantia universal do direito de liberdade de expressão e acesso à informação na rede.

Proteção à privacidade

Ao tratar da proteção aos dados pessoais na rede, o decreto de regulamentação limita a guarda desses dados, reduzindo espaços para a prática da vigilância em massa dos internautas – algo que contraria os princípios da lei.

Em primeiro lugar, o texto incluiu a possibilidade de o provedor de acesso à rede não coletar dados cadastrais (nome, endereço etc) dos internautas. No caso de solicitações de dados feitas aos provedores por autoridades, as informações requisitadas devem ser individualizadas. Ou seja, não podem ser requisitados, por parte das autoridades, dados que sejam “genéricos ou inespecíficos”.

Outra novidade, que não estava na consulta pública, é que agora há um dispositivo prevendo que “os provedores de conexão e aplicações devem reter a menor quantidade possível de dados pessoais, comunicações privadas e registros de conexão e acesso a aplicações, excluindo-os tão logo atingida a finalidade de seu uso ou findo prazo determinado por obrigação legal”.

A medida vem para atender o respeito ao princípio da finalidade na coleta e tratamento de dados, consagrado pelo Marco Civil.

A Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) perdeu espaço na versão publicada de regulamentação do Marco Civil, em relação ao texto colocado em consulta pública, quanto à guarda de dados.

A agência chegou a ser apontada como “responsável pela fiscalização e apuração de infrações referentes à proteção de registros de conexão”. No entanto, esta responsabilidade foi excluída no regulamento final. Entendeu-se que, apesar de a Anatel fiscalizar o setor de telecomunicações, a guarda de dados não se enquadro no serviço de telecomunicações e não seria compatível com suas atribuições legais.

Considerando que há uma luta em curso pela aprovação da Lei de Proteção de Dados Pessoais (PL 5276/2016), em tramitação na Câmara e que defende um órgão de fiscalização para esta questão, não definir a Anatel como responsável pela fiscalização de infrações neste campo pode ser visto como algo positivo.

Fortalecimento do Comitê Gestor da Internet

Apesar de a Anatel ter sido oficializada como entidade que atuará na fiscalização e na apuração de infrações à neutralidade de rede, o órgão deverá sempre considerar as diretrizes estabelecidas pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br). O CGI.br é reconhecido internacionalmente pelo sucesso na gestão e administração da web no país, desde seus primórdios.

Sua composição (nove representantes do setor governamental, quatro do setor empresarial, quatro do terceiro setor, três da comunidade científica e tecnológica e um representante de notório saber em assuntos de Internet) é favorável à defesa dos interesses dos usuários, uma vez que se pauta pela participação social.

Já a Anatel, apesar de contar com instâncias de participação social, não raramente decide contra os interesses dos usuários.

Quando a gestão da rede impactar na concorrência e em temas do direito do consumidor, quem será responsável pela apuração dos casos será a Secretaria Nacional do Consumidor, vinculada ao Ministério da Justiça, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

A participação dos dois órgãos também é relevante para tentar garantir os direitos dos consumidores e a capacidade de inovação na rede.

Preocupantemente, o decreto que regulamenta o Marco Civil da Internet está no rol daqueles ameaçados de revogação pelo governo Temer. Num momento de avanço de políticas conservadoras e de retirada de direitos sociais, em meio a uma gestão ilegítima e afeita a responder aos interesses do mercado, garantir a preservação do decreto é fundamental.

Cabe, então, àqueles que defendem uma internet livre, universal e de igual acesso por todos lutar pela manutenção deste instrumento, barrando mais esta ameaça da gestão Temer à legalidade, pluralidade e diversidade em nosso país.

*Marina Pita é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Intervenção de Temer sinaliza desmonte da EBC

Sem legitimidade, presidente interino mexe na programação, demite funcionários e comentaristas e prepara MP para mudar lei que criou a Empresa

Por Mariana Martins*

Como tudo na nossa recente e frágil democracia – aliás, como a própria democracia – a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) se construiu e vinha se consolidando, nos últimos anos, eivada de contradições. Inerentes a qualquer processo que pretenda transformar paradigmas – como é o caso do sistema de comunicações no Brasil –, essas contradições foram criticadas diversas vezes neste blog. Porém, o ataque que a EBC sofreu na última semana, com a violação explícita do estatuto legal do mandato de seu presidente, instituído pela Lei nº 11.652/2008, como forma de garantir a autonomia da empresa frente ao governo federal, é inadmissível.

As exonerações do diretor-presidente e do diretor-geral da EBC, bem como a nomeação de duas outras pessoas relacionadas ao governo interino – sem projeto eleito e legitimado pelas urnas – é uma afronta à democracia e à lei que versa sobre a comunicação pública e que criou a EBC para liderar o sistema público de radiodifusão no país. Nos últimos dias, os ataques continuam, com o afastamento sumário de funcionários e demissões de cargos comissionados, bem como o anúncio da retirada do ar de programas e de pautas culturais, numa clara prática de censura.

Tão grave quanto as afrontas citadas são as que se desenham no curto prazo. Michel Temer prepara, através de uma medida provisória que não cumpre os requisitos constitucionais de urgência e relevância para ser editada, mudanças na lei de criação da Empresa. Na MP, além de alterar a regra sobre o que já foi atropelado – o estatuto do mandato para o cargo de diretor presidente –, notícias na imprensa veiculam (e nada foi negado na reunião dos funcionários da EBC com membros do Palácio do Planalto) que também pretende-se acabar com o Conselho Curador.

O Conselho é o principal órgão de controle social da Empresa, que tem como obrigação zelar pelos princípios e objetivos estabelecidos na Lei em questão, para garantir a missão da EBC como empresa de comunicação pública. Tanto o estatuto do mandato, que existe para garantir a autonomia do presidente frente ao governo que o nomeou, quanto a existência Conselho como órgão de controle, fiscalização e participação social são condições sine qua non para existência de uma comunicação pública. E isso não é uma invenção da Lei nº 11.652, de 2008, mas um pressuposto que encontra paralelo em praticamente todas as emissoras públicas de comunicação – reconhecidas como tal – no mundo.

Não era de se estranhar que um governo que sucedesse os governos que criaram a EBC viesse a fazer mudanças na empresa, como já se vê em exemplos das emissoras educativas estaduais. Mas nada parecido com o possível desmonte da EBC, anunciado por essa esperada medida provisória, ocorreu até agora.

Os limites de um governo interino

Antes de aprofundar a análise sobre as consequências da intervenção de Michel Temer na EBC, cabe debater uma questão primordial: as atribuições de um governo interino. Não faz o menor sentido um governo provisório fazer mudanças da magnitude da extinção de Ministérios, alterações de leis por MP, implementação de ações que criam e alteram políticas e instalação de um programa político derrotado nas urnas. Mudanças deste nível durante o período de um governo interino são inaceitáveis na democracia. Afora a legalidade, que a essa altura vale no Brasil tanto quanto a palavra de Eduardo Cunha, um governo provisório não tem legitimidade para fazer qualquer coisa que não seja manter a ordem até o julgamento final do motivo que o colocou interinamente no poder.

Iniciar as suas mudanças afrontando a comunicação pública tem, portanto, um sentido na atual conjuntura. Por ser um espaço de expressão de uma sociedade democrática, um governo autoritário – que extinguiu pastas como a Cultura, os Direitos Humanos, a Igualdade Racial e a defesa dos direitos das Mulheres – é incapaz de deixá-la sobreviver. Ao contrário do que alegam, não é o “traço” de audiência da TV Brasil (apenas um dos veículos da EBC) que incomoda. Nem o que a empresa é. O que incomoda é o que a EBC pode vir a ser no país.

A comunicação pública incomoda também os veículos tradicionais, historicamente beneficiados por diferentes governos, que passaram a publicar artigos e editoriais repletos de erros sobre a EBC. A comunicação pública no Brasil é nova, é cheia de problemas, foi mal gerida, foi mal tratada. Mas tem potencial de ser algo transformador e revolucionário no campo da construção democrática. E é isso o que incomoda tais setores.

A essencialidade da autonomia

Uma das essências da comunicação pública é sua autonomia frente ao mercado e aos governos. Autonomia não é algo dado. Nem mesmo o PT, que conduziu o processo de criou a EBC, foi capaz disso. Autonomia se conquista. E em dez anos como pesquisadora da comunicação pública, dos quais quatro dentro da Empresa como funcionária, vi, dia após dia, em movimentos crescentes, que os funcionários se apropriavam do espírito público da comunicação. Isso põe medo em qualquer gestão. Mas põe mais medo ainda a gestões autoritárias.

Infelizmente, não foram poucos os episódios em que uma gama de funcionários e comissionados da EBC, alinhados com as políticas das gestões anteriores, fizeram vista grossa diante de problemas e ameaças ao espírito público da comunicação. Também nos deparamos agora com funcionários – estes em sua maioria sem plano de carreira e sem visão de futuro na Empresa, desvalorizados nas últimas gestões – defendendo abertamente a ilegalidade dos atos de Michel Temer, por eles representarem ganhos pontuais.

Mais uma vez, a importância de uma comunicação pública forte se faz presente, pois as disputas dentro da própria EBC hoje remetem a falsas dicotomias criadas pelo modelo de mídia tradicional e mercadológica que temos: o poder de resumir toda e qualquer questão complexa a uma disputa entre “petistas” e o “resto da sociedade”. Sem falar na sede de vingança, pela qual vale mais ver um “petista” cair que zelar pelas instituições e pela legalidade.

Gestões anteriores erraram com a EBC. Tiveram medo de ouvir, de ousar. Contudo, o que temos hoje não é mais a contradição de quem não consegue lidar com as críticas a uma gestão com problemas. O horizonte no curtíssimo prazo é o fim da possibilidade da crítica, da própria construção da comunicação pública. O que temos hoje é a diferença entre o difícil e o impossível. O que se desenha é o fim da comunicação pública.

Se com um governo eleito estava difícil fortalecer a comunicação pública, com um governo interino, que começa ultrapassando os limites da legalidade e da legitimidade, qualquer construção que fortaleça a democracia torna-se incoerente com seus propósitos e, logo, uma ameaça à sua existência.

O impacto para a cidadania

Fechar a EBC não é se vingar do PT, derrubar os cargos comissionados. Fechar a EBC é acabar com o pouco do contraditório que ela consegue estabelecer no sistema de comunicação brasileiro como um todo. É acabar com o único modelo de radiodifusão aberta, em nível federal, diferente dos demais, que não funciona sob a lógica do financiamento privado e da audiência.

Acabar com o espírito público da EBC – pois é isso o que pretende a intervenção de Michel Temer – é acabar com nove rádios públicas, sendo duas delas (a Rádio Nacional da Amazônia e a Rádio Nacional Alto Solimões) emissoras que chegam a lugares que nenhuma rádio comercial alcança, já que ali não há consumo suficiente para “justificar” o direito de acesso à informação desta população. Acabar com a EBC é acabar com a Radioagência, que produz notícias que podem ser baixadas gratuitamente por rádios de todo o Brasil e que produz jornalismo, cultura e entretenimento.

Acabar com a EBC é acabar com a Agência Brasil, replicada gratuitamente por milhares de jornais pelo pais e mundo afora. Acabar com a EBC é acabar com o “Caminhos da Reportagem”, um dos programas jornalísticos mais premiados do Brasil. Com o “Estação Plural”, primeiro programa em TV aberta apresentado por um transexual. É acabar com o “Arte do Artista”, e com o encontro inusitado do teatro com a TV. É acabar com “Guilhermina e Candelário”, primeira animação infantil protagonizada por crianças negras. E “Igarapé Mágico”, que tem como personagens animais da fauna brasileira, do norte do país, dos igarapés, da Amazônia.

Acabar com a EBC é acabar com a esperança de fugir das amarras do mercado e da audiência do cidadão consumidor, que é alimentada pelo modelo dominante de mídia comercial.

A EBC é um patrimônio da sociedade brasileira e uma das principais conquistas do movimento pela democratização da comunicação em tempos recentes. Nenhum erro de gestão até aqui pode justificar o fim deste projeto de comunicação pública. Cassar a autonomia e os órgãos de controle da empresa são expressões do autoritarismo. E nada que se construiu no mundo sob este estigma deu certo. No Brasil não será diferente. Na EBC, tampouco.

* Mariana Martins é jornalista, doutora em Comunicação pela UnB, trabalhadora da EBC e integrante do Intervozes.

Temer ataca comunicação pública e exonera presidente da EBC

Em ato que ignora previsão legal de mandato de quatro anos, presidente interino exonerou Ricardo Melo da presidência da empresa pública de comunicação

Não foram só os ministérios das Comunicações e da Cultura, responsáveis por diversas políticas públicas de fomento à liberdade de expressão no país, que desapareceram do mapa na recém-inaugurada gestão Temer.

Nesta terça-feira 17, o Diário Oficial da Uniãotraz a exoneração do diretor-presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), única empresa pública nacional do setor. Passando por cima da Lei 11.652/2008, que regula a radiodifusão pública no País e que, para garantir a autonomia da EBC frente a governos, prevê mandato de 4 anos para seu presidente, o PMDB demitiu o jornalista Ricardo Melo e deve colocar em seu lugar Laerte Rímoli, coordenador de comunicação da campanha de Aécio Neves em 2014.

Rímoli também foi chefe da assessoria de Comunicação Social do antigo Ministério do Esporte e do Turismo durante o governo FHC, quando investigações do TCU apontaram desvios de 10,6 milhões de reais para a SMP&B Comunicação.

Rímoli foi um dos quatro servidores do ministério condenados a ressarcir os cofres públicos. Na Câmara dos Deputados, trabalhou no gabinete de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e foi um dos designados pelo presidente afastado a conduzir, com mãos de ferro, a TV Câmara.

Desde então, crescem as denúncias de servidores da Câmara acerca de censura a programas como Palavra Aberta e Fatos e Opiniões, além de vetos a entrevistas e reportagens dos telejornais.

Sessões do Conselho de Ética, que investiga Cunha, deixaram de ser transmitidas. E o programa Participação Popular saiu do ar. O futuro da EBC, de suas emissoras e programas não será diferente.

Mesmo sem o nome de Rímoli confirmado, a reação de intelectuais, acadêmicos, comunicadores, trabalhadores da EBC, organizações da sociedade civil e defensores da liberdade de expressão e de uma comunicação pública democrática e plural foram imediatas.

Articulada pela Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, uma nota com centenas de assinaturas foi divulgada nesta terça, exigindo o respeito à Lei da EBC e ao mandato de seu presidente. Ações na Justiça também estão sendo elaboradas – entre elas um mandado de segurança a ser protocolado pelo próprio Ricardo Melo – e atos estão programados em diferentes capitais.

Em Brasília, parlamentares de pronunciarão sobre o ocorrido numa manifestação na Câmara dos Deputados nesta quarta-feira, 18.

Como diz trecho da nota pública lançada (leia a íntegra abaixo), “a EBC, que sempre esteve ligada à sociedade por meio do seu Conselho Curador, representativo das esferas da sociedade civil, governo, setor privado e empregados, não pode ter seus alicerces legais e finalidades atingidas pelo governo interino. Este projeto não pertence ao Executivo nem a qualquer partido, mas à sociedade brasileira”.

Em diferentes ocasiões, este blog e o Intervozes se posicionaram em defesa da autonomia da EBC e criticaram episódios, durante o governo Dilma, que ameaçaram sua independência. Neste momento, em que a legislação que dá sustentabilidade e independência à comunicação pública é solenemente atropelada por Michel Temer, ninguém deve se calar.

Íntegra da nota:

NOTA EM DEFESA DA EBC E DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA

A democracia e a comunicação estão intrinsecamente ligadas. A manifestação de toda a pluralidade de atores enriquece a democracia, ampliando a capacidade de encontrar soluções que contemplem toda a sociedade. Por outro lado, a ausência de diversidade cria falsas unanimidades e prejudica o debate público.

Como fruto da luta da sociedade brasileira pelo direito à comunicação, a Constituição Federal prevê a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão.

O passo mais significativo na construção do sistema público foi a aprovação, em 2008, da lei 11.652, que institui os princípios e objetivos da radiodifusão pública no país e cria a Empresa Brasil de Comunicação como expressão de um sistema livre da interferência econômica ou governamental, em consonância com o artigo 223 da Constituição Federal.

A EBC (Empresa Brasil de Comunicação) é fruto dessa luta e um patrimônio de todos os brasileiros, que veem ali colocadas suas mais diferentes expressões culturais e de opinião. Para assegurar o caráter público, a Lei 11652 trouxe mecanismos importantes, como o Conselho Curador (órgão com representação da sociedade e dos trabalhadores), a Ouvidoria e a proteção do mandato do diretor-presidente, impedindo que este seja trocado a partir de cada mudança do Executivo.

Esses instrumentos são essenciais para que a empresa responda à sociedade, e não a partidos ou governos de plantão. Por isso, respeitar os princípios legais que zelam pela autonomia desta empresa pública é princípio essencial para todos que acreditam na democracia e diversidade de vozes.

A BBC, empresa pública de comunicação inglesa, com quase 100 anos de existência, está sustentada sob esses pilares. Seguindo seus passos, em apenas oito anos de funcionamento, os veículos da EBC fizeram valer o artigo constitucional que prevê a complementariedade dos sistemas de comunicação no Brasil.

A empresa estabeleceu como missão contribuir para a formação crítica das pessoas. Entre seus valores estão a independência nos conteúdos, na transparência e na gestão participativa.Os direitos humanos, a liberdade de expressão e o exercício da cidadania completam essa lista, juntamente com a diversidade cultural, a criatividade, a inovação e a sustentabilidade.

A TV Brasil buscou levar mais diversidade étnico-racial para a tela de brasileiros e brasileiras, com ampliação de representações negras na pauta jornalística e na programação cultural, seja por meio de filmes, desenhos animados ou programas de entrevista.

As agências da EBC, Agência Brasil e Radioagência Nacional, distribuíram conteúdo gratuitamente para milhares de jornais, blogs e emissoras de rádio, que não teriam condições de informar devidamente a população sobre os fatos e direitos políticos, econômicos e sociais.

Em apenas oito anos, as equipes de jornalismo da EBC conquistaram ou foram finalistas de diversos prêmios, principalmente pela cobertura de direitos humanos. Entre eles, os prêmios Vladimir Herzog, Líbero Badaró, Tim Lopes, Abdias do Nascimento, Esso e Embratel.

As emissoras de rádio ampliaram o espaço para a produção musical independente, o esporte e a informação. Está sob a administração da EBC rádios com importância histórica, interesse público e relevância atual como as rádios Nacional do Rio, MEC AM e FM do Rio, Nacional da Amazônia, Nacional do Alto Solimões, Nacional de Brasília e Nacional FM de Brasília.

Alertamos para os perigos que esse patrimônio da sociedade brasileira corre. Repudiamos a a decisão do governo interino de destituição do diretor-presidente antes do término do seu mandato, publicada no Diário Oficial da União deste dia 17 de maio. Também nos questionamos ameaças que circulam por meios não oficiais, como a redução da estrutura de pessoal ou o desvirtuamento dos princípios, objetivos e missão da empresa, bem como qualquer ataque à Lei da EBC e ao projeto da comunicação pública. A

EBC, que sempre esteve ligada à sociedade por meio do seu Conselho Curador, representativo das esferas da sociedade civil, governo, setor privado e empregados, não pode ter seus alicerces legais e finalidades atingidas pelo governo interino. Este projeto não pertence ao Executivo nem a qualquer partido, mas à sociedade brasileira.

Brasília, 17 de maio de 2016.

Os editoriais e a construção de legitimidade do golpe

Com justificativas para o golpe, a mídia conservadora deve ser considerada em seu papel político para uma compreensão histórica dos acontecimentos

por Mônica Mourão*

Quarta-feira, 11 de maio, o dia que não acabou. Insones, jornalistas acompanharam a votação, pelo Senado, da admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. O resultado só se deu na manhã da quinta-feira (12), motivo de atraso de alguns dos principais jornais da mídia hegemônica brasileira.

Os editoriais de O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, cada qual à sua maneira, constroem a noção de legitimidade do impeachment. O próprio nome utilizado, ao invés de “golpe”, como denunciado por Dilma em seu discurso após o resultado da votação no Senado, já dá o tom das narrativas.

Com o título “Novo marco de defesa da responsabilidade fiscal”, o editorial d’O Globo compara o impeachment de Dilma com o de Fernando Collor de Melo, sendo que o dela seria “o teste mais duro para as instituições, relacionado de alguma forma ao desmonte da ‘organização criminosa’ criada pelo lulopetismo”.

O texto não poupa expressões e adjetivos pejorativos para se referir a Dilma, Lula e ao PT. “Visão ideológica tosca de mundo”, “visão sectária”, “­cacoetes ideológicos”, “arrogantes”, “ato monárquico ou stalinista” são alguns dos exemplos.

O “stalinismo” também é citado pelo editorial do Estadão, cujo título “Retorno à irrelevância” responsabiliza a “descomunal vaidade de Lula” pela “profunda crise” que o país enfrenta. Para O Estado, Dilma foi apenas uma criatura que, em algum momento, “como acontece em todo conto de terror”, resolveu pensar por conta própria. Sua única importância seria “ter arruinado o País”.

Para a Folha de S.Paulo, o modelo representado por Dilma Rousseff seria “regressivo e cínico”, “imobilista e acomodatício”. Além disso, “o retrato não corresponde apenas a Dilma Rousseff. É também o de Lula, é o do PT, é o de tantos que, desde o mensalão, adiaram seu encontro com a verdade”.

Os três jornais, dessa forma, constroem uma identificação entre Dilma, Lula e o Partido dos Trabalhadores, mas não só isso. Também colocam nesse mesmo campo o conjunto da esquerda brasileira, ignorando as divergências nesse espectro ideológico e até mesmo a contestação feita por partidos e organizações que vinham se afirmando como oposição de esquerda de que Dilma e Lula (ou até mesmo o PT) ainda possam ser caracterizados dessa maneira.

Essa associação é feita ao ligar toda a esquerda a “mofados preconceitos doutrinários”, como afirmou a Folha, e ao “stalinismo”, numa evidente tentativa de evocar também uma aproximação com o retrocesso e o autoritarismo.

A Folha de S.Paulo foi o único dos três que pôs em xeque também a legitimidade do governo Temer e suas chances de tirar o país da atual crise, citando inclusive que seus aliados são considerados suspeitos pela Operação Lava Jato.

Postura bem diferente tem o editorial d’O Globo, que associa a ascensão de Michel Temer à presidência com o “princípio civilizatório da responsabilidade fiscal”. O jogo de sentidos está dado: se Temer representa a civilização, o governo Dilma seria o caos.

O editorial d’O Globo foi o que mais dialogou, implicitamente, com os argumentos usados por quem se posicionou de forma contrária ao golpe. Cita que embora o impeachment não se relacione diretamente com a Lava Jato, ela teve papel político no processo de suspensão de Dilma e que ela cometeu sim crimes contra o Orçamento.

A negativa de que cometeu crimes foi a tônica do discurso de Dilma Rousseff, veiculado pela NBR e retransmitido ao vivo por outras emissoras no fim da manhã de quinta-feira.

Segundo ela, “é a maior das brutalidades que pode ser cometida contra qualquer ser humano: puni-lo pelo crime que não cometeu”. Afirmou ainda que “quando uma presidenta é afastada por um crime que não cometeu, no mundo democrático, o nome disso não é impeachment, é golpe”, evidenciando a disputa por sentidos na forma como se nomeia o seu processo de impedimento.

Dilma também buscou mostrar que tal processo não tem legitimidade, sendo fruto de uma “farsa jurídica”, com o “objetivo de tomar à força o que não conquistaram nas urnas”, que foram os 54 milhões de votos dados a ela. De acordo com a presidenta impedida, “o que está em jogo não é apenas o meu mandato, é o respeito às urnas”.

Esse foi o sentido que as manifestações contra o impeachment tentaram imprimir, o de defesa da democracia, embora as coberturas jornalísticas das Organizações Globo tenham insistido em caracterizá-las sempre como formadas apenas por petistas e movimentos sociais ligados a eles, num esforço por, em oposição, construir os protestos antiDilma como espontâneas manifestações do povo brasileiro.

Nessa quinta-feira, O Globo publicou em sua página na internet o aviso de que a edição sairia um pouco mais tarde, para que o jornal fizesse uma publicação que desse conta do “momento histórico”: “O GLOBO permaneceu acordado esta noite, vigilante, de modo a entregar ao leitor um conteúdo de qualidade, que possa ser guardado como um livro de História”.

Numa operação entre passado e presente, O Globo criou uma relação entre o impeachment de Collor e o de Dilma, afirmando que a corrupção no último governo do PT “supera de longe as falcatruas de PC Farias”, o tesoureiro de Collor. Também criou a oposição entre civilização (Temer) e barbárie (Dilma e toda a esquerda); entre povo e militantes. Entre os que defendem, de forma isenta, a pátria e o bem e aqueles que têm projetos político-ideológicos ligados ao stalinismo.

O desafio de historiadoras e historiadores que escreverão sobre os últimos acontecimentos políticos é enorme. Considerar os jornais conservadores como fonte histórica sem inserir seu papel de agentes políticos na construção da narrativa da crise – e da própria crise – seria um erro crasso.

Em vez de serem guardados como livros de História, O Globo, O Estado e a Folha de S.Paulo devem servir como indícios do papel político da imprensa na sexta-feira 13 de terror que se anuncia.

*Mônica Mourão é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes

Ficção e Jornal Nacional: tudo a ver

Como o principal telejornal do país constrói a narrativa do impeachment no cotidiano da disputa política nacional. O jogo continuará na gestão Temer.

Por Eduardo Amorim*

O dia 9 de maio de 2016 certamente merecerá muitos estudos. Do ponto de vista político, nada chamou mais atenção do presidente em exercício da Câmara dos Deputados, Waldir Maranhão (PP-MA) ter decidido, no início do dia, anular as sessões que autorizaram o início do rito de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff e anulado sua própria decisão na madrugada do dia seguinte.

Diante do cenário tão nebuloso, parei para tentar entender o que está sendo passado ao grande público sobre esse processo. E, analisando o principal telejornal do País, fiquei com sinceras dúvidas se havia mais noções de jornalismo ou de ficção naquele script.

O primeiro ponto evidenciado naquela segunda-feira do Jornal Nacional foi a tentativa de tirar do deputado federal Waldir Maranhão a sua relevância. A TV Globo cunhou o termo “presidente interino” da Câmara dos Deputados, utilizado diversas vezes nos três blocos do jornal, deixando claro, logo no início, que ele se movimentava “para permanecer na presidência com apoio de governistas”.

Na primeira explicação sobre a decisão monocrática do presidente da Câmara, explicitou as ligações do deputado do PP com aqueles que julga relevantes: afirma que Maranhão voltou de seu estado em um avião com o governador Flavio Dino e se encontrou em Brasília com o ministro da Advocacia Geral da União, José Eduardo Cardozo.

Também chamou atenção o fato de o Jornal Nacional ter ressaltado que o presidente da Casa não abriu espaço para a opinião dos técnicos da Mesa da Câmara. Quem cobriu – como jornalista – o Parlamento brasileiro sabe que as Casas legislativas em Brasília têm realmente corpos profissionais que muitas vezes merecerem elogios.

Mas arrisco afirmar que a TV Globo não questionou este tipo de conduta em momentos como quando, por exemplo, o então presidente Eduardo Cunha mudou o comando da TV Câmara para tentar retirar a autonomia de seus profissionais da TV Câmara.

Quem fala e quem não

Verificar quem e de qual forma é ouvido nas chamadas sonoras do telejornal também é relevante. A presidenta Dilma Roussef deu declarações públicas sobre a decisão de Waldir Maranhão. Para qualquer jornalismo sério, não dar espaço para o seu posicionamento parece impossível. Mas a edição da Globo terminou com a seguinte frase da presidenta: “vivemos uma conjuntura de manhas e artimanhas”, como se Dilma também achasse que o parlamentar não é alguém em quem se possa confiar.

Já o líder do DEM na Câmara, Pauderney Avelino, ganhou espaço ao afirmar que Waldir Maranhão “é subserviente ao terminal governo do PT”. O secretário da Mesa, Beto Mansur (PRB/SP), entrou na narrativa para reforçar que os deputados coletivamente decidiram pelo impeachment, que a Advocacia Geral da União entrou com pedido no dia 25 de abril e que ele foi deixado de lado.

O Jornal Nacional, entretanto, não explicou aos seus telespectadores que o ex-presidente Eduardo Cunha foi o principal responsável por isso.

Já nesse momento, estava claro o “teatro” (com o perdão aos artistas do palco). Enquanto dois deputados têm espaço privilegiado para criticar a decisão de Waldir Maranhão, nenhum dos apoiadores da decisão no Parlamento foi ouvido.

Ivan Valente, líder do PSOL, divulgou a opinião do PSOL minutos depois do líder do DEM. Não apareceu. O também socialista Jean Wyllys também teve seu posicionamento nas redes sociais ignorado. “Vocês precisavam de mais uma prova de que o que está acontecendo é um golpe de Estado? O presidente do Senado, Renan Calheiros, decidiu simplesmente IGNORAR a decisão”, criticou.

À TV Globo, naquele momento, só interessavam os depoimentos que tratavam o “interino” como parlamentar sem expressão.

O JN também teve tempo para falar sobre o filho de Maranhão, que ocupava dois cargos públicos em São Paulo e no Maranhão simultaneamente. E para ouvir mais críticas ao “escárnio institucional” proclamado pelo senador Ronaldo Caiado (DEM).

O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), também deu um longo depoimento para explicar sua posição: a de que decisão (agora já anulada) de Waldir Maranhão era extemporânea, e que ele assegurava que nenhuma decisão monocrática poderia se sobressair ao conjunto dos parlamentares. A expressão “brincadeira com a democracia” ganhou o centro das atenções.

Só então, depois de mais de dez minutos de sua imagem escalavrada, o deputado (e “presidente em exercício da Câmara”) Waldir Maranhão teve oportunidade de dizer que não estava “brincando de fazer democracia”.

O elemento Delcídio

A sequência do enredo veio com a explicação de que a continuidade da votação do processo do Senado ainda dependia da prévia votação da cassação do senador Delcidio do Amaral, cujo histórico retratado deu conta apenas de seu período enquanto líder do governo no Senado – sendo esquecidos todos os seus anos de serviços prestados ao PSDB. Na fala do senador acusado: “eu como líder do governo errei, mas peço desculpas”.

O Jornal Nacional conseguiu ainda, naquele momento cheio de incertezas, prever o futuro para fortalecer a narrativa da legitimidade do impeachment. Informou que, no dia seguinte, haveria a votação em plenário para a cassação de Delcídio e, então, a votação do afastamento de Dilma poderia seguir em frente.

Como que para garantir que o rito não seria modificado, a emissora assegurou ainda que, no mesmo dia, haveria reunião do PP para expulsar o deputado Waldir Maranhão do partido.

O primeiro bloco do telejornal ainda seguiria com o presidente do STF, Ricardo Lewandowski garantindo que quem decidirá o rito do impeachment será o Senado; mostrando a queda no mercado financeiro no dia 9 (com uma questionável justificativa de que à tarde diminuíram as incertezas e por isso não teriam sido mais graves os efeitos na bolsa e no câmbio); o anúncio do (já certo?) futuro governo Temer sobre o corte de 10 ministérios e a assertiva da repórter Délis Ortiz: “falta ainda definir os nomes dos ministros, mas a sociedade não aceita mais do mesmo”.

Reflexo internacional

Para rebater as críticas ao processo que seguem na imprensa internacional, o JN, uma vez mais, fez um “giro” no noticiário estrangeiro para mostrar como os jornais de fora estão tratando a crise política brasileira.

A repercussão sobre a cobertura de veículos como o The New York Times (EUA), The Guardian (Inglaterra), Le Figaro (França) e El Pais (Espanha) foi reduzida. O vencedor do Pulitzer – maior prêmio do jornalismo mundial -, Glen Greenwald, alertou pelo Twitter o que disse Damian Wroclavsky, correspondente da France Press – matéria não lembranda peloJN.

“Se Roussef for tirada da Presidência, ela será substituída pelo seu vice-presidente-agora-inimigo, Michel Temer. Temer, um líder de centro-direita, foi acusado de estar envolvido no escândalo da Petrobras, mas não está sendo formalmente investigado. Um tribunal de São Paulo o multou por irregularidades no financiamento de campanha e ele pode ser banido por oito anos dos seus direitos políticos”.

Fica a pergunta: por que tanto esforço para destruir políticos como Waldir Maranhão, que podem estar ligados ao PT, e um quase silenciamento acerca das suspeitas sobre o futuro presidente da República?

A narrativa ficcional certamente irá continuar. E aposto que as Olimpíadas terão papel fundamental para, no já novo governo, ressaltar a união dos brasileiros. Serão tempos de uma certa pujança econômica e de mais silenciamento da crise política.

* Eduardo Amorim é jornalista, mestrando em Comunicação pelo PPGCOM-UFPE e integrante do Intervozes.