Projeto de Lei favorece empresas, não usuário

Em debate realizado nesta terça-feira, dia 06, em Brasília, o 45º Encontro Tele.Síntese, representantes de empresas de telecomunicações, do governo federal e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), além de companhias interessadas em investir na área, discutiram sobre a revisão do modelo de telecomunicações no Brasil.

No primeiro painel, que teve como tema “Visão do Poder Executivo e do Regulador”, o secretário de Telecomunicações do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, André Borges, destacou que o principal assunto em discussão na pasta é a tramitação do Projeto de Lei (PL) 3.453/2015. Caso aprovado na sua versão atual, o PL modificará a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), tornado mais flexíveis as regras sobre as modalidades de outorga de serviços de telecomunicações. Na prática, isso significará que determinados serviços hoje outorgados na forma de concessão poderão no futuro ser outorgados na modalidade de autorização. Esta mudança fará com que as empresas tenham menos deveres e mais privilégios.

André Borges alegou que a mudança na legislação estará vinculada à exigência de adoção de algumas medidas compensatórias por parte das empresas, como a de investir em locais não tão atrativos em termos econômicos, como localidades rurais de pequena densidade demográfica. Segundo ele, a Anatel está negociando com as operadoras de telecomunicações os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) – acordos que trocam os valores das multas aplicadas pela agência pela oferta de serviços e instalação de novas redes nestes locais inicialmente menos atrativos –, termos estes que, na opinião de Borges, trariam benefícios aos investimentos previstos no Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). “Os recursos dos TACs deverão ser até 50% maiores do que os calculados [para o PNBL pelas regras atuais] com a transformação da concessão em autorização”, declarou.

No entanto, o secretário não apresentou nenhum estudo que confirme essa estimativa feita por ele. Quando questionado por um participante do evento sobre o assunto, tangenciou e preferiu não reafirmar a questão. Já a respeito dos serviços Over The Top (OTTs), entre os quais se enquadram o WhatsApp e o Facebook entre outros, Borges disse que vêm sendo discutidos dentro do ministério. “Estamos desenvolvendo estudos e vendo o que o resto do mundo está fazendo em relação a essas atividades. Talvez tenhamos que impor algumas obrigações, já que são empresas que estão se beneficiando de negócios no Brasil”, afirmou ele. O secretário reconheceu, porém, que ainda não há propostas especificas, e indicou que está em estudo a possiblidade da tributação do setor, em um formato semelhante ao que ocorre nas telecomunicações.

Igor de Freitas, presidente-substituto da Anatel, fez coro às afirmações do secretário André Borges, alegando que “o formato de concessão não é adequado ao ambiente competitivo das telecomunicações”. Freitas utiliza o velho discurso neoliberal de que a regulamentação tira a competitividade das empresas para defender uma auto-regulamentação por parte do mercado, o que contraria os modelos de legislação e controle público implementados nas democracias consolidadas do mundo. Por fim, defendeu que a Anatel tenha autonomia, inclusive financeira, em relação ao governo. “A subordinação da agência reguladora à administração direta atrasa o setor”, pontuou.

Má vontade das operadoras

Na segunda mesa do evento, “A visão dos Players”, o PL 3.453/2015 voltou à cena. Representantes da Telefônica, Oi, América Móvil e Tim expressaram sua posição de desonerar o setor. Isso seria obtido com a diminuição da exigência de prestação de serviços obrigatórios e com o atendimento de investimentos em áreas socialmente vulneráveis, de pouca perspectiva de retorno financeiro para as empresas, com recursos de fundos setoriais. “Não se pode pensar em atendê-las [essas áreas] com recursos do saldo da troca da concessão pela autorização”, afirmou Camilla Tápias, diretora de Assuntos Regulatórios da Telefônica.

Francisco Matulovic, da Icatel, fez duras críticas às empresas operadoras de telecomunicações pelo posicionamento manifestado, questionando também a falta de investimentos do setor na telefonia fixa, em especial nos Telefones de Uso Público (TUPs). “No telefone móvel, houve investimento e a evolução do serviço. Mas, no público, não. Os pontos de orelhão estão hoje em locais muitas vezes inadequados, não atendendo às necessidades da sociedade atual”, ponderou. Matulovic lembrou que em vários países do mundo os orelhões foram transformados em pontos de internet wi-fi, com a possibilidade de constituírem também pontos para recarga de celular. “O que existe é uma má vontade das operadoras em investir nesse setor”, ressaltou.

Fundos de financiamento em disputa

No terceiro painel do encontro, denominado “A visão dos stakeholders”, Caio Bonilha, diretor da Futurion, defendeu que o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) fosse utilizado para a implantação da internet banda larga nas áreas sem interesse econômico por parte das empresas. “O governo precisa colocar a banda larga no centro da política pública e, desta forma, incentivar os pequenos provedores”, sugeriu.

Já o superintendente de Planejamento e Regulamentação da Anatel, José Alexandre Bicalho, apresentou uma proposta de Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU) para as concessionárias de telefonia fixa. Ele frisou que o PGMU apresentado traz indicadores e incentivos para melhoria dos serviços prestados como medidas prévias à aplicação de sanções. “Sairemos de 30 indicadores para 8, pois os usuários não percebem esses indicadores. Eles apenas prolongam ainda mais a dificuldade na fiscalização”, pontuou Bicalho.

Segundo o superintendente, a proposta apresenta mudanças nas regras de qualidade do serviço e da utilização de espectros, revisão do limite máximo de frequência, revisão do preço público e ajuste da tabela do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). Na opinião dele, é preciso ampliar o entendimento sobre o Fistel, não sendo relevante contabilizar se haverá ou não desoneração das empresas, mas se as mudanças propostas estimulam uma melhor prestação de serviço e a ampliação dos investimentos no setor.

E os usuários e usuárias?
Uma ausência de representantes que defendam os usuários dos serviços de telecomunicações foi amplamente perceptível no evento. Em julho deste ano, o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) se posicionou a respeito do PL 3.453/2015, ressalvando que, por força do regime de concessão, o serviço de telefonia fixa é prestado em regime público e as concessionárias são obrigadas a seguir metas de universalização – ou seja, disponibilizar o serviço em todo o país –, a prestar o serviço de forma ininterrupta e a manter tarifas dentro dos critérios definidos pela Anatel. “Com o fim das outorgas, todas essas exigências podem acabar, o que resultaria em significativa perda de qualidade do serviço de telefonia fixa para o consumidor brasileiro”, destacou à época Rafael Zanatta, advogado pesquisador do Idec.

O estudo do Idec também aponta como consequência gravíssima da mudança do regime de concessão para o de autorização o fato de as empresas do setor poderem ficar com a infraestrutura instalada por elas para a prestação do serviço de telefonia fixa, as quais deveriam, pela legislação atual, ser repassadas à União ao final do período de concessão, em 2025 – a chamada reversibilidade dos bens. Para que pudessem fazer tais investimentos, as empresas receberam em troca, e continuam recebendo, uma série de incentivos fiscais. O Idec defende no estudo uma ampla revisão da Lei Geral de Telecomunicações, a fim de garantir a expansão dos serviços prestados e o respeito aos direitos dos usuários e usuárias, e não mudanças pontuais na legislação que objetivam apenas beneficiar as empresas concessionárias.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Governo Temer publica MP que ataca a comunicação pública e fragiliza a EBC

Como já havia sido denunciado por entidades da sociedade civil e defensores da democratização da comunicação, o governo de Michel Temer está disposto a desmontar a comunicação pública, a partir de mudanças na Empresa Brasil de Comunicação (EBC). É o que fica explicito com a publicação da Medida Provisória (MP) 744, hoje dia 02, no Diário Oficial da União (DOE).

A MP apresenta alterações que atacam a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e a participação da sociedade civil nas decisões da empresa, acabando com o Conselho Curador e com o mandato do diretor-presidente – que até hoje só podia sair por dois votos de desconfiança do Conselho Curador. Essa medida faz com que o diretor-presidente fique subordinado a nomeações e exonerações da Presidência da República.

E é o que acontece no primeiro dia de sua publicação. O DOE ainda traz a exoneração de Ricardo Mello da presidência da e nomeia novamente Laerte Rimoli, que chegou a ocupar o cargo por algumas semanas, até uma decisão do Supremo Tribunal Federal cassar sua nomeação, pois feria o estatuto da EBC – mudança só foi possível devido à publicação da MP.

O texto dá total poder ao Conselho de Administração, que passa a ser composto por seis indicados do governo e um dos empregados (até agora, eram quatro do governo e um dos funcionários). Acaba com a autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão.

Para Jonas Valente, coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do DF, a medida, que chega com o discurso de “atacar o partidarismo e o aparelhamento pelo governo”, retira os principais mecanismos que protegiam a empresa. “Mesmo com todos os defeitos e limites, essas eram justamente as ferramentas para evitar o aparelhamento. Essas medidas acabam com a participação social na empresa e atacam os instrumentos concretos que configuravam o seu caráter público”, afirma.

Em nota divulgada ainda ontem, o secretário de comunicação da Central Única dos Trabalhadores, Roni Barbosa, expressava preocupação com o destino da comunicação pública e alternativa. “No próximo período, vamos ver os golpistas avançando contra as mídias que divergem da narrativa hegemônica, imposta pela grande mídia. A intenção é acabar com as vozes discordantes. Outra preocupação é com o destino da EBC, que pode abolir seus espaços de participação popular e ser usada como porta-voz dos golpistas”, previu Barbosa.

Opinião também compartilhada pela coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Renata Mielli, que, em entrevista ao portal Vermelho, afirmava que a mídia independente já estava sendo alvo de muitos ataques por parte do governo Temer, com a ofensiva colocada em prática com a suspensão de verbas publicitárias pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, prejudicando muitos veículos que contavam com os recursos acordados. Ela ainda lembra que o interesse de acabar com a EBC já foi explicitado em matéria publicada pela Folha de São Paulo em 2009, intitulada “Tela Fria”, que defendia o fechamento da EBC. “Os argumentos mudaram, mas os interesses continuam os mesmos”.

Rita Freire, presidenta do Conselho Curador da EBC, lamentou a notícia em mensagem que divulgou nas redes sociais. “A democracia brasileira acaba de sofrer mais um golpe com a publicação da Medida Provisória que acaba com o caráter público da nossa Empresa Brasil de Comunicação, ao derrubar seus instrumentos de autonomia: o Conselho Curador, que assegura a participação da sociedade na sua gestão, e o mandato do diretor-presidente, o mesmo que foi assegurado pela liminar do ministro do Supremo, Dias Tóffoli. A resistência aos desmandos não começa agora. Está nas ruas, sob repressão e violência do Estado, mas com a coragem necessária para defender o País das sombras trazidas pelos golpistas”.

A EBC já vinha passando por restruturações e mudanças por conta de cortes no orçamento e principalmente após o governo federal represar e contingenciar recursos que já haviam sido previstos e que estão em torno de R$ 700 milhões. Além deste valor, a empresa aguarda uma definição sobre a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, criada em 2008, que determina que 75% do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel) seja destinado à EBC. Porém, a verba está bloqueada desde 2009 devido a uma ação impetrada na Justiça pelas empresas de telefonia.

Empresa Brasil de Comunicação
A EBC é uma empresa pública criada em 2007 para fortalecer o sistema público de comunicação, previsto na Constituição Federal em complementaridade aos sistemas privado e estatal. É gestora da TV Brasil, Agência Brasil, Radioagência Nacional, das rádios Nacional AM do Rio, Nacional AM e FM de Brasília, Nacional OC da Amazônia e Nacional AM e FM do Alto Solimões, bem como das rádios AM e FM MEC do Rio de Janeiro. É também responsável pela Voz do Brasil e pelo canal de TV NBR, que veicula os atos do governo federal.

A empresa divulga conteúdos jornalísticos, educativos, culturais, esportivos e de entretenimento, tendo como objetivo expressar a diversidade e pluralidade brasileira. A sua estrutura prevista no decreto de criação contava com: Assembleia Geral; órgãos da administração, que são o Conselho de Administração e a Diretoria Executiva; e órgãos de fiscalização, que são o Conselho Curador e o Conselho Fiscal, mais Auditoria Interna.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

STF derruba classificação indicativa na TV

Enquanto emissoras de todo país se mobilizavam em torno do julgamento do processo de impeachment da presidenta eleita com cerca de 54 milhões de votos, Dilma Rousseff, outro julgamento que atinge também milhões de brasileiros estava prestes a acontecer no Supremo Tribunal Federal (STF). O Supremo definiu ontem, dia 31, que é inconstitucional o artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual estabelece multa e suspensão de programação às emissoras de rádio e TV que exibirem programas em horário não autorizado pela classificação indicativa.

A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 2404 que questionava a norma foi proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ainda em 2011. Inicialmente, a legenda interpelava sobre o pagamento da multa, prevista no artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para aquelas emissoras que transmitirem “espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação”. A classificação indicativa está prevista na Constituição.

A ação contou com o apoio da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). O julgamento começou em 2011, mas foi interrompido algumas vezes por pedidos de vista dos ministros. A Advocacia Geral da União (AGU) e o então procurador-geral da República Roberto Gurgel defenderam a legislação em vigor e lembraram que a Constituição lista entre os deveres do Estado a proteção à criança e ao adolescente. Por isso, o poder público tem obrigação de regular o acesso da audiência a programas inadequados para determinadas faixas etárias.

Porém, para o ministro Dias Toffoli, relator do processo, a possibilidade de multar o veículo de comunicação por desrespeito à regulamentação vigente é uma forma de censura. Toffoli sustentou que a classificação indicativa deve ser apenas uma referência para a família sobre a faixa etária para a qual o programa é direcionado, servindo como ferramenta para a decisão dos pais de permitir ou não o acesso à programação.

Edson Fachin, Rosa Weber e o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, votaram pela manutenção da multa às emissoras e ressaltaram o importante papel do Estado no apoio às famílias com relação à criação e educação das crianças. Afinal, os pais não têm como manter controle total sobre os que as crianças estão assistindo na TV.

“A grande massa não tem condições de controlar o que entra pelas suas casas. É preciso confiar minimamente no Estado. Classificação indicativa não se confunde com censura”, enfatizou Lewandowski em seu voto.

Votaram pelo fim da punição às emissoras — atendendo ao interesse das empresas e reduzindo ainda mais a já frágil regulamentação sobre o setor da comunicação existente no Brasil — os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Teori Zavascki, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Carlos Ayres Britto, este já aposentado.

O que é classificação indicativa?

É a avaliação sobre a faixa etária recomendada para assistir a determinada/o obra/produto audiovisual. São classificados produtos para a televisão, mercado de cinema e vídeo, jogos eletrônicos, aplicativos e jogos de interpretação (RPG). Na prática, a classificação indicativa é um instrumento que protege crianças e adolescentes de conteúdos impróprios na TV aberta.

Antes da decisão do STF, em caso de desobediência, o canal de televisão, por exemplo, ficava sujeito a punição. Agora, não existe mais a sanção. As emissoras continuam obrigadas a estampar o selo de recomendação etária do programa no início da transmissão, como está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas não há mais a determinação de horários pré-determinados para exibição de programação imprópria para crianças e adolescentes na TV aberta.

Entenda melhor

Antes da decisão do STF, a faixa “não recomendado para menores de 12 anos” só podia ser exibida a partir das 20 horas, podendo a emissora sofrer sanções em caso de descumprimento da norma. Agora, novelas e programas em geral podiam ser exibidos em qualquer horário na TV aberta, mesmo que seu conteúdo possua cenas de violência, de apelo sexual ou de uso de drogas, e a emissora não será multada nem terá problemas jurídicos.

A medida entrará em vigor após a publicação do acórdão no Diário Oficial da União, o que deve acontecer nos próximos dias. À ação não cabe recurso, tendo a mesma caráter definitivo — já que o STF é a mais alta corte na organização da Justiça Brasileira. A Abert, principal interessada na decisão do órgão, ainda não se pronunciou sobre o assunto, nem qualquer canal aberto de TV.

Clique aqui para ler o voto do relator.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação, com informações do STF.

Na sintonia do golpe: o papel da mídia na crise política

Em 2016, as gerações nascidas nas décadas de 1990 e 2000 defrontaram-se, talvez pela primeira vez de forma mais aberta, com a ação incisiva e determinada dos grandes conglomerados midiáticos, no sentido de moldarem, à sua imagem e semelhança, o sistema político do país.

Texto: Helena Martins | Colaboraram: Iara Moura, Mônica Mourão e Elizângela Araújo

O afastamento da presidenta Dilma Rousseff, por meio de um golpe que envolveu decididamente o Legislativo, o Judiciário e os meios de comunicação, trouxe à tona e exigiu que fosse incluída na agenda de debates da sociedade a problemática do papel da mídia para a construção – ou o desmonte – da democracia. Na memória de um país que não enfrentou abertamente a história da ditadura civil-militar (1964-1985), restavam quase apagados casos de como o escândalo Proconsult, uma tentativa de fraude, encobertada pela Rede Globo, que objetivava impossibilitar a vitória de Leonel Brizola, em 1982, ao governo do Rio de Janeiro. A apresentação pela emissora do maior comício das Diretas Já, em São Paulo, em 1984, como uma festa em comemoração ao aniversário da capital paulista, ou a determinante edição debate televisivo entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Melo, candidatos à Presidência da República em 1989, às vésperas da eleição, pareciam fatos datados e cuja repetição seria improvável no tempo presente, dada a possibilidade de circulação de narrativas diferentes daquelas apresentadas pelos oligopólios.

Muito embora a criminalização, o silenciamento e a distorção de fatos envolvendo movimentos sociais e outros grupos progressistas sejam uma constante na história do sistema de comunicação brasileiro, a sociedade acostumou-se a ver uma mídia complacente com o poder central e seu projeto, ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990. No campo acadêmico, vimos o deslocamento do olhar sobre o poder dos conglomerados para as práticas de resistência e reelaboração de significados pelos receptores, bem como a difusão de entusiasmados estudos que decretaram o fim da comunicação massiva com o advento da internet.

No início dos anos 2000, após a eleição de Lula, apesar da ausência de enfrentamento do poder midiático por parte do governo, os oligopólios mudaram de postura. No contexto da Ação Penal 470, apelidada pela própria mídia como “mensalão”, em 2005, eles passaram ao que a professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Liziane Guazina, afirma ser uma postura adversária aos políticos e à política, conforme demonstrou na tese de doutorado “Jornalismo em Busca da Credibilidade: a cobertura adversária do Jornal Nacional no Escândalo do Mensalão”. Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Luís Felipe Miguel aponta que, a partir de então, houve “um processo de regressão da ação política da mídia brasileira”. Ele avalia que, do fim do período ditatorial até as eleições presidenciais de 2002, a grande imprensa parecia ter aprendido a conviver com o pluripartidarismo. Ela “parou de agir tão ostensivamente em favor de tal ou qual candidato e passou mais a exigir, de todos, compromissos básicos com certos interesses, o que se alinha às formas dominantes de intervenção política da mídia nas democracias liberais. Não é ausência de interferência, é uma interferência que se dá mais em termos de limitação do debate legítimo e menos como tentativa de induzir a opção eleitoral. Como o PT havia abandonado as partes de seu programa que podiam ser consideradas antissistêmicas, parecia possível uma acomodação dentro desse modelo”, explica.

A defesa aberta do golpe contra a democracia

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Manifestantes contrários ao impeachment da presidenta Dilma denunciam estratégia golpista da Rede Globo. Imagem: Mídia Ninja

No dia 13 de arço de 2016, o regresso tornou-se nítido. Se, em 1964, O Globo usou seu editorial do dia 2 de abril para proclamar que a nação vivia “dias gloriosos”, porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a

democracia, a lei e a ordem”, e saudou o golpe como um movimento não partidário, do qual participaram “todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais”, em 2016, foi a vez do Estado de S. Paulo usar o principal espaço de opinião do jornal para inflamar as milhares de pessoas que saíram às ruas, naquele dia de domingo, para protestar contra a presidenta Dilma Rousseff.

Após afirmar que “a maioria dos brasileiros, conforme atestam há tempos as pesquisas de opinião, exige que a petista Dilma Rousseff deixe a Presidência da República”, dispara: “a oportunidade de expressar concretamente essa demanda e, assim, impulsionar a máquina institucional responsável por destituí-la, conforme prevê a Constituição, será oferecida hoje, nas manifestações populares programadas Brasil afora. Chegou a hora de os brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente que não honra o cargo que ocupa e que hoje é o principal entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em alto e bom som: basta! Que as famílias indignadas com a crise moral representada por esse desgoverno não se deixem intimidar pelo rosnar da matilha de petistas e agregados, cujo único interesse na manutenção de Dilma na Presidência é preservar a boquinha à qual se habituaram desde que o PT chegou ao poder”[1].

Nos dois textos, há o apelo às famílias “indignadas com a crise moral”; o tom odioso com que trata o PT e a esquerda, em sentido amplo; a apresentação dos críticos à presidenta como não partidários e legítimos representantes da maioria dos brasileiros, além da adoção de uma postura convocatória por parte do jornal, justificada pela suposta defesa da democracia. Do mesmo modo, assim como no contexto do golpe de 1964, essa postura abertamente golpista foi combinada com a construção cotidiana de percepções sobre a crise política.

Na avaliação de Luís Felipe Miguel, “a mídia foi crucial para produzir o clima de opinião favorável ao golpe. Produziu-se uma narrativa manipulada e unilateral, de criminalização do governo, do PT e da esquerda em geral. Além disso, a mídia tem colaborado num processo mais de longo prazo, de desconstrução do discurso dos direitos e produção de uma representação do mundo social focada na competição e sem espaço para a solidariedade, isto é, de esvaziamento dos pressupostos da narrativa da esquerda”.

Se a construção da hegemonia depende, como detalhou o filósofo italiano Antonio Gramsci, da combinação entre coerção, portanto uso da força, e consenso, era – e tem sido – fundamental produzir sentidos comuns sobre os fatos e, inclusive, acerca das possíveis saídas que deveriam ser adotadas. Isso foi feito através de enquadramentos favoráveis aos protestos em defesa do impeachment; exclusão do contraditório da cobertura jornalística dos principais veículos de comunicação; repetição incessante de argumentos e outros mecanismos de manipulação.

Desequilíbrio: a gente vê por aqui

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Manchete de capa de O Globo no dia 14 de março de 2015. Imagem: site O Globo

Em março, mês decisivo para a definição dos rumos da crise política, diversas análises produzidas pelo Intervozes buscaram captar o posicionamento dos veículos vinculados

às grandes corporações, bem como a relação com as instituições que deveriam zelar pela democracia. Os textos mostram que, desde o início daquele mês, uma sucessão de episódios que revelaram a articulação íntima entre mídia e Judiciário foi, aos poucos, convencendo parte expressiva dos brasileiros a apoiar o impeachment de Dilma como uma solução final à crise política brasileira.

A edição especial do Jornal Nacional sobre a Operação Aletheia (fase da Lava Jato que culminou com a condução coercitiva do ex-presidente Lula) foi praticamente toda dedicada ao fato de, de relevância inegável. Os números, porém, mostram a ausência de equilíbrio. Nos primeiros quatro blocos do jornal do dia 4 de março, embora tenham sido veiculados 21 minutos de matérias sobre o tema, apenas 50 segundos foram ocupados com a posição da defesa. No segundo, novos 15 minutos de reportagens e apenas 20 segundos com a posição do ex-presidente e outros 20 segundos com fala de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula. A defesa dos empresários envolvidos no caso foi lida pelos apresentadores na bancada, totalizando pouco mais de um minuto e meio. Na matéria sobre o tríplex do Guarujá, foram sete segundos para citar a nota do Instituto Lula em 2 minutos e 50 segundos de reportagem.

Lula falou a primeira vez quando já haviam se passado 40 minutos de jornal. Dilma entrou na sequência, com fala de 1 minuto e 15 segundos. Rui Falcão, presidente do Partido dos Trabalhadores, teve direito a 16 segundos. Na matéria sobre as repercussões no Congresso, a oposição ocupou 1 minuto, ao passo que o PT, 30 segundos. No vídeo, o repórter divulgou, por 2 minutos, informações de como a direita pretendia paralisar o Parlamento até o impeachment sair.

Quando promotores de São Paulo pediram a prisão preventiva de Lula, no dia 10, o Jornal Nacional apresentou os fatos sem citar as críticas feitas por juristas, especialistas e inúmeros membros do Ministério Público à peça jurídica. No sábado 12, o principal telejornal do país destinou sete minutos para negar o pedido de direito de resposta do Instituto Lula em relação à cobertura daquele fato. A emissora se disse “surpreendida” por ser chamada a cumprir uma lei em vigor no Brasil – que tem o objetivo, exatamente, de garantir o princípio constitucional do equilíbrio jornalístico e o direito de não ser ofendido nos meios de comunicação. Em vez de atender o pedido, veiculou editorial defendendo-se e reiterando as acusações. Invertendo a lógica das coisas, a empresa utilizou-se do discurso de defesa da liberdade de imprensa para seguir sua atuação autoritária, avessa à pluralidade de pensamento no país.

No dia 13 de março, quando foi registrado o maior número de protestos favoráveis ao impeachment, a Globo-News cobriu, por mais de 12 horas, as manifestações. Ao longo do dia, repórteres e comentaristas se revezaram para enaltecer os protestos, repetir à exaustão, a cada cidade noticiada, os motivos que já estavam claros para os telespectadores, e jogar sobre os atos um peso decisivo sobre o processo de mudanças no comando do governo federal. Duas frases sintetizam a narrativa hegemônica: “um desfecho com a Dilma não agrega… O Brasil está perdendo o bonde da história”, afirmou a jornalista Cristiana Lôbo. Já Renata Lo Prete asseverou: “podemos chegar ao final do dia sem a ideia de que o país está dividido”.

Na Globo, o tradicional filme das tardes de domingo foi suspenso para dar espaço à cobertura ao vivo do que se passava na Avenida Paulista, em São Paulo. “Agora há pouco a gente presenciou o momento mais emocionante das manifestações. A FIESP jogou balões verdes e amarelos contra o número de impostos que os brasileiros pagam. Foi um movimento muito forte, as pessoas aplaudiram, foi uma emoção aqui”, declarou um repórter. Outra jornalista não conteve o entusiasmo e arrematou: “está linda a festa”.

O mesmo enquadramento foi repetido no programa nobre do domingo, o Fantástico. Em trinta e cinco minutos de programa, coube ao PT apenas 45 segundos de fala; à secretaria de Comunicação da Presidência da República, 30 segundos; e, aos protestos pró-governo, que também haviam sido realizados, menos de 2,5 minutos. A reportagem de abertura do programa, que teve 17 minutos de giro nacional e internacional sobre os atos, não teve qualquer contraponto.

O bloco sobre as manifestações foi encerrado com mais de 6 minutos sobre novas táticas e descobertas da operação Lava Jato, selando um domingo nada plural – e triste – para o jornalismo brasileiro. Nos dias seguintes, vazamento de conversas envolvendo Lula e, inclusive, a presidenta da República, que bem poderiam ser compreendidas como ataques à Segurança Nacional, ganharam destaque. Os apresentadores do JN, William Bonner e Renata Vasconcelos, chegaram a protagonizar uma vergonhosa leitura teatral das conversas – grampos ilegais que tiveram o sigilo derrubado pelo juiz Sérgio Moro. Buscando ocultar a parcialidade, o jornal apresentou respostas de Dilma, bem como protestos contrários ao afastamento – além, claro, daqueles favoráveis que se multiplicaram enquanto o JN ainda estava no ar.

Postura diversa foi adotada na cobertura dos atos em defesa da democracia, com destaque para aqueles realizados no dia 18 de março. Repetidos à exaustão, os números inferiores destes protestos em relação aos marcados pelo verde e amarelo passado foram também um elemento central para deslegitimá-los. Reiterando o argumento, o Jornal Nacional apresentou, no dia seguinte, uma reportagem somente sobre o comparativo das presenças. Outras duas diferenças foram notórias: a menor intensidade da cobertura e a presença do contraditório. A frase de Eliane Catanhede dispensa grandes explicações:

“a manifestação de hoje mostra que quem está indo pra rua é a militância. Não é o conjunto do povo brasileiro”, disse a comentarista. Assim, a Globo buscou levar o telespectador a não se enxergar naquelas pessoas “de vermelho” e “petistas”, como tantas vezes foram tachadas, numa ocultação de toda a diversidade de posicionamentos políticos de pessoas e grupos que denunciaram o golpe.

Capas do O Globo não deixam dúvidas acerca dessa estratégia. “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula e a favor de Moro”, estampou o periódico no dia 13 de março. “Aliados de Dilma e Lula fazem manifestação em todos os estados”, resumiu no dia 18.

Os casos deixaram nítida a midiatização da política e das ações do próprio Judiciário, bem como as estratégias de manipulação adotadas pela Globo, no que foi seguida por boa parte da imprensa brasileira. A seletividade das acusações, especialmente das denúncias de corrupção; a confirmação da relevância de determinados fatos e posicionamentos, aos quais foi atribuído caráter nacional; a utilização de números e imagens que conferiam legitimidade à argumentação e a fixação de argumentos por meio da repetição e da eliminação do contraditório foram os elementos da estratégia. Para não correr riscos, a Globo, especialmente, valeu-se de falas editorializadas ao longo de toda a cobertura, ao passo que a emissora praticamente dispensou a presença de comentaristas externos. A opinião pública era, afinal, a opinião dos próprios jornalistas do grupo.

Diante desse quadro e garantido o enraizamento social de tal posicionamento, não foi preciso abusar da inteligência dos analistas de mídia durante a cobertura da aprovação do afastamento, acompanhada, ao vivo, em todo o Brasil. Registros dos atos e de declarações de deputados foram abundantes. Não se viu, contudo, apuração, investigação, contextualização e problematização do processo em curso. Os argumentos que embasam o pedido de impeachment não foram apresentados, muito menos os de sua defesa. Nenhum convidado externo – nem mesmo um “especialista” alinhado ao posicionamento da Globo – foi convidado a discutir a situação do país. A postura motivou diversas críticas por parte da imprensa internacional, que denunciou o papel de políticos como Eduardo Cunha em todo o processo, as fragilidades jurídicas e mesmo os riscos à democracia. A crítica também foi direcionada aos conglomerados midiáticos. A tentativa de imprimir outras leituras à crise política e de denunciar as artimanhas que levariam ao impeachment coube aos veículos alternativos e também às emissoras públicas, em especial à TV Brasil. Também, por isso, apontam jornalistas da casa, a empresa sofreu forte retaliação logo que Temer assumiu.

Quando do episódio de demissão do diretor-presidente da EBC, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos, Edson Lanza, destacou que “o desenvolvimento de um sistema de meios de comunicação público em nível nacional, com garantias de independência em sua gestão e mecanismos de participação para a sociedade civil constitui um esforço positivo para a promoção do pluralismo de vozes nos meios de comunicação do Brasil”.

Os fundamentos da ataque da mídia à democracia

Pesquisador da relação entre mídia e democracia, o professor aposentado da UnB, Venício Lima, critica a postura adotada pela grande mídia no contexto da atual crise política. Para ele, ela expressa “continuidades históricas no comportamento da mídia que são fundamentalmente antidemocráticas e que são construtoras de uma cultura política que acaba sendo a cultura política dominante, independente de, por exemplo, uma nova geração que não necessariamente se utiliza de uma velha mídia”.

A partir da leitura de diversos estudos sobre o tema, Lima aponta três elementos-chave desse comportamento dos meios de comunicação. O primeiro é a adoção de um conceito de opinião pública “publicista”. Exemplificando o termo a partir da ação da mídia contra o presidente João Goulart, ele explica que os meios “assumiam que o papel da mídia era um papel de formação da opinião pública, mas ao mesmo tempo era um papel de representação e expressão dessa opinião pública”, o que era feito também com a desqualificação de outras instituições, como partidos, sindicatos e o próprio Congresso.

Em sentido semelhante, outra continuidade que pode ser percebida é a construção de um discurso adversário em relação à democracia, que é expresso na crítica permanente à política e aos políticos. Um olhar sobre as consequências dessa argumentação, para o professor, pode ajudar a explicar a eleição de candidatos que se apresentam como “apolíticos” nas eleições deste ano.

O perfil conservador desses políticos pode estar associado ao terceiro elemento destacado por Lima: o fato de a grande mídia ter adotado o discurso da vulgata neoliberal e, obviamente, refratário à esquerda. “Se você analisar o conjunto de palavras que fazem parte de um léxico neoliberal que vão sendo introduzidas no cotidiano das

pessoas, e como a mídia passou a criar uma linguagem pública usando esse léxico, é impressionante. E, no contexto dessa vulgata neoliberal, há também uma linguagem que favorece a intolerância e o ódio”, opina.

A cobertura oficialesca das medidas de Temer

O programa neoliberal adotado sem mediações por Michel Temer encontra na mídia um grande aliado. Medidas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que propõe o congelamento dos gastos públicos por vinte anos, ou a Reforma da Previdência têm sido apresentadas como ações imprescindíveis para que o país obtenha melhoras em seus índices econômicos. O discurso sobre a PEC, repetido à exaustão, buscava simplificar o problema e ocultar propostas concretas de saídas para a crise que não apenem os trabalhadores, como a auditoria da dívida pública e a taxação das grandes fortunas. No dia 30 de novembro, data da votação da Proposta no Senado, milhares de pessoas de todo o país foram a Brasília protestar contra a aprovação da medida que é considerada como um marco do fim do pacto constitucional firmado em 1988. O objetivo delas era chamar a atenção da sociedade e pressionar os parlamentares. Não obstante, a agenda midiática foi alterada devido ao acidente aéreo que vitimou 71 pessoas na Colômbia, a maior parte formada por integrantes do clube Chapecoense e profissionais da imprensa.

A tragédia ocupou todos os noticiários, de forma praticamente ininterrupta e sensacionalista. Enquanto os movimentos protestavam na Esplanada dos Ministérios, às casas de milhares de pessoas não chegavam informações sobre o que ocorria em Brasília. O silêncio fora rompido apenas quando o conflito já estava instaurado no local. Então, era útil à imprensa defensora da PEC apontar os atos de “vandalismo” – sem criticar, claro, a violência policial. Na madrugada, a Câmara dos Deputados também aproveitou o envolvimento dos brasileiros com a tragédia para alterar e votar o pacote de medidas contra a corrupção. Nos dias que se seguiram, enquanto a PEC não ganhava destaque em jornais como o Bom Dia Brasil e o Jornal Nacional, duas das principais fontes de informação de milhares de pessoas, a cobertura sobre o Chapecoense dava lugar apenas à discussão sobre as medidas de combate à corrupção.

Nos dias seguintes, as políticas propostas pelo governo Temer continuaram a ter o apoio da grande mídia, mas o discurso em relação ao presidente ganhou inflexões. Após oanúncio do acordo firmado pela cúpula da Odebrecht com o Ministério Público Federal (MPF), reportagens críticas passaram a ser mais recorrentes. No dia 9 de dezembro, o Jornal Nacional revelou o acordo de Cláudio Melo Filho, ex-diretor da empreiteira. Na abertura, citou o nome de Temer após destacar os de vários políticos da cúpula do governo. Na sequência, foi feito o anúncio de denúncia contra o ex-presidente Lula e seu filho e, em seguida, da redução da inflação – “a menor do mês de novembro em 18 anos”. A primeira notícia do jornal foi exatamente sobre a pauta positiva do dia: a redução da inflação. A segunda tratou da prisão do prefeito de Embu das Artes, na Grande São Paulo. A terceira, da identificação de suspeitos de matar um turista italiano, no Rio de Janeiro. A quarta, do anúncio do novo técnico da Chapecoense. Uma matéria sobre a situação dos sobreviventes do acidente foi apresentada na sequência.

Do acidente, o JN passou a um tema internacional, o relatório do Unicef sobre crianças que vivem em áreas de conflito ou são afetadas por desastres naturais. No segundo bloco, ganhou espaço a reforma da previdência, tema de duas reportagens seguidas. Até mesmo a previsão do tempo já havia sido anunciada quando, aos 25 minutos e 30 segundos, foi ao ar a matéria sobre a delação.

O destaque dado foi à denúncia contra Geraldo Alckmin. Embora o nome de Temer tenha sido pronunciado nas chamadas do jornal, inclusive na escalada, o caso envolvendo o presidente só foi detalhado aos 43 minutos e 10 segundos, por meio de link com um jornalista posicionado em Brasília. Isso é, não precisou de edição ou algo mais complexo do ponto de vista técnico. O texto passou longe de ser personalista. O nome de Temer foi apresentado em meio a muitos outros. E mais. Foi um dos últimos a ser citado. A “atuação indireta” de Temer, que teria pedido doações pessoalmente em uma ocasião, foi explicitada. No dia 10, o depoimento dele veio à tona. Na lista de 51 políticos, o próprio Temer – citado 43 vezes na delação premiada. O tom adversário verificado em momentos anteriores, contudo, não foi reprisado.

Na longa chamada inicial do Jornal Nacional, o nome do presidente sequer foi citado. A matéria sobre o capítulo dedicado por Cláudio Melo Filho a Temer começou assim: “as delações da Lava Jato, que já tinham atingido em cheio o grupo político do PT, e que ainda podem atingir mais nas próximas revelações, voltam-se agora contra para o núcleo do PMDB e políticos do PSDB”. O nome de Temer é citado quando a reportagem alcança o primeiro minuto. Destaca trecho da delação em que o empresário diz que Temer atuava de “maneira muito mais indireta”. O tratamento da denúncia de pedido de R$ 10 milhões foi bastante sutil, sobretudo se compararmos com a postura adotada em delações que envolveram Dilma Rousseff. No Jornal das 10, na Globo News, o tradicionalmente ácido Merval Pereira teve que fazer uma ginástica argumentativa para criticar o vazamento das delações. Merval chegou a concordar com a postura da Procuradoria- Geral da República, que decidiu abrir investigação para apurar o vazamento do conteúdo de delações.

A fragilidade do governo abriu espaço para a disputa entre setores da burguesia, que se reflete também no comportamento da mídia. Os jornais impressos deram destaque ao envolvimento do atual presidente, inclusive O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, que deram exclusividade, na chamada principal, à referência a Temer. A disputa pela ocupação do poder dependerá do resultado da pressão popular diante das novas denúncias e do avanço das propostas conservadoras, como a PEC 55 e a reforma da previdência. Este capítulo da história está aberto. E a posição da mídia, mais uma vez, poderá ser definidora. Conforme visto, embora os canais privados resguardassem entre si algumas divergências editoriais e formais, a narrativa geral que culminou no estabelecimento do impeachment de Dilma e com a chegada ao poder de Temer seguiu um caminho coerente e uníssono em seu objetivo geral. O governo Temer encontra na grande mídia uma aliada no que diz respeito ao apoio às medidas neoliberais mais polêmicas.

A falta de pluralidade de opiniões remonta à própria estrutura que organiza os meios de comunicação no Brasil regidos por uma lógica estritamente comercial. Além disso, a posse dos canais de rádio e TV por grupos religiosos e/ou políticos, conforme veremos, também garante a ressonância de um discurso hegemônico condizente com os interesses das elites políticas nacionais.

[1] Fonte: opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,chegou-a-hora-de-dizer-basta,10000020896

A fala de Dilma, a votação do impeachment e o mundo paralelo da mídia

Os últimos dias do julgamento da Presidenta no Senado foram marcados, novamente, por um discurso legitimador da derrubada de Dilma pelos grandes meios

Por Bia Barbosa*

O impeachment foi aprovado e a presidenta Dilma Rousseff foi definitivamente afastada. Ao longo dos últimos meses, analisamos por diversas vezes o papel que os maiores meios de comunicação desempenharam na legitimação deste impedimento, na desconstrução e negação dos argumentos da defesa de Dilma e na formação de uma parcela da opinião pública contra o governo legitimamente eleito nas urnas.

Nas últimas 48 horas, tal postura não se alterou, consolidando uma linha editorial que já rendeu livros e certamente será objeto de muitas pesquisas no futuro. Uma vez mais na história brasileira, a urgência da democratização dos meios, de diversidade e pluralidade midiática se confirmou, sem as quais nossa democracia seguirá em permanente risco. Explicamos por quê.

A censura ao depoimento de Dilma

Diferentemente do que ocorreu quando da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados, a reta final da votação no Senado, incluindo o depoimento inicial da presidenta, não foi transmitida ao vivo pela TV aberta. Não se suspendeu a transmissão de novelas, cultos nem mesmo de programas de entretenimento.

Enquanto Dilma fazia seu discurso, a principal emissora do país considerou mais relevante ensinar dotes culinários à população. A transparência ao debate exporia as fragilidades da acusação, explicitaria e confirmaria a essencialidade do julgamento político, “pelo conjunto da obra” – e não jurídico – pelos senadores.

Assim, a imensa maioria do povo brasileiro, que não tem acesso à TV por assinatura, não teve seu direito de acesso à informação garantido para que pudesse, livremente, formar sua opinião sobre o interrogatório de Dilma. Teve que se contentar com a seleção discricionária e com a narrativa editada pelos meios daquilo que havia ocorrido ao longo de 14 horas no dia 29 de agosto.

Nem mesmo a TV Brasil, emissora pública de comunicação, retransmitiu a íntegra das discussões. O princípio constitucional que rege o funcionamento das concessões públicas de rádio e TV foi, assim, também uma vez mais, violado.

A edição da reta final dos debates no Senado

O depoimento de Dilma foi considerado firme e consistente por dezenas de juristas, advogados, jornalistas. Nos corredores do Congresso, cresceu o receio por parte da oposição de que a fala da presidenta aumentasse as chances da defesa conseguir votos contra o impedimento. Coube então, à imprensa, reforçar a tese dos opositores de Dilma de que ela não havia “respondido aos questionamentos” da acusação.

No Jornal Nacional da noite do dia 29, os trechos escolhidos para “resumir” o dia foram os pouquíssimos em que a depoente foi menos clara e objetiva em suas respostas. A jornalista Zileide Silva, ao vivo do plenário, reforçou que a presidente não havia acrescentado nada de novo nem respondido às perguntas.

Na GloboNews, Renata LoPrete chegou a afirmar que “os senadores perguntam maçã e ela responde banana”, “martelando a tese do golpe”. Chegou-se a comparar a presidenta Dilma com Rolando Lero, personagem humorístico que inventava respostas quando questionado por um professor. O escárnio não teve limites.

A capa do jornal O Estado de S.Paulo, do dia 30, mostra uma presidenta derrotada sob a manchete “Juízo final”, quando a imagem que todos os que acompanharam as 14 horas de depoimento foram de uma presidente convicta de sua posição e de seus atos. As imagens se repetiram em O Globo.

Capa Estadao
Jornal O Estado de S.Paulo, 30/08/16: foto contradiz depoimento de Dilma e reforça derrota da Presidenta.

Inúmeros comentaristas preferiram destacar que “o discurso de Dilma foi apenas um registro histórico para o documentário” sobre o impeachment que está sendo gravado, desqualificando os argumentos da defesa e a importância das respostas da presidenta para o julgamento ainda em curso.

O jogo do fato consumado

A maior parte da imprensa não apenas comprou o discurso da acusação e de partidos como o PSDB de que a Constituição foi desrespeitada nos atos do governo Dilma. Num contexto em que um número de senadores ainda suficiente para evitar o impeachment não havia declarado sua posição final, os comentaristas dos canais por assinatura seguiram jogando água num dos lados do moinho, afirmando que o impedimento estava definido e chegando a fazer chacota da busca, pela defesa, da mudança de voto de alguns parlamentares.

“Este já ganhou um cargo, não tem mais perigo de mudar de lado”, afirmou um apresentador da mesma GloboNews. Na emissora, Gerson Camarotti ressaltou que o processo não teria reversão. Num contexto em que muitos senadores, independentemente do mérito, querem votar com o lado “vencedor” da disputa, o discurso midiático de que o jogo está definido contribui, sim, para a própria definição desses votos.

A agenda econômica no meio do julgamento

A utilização da crise e dos indicadores econômicos atuais na sustentação dos argumentos dos senadores pró-impeachment foi constante, mesmo que tais questões não sejam provas para comprovar a acusação de crime de responsabilidade por parte da presidenta Dilma. No Parlamento, a retórica cabe. Mas a imprensa também ajudou para isso.

Ao longo dos últimos dias, toda a cobertura do julgamento foi permeada por matérias e comentários de jornalistas que, por um lado, destacaram os problemas econômicos do país desde 2014 e as perspectivas de melhora na economia numa gestão Michel Temer.

No canal por assinatura do principal grupo de comunicação, a expressão “mundo paralelo” foi usada à exaustão para caracterizar as respostas de Dilma aos questionamentos dos senadores. “A percepção dela sobre causas e consequências é invertida em relação à maioria dos analistas”, afirmou Dony De Nuccio. “Dilma não fez o dever de casa. Todos os economistas já alertavam e acabou levando a isso. É uma realidade paralela”, completou Camarotti.

No Bom Dia Brasil, Alexandre Garcia chegou a repetir os argumentos de Janaína Paschoal e afirmar que é a elite econômica que está defendendo o governo Dilma, citando a senadora Katia Abreu e o presidente da CNI. Nenhum analista econômico com visão diversa foi convidado a opinar sobre o tema.

A criminalização permanente

Como não foi possível invisibilizar os inúmeros protestos e atos em defesa da democracia que seguiram ocupando as ruas nos últimos dois dias – ao contrário das manifestações pró-impeachment, que desapareceram –, os principais canais de TV optaram por mostrar os atos que resultaram em “confronto” com as forças de segurança.

O destaque foi para as manifestações em São Paulo, fortemente reprimidas pela Polícia Militar do governo Alckmin e que geraram imagens “de violência” nas ruas. As dezenas de outros atos pelo país receberam flashes quase instantâneos, pois teriam sido “bem menores que as anteriores”.

O noticiário, assim, ratificou sua tese criminalizadora dos movimentos sociais, tratados sempre com “baderneiros e arruaceiros”, como definiu o senador Aloysio Nunes em seu discurso no dia 30.

A cereja criminalizadora veio com o encadeamento, sempre presente, da notícia sobre a suspensão da isenção de imposto do Instituto Lula pela Receita Federal, reforçando o clima de indignação contra o Partido dos Trabalhadores e a tese do impeachment como mecanismo de combate à corrupção. “É um crime continuado”, sentenciou Merval Pereira.

Nenhuma referência às investigações contra Eduardo Cunha, iniciador do processo de impeachment, e contra Michel Temer, seu direto beneficiário, foram constatadas.

Lá fora, outro jornalismo

Esta semana, os editoriais do Le Monde (França) e The Guardian (Inglaterra) foram explícitos ao denunciar a farsa vivenciada no Brasil. No El País (Espanha), foram diversos os artigos explicando o por que da acusação de golpe. Nesta quarta, o The New York Times (Estados Unidos) cravou: “O impeachment mudará o governo e não a política”.

A imprensa internacional, como fez ao longo dos últimos meses, seguiu mostrando fatos e opiniões diferentes, silenciadas na mídia brasileira. Nenhum mérito nisso. Trata-se de ética jornalística, algo que passou longe da cobertura do impeachment.

Chegamos ao final deste processo histórico com inúmeras consequências e danos à nossa democracia. Os retrocessos serão muitos, inclusive no campo das comunicações, para a continuidade de um sistema público de mídia, para a existência dos meios populares e comunitários, para a gestão com base no interesse público dos serviços de telecomunicações, internet e radiodifusão.

Na parte que nos cabe deste debate, seguiremos defendendo mais diversidade e pluralidade, mais liberdade de expressão. Enquanto ela não for para todos, novos e tristes episódios como este poderão se repetir, com o apoio também daqueles – incluindo a grande mídia – que, definitivamente, escolheram um lado para estar.

* Bia Barbosa é jornalista, integrante da coordenação do Intervozes e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Colaboraram Ramênia Vieira, Raquel Dantas, Ana Cláudia Mieke, Mônica Mourão e Eduardo Amorim, todos jornalistas e integrantes do Intervozes.