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A comunicação pública brasileira: resistência e sobrevivência

Texto: Gésio Passos *

A comunicação pública brasileira volta a buscar sua sobrevivência no momento de reascensão da pauta neoliberal em meio à crise econômica. Frente a governos descompromissados com a missão pública das instituições e incapazes de dialogar com a sociedade, as mídias públicas sofrem com a falta de seu reconhecimento para a garantia da pluralidade da sociedade, cumprindo sua missão de dar voz à população frente a um sistema de mídia altamente concentrado.

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O presidente Michel Temer (PMDB), com sua intervenção na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), deu um exemplo de sua forma de governar: mudanças autoritárias, sufocamento financeiro e nenhuma abertura à participação social. A EBC, que administra duas emissoras de TV, sete de rádio e duas agências de notícias, criada há 10 anos para inaugurar uma nova fase na comunicação brasileira, foi o primeiro alvo de desmantelamento da gestão Temer. Por todo país, as experiências de comunicação pública buscam formas de sobreviver com autonomia financeira, independência editorial e participação da sociedade.

EBC: mudanças trazem riscos

Com a posse do presidente Michel Temer, em 2016, um dos seus primeiros alvos foram justamente as mudanças na comunicação pública federal. Temer trocou o comando da EBC exonerando o então presidente Ricardo Melo e nomeando Laerte Rímoli como novo mandatário. A empresa pública foi criada em 2008 com a unificação das emissoras federais, a partir de uma nova legislação que reorganizava e normatizava a comunicação pública no país.

A mudança dos presidentes não era amparada pela legislação, que previa um mandato de quatro anos para Melo, exatamente para garantir a independência da Empresa. Ricardo Melo havia sido empossado por Dilma Rousseff (PT) ainda em 2016. Com a nomeação de Rímoli, uma série de mudanças nos postos de comando da empresa se sucedeu. Mas um novo golpe aconteceu quando Temer editou a Medida Provisória 744/2016.

A mudança alterou a legislação, acabando com o mandato de quatro anos para presidente da EBC, possibilitando ao governo trocar o mandatário da empresa a qualquer momento. Também extinguiu o Conselho Curador, principal meio de participação da sociedade civil e que dava o caráter público da empresa. Dessa forma, o governo acabou com os mecanismos de independência da comunicação pública, retomando um modelo de comunicação estatal a serviço do governo federal, reinante até a criação da EBC.

O Congresso Nacional ainda tentou remediar o golpe instalado. O substitutivo do senador Lasier Martins (PSD-RS) foi aprovado em fevereiro de 2017, modificando a Medida Provisória, criando um novo Comitê Editorial e de Programação que pudesse ter alguma ingerência na empresa, além de permitir que o Senado pudesse sabatinar o presidente indicado para a estatal. Mas todas essas propostas foram solenemente ignoradas por Temer, que vetou as principais alterações que o Congresso realizou, alegando que elas contrariariam a motivação central da MP de conferir maior flexibilidade e eficiência à empresa pública. A decisão do governo acabou não sendo questionada no Congresso e o veto não foi derrubado em agosto de 2017, após toda a articulação do governo para impedir que a primeira denúncia por corrupção de um presidente no exercício fosse investigada no Supremo Tribunal Federal (STF).

A sociedade civil organizada buscou reagir contra as mudanças da Lei 11.652, que criou a EBC. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) no STF para reverter os ataques do governo à comunicação pública. A coordenadora geral do Fórum, Renata Mielli, afirmou à época que “essa MP é inconstitucional do ponto de vista formal e material, impõe censura às emissoras tuteladas pela EBC e não resolve os problemas da empresa – pelo contrário, agravando-os”.

Para o FNDC não há justificativa na urgência da Medida Provisória, que restringiu a autonomia da empresa e o cumprimento dos princípios da comunicação pública. O Fórum ressalta que as mudanças resultam em censura aos profissionais da empresa, subordinando-a ao governo federal. O fim do Conselho Curador tornaria mais graves os problemas de independência da EBC, restringindo a participação e controle social sobre a empresa pública.

O Ministério Público Federal, a partir da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), também se posicionou. Em setembro de 2017, a PFDC solicitou à nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, representação ao STF pedindo a inconstitucionalidade das mudanças na lei da EBC. Os procuradores afirmam que as alterações resultarão em grave retrocesso social em matéria de direitos fundamentais – tanto na liberdade de expressão e de imprensa quanto no caráter democrático que deve existir no sistema público de comunicação social.

O impacto nas redações da EBC

As mudanças orquestradas pelo governo Temer na EBC reverberaram de imediato dentro da empresa pública. Sob o comando de Laerte Rímoli, toda a diretoria e parte dos gestores da EBC foram substituídos e iniciou-se uma mudança editorial sem precedentes na história da empresa. Até o Comitê Editorial de Jornalismo, órgão interno previsto no Manual de Jornalismo da EBC e composto por jornalistas eleitos por redação, foi paralisado pela diretoria. A última reunião do Comitê foi no final de 2016. Após críticas dos empregados à cobertura vigente, ele nunca mais foi convocado pela Diretoria de Jornalismo. Esse Comitê Editorial de Jornalismo não deve ser confundido com o Comitê Editorial e de Programação, instituído pela Medida Provisória proposta por Temer e que sequer chegou a ser empossado.

As mudanças para uma linha editorial pró-governo geraram reflexos diretos no trabalho dos jornalistas da empresa pública. As entidades representativas dos trabalhadores começaram a se manifestar constantemente sobre as mudanças na EBC. Nos dias anteriores ao carnaval de 2017, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal denunciou a orientação da direção da EBC para que, durante a festa, os jornalistas não cobrissem temas políticos, não fazendo imagens de faixas e cartazes críticos a políticos e governos. Era instalada a proibição do “Fora Temer” na empresa pública. A intervenção editorial mudou até a programação da Rádio Nacional, com a veiculação de programas do governo federal em defesa da reforma da previdência social. O Sindicato de Brasília ainda denunciou as trocas de repórteres setoristas nas áreas de política e social, com anos de experiência, na Agência Brasil e na Rádio Nacional, como forma de tolher o livre exercício da profissão e aprofundar as práticas de censura.

Brasília- DF 02-09-2016  Reunião prototesto dos membros do conselho curador da EBC. Foto Lula Marques/Agência PT
Foto Lula Marques/Agência PT

Em março de 2017, os trabalhadores da EBC, em assembleia, aprovaram uma moção em repúdio à ação da diretoria da empresa. A nota diz: “temos enfrentado, de forma cotidiana e generalizada, ingerência no trabalho jornalístico. Um exemplo simbólico aconteceu no dia 15 de março, Dia Nacional de Paralisações contra a reforma da previdência e trabalhista, no qual, diferente da tradição estabelecida na EBC, os jornalistas receberam a ordem de focar sua cobertura nas consequências sobre o trânsito. É a linha adotada na cobertura de outras manifestações dos movimentos sociais, o que limita o direito à informação do cidadão brasileiro”.

As práticas ultrapassaram a censura e ampliaram a cultura de assédio moral dentro das redações da EBC. Em agosto de 2017, após denúncia coletiva de assédio do gerente da Agência Brasil a um correspondente do veículo, assinada por mais de 90 jornalistas da empresa, a EBC anunciou o fim do programa de correspondentes da Agência, que contava com cinco jornalistas em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Ceará, com a justificativa de necessidade de redução de custos. Até o Ministério Público do Trabalho apresentou uma proposta de Termo de Ajustamento de Conduta para que a empresa adotasse medidas efetivas no combate ao assédio moral organizacional. A EBC se negou a assinar o acordo com o Ministério Público, abriu investigação contra o repórter assediado e nada fez sobre o gerente.

A própria ouvidoria da EBC, órgão que ficou resguardado aos ataques do governo com a mudança na lei, apresentou em seus relatórios os reflexos dessa mudança editorial. A ouvidora Joseti Marques, a única que ainda mantém estabilidade legal pelo cargo dentro da empresa pública, continuou desempenhando seu papel de ombudsman com autonomia. A ouvidoria cita diversos casos de parcialidade e insuficiência na cobertura de temas como as greves gerais, reforma da previdência e trabalhista, fazendo proselitismo em favor do governo federal. Além do contínuo tom oficialista nas matérias produzidas pelos veículos da empresa e a implementação do temor dentro da redação, um governismo até então nunca visto desde a fundação da empresa, com perseguição e censura aos jornalistas.

Estrangulamento da comunicação pública

Toda a mudança da linha editorial da EBC foi acompanhada por um início de enxugamento da empresa pública. Contratos de programação foram extintos, a manutenção das sedes foram revistas, diárias e viagens para produção de conteúdo minguaram. Tudo acompanhado do corte brutal do orçamento da EBC, que asfixia a empresa pública.

Levantamento no Portal da Transparência mostra o contingenciamento dos recursos aportados na EBC. Até setembro de 2017, os recursos da empresa pública chegaram a apenas 52% do orçamento previsto para o ano. Grande parte dos recursos foi destinada ao pagamento da folha de pessoal, chegando a R$ 206,1 milhões dos R$ 324,5 milhões disponíveis. Sobrando cerca de R$ 120 milhões para o custeio, com pagamento de fornecedores, aquisição de programas, infraestrutura e investimentos.

Quando a EBC foi criada, foi aprovada a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, a partir de taxação de serviços de telecomunicações. Os recursos garantiriam a autonomia financeira da empresa. Mas, desde sua criação, grande parte desse fundo continua judicializado pelas empresas de telecomunicações, o que soma mais de R$ 2 bilhões. Outro R$ 1,4 bilhão disponível da Contribuição também continua contingenciado pelo governo federal, recursos que poderiam garantir as necessidades orçamentárias da empresa pública. Os dados são de Edvaldo Cuaio, representante dos trabalhadores da EBC no Conselho de Administração da empresa.

Além dos ataques editoriais, o estrangulamento financeiro vem a cada dia impedindo que a empresa cumpra sua missão. Desde março de 2017, a Rádio Nacional da Amazônia está silenciada. O centro de transmissores de Brasília acabou não resistindo a um incêndio que atingiu a subestação de energia onde se localizavam os transmissores da Rádio Nacional da Amazônia Ondas Curtas e parte dos transmissores da Rádio Nacional de Brasília AM. Com isso, a rádio da Amazônia saiu do ar e a de Brasília perdeu sua amplitude de potência.

A Rádio Nacional da Amazônia, que em 2017 completou 40 anos, é uma das poucas fontes de informação e cultura para milhões de brasileiros na região de mais difícil acesso do país. Precariamente, com um pequeno gerador, a rádio voltou ao ar em pequena potência, não atingindo 5% de sua capacidade de alcance. Em setembro, a EBC prometeu uma resolução do problema, com o deslocamento de um gerador de emergência da sede da empresa para o parque de transmissão. A solução arranjada não resolverá o problema, sendo que a capacidade ainda será reduzida para um gerador que só tem autonomia de 8 horas de funcionamento por dia.

O corte de recursos também é utilizado pela diretoria da EBC como justificativa para seguidos cortes editoriais em programas que compunham a grade da TV Brasil. Dois programas históricos de crítica de mídia, o Observatório da Imprensa e o VerTV, foram sacados da programação da emissora. Outros, como Arte do Artista, do teatrólogo Aderbal Freire Filho, sucessor do programa Arte com Sérgio Britto, também teve sua continuidade interrompida. Eles fizeram companhia a outros programas extintos em 2016, como Brasilianas e Espaço Público. Mas as mesmas justificativas não foram dadas para a contratação de jornalistas com longa passagem pela mídia privada, que levaram ao ar novos programas “jornalísticos” com linha editorial identificada profundamente com os interesses do governo federal, como Corredores do Poder ancorado por Roseann Kennedy, ex-CBN, e Cenário Econômico, comandado por Adalberto Piotto, ex-CBN e Jovem Pan.

As tradicionais rádios Nacional de Brasília AM e Nacional do Rio de Janeiro AM tiveram sua programação unificada sem qualquer diálogo com as equipes das emissoras e com os ouvintes. O discurso de criação de uma rádio all news, que teria seu foco em notícias, no momento em que a empresa sofre com falta de recursos, serviu para limitar o caráter local da programação das emissoras. Outros jornalistas com tradição nas emissoras privadas e de alinhamento ao governo também passaram a atuar à frente do microfone da rádio, como Anchieta Filho, ex-Jovem Pan.

O processo de cortes na empresa atingiu também a programação esportiva da TV Brasil, que nos últimos anos vinha conquistando audiência com a exibição do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol da Série C e Série D e do Campeonato Brasileiro Feminino de Futebol.

Mas o maior retrocesso na gestão da EBC se deu na manutenção da Rede Pública de Televisão. Com apenas quatro geradoras em Brasília, São Luiz, Rio de Janeiro e São Paulo, essa última em um canal marginal no espectro, a TV Brasil depende das emissoras afiliadas para que o seu sinal chegue em todo país. A previsão de repasse financeiro para as emissoras públicas/estatais que compõe cessaram há alguns anos. Algumas emissoras públicas deixaram a rede da TV Brasil, como a TV Educativa de Alagoas, rumo à rede da TV Cultura de São Paulo. A falta de liderança da EBC na construção da rede pública levou até as emissoras estaduais a criar um espaço de articulação, o Fórum das TVs Públicas Estaduais, abandonando a tradicional Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, que historicamente articulava as emissoras do setor público. Enquanto isso, somente em 2017, a EBC desligou ao menos seis retransmissoras do sinal da televisão pelo país. Em um processo final de desligamento do sinal analógico da televisão nas capitais brasileiras, pode levar a própria TV Brasil a um apagão, já que as próprias emissoras estaduais vivem dificuldades nesse processo.

A Comunicação Pública pelo Brasil

A comunicação pública brasileira não se resume somente à EBC e aos seus veículos. Desde o início do rádio no Brasil, espalharam iniciativas locais de emissoras por iniciativa dos estados, muitas ainda em operação pelo país. Com o começo das transmissões de televisão, iniciativas educativas por universidades e pelo poder público alavancaram o início de uma comunicação não comercial. Após a Constituição de 1988, foram essas iniciativas que ousaram se mover em direção ao novo conceito de comunicação pública, mesmo pecando pela falta de participação da sociedade em sua estrutura, as dificuldades de se tornarem independentes editorialmente de seus mantenedores e a falta de autonomia financeira. A crise econômica dos últimos anos também trouxe ainda mais ameaças para essa vasta rede que busca compor a comunicação pública brasileira. Para exemplificar essa situação, será avaliado o atual quadro de três estados emblemáticos em 2017: Rio Grande do Sul, Pernambuco e Minas Gerais.

Rio Grande do Sul: o fim da Fundação Piratini

Os ataques à experiência gaúcha de comunicação pública seguem como o maior retrocesso no setor no último período. A Fundação Piratini, responsável pela TVE-RS e pela Rádio Cultura FM, é um dos alvos do governo de José Ivo Sartori (PMDB) na tentativa de desmontar as estruturas do estado, alavancado pelo ideal neoliberal privatista.

Em dezembro de 2016, Sartori aprovou na Assembleia Legislativa um projeto que permitia a extinção da Fundação Piratini em conjunto com outras sete fundações públicas, com argumento de necessidade de enxugamento do Estado frente à crise econômica. Mesmo sob protesto de milhares de servidores, o governo conseguiu a aprovação do que – dizia – poderia dar um fôlego financeiro ao estado.

A TVE gaúcha foi criada em 1974 dentro da política de utilizar as ferramentas de comunicação para expansão da educação, que foi o fruto da criação da maior parte das emissoras estaduais brasileiras. A rádio Cultura FM só surgiu após a criação da Fundação Piratini, ainda nos anos 1980. As emissoras que tinham forte inserção na cultura gaúcha passaram de uma hora para outra para o estágio de total indefinição com a ação do governo de Sartori.

A reação dos trabalhadores da Fundação Piratini foi imediata, deflagrando greve, em protesto. A direção da Fundação respondeu proibindo a entrada dos funcionários na instituição e anunciou a demissão em massa de seus empregados. Por ser uma fundação pública de direito privado, os trabalhadores são empregados públicos, regidos pela CLT, e não servidores estatutários com garantia de estabilidade plena. Em ato de resistência, o Sindicato dos Jornalistas e o Sindicato dos Radialistas do Rio Grande do Sul conseguiram evitar a demissão em massa na Justiça do Trabalho, em processo ainda em curso. Uma resistência que tende a ser rompida em breve, pois o governo do estado buscou o STF para sustar a negociação das demissões. Outra trincheira de batalha contra a extinção da Fundação ocorre no Tribunal de Contas do RS. O Ministério Público de Contas questiona as motivações das extinções das fundações sem nenhum estudo técnico.

Iniciou-se o movimento “Salve, Salve TVE e FM Cultura”, angariando apoio de funcionários, diversos grupos artísticos e intelectuais, para a realização de várias atividades em defesa da Fundação Piratini, mostrando a relevância da comunicação pública gaúcha. O Conselho Deliberativo da Fundação Piratini, espaço de participação social na instituição, também reagiu, deixando de aprovar as indicações do governo para presidência e diretorias da fundação. O governo estadual ainda se retirou da rede da TV Brasil, da EBC, filiando-se à TV Cultura de São Paulo, e buscou interferir cada vez mais na programação da emissora.

Fundação Piratini

Com o fim da Piratini, o governo do estado afirma que as emissoras de TV e de rádio serão incorporadas pela Secretaria de Comunicação, que criará um novo modelo de gestão, terceirizando via alguma organização social ou pela iniciativa privada. Mas há rumores de que o governo poderá até extinguir os veículos.

“O discurso de modernização do estado esconde o que tem mais arcaico na comunicação pública no país. Busca transformar duas emissoras com inserção pública, com identidade com os gaúchos, em veículos governamentais, alinhados com o projeto de comunicação estatal que está vigente”, afirma Cristina Charão, empregada da Fundação.

Mesmo se continuar viva durante o governo Sartori, a TVE terá dificuldades para chegar aos gaúchos. Antes do desligamento do sinal analógico em Porto Alegre, previsto para janeiro de 2018, a TVE já havia desligado seu sinal analógico, restringindo sua cobertura, com a justificativa de economia de recursos. Até as retransmissoras do sinal da TV no interior sofrem com os cortes.

Pernambuco: o abandono da vanguarda

Em 2013, Pernambuco avançou na regulamentação da comunicação pública do estado. A criação da Empresa Pernambucana de Comunicação (EPC), inspirada até no nome na EBC, para gerir a TV Pernambuco (TVPE), representou uma novidade no fortalecimento do sistema público pelo país. Com um processo amplo de mobilização e participação, a empresa seria administrada conjuntamente por indicados pelo governo e pela sociedade, através do Conselho de Administração, composto por seis representantes eleitos da sociedade, seis indicados pelas secretarias do estado e um da Associação Municipalista de Pernambuco.

A TV Pernambuco, que iniciou suas operações como TV Tropical, teve início ainda na década de 1980, vinculada ao Departamento de Telecomunicações de Pernambuco (Detelpe), responsável pela instalação de retransmissoras de TV pelo interior do estado para atender as emissoras comerciais. A TVPE, durante um longo tempo, foi filiada às redes nacionais privadas, como o SBT e a Bandeirantes, tendo inclusive sua grade de programação arrendada para terceiros.

Mas o tempo passou e a esperança de fortalecimento da TVPE reproduziu os antigos erros do sistema público brasileiro. Com a crise econômica atingindo todos os estados, o governo de Pernambuco mais uma vez abandonou a comunicação pública estadual. Com a sede da geradora da TV em Caruaru, mas retransmissão em Recife e em 28 regiões do estado, a empresa continuou sem estrutura para produção, funcionando a partir de poucos empregados comissionados. A gestão compartilhada não foi capaz de garantir recursos para a empresa se fortalecer.

O cúmulo do abandono chegou em julho de 2017, com a migração digital das emissoras de TV de Recife. A nova empresa pública não se preparou para a transição e, sem recursos, quase ficou fora do ar na capital do estado. Sem aporte e planejamento, a solução imediata foi a transmissão do sinal pela TV da Assembleia de Pernambuco, que cedeu um subcanal para que a emissora não saísse do ar. De emergência, o legislativo local conseguiu aprovar R$ 4,2 milhões necessários para que a EPC criasse o parque de transmissão digital na capital.

A falta de compromisso do governo local reverbera na administração da empresa. O mandato dos membros da sociedade civil no Conselho de Administração da EPC venceu em 2016. Houve um processo de eleição para os novos indicados, mas até setembro de 2017 os eleitos não haviam sido empossados. Enquanto o orçamento da empresa em 2016 foi de apenas R$ 2,7 milhões, o governo do estado gastou mais de R$ 70 milhões com publicidade nos veículos comerciais.

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Em paralelo à construção da EPC, entidades da sociedade civil vem lutando para a concretização da rádio Frei Caneca FM. Depois de 56 anos de sua aprovação por lei, a rádio, vinculada à Prefeitura do Recife, iniciou sua operação de forma experimental em junho de 2016. Mas, desde então, a rádio opera apenas como uma “playlist”, tocando música 24 horas por dia. A rádio ganhou o ar, mas ainda sem nenhuma estrutura, orçamento, funcionários e, principalmente, a participação da sociedade.

Em Pernambuco, opera ainda a TVU em Recife, sendo a primeira TV Educativa do país, inaugurada em 1968, e as Rádios Universitárias FM e AM, operadas pela Universidade Federal de Pernambuco. A TV conseguiu sua migração para o digital dentro do prazo, mas o conjunto de veículos ainda carece de uma abertura à participação social na emissora. Em 2015, foi finalizada uma proposta de Conselho Curador para as emissoras da Universidade, o que, até o momento, não se concretizou.

Renato Feitosa, do Centro de Cultura Luiz Freire, eleito para o Conselho da EPC, afirma que os movimentos sociais têm uma década de acúmulo sobre as emissoras públicas da Empresa, com propostas e demandas construídas. “Mas o que não estamos conseguindo é pressionar os governos para que as coisas andem. O que se gasta em publicidade oficial poderia financiar as emissoras”, conclui.

Minas Gerais: mudanças afobadas

Minas Gerais também passou por transformações em suas emissoras públicas no último período. Em setembro de 2016, o governo do estado aprovou a criação da Empresa Mineira de Comunicação (EMC), mais uma inspirada na experiência da EBC. A nova empresa aglutinaria a Rádio Inconfidência, surgida em 1936, que era operada como empresa pública, e a Rede Minas de TV, criada em 1984, que era mantida pela Fundação TV Minas – Cultural e Educativa, que seria extinta.

A ideia da empresa pública surgiu na Assembleia Legislativa ainda em 2013, mas se viabilizou a partir da posse do governador Fernando Pimentel (PT), que aprovou no legislativo estadual um novo projeto. O resultado da nova legislação garantiu a criação de um Conselho Curador na empresa, mesmo sem determinar seu papel e como ele seria composto. A proposta sequer tocou em um tema tão necessário para emissoras públicas brasileiras, que são os instrumentos efetivos para garantir a autonomia financeira. O Comitê Mineiro do FNDC, durante o processo de aprovação da lei, questionou a falta de discussão sobre a nova empresa, sendo que o texto não contemplava pontos prioritários para o movimento, “como compromisso em fortalecer a autonomia da mídia pública, valorização da diversidade da produção regional e garantia de condições ótimas de trabalho”.

Dentro do projeto aprovado pelos deputados mineiros para a EMC, o movimento de comunicação conseguiu uma mudança importante para a construção de políticas de comunicação no estado, com uma nova normatização do Conselho Estadual de Comunicação, previsto na Constituição de Minas Gerais. O Conselho, que não funcionou em décadas, manteria sua composição original, com participação de representantes do governo, da EMC, da Assembleia, de sindicatos patronais e de trabalhadores e também de três cidadãos de ilibada reputação, mas agora com o objetivo de aprovar um Plano Estadual de Comunicação Social.

Passado o processo da criação da EMC, a extinção da Fundação TV Minas ainda não foi realizada. A pendência maior reside na concessão de TV educativa da emissora, que não se enquadraria dentro do escopo de uma empresa pública. Os servidores da fundação vivem um momento de indefinições, já que a legislação prevê a remoção dos mesmos para a Secretaria de Cultura e sua provável cessão para a EMC. Isso após anos de luta para que a fundação realizasse concurso público: a operação da TV Minas era feita de forma terceirizada por uma OSCIP.

Já a Rádio Inconfidência acabou fortalecida pela nova empresa, pois não havia nenhum instrumento de participação na rádio e o número de empregados já era muito reduzido. Romina Farcae, diretora da Associação dos Servidores Públicos da Rede Minas, reclama da falta de diálogo no processo de criação da nova empresa, não respeitando as distinções históricas entre as duas emissoras. “Houve uma luta de anos para a realização de concurso que desse autonomia para os servidores da TV e que foi ignorada. Não se pensou nos preceitos da fundação, que gere uma emissora educativa, enquanto a Rádio Inconfidência opera como uma emissora comercial, inclusive vendendo comercial. Essas singularidades foram desprezadas”, afirma.

Mas grande parte das promessas, um ano após a criação da nova EMC, não se concretizou. O destaque se deu para a inauguração da nova sede da Rádio Inconfidência e Rede Minas de TV, que passou a ocupar um espaço compartilhado também com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, com estrutura ampla e renovada. Mas até setembro de 2017, o Conselho da nova empresa pública não teve nenhum sinal de sair do papel. A falta de recurso continuou uma constante nos dois veículos. Com o impasse sobre a outorga educativa da TV, a solução para a extinção da Fundação caminha a passos lentos. O Conselho de Comunicação também seguiu sendo apenas um texto em uma lei aprovada, que após um ano continuou sem ser instalado.

Durante esse processo, ainda no final de 2016, a troca do comando da emissora gerou apreensão dos próprios movimentos sociais, temendo um redirecionamento editorial a uma linha mais próxima dos interesses do governo do estado. Em junho de 2017, o FNDC-MG criticou, em carta, a postura do governador Fernando Pimentel de não priorizar a emissora, alegando que os recursos para os veículos públicos foram de R$ 35 milhões, enquanto a despesa publicitária do governo chegou a quase R$ 100 milhões; além de cobrar a instalação do Conselho da EMC e do Conselho Estadual de Comunicação e a convocação de uma nova Conferência Estadual de Comunicação.

Em outubro de 2017, os trabalhadores da Rádio Inconfidência e da Rede Minas entraram conjuntamente em greve contra os baixos salários, os cortes de benefícios já concedidos e pela regularização das jornadas de jornalistas e radialistas. O movimento ainda criticou a falta de diálogo na implementação da EMC, além de apresentarem vários problemas nas instalações do edifício inaugurado para as emissoras, que, mesmo que novo, não garante ainda as condições de trabalho e funcionamento dos veículos.

A busca por um sistema público

O movimento iniciado de fortalecimento e expansão de uma comunicação pública autônoma, que privilegiasse a participação da sociedade e a independência dos governos e do mercado, encontra-se hoje em uma encruzilhada. Com a crise econômica e uma nova ascensão do neoliberalismo, as diversas iniciativas de comunicação pública sofrem diretamente o dilema político brasileiro.

A falta de uma regulamentação completa do artigo 223 da Constituição Federal, que delimitasse cada um dos três sistemas previstos – privado, estatal e público –, dificulta um reconhecimento objetivo da sociedade sobre as diferenças e as finalidades de cada um dos sistemas previstos. Impede, principalmente, a distinção do sistema público frente aos demais e sua interseção com o sistema estatal e o sistema privado associativo sem fins lucrativos – como rádios e TVs comunitárias. O momento de dificuldades da economia e o avanço de grupos conservadores neoliberais coloca em risco as experiências públicas de comunicação dos últimos 40 anos.

A situação de fragilidade em que a Empresa Brasil de Comunicação se encontra, com ataques contínuos à sua autonomia editorial, financeira e participativa, representa um retrocesso na construção de um sistema público robusto e relevante. Governos estaduais descompromissados também comprometem o projeto de comunicação pública, com garantia de independência editorial, autonomia financeira e uma real participação da sociedade na sua construção.

Em todo país, a distância dos recursos repassados em publicidade para os veículos privados e o investimento nas mídias públicas/estatais, mostram a dificuldade de avançar no fortalecimento de um sistema público. Ainda mais desregulamentado, principalmente após os ataques à legislação da EBC, as diversas experiências pelo país sofrem com a falta de autonomia que garanta sua relevância social, além da falta de compromisso com a participação direta da sociedade na própria gestão desse sistema.

*Gésio Passos é mestre em comunicação pela Universidade de Brasília, jornalista do quadro efetivo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), coordenador geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e associado ao Intervozes. Pesquisa temas ligados à comunicação pública, políticas de comunicação e história da mídia brasileira.

Direitos humanos e mídia no Brasil: desafios na era da convergência

Texto: Iara Moura

Em abril deste ano, a expulsão de um dos participantes do Big Brother Brasil, reality da Rede Globo, aqueceu o debate sobre violência contra a mulher e a responsabilidade da mídia no respeito e garantia dos direitos humanos. Durante várias semanas, milhares de telespectadores/as acompanharam ao vivo o desenrolar de uma situação de agressão que marcou o relacionamento abusivo entre Marcos Harter e sua parceira no programa. As cenas geraram indignação em telespectadoras e telespectadores que se manifestaram nas redes sociais exigindo a saída do agressor da casa. Pressionada pela sociedade, a emissora decidiu pela expulsão do participante, após uma intervenção da Polícia Federal.

Recentemente, o caso voltou à tona, quando Marcos, acompanhado de Yuri, outro ex-BBB também acusado de violência contra a mulher, foram anunciados como participantes do reality A Fazenda, desta vez da Record.

Marcos e Yuri dois ex-BBB acusados de violência contra a mulher
Marcos e Yuri dois ex-BBB acusados de violência contra a mulher

O episódio gerou debate dentro e fora das redes. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha para um caso de violência que se desenrolou num reality show foi um dos temas. A responsabilização da Rede Globo, que prolongou a convivência da vítima com agressor no BBB17, alimentando-se da audiência gerada pela suposta polêmica até que o ato chegasse à violência física, também. Em nota, a Rede Mulher e Mídia, que reúne entidades da sociedade civil, pediu a atuação do Ministério Público Federal no caso:

“Numa sociedade em que uma mulher é agredida a cada 5 minutos, aproveitar-se de uma situação de violência para acumular índices de audiência, até o ponto em que uma agressão física chega a ser praticada de fato, é, para nós, mais que omissão. É cumplicidade”, defendeu.

O caso descrito traz pistas importantes para compreender como a chamada mídia tradicional (rádio e TV) e as novas mídias (Internet) podem ser utilizadas para violar ou para promover direitos.

O novo e o velho coexistem

Se a reprodução de desigualdades e opressões na mídia não é propriamente algo novo, é certo que a popularização do uso da Internet e suas ferramentas tornou ainda mais complexa uma equação outrora caracterizada por posições estáticas no que diz respeito a quem emite e quem recebe a mensagem. A possibilidade de gerar conteúdos próprios e através deles criar narrativas, emitir opiniões, expressar ideias e questionar, inclusive, as mensagens transmitidas pelas poderosas empresas de radiodifusão é uma das aberturas propiciadas pela Internet.

A percepção dessa potencialidade da rede levou a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH/OEA a publicar uma declaração em 2011 ratificando que a liberdade de expressão, direito previsto no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, se aplica também à Internet. Em informe publicado em 2013, a Relatoria estabelece cinco princípios orientadores para a defesa deste direito na rede: o acesso universal, a não discriminação, o pluralismo, a diversidade e a neutralidade de rede.

Por outro lado, a defesa de tais princípios e do próprio funcionamento da rede em consonância com uma arquitetura aberta, horizontal e livre, como previsto no Marco Civil da Internet, esbarra na conclusão de que velhas opressões e violências se reproduzem no ambiente online e voltam a recair sobre a população mais vulnerável: crianças, mulheres, jovens, LGBTs e negros e negras.

“A Internet fez avançar muito os grupos historicamente excluídos e discrimininados, mas ela é também um campo muito aberto à violência, à discriminação e à homofobia”, destaca Carlos Magno, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersex (ABGLT).

Quando se fala da violência contra as mulheres, os casos de perseguição, disseminação não consentida de imagens íntimas (NCII), ameaça, assédio, violência psicológica, censura e falsificação de identidade vêm se multiplicando. O racismo também se espraia nas redes culminando, para além dos discursos de ódio, ameaças e injúrias, em ataques coordenados (trollagem) de derrubada de perfis e páginas. Também este ano, a artista negra Michele Mattiuzzi sentiu na pele o ódio de grupos neofascistas.

A escritora e performer liderava a fase final de um certame, o prêmio Pipa, quando assistiu ao terceiro colocado na votação popular ultrapassar vertiginosamente sua posição. A virada foi resultado de uma ação articulada para impedir que ela viesse a ser vencedora. Ao mesmo tempo em que os votos para o concorrente cresciam exponencialmente, a artista foi alvo de mensagens e manifestações racistas, misóginas e gordofóbicas em seu perfil pessoal do Facebook e em suas postagens que denunciavam a suspeita virada.

Outra vítima dos ataques cibernéticos foi a cantora Pablo Vittar. Em agosto último, a artista teve o seu canal no Youtube, com quase 3 milhões de seguidores, invadido por hackers que excluíram o seu videoclipe “K.O.”, incluíram uma fotografia do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e adicionaram três vídeos com letras ofensivas, associando a cantora à pedofilia.

Também no que diz respeito aos direitos das crianças em sua relação com a mídia, observa-se que algumas situações e problemas coexistem nos meios tradicionais e na Internet. É o caso, por exemplo, da busca por firmar classificação etária para as programações (ou para as aplicações, no caso da Internet) e de pensar limites aos apelos comerciais da propaganda direcionada a esse público nas programações das TVs e nos canais do Youtube. Dados levantados pela pesquisadora Luciana Bittencourt, da ESPM, demonstram que, dos 100 canais mais vistos do Youtube, 1/3 são de conteúdo infantil. A pesquisa TICs domicílios de 2015 apurou que 79% das crianças e adolescentes brasileiras de 9 a 17 anos estão conectadas (cerca de 23 milhões, contra 3,6 milhões que nunca acessaram a rede). Desses, 1,4 milhão declararam que se sentiram discriminados na rede ou sofreram alguma violência no ano da pesquisa.

Em 2016, o Supremo Tribunal Federal derrubou a vinculação à classificação indicativa nas emissoras de TV, fragilizando ainda mais o instrumento de proteção da infância em sua relação com a mídia. No mesmo ano, o MPF aceitou uma denúncia do Instituto Alana relacionada ao caso de 15 empresas que oferecem produtos às crianças para que elas anunciem para outras crianças. “No nosso entendimento a abusividade é das empresas. A criança que faz o meio de campo nessa prática está também na condição de dupla vulnerabilidade, sendo anunciante e estando exposta a esse tipo de mensagem”, explica Renato Godoy, assessor de Relações Governamentais do Instituto.

Neste cenário, é desafiador pensar a proteção e promoção de direitos humanos num contexto midiático onde convivem analógico e digital, online e offline, no qual novas práticas políticas, sociais e identitárias esbarram na ressaca de ondas reacionárias.

Enquanto isso, na TV

Segundo dados da “Pesquisa Brasileira de Mídia 2016”, divulgada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência, quase 90% dos/as brasileiros/as se informam pela televisão sobre o que acontece no país, sendo que 63% têm na TV o principal meio de informação. A internet está em segundo lugar, como meio preferido de 26% dos entrevistados e citada como uma das duas principais fontes de informação por 49%.

Embora a TV aberta lidere com bastante folga os índices de penetração, o aumento do alcance do acesso às tecnologias de streaming, de vídeo sob demanda (VOD) e da própria TV por assinatura há algum tempo tiraram os produtores de conteúdo e radiodifusores da zona de conforto. As redes de TV erigidas sob poderosos monopólios nacionais vêm correndo atrás do prejuízo com a produção de conteúdo online e até com mudanças nas narrativas, com tramas mais rápidas e outras características próprias das séries estrangeiras, por exemplo.

Porém, a esse esforço de acompanhar os novos tempos, somam-se velhas formas de disputa de audiência, marcadas por opções estéticas e políticas de exploração da violência, apelos sensacionalistas, erotização precoce, manipulação político-religiosa, dentre outras estratégias que culminam na violação de direitos.

O caso dos programas policialescos é destaque nesse cenário. Em 2015, um monitoramento da Rede Andi em parceria com o Intervozes assistiu a 28 destes programas durante 30 dias e revelou a ocorrência de 4,5 mil violações de direitos e 15.761 infrações a leis brasileiras e a acordos multilaterais ratificados pelo Brasil. As violações mais comuns identificadas foram: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime, à violência e à desobediência às leis ou às decisões judiciais; exposição indevida de pessoas e famílias; discurso de ódio e preconceito; identificação de adolescente em conflito com a lei e violação do direito ao silêncio, tortura psicológica e tratamento degradante.

De lá para cá pouco mudou o cenário. Uma busca rápida no conteúdo disponibilizado online pelo programa Cidade Alerta RJ, por exemplo, exibido pela Record, é reveladora da exploração da violência contra a mulher. Somente no dia 19/09/2017, das 10 reportagens destaques no site do programa, três tratavam deste tipo de crime. Nas três, os detalhes das ocorrências são acompanhados da exposição de vítimas, parentes e acusados por meio de fotos e entrevistas. Em uma delas, é veiculado o vídeo do momento em que uma das vítimas é agredida a facadas. Apresentadores, repórteres e entrevistados/as levantam hipóteses sobre a motivação dos crimes: “a gravidez teria motivado”, “ele encontrou fotos íntimas dela mantendo relações sexuais com outro cara”, “segundo testemunhas, o homem não aceitava o fim do relacionamento”. Não há em nenhum momento referência à Lei Maria da Penha.

Neste contexto, o assassinato da jovem musicista Mayara Amaral, em julho deste ano, trouxe à tona o debate sobre o enquadramento da violência contra a mulher pela mídia. Inicialmente, os acusados de matarem a vítima a marteladas e depois carbonizar o corpo foram enquadrados no crime de latrocínio. Depois, a defesa alegou o uso de drogas por parte de um dos suspeitos. Em post no Facebook, a irmã da vítima defendeu a tese de feminicídio e criticou as narrativas veiculadas pela mídia:

“Quando escrevem que Mayara era a ‘mulher achada carbonizada’ que foi ensaiar com a banda, ela está em uma foto como uma menina. Quando a suspeita envolvia ‘namorado’, hiper-sexualizam a imagem dela. Quando a notícia fala que a cena do crime é um motel, minha irmã aparece vulnerável, molhada na praia. Quando falam da inspiração de Mayara, associam-na com a história do pai e avô e a foto muda: é ela com o violão, porém com sua face cortada. Esse tipo de tratamento não representa quem minha irmã foi. Isso é desumanização”, defende. Diante da polêmica, o Cidade Alerta MS, no programa que foi ao ar em 31/07/2017, chegou a convidar um advogado criminalista para explicar no estúdio a diferença entre as tipificações e penas de feminicídio e latrocínio.

Não obstante este aumento de visibilidade que se dá quando da ocorrência de crimes bárbaros com o de Mayara, de Eloá e de tantas outros que tiveram forte apelo midiático, a violência contra a mulher é explorada de maneira recorrente não só nos programas policialescos, mas em outras programações da TV aberta. Como relatamos no início deste texto, é também usada como instrumento para gerar polêmica e atrair audiência nos realities shows. E, nestes programas, as violações não se restringem aos direitos das mulheres.

Em A Casa, também da TV Record, exibido em julho deste ano, há uma competição entre 100 participantes que são colocados numa casa de 120 metros quadrados, com infraestrutura e espaço para uma família de quatro pessoas e que devem sobreviver em condições degradantes e humilhantes, como falta de lugar para dormir, comida escassa e ausência de condições mínimas de higiene. Por conta disso, o reality foi denunciado ao Ministério Público e, de acordo com o colunista da UOL Maurício Stycer, um dos participantes teve um surto e ameaçou se matar, após ser afastado por ter contraído conjuntivite.

Os humorísticos também fazem uso recorrente da banalização da violência em busca de atrair audiência. Os ataques recorrentes do humorista Danilo Gentili, atualmente à frente do The Noite, exibido pelo SBT, à deputada Maria do Rosário (PT/RS) são exemplares disso. Num dos mais recentes, em maio deste ano, o apresentador publicou um vídeo em sua página pessoal do Facebook no qual ofende a parlamentar e rasga uma notificação da Procuradoria Parlamentar que o avisava de uma denúncia de difamação aberta por Maria do Rosário. No vídeo, Gentili esconde a primeira e a última sílaba da palavra deputada, deixando visível a inscrição “puta”. Após isso, rasga a intimação e coloca os pedaços dentro da calça. Embora a acusação de Rosário refira-se a ofensas e injúrias feitas pelo apresentador em suas contas pessoais no Twitter e no Facebook, o apresentador já utilizou de seu expediente na TV aberta para debochar de violência sexual contra a mulher e fazer apologia a violações de direitos e desrespeito às leis.

Diante desta situação, vale questionar: quais as diferenças no tratamento e nas respostas às violações de direitos cometidas por emissoras de rádio e TV daquelas praticadas no ambiente online?

Diferente funcionamento, diferente regulação

Como visto, em sua busca incansável por audiência e lucro, as emissoras não têm tido uma atitude ativa no sentido de prevenir e combater violações de direitos humanos. E tal atitude não seria um favor ou uma ação de caridade cristã por parte das empresas: é previsão que consta na Constituição Federal e em diversos pactos e tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A própria Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, estabelece como tipos de violência contra a mulher a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. E determina, em seu artigo 8º, inciso III, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.

O problema é que o Brasil não conta com um órgão autônomo que faça o papel de fiscalizar essas situações. Com uma atuação frágil e pouco efetiva, cabe ao Ministério das Comunicações, hoje fundido no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), tal responsabilidade. Experiências de outros países mostram que caminhos diferentes são possíveis.

Em 2012, a Argentina criou a Defensoria do Público, órgão de Estado independente com prerrogativas de fiscalizar os canais de rádio e TV e propor políticas públicas na promoção e defesa do direito à comunicação e à liberdade de expressão no país.

Na França, em 2011, o Conselho Superior do Audiovisual (CSA), após realizar dezenas de audiências públicas sobre os reality shows, lançou um documento com recomendações às emissoras relacionadas à proteção dos direitos humanos.

O documento solicita aos produtores dos programas cuidados na seleção dos/as participantes que incluam acompanhamento médico e psicológico antes, durante e depois do programa; encoraja a identificação da faixa etária indicada; lembra que, qualquer que seja o conceito do reality, os/as participantes não deverão ser colocados em situações degradantes ou que os/as levem a adotar ou se submeter a atitudes humilhantes; e pede que os contratos com os/as participantes fiquem sujeitos à análise do CSA nas questões de sua competência.

Além disso, orienta que “os produtores e diretores reflitam sobre a sua responsabilidade social e ética em relação aos valores veiculados nos reality shows, susceptíveis de serem assistidos pelo público jovem qualquer que seja a faixa etária definida, e que podem encontrar eco particularmente forte na Internet, notadamente nos espaços comunitários (fóruns, blogs, redes sociais…) onde os conteúdos são menos regulados”.

A preocupação do órgão francês com o fato dos conteúdos transmitidos pelas redes de TV encontrarem eco também nas redes sociais aponta outro desafio que há que se ter em vista. Por ter um funcionamento diferente, a regulação da Internet também se dá de maneiras díspares da regulação dos meios tradicionais. Sendo assim, as respostas cabíveis ao Estado, às empresas, ao Judiciário e à sociedade civil, também.

A afirmativa de que os conteúdos são menos regulados na rede diz da dificuldade de se identificar e circunscrever responsabilidades num cenário de multi produtores e de atualização em tempo real. Quando se trata de uma rede de TV, concessão pública, com transmissão de conteúdo para milhares de pessoas ao mesmo tempo, é mais fácil identificar a autoria e sentido das violações. O que, por outro lado, não necessariamente resulta em ações efetivas por parte do Estado ou das empresas, como já apontado.

Pensando o problema da violência contra a mulher na Internet, Thandara Santos, da Marcha Mundial das Mulheres, traz uma reflexão interessante para se pensar a conexão entre os mundos online e offline na reprodução do machismo e as formas de combatê-lo. Para ela, é fundamental entender a Internet como um espaço importante de articulação das mulheres, como nos casos da mobilização gerados em torno das hashtags #MeuPrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e #NiUnaMenos. Ao mesmo tempo, a ativista alerta para urgência de se construir formas de enfrentamento às violências de gênero online.

“Um primeiro alerta é não ficar preso aos episódios da violência da mulher na rede e entender o debate de uma forma mais complexa. Entender violência contra a mulher de uma forma estruturante diz respeito à maneira como esse sistema capitalista está engendrado também nas redes. Se a gente fica preso em alguns casos, a gente pode acabar comprando a ideia de que a resposta é o aumento do controle sobre a Internet, o aumento da interferência do capital sobre essa rede e sobre a neutralidade da rede”, explica.

Violência de gênero online

A cientista social e fotógrafa Manu Justo teve, em setembro deste ano, uma postagem censurada no Facebook. O post tratava-se de um convite para a exposição Puta Que Pariu, projeto que reúne autorretratos de mulheres mães e explora a relação entre gênero e sexualidade. A foto era a imagem de uma vagina com uma breve descrição e convite. Ao postar, ela recebeu uma mensagem que justificava a remoção do conteúdo por não seguir os “padrões da comunidade Facebook”.

Convite para a exposição Puta Que Pariu censurado pelo Facebook
Convite para a exposição Puta Que Pariu censurado pelo Facebook

Como este, são recorrentes os casos de censura a imagens de mulheres amamentando ou de peito de fora durante manifestações políticas. Em 2015, a censura a uma foto de uma indígena que faz parte do acervo do Ministério da Cultura chamou atenção para a prática e gerou questionamentos quanto aos parâmetros estabelecidos pela plataforma e os limites colocados à liberdade de expressão. Neste sentido, a falta de transparência das políticas da plataforma e do próprio funcionamento dos algoritmos é algo central.

As violações de direitos no ambiente online, porém, estão longe de ficar a cargo apenas das plataformas. As velhas conhecidas práticas de invasão, hackeamento, vazamento de dados pessoais, roubo de identidade, criação de perfis fakes, ameaças de violência física, estupro, assédio, perseguição e ameaça às mulheres, por parte de parceiros ou ex-parceiros, ou de grupos LGBTfóbicos, racistas e machistas, se reproduzem no ambiente online e ganham graves contornos.

Num dos casos mais recentes e notórios, a justiça do Piauí determinou, em agosto de 2017, a prisão provisória por 30 dias de um homem acusado do crime de “estupro virtual”. Segundo a ação, o acusado vinha exigindo que sua ex-namorada se masturbasse e lhe enviasse fotos e vídeos do ato, sob ameaça de divulgar imagens dela nua nas redes sociais (“sextorsion”).

A inovação jurídica consiste no fato de que, embora não exista o tipo “estupro virtual” no Código Penal brasileiro, o acusado foi enquadrado com base no artigo 213, que prevê a condenação de quem obriga alguém a praticar qualquer tipo de ação de cunho sexual contra sua vontade, sob ameaça ou uso de violência.

Pensando neste cenário, Patricia Cornils, da Actantes, aponta a necessidade de que as mulheres se empoderem das ferramentas que as novas mídias possibilitam e das estratégias de autoproteção como forma também de contrapor-se às violências e proteger a rede do controle abusivo por parte das corporações e do Estado.

Mariana Valente, do InternetLab, defende a busca por soluções conjuntas do Estado, da sociedade civil e das empresas e aponta caminhos possíveis para além da criminalização. “Em 2017, a gente já sabe que a nossa vida e a Internet estão muito misturadas. A gente sabe que ela tem servido tanto pra ativismo quanto pra prática de violência contra grupos subalternizados. Isso mostra que a gente tem que sentar na mesma mesa e procurar soluções em novos termos. Primeiro em multicamadas e depois pensar um pouco fora da caixinha. Por que não pensar em comissões multissetoriais pra lidar com a questão de censura e violência na Internet? Isso é uma coisa que a Nova Zelândia está fazendo”, aponta.

Estas são algumas propostas apontadas pela Associação para o Progresso das Comunicações (APC), rede internacional que reúne entidades da sociedade civil que atuam no tema. Na publicação, resultado de um encontro internacional, são listados 15 Princípios para uma Internet Feminista que vão desde a garantia do direito ao acesso, o combate à violência online e a importância de manter preservada a privacidade, até o anonimato e a proteção de crianças e adolescentes.

Desafios entre o online e o offline

Em 2018, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos de existência. Junto dela, a concepção de que seres humanos são dotados de direitos inalienáveis, interdependentes e indivisíveis vem trilhando um caminho de consolidação que alterna períodos de refluxos e de ascendência.

No que tange à Internet, o Brasil precisa enfrentar, a um só tempo, o desafio de defender o caráter livre, aberto e plural e garantir a proteção aos direitos humanos na rede, e paralelamente correr atrás da dívida histórica que relegou metade da população a uma vida offline, no que se refere aos índices de acesso domiciliar.

Neste sentido, ficam as questões: como garantir a universalização do acesso num contexto em que a lógica de mercado se impõe, privilegiando regiões e parcelas da sociedade com maior poder aquisitivo? Como cobrar das plataformas maior transparência quanto às suas políticas de conteúdo, de privacidade e o funcionamento dos algoritmos? Como garantir espaços de participação e decisão multissetorial na governança da Internet (e contrapor-se aos ataques ao Conselho Gestor da Internet)? Como buscar respostas mais rápidas e eficazes às vítimas de violência online sem, necessariamente, recorrer à criminalização?

Enquanto os usos da Internet impõem alguns novos desafios como os dispostos, na radiodifusão persistem as questões conhecidas e enfrentadas desde o início deste século: como inverter a lógica dos grandes monopólios, centrados no lucro e na busca pela audiência a qualquer custo? Como aumentar a diversidade e pluralidade neste contexto? Como garantir uma participação da sociedade civil em todas as etapas do circuito, passando pela produção, recepção e consumo? Que papel cabe ao Estado na fiscalização e promoção dos direitos quando falamos de concessões públicas, como é o caso do rádio e da TV?

No Brasil atual, assiste-se a um período de crise político-econômica marcado pelo retrocesso na garantia e proteção de direitos, compreendidos em seu sentido mais amplo, abarcando os Direitos Humanos Econômicos Sociais, Culturais e Ambientais (Dhescas). Tal cenário tem reverberações profundas na vida cotidiana de mulheres, indígenas, LGBTs, crianças, jovens, negros e negras, defensores e defensoras de direitos humanos. O agravamento das condições materiais de existência, o aumento da violência contra a mulher, LGBTs, comunidades tradicionais e os ataques aos direitos civis são algumas delas.

O aumento exponencial no número de mortos nas favelas e periferias, nos presídios e as chacinas no campo também é revelador desta situação. Neste sentido, outro episódio paradigmático da relação entre mídia e direitos humanos foi o brutal ataque desferido contra os índios Gamela, na localidade de Viana, interior do Maranhão, em maio deste ano. A barbárie que resultou em pelo menos 13 indígenas gravemente feridos (com golpes de facas e membros decepados) foi antecedida por uma verdadeira campanha levada a cabo pela rádio local, conclamando e justificando a violência contra as vítimas.

No programa, que foi ao ar dois dias antes do fato, transmitido pela Rádio Maracu, ouve-se por diversas vezes: “dizem que são índios”, “arruaceiros”, “pseudo-índios” e “precisamos acabar com isso”, “não vamos tolerar”. São 41 minutos onde se sucedem no microfone políticos locais que, a despeito do que coloca a Constituição Federal, são sócios proprietários do grupo que detém a rádio. Destaca-se a fala do deputado federal Aluísio Mendes (PTN-MA), também reproduzindo discurso preconceituoso e de incitação à violência.

A partir desta imagem, pensar a proteção de direitos em sua relação com a mídia no Brasil é pensar desafios que se desenrolam não só no âmbito dos meios tradicionais ou das novas mídias, mas também dizem respeito a processos econômicos, sociais e políticos amplos que reproduzem desigualdades e violências em várias camadas da vida e, por isso mesmo, necessitam ser enfrentados de maneira estrutural.

2017: privatização e exclusão de direitos do mapa das telecomunicações

Reportagem: Helena Martins

Há vinte anos, o Congresso Nacional aprovava a Emenda Constitucional que inseriu a possibilidade de reeleição do Presidente da República no sistema político brasileiro. No documentário Arquitetos do Poder, que trata da relação entre mídia e política, esse momento é retratado com a seguinte cena: o então deputado Michel Temer, líder do PMDB à época, sai de uma sala, empolgado, comemorando o feito. Em troca, Temer ganharia todo o apoio do presidente Fernando Henrique Cardoso e da máquina do Executivo para ser eleito presidente da Câmara.

A aprovação de tal emenda foi viabilizada com ampla compra de votos e o compromisso de que o patrimônio público seria entregue à iniciativa privada. Como parte disso, FHC efetivou a privatização das telecomunicações. A Telebras foi fatiada e vendida para diversas empresas, que, com gestos pouco nobres, em troca aportaram recursos para a reeleição de FHC. A “maior privatização do planeta”, conforme noticiou até mesmo O Globo à época, arrecadou R$ 22 bilhões.

Michel Temer e Gilberto Kassab - Foto: Beto Barata/PR
Michel Temer e Gilberto Kassab – Foto: Beto Barata/PR

Muitos desses personagens estão novamente em cena, aplicando o programa neoliberal de defesa da suposta redução do Estado e de favorecimento do mercado. No caso das telecomunicações, o golpe parlamentar que levou o mesmo Michel Temer ao poder acelerou o processo de maximização do Estado no que tange ao atendimento dos interesses privados e a eliminação da perspectiva cidadã e de direitos em um setor que, mais até do que há vinte anos, é estratégico para a continuidade da acumulação do capital. Isso porque as redes de telecomunicações concretizam a conexão de partes do globo, necessária à financeirização e à descentralização da produção, com a manutenção do controle nos países do centro capitalista, ao passo que sustentam toda uma nova gama de produtos e serviços digitais, cuja exploração interessa ao mercado.

Riscando o interesse público do mapa

Muitos ataques ao interesse público nas telecomunicações foram proferidos no último ano. A expressão mais completa do plano está no Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 79/2016, que propõe alterações drásticas na Lei Geral das Telecomunicações (LGT), que organiza o setor desde 1997. O projeto propõe a adaptação da modalidade de outorga de serviço de telefonia fixa de concessão para autorização, bem como a entrega de um patrimônio bilionário para as empresas. Os defensores da proposta alegam que, em troca, as operadoras vão investir valor equivalente ao que receberão de presente na expansão da rede de banda larga. O projeto, contudo, não detalha como essa contrapartida será efetivada.

Embora mude substancialmente o setor, a proposta passou pela Câmara dos Deputados de forma sorrateira, sem sequer ser debatida em plenário. O mesmo ocorreu no Senado, onde não passou nem pelas comissões técnicas vinculadas à matéria. Os senadores não puderam nem utilizar todo o prazo regimental para apresentar emendas. Sem debate com o conjunto dos parlamentares, muito menos com a sociedade, o projeto foi aprovado e remetido à sanção presidencial.

A questão foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), a partir de mandado de segurança impetrado por 13 senadores das bancadas do PT, PSB, PDT, PMDB e PC do B, que reivindicaram a análise de recursos que pediam que o plenário do Senado debatesse o tema. A liminar foi deferida pelo ministro Roberto Barroso, que impediu que o projeto fosse remetido novamente à sanção presidencial até o julgamento final das ações. A situação segue indefinida, e o Senado aguarda uma decisão final do STF, cujo relator do caso é o ministro Alexandre de Moraes.

Na prática, os efeitos do PLC 79 levarão à extinção do regime público no setor, acabando com obrigações impostas pela lei às empresas, que teriam, assim, mais liberdade para atuar exclusivamente em busca de lucros. De acordo com LGT, a exploração das telecomunicações está organizada em dois regimes: o público e o privado. As operadoras que prestam serviços em regime público recebem uma concessão e são submetidas a uma série de normas, como atendimento de metas de universalização, continuidade na oferta e controle dos valores das tarifas cobradas dos usuários. Já aquelas que funcionam no regime privado não têm essas mesmas obrigações, recebendo apenas uma autorização para que possam operar. Enquanto o artigo 65 da LGT estabelece que “não serão deixadas à exploração apenas em regime privado as modalidades de serviço de interesse coletivo que, sendo essenciais, estejam sujeitas a deveres de universalização”, o PLC 79 diz exatamente o contrário: que a exploração dos serviços essenciais ocorrerá “apenas em regime privado”.

Universalização do acesso à internet ficará comprometida

O fato de apenas a telefonia fixa ser prestada em regime público, segundo a LGT, fez com que houvesse grande crescimento desse serviço no País. Essa expansão foi pautada pelo Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado no Regime Público (PGMU), que tornou obrigatória a garantia de linhas telefônicas fixas em localidades com mais de 300 habitantes e fixou prazos para atendimentos de pedidos individuais e instalação de orelhões. Não à toa, pequenas localidades passaram a contar com um equipamento de telefone público. De acordo com o PGMU, as operadoras só poderiam atuar em outras localidades, além da região originalmente definida pela concessão, caso atendessem essas metas.

Os planos de universalização foram atualizados posteriormente, em 2003 e 2011, fixando novas obrigações para que o serviço se tornasse, de fato, acessível à população. Assim, as empresas Oi, Vivo e Claro, bem como a Sercomtel e a Companhia de Telecomunicações do Brasil Central (CTBC) que receberam concessões de telefonia fixa, têm se mantido, ao longo de todo esse tempo, atreladas a obrigações que, muitas vezes, contrariam os interesses comerciais.

Sem essas obrigações, dificilmente a população ribeirinha, por exemplo, terá acesso à rede de telecomunicações, afinal as empresas estão mais interessadas em investir em áreas lucrativas, como a capital paulista. Por isso, em vez de eliminar o regime público, é preciso ampliar a sua abrangência, incluindo nele a implantação de infraestrutura em redes de fibra ótica, já que o acesso à internet é considerado “essencial ao exercício da cidadania”, conforme fixa o Marco Civil da Internet. É isso que articulações da sociedade civil defendem, como a Campanha Banda Larga é um Direito Seu!, que apoia a proposta daquele artigo 65 da LGT. E é isso que o PLC 79 quer inviabilizar.

Diante da possibilidade de uma canetada riscar o interesse público do mapa das telecomunicações, mais de trinta organizações da sociedade civil, articuladas em torno da Coalizão Direitos na Rede, mobilizaram-se para denunciar os ataques e as manobras em torno do PLC 79. Em nota pública, elas destacaram que “é direito da população brasileira aprofundar as discussões sobre Projeto 79/2016 e suas consequências para o uso da infraestrutura de telecom do país e para as políticas de universalização de serviços essenciais como o acesso à internet no Brasil”.

Projeto propõe um presente para as teles: R$ 100 bilhões

Após a quebra do monopólio estatal, a Lei Geral de Telecomunicações determinou que os grupos que recebessem uma concessão ficariam obrigados a devolver ao Estado, após o término dos contratos, os bens públicos que seriam transferidos a eles para que pudessem prestar o serviço. Esses são os chamados bens reversíveis, que incluem, entre outros itens patrimoniais, prédios, antenas e cabos. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), a soma de todo esse patrimônio deve ultrapassar R$ 100 bilhões.

Com o PLC 79, as teles poderão ganhar de presente boa parte desses recursos, para investir em suas próprias redes e levar banda larga para onde bem entenderem. O projeto ainda prevê a redução do valor total dos bens devido pelas companhias à União, já que defende que sejam levados em consideração apenas os “ativos essenciais e efetivamente empregados na prestação do serviço concedido”, e não a totalidade do que foi emprestado no momento da outorga.

A drástica redução da dívida das operadoras frente à União que o projeto viabilizará foi apontada na Nota Informativa da Consultoria do Senado que analisou o PLC, bem como em parecer do Ministério Público Federal (MPF) sobre ele. Já o Ministério da Fazenda argumenta que a devolução dos bens foi prevista porque garantiria que o Estado tivesse condições de prestar o serviço, caso a iniciativa privada não se interessasse por ele. Como isso não ocorreu, o Ministério sustenta, em nota técnica, que “os bens reversíveis podem ser integralizados pelas empresas que podem investir mais na expansão da oferta de redes, o que viabilizará uma nova onda de investimentos no setor”. Ocorre que é difícil saber o que é ou não essencial, e não há mecanismos que definam como ocorrerá esse investimento.

Além disso, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) não tem sequer o controle desses bens. A situação foi atestada por auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), que destacou que o “processo de fiscalização da Anatel não garante a fidedignidade e a atualidade dos bens reversíveis”. O problema pode ser ainda maior. Reportagem da CartaCapital mostrou que muitas operadoras já venderam, de forma irregular, parte do patrimônio recebido. Investigando processos internos da agência e documentos do TCU, o repórter André Barrocal revelou que a Oi, operadora que possuía cerca de R$ 51,9 bilhões em bens, teve redução de R$ 10,5 bilhões do total desse patrimônio, apenas entre 2011 e 2013. Em anos anteriores, entre 2002 e 2007, 1.026.311 itens foram vendidos, de acordo com análise do TCU divulgada pela revista.

Segundo a CartaCapital, Brasil Telecom, Claro e Telefônica também venderam bens públicos de forma irregular, ainda que em quantidade bem menor do que a surrupiada pela Oi. As regras brasileiras estabelecem que a alienação desse patrimônio só poderia ocorrer após análise e autorização da agência reguladora, e os recursos arrecadados teriam que ser usados na prestação do serviço de telefonia fixa. Para facilitar a vida dos grupos empresariais, a Anatel passou recentemente a permitir essas vendas, sem anuência prévia, em transações de até R$ 750 mil.

Tentando amenizar a gravidade do problema, defensores da entrega dos bens para as empresas costumam argumentar que as redes de cabos de cobre que foram utilizadas para levar a telefonia fixa a praticamente todo o país estão obsoletas e, por isso, têm pouco valor. O que eles deixam de apresentar ao público são soluções tecnológicas que permitem o provimento de banda larga, inclusive em alta velocidade, por esses fios, como a tecnologia GFAST. O argumento também desconsidera que, embora o número de telefones fixos esteja caindo, esse serviço ainda é essencial especialmente em localidades desprovidas de outras formas de comunicação, exatamente porque não interessam às empresas privadas.

Oligopólio ad infinitum

O projeto também propõe medidas para manter a já alarmante concentração do mercado de telecomunicações do Brasil, que hoje é dominado por apenas quatro grandes operadoras, como mostra a tabela abaixo. Não é preciso ir muito longe para saber o que isso significa na nossa vida: ao tentar contratar serviços como telefonia ou Internet, é fácil perceber a falta de oferta e a pouca diversificação de pacotes e valores. Em regiões menos atrativas, sejam as zonas rurais ou mesmo as áreas periféricas das grandes cidades, é comum que os usuários tenham como opção apenas uma ou duas operadoras.

Na tabela, foram agregados os dados de empresas autorizadas e concessionárias da telefonia fixa. Embora possuam obrigações distintas em relação à universalização dos serviços, tarifas e outras questões, o que o quadro busca evidenciar é o controle do mercado por poucas operadoras. A Anatel não incluiu, no relatório de abril de 2017, a especificação dos dados de serviços pré e pós-pago, mas a diferenciação foi feita pela Teleco.

SERVIÇO(abril/2017) CLARO TELEFÔNICA/VIVO OI TIM
Telefonia Fixa 26,4% 23% 34% 1,27%
Telefonia Móvel pré-paga 25,80% 24,78% 20,35% 28,44%
Telefonia Móvel pós-paga 22,94% 42,11% 11,41% 19,09%
TV paga 51,3% 8,84% 7,3% _
Banda Larga Fixa 31,4% 27,6% 23,5% 1,3%
Banda Larga Móvel 27,67% 29,11% 16,05% 25,10%

Síntese da concorrência no setor de telecomunicações.
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados da Anatel e da Teleco de abril de 2017

O PLC 79 busca garantir que o controle do setor das telecomunicações permaneça nas mãos das poucas e mesmas empresas – as quais, à exceção da Oi, pertencem ao capital transnacional. Hoje, o prazo das concessões é de vinte anos, prorrogável uma vez por igual período. O projeto elimina a quantidade possível de prorrogações. Ele também abre espaço para negociações de autorizações entre os grupos, pois permite que uma empresa transfira para a outra a licença, sem passar por licitação, bastando apenas a anuência da amigável Anatel. A análise da Consultoria do Senado apontou que a alteração pode criar um “mercado privado concentrado de revenda de autorizações”.

Pela proposta, essa negociação entre entes privados pode ocorrer no caso dos serviços autorizados e até dos satélites, cujo contrato de exploração atual é de quinze anos, prorrogável pelo mesmo período. Para tanto, o PLC elimina os limites de prorrogação e revoga o parágrafo da LGT que prevê a realização de licitação em casos de transferência. Tendo em vista a escassez desses recursos, o MPF alerta que as mudanças “têm potencial de criar poder de monopólio em favor das empresas autorizadas a explorar faixas de radiofrequência e o satélite brasileiro, gerando barreiras ao incremento da competição nos serviços de telecomunicações”.

Recém-construído com recurso público, satélite poderá ser privatizado

No Brasil, 58% da população usam a internet, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2015. Detalhando esse quadro, notamos um abismo digital: enquanto 95% dos entrevistados da classe A haviam utilizado a rede menos de três meses antes da pesquisa, a proporção cai para 82% para a classe B; 57% para a C, e 28% para a D e E. Sendo tratado como mercadoria, o acesso à rede permanecerá restrito a quem tiver condições de pagar por ele, aprofundando a desigualdade, com suas marcas de gênero, classe e raça, pois os grupos oprimidos são os mesmos que permanecem excluídos da rede.

Lançamento do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas - Foto: Beto Barata/PR
Lançamento do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas – Foto: Beto Barata/PR

Para garantir a universalização da banda larga, é preciso maior regulação estatal, adoção de políticas públicas e subsídios que sejam revertidos em obrigações condizentes das empresas. Essa foi a compreensão seguida pelos países que conseguiram êxito na universalização, conforme mostra pesquisa realizada pelo Intervozes em 2012. Na Finlândia, França, Coreia do Sul, Japão e em outras nações, o acesso à banda larga se deu com a atuação do Estado como agente impulsionador fundamental.

No Brasil, o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), lançado em 2010, estabeleceu medidas para a massificação do acesso. Relacionada com essa política, no ano seguinte foi anunciada a construção do primeiro satélite geoestacionário brasileiro de uso militar e civil, o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC). Por meio do satélite, a banda larga poderia ser levada a áreas remotas. Dado o caráter público da iniciativa, o direito de exploração do SGDC foi repassado pela Anatel, sem licitação prévia, à Telebras. A estatal pagou apenas R$ 2 milhões.

Ao todo, a construção do satélite custou R$ 2,7 bilhões do orçamento público. Um investimento vultoso que deveria servir para levar banda larga por um preço acessível às escolas, postos de saúde, hospitais e outras instituições, especialmente na região amazônica, dado o alcance dessa tecnologia.

Mas a história se repete como farsa: assim como ocorreu com as redes de telecomunicações, o investimento do Estado poderá ser usufruído pela iniciativa privada. Em fevereiro, a Telebras anunciou que privatizaria a maior parte da capacidade do satélite, sem ao menos estabelecer um preço mínimo para cada lote. As vencedoras do leilão também não serão submetidas a metas de universalização ou controle de preços.

Para se ter ideia do fosso entre recursos investidos e quantia que deverá ser arrecadada com a venda, vale ter em vista os valores pagos pelas empresas no leilão de direitos de exploração de satélites, realizado em 2015. Segundo a própria Anatel, o preço mínimo de referência pelo direito de exploração foi de R$ 27.094.271,64 por lote. Tendo em vista a entrega do patrimônio público e o desvirtuamento do propósito do SGDC, parlamentares e organizações da sociedade civil entregaram representação ao Ministério Público Federal (MPF) e ao TCU.

“As empresas vencedoras terão total liberdade para se valerem do satélite exclusivamente com a intenção de satisfazer seus próprios interesses privados, sem qualquer exigência de contrapartida em benefício da população como um todo”, diz o texto da representação, que lembra que havia a expectativa de o satélite prover banda larga para mais de sessenta mil escolas rurais. O documento também aponta que a ausência de um preço mínimo pelo lote consiste em uma ilegalidade, pois a lei que regulamenta as licitações e contratos da administração pública (Lei nº. 8.666/93) condiciona o procedimento licitatório à existência de “orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os custos unitários”.

Instado a analisar a proposta elaborada pela Telebras, o TCU confirmou o óbvio: desvirtuamento do uso civil do satélite e possível dano ao erário. As pressões levaram a seguidos adiamentos do leilão, bem como a mudanças na proposta inicial de privatização. No primeiro plano de negócios divulgado pela estatal, apenas 20% da capacidade civil do satélite seria destinada a atender diretamente as demandas sociais de interesse público. Isso seria feito por meio da Telebras, que manteria em sua posse apenas o menor lote, de 11 Gbps.

Em julho, a estatal anunciou novo plano, fixando que seria cedido à iniciativa privada dois e não mais quatro lotes, o que ainda significa que será privatizada mais da metade (57%) da capacidade civil do satélite brasileiro. A fim de garantir minimamente que as empresas ofertem de fato o serviço, determinou que elas devessem ocupar 25% da capacidade de cada feixe em três anos, sob pena de ter que devolvê-los para uso da Telebras. A nova proposta segue sem fazer menção à exigência de atendimento aos serviços públicos. A fatia que caberá à estatal também segue sendo a com menor capacidade (21%, enquanto as duas que serão vendidas têm 35% e 22%). A entrega a preço de banana desse patrimônio público está prevista para o dia 27 de setembro.

Sem mudança na lei, Anatel dá um “jeitinho” de beneficiar as teles

Diante do breque nas manobras para mudar a LGT, a Anatel resolveu simplesmente desconsiderar as regras e beneficiar as teles diretamente, enquanto aguarda a aprovação do PLC 79. Para tanto, tentou estabelecer mudanças nos próprios contratos já firmados com as empresas, cuja revisão está pendente desde o fim de 2015. Como as regras não foram alteradas pelo Congresso, a revisão e os acordos deveriam ter como base a legislação atual.

No entanto, em maio deste ano, a agência reguladora anunciou que assinaria a renovação dos contratos com as operadoras, à revelia até da análise do cumprimento do PGMU por parte de seu Conselho Consultivo. A Anatel já vinha esvaziando o Conselho, que conta com a participação da sociedade civil, além dos representantes do governo e das empresas, atrasando a nomeação dos seus membros, o que inviabiliza a garantia de quórum mínimo para a tomada de decisões.

Para facilitar logo a vida das teles, o Conselho Diretor da agência admitiu alterações nos contratos de concessão dos serviços de telefonia fixa local, interurbana (LDN) e internacional (LDI). Na canetada, também aprovou modificações nas metas de universalização da Oi, Telefônica, Embratel, Sercomtel e Algar, cujos contratos vigorarão até 2020. Foi retirada, por exemplo, a obrigação de instalação de orelhões, o que passaria a ser feito apenas sob demanda. Também foram reduzidas as obrigações relativas à disponibilização de linhas de telefones individuais.

As novas medidas foram anunciadas pela Anatel por meio da divulgação da minuta do IV PGMU. Ocorre que o plano deveria ser confirmado por decreto presidencial, o que até agora não ocorreu. Ex-conselheira da Anatel e integrante da Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, Flávia Lefèvre afirmou em uma entrevista que “a edição de decreto do novo PGMU sem discussão  com a sociedade civil, especialmente neste momento, é extremamente preocupante, posto que a proposta elaborada pela Anatel reduz radicalmente obrigações de universalização e deixa de utilizar saldo bilionário em favor dos consumidores”.

Lefèvre alerta que, com as resoluções que propunham as mudanças nos contratos sem a análise prevista pelo Conselho Consultivo, “a Anatel gastou tempo e dinheiro público num processo realizado sem nenhum respaldo legal, atrasando a revisão dos contratos de concessão ou mesmo uma outra decisão no sentido de antecipar o vencimento desses contratos e estabelecer um novo caminho com base nas diretrizes fixadas na LGT que está em vigor”, o que poderia contribuir para a ampliação do acesso à internet em banda larga.

No fim de junho, foi anunciada a manutenção dos contratos, nos termos aprovados em 2011, quando houve a última revisão. As teles reagiram cobrando reabertura das discussões sobre o PGMU, especialmente sobre o valor que elas ficariam devendo ao Estado. Isso porque foi inserida na proposta de novo contrato de concessão uma cláusula que previa o reconhecimento, pelas concessionárias, de saldo derivado dos recursos que seriam economizados com a redução das metas de universalização. As operadoras pressionam para que esse saldo possa ser utilizado em investimentos nas próprias redes para oferta de novos serviços.

Novos investimentos para novos lucros, mas com dinheiro público

Da mesma forma, as operadoras objetivam transformar os valores que devem por terem recebido multas em investimentos nelas mesmas. Parece absurdo que uma empresa seja multada e acabe ganhando o dinheiro. Simplificando, é como se, ao receber uma multa do Detran, você ganhasse dinheiro para melhorar o automóvel. Pois bem, é isso que elas querem – e é isso que a Anatel tem tentado concretizar.

Para tanto, a agência tem firmado Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com as operadoras, nos quais tenta trocar as multas por investimentos. O TCU emitiu parecer contrário e determinou a suspensão dos acordos. Inicialmente, o TCU realizou auditoria para analisar os trabalhos da Anatel. Diante das irregularidades constatadas, o órgão abriu representação que resultou em medida cautelar impedindo que fosse assinado o termo de compromisso da empresa Oi. Depois, tendo em vista informações de que a Anatel celebraria outros termos, o TCU propôs que fosse determinado cautelarmente à Anatel que se abstivesse de assinar TACs – vedação que continua em vigor. Diante da situação, o órgão oficiou o MPF para que fosse apurada conduta dolosa dos membros do Conselho Diretor da Anatel por dano ao erário público.

Mais uma vez, estamos falando da entrega de bilhões de reais para as empresas por parte de um país que aprovou, recentemente, uma lei que limita os investimentos públicos em áreas essenciais exatamente por alegar falta de recursos. A previsão do TCU é que os 37 pedidos de celebração de TAC podem chegar ao valor de R$ 9,1 bilhões. O montante deve ser ainda maior, já que a conta foi feita em 2016 e deve aumentar com a atualização dos valores e a inclusão de novos processos em cada negociação. A tabela abaixo mostra a estimativa da dívida de cada operadora.  

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Valores das multas devidas pelas empresas
Fonte: Relatório 022.280/2016-2 do TCU

Na análise do TCU, há preocupação com a expressiva redução do valor das multas diante da nova metodologia de contagem adotada nos termos. Como exemplos, cita redução de uma multa de R$ 8,8 milhões para R$ 727 mil e outra que passou de R$ 66,4 milhões para R$ 11,3 milhões. A Anatel defende que o estabelecimento de um acordo que resultaria na troca de multas por compromissos de investimentos novos beneficiaria a sociedade. Para o TCU, entretanto, o termo prejudica até a concretização dos investimentos, pois “a alteração nos valores das multas fragiliza os acordos negociados e os aprovados, reduzem ou até mesmo anulam os investimentos e benefícios que seriam obtidos dos TACs”.

Os TACs também vão de encontro à preocupação de garantia de acesso à internet pela população desprovida de conexão. Embora o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e a agência apontem que os recursos poderão subsidiar o Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações (PERT), plano em elaboração que o governo quer que substitua o PNBL, os termos discutidos mudam o direcionamento dos investimentos. “Fica claro que a escolha dos municípios a serem atendidos pelos compromissos adicionais do TAC da Telefônica prioriza localidades que possuem um nível de desenvolvimento maior e mais avançado, em detrimento de regiões deficitárias, o que beneficia indevidamente a prestadora”, pontua o relatório.

No caso de aprovação de novo PGMU, com novas regras sobre universalização, ou do PLC 79, levando à troca das concessões por autorizações, há risco das operadoras argumentarem que não há mais a obrigação de cumprir os acordos. Para o órgão, diante dessas possíveis mudanças, não há interesse público na celebração de TACs. “Isso porque as alterações prejudicarão ou anularão os compromissos de ajustamento de conduta a serem acordados, impedirão a atuação efetiva da Anatel sobre o objeto do TAC, inviabilizarão os benefícios à sociedade previstos”, esclarece o relatório.

Oi: expressão do erro da privatização, a empresa será a grande beneficiada

A principal beneficiada por esse conjunto de medidas será a Oi, que tem uma dívida de R$ 64,5 bilhões junto a 55.080 credores. De acordo com dados da própria empresa, 11% da dívida são devidos à Anatel e 3,3%, ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e internetSocial (BNDES). São recursos, portanto, da sociedade. Donos de títulos de dívida, bancos – entre os quais Itaú, Bradesco e Santander –, fornecedores e trabalhadores são outros credores.

Em recuperação judicial desde o ano passado, a Oi precisa se livrar das dívidas e das tarefas associadas à concessão, como a obrigação de levar serviços para recantos longínquos do país. Ela também possui o maior número de bens reversíveis, ainda que parte desses bens já tenha sido arrendado ou mesmo vendido ilegalmente pela empresa, que também busca a celebração de Termos de Ajustamento para reduzir o montante das dívidas contraídas com multas.

Com o plano de recuperação, a Oi ganhou mais tempo para pagar as contas. O prazo fixado atualmente é fevereiro de 2018. Até lá, ela precisa acordar com os credores uma proposta de recuperação, que pode incluir medidas para atrair capital estrangeiro. Esses planos da Oi, contudo, dependem da definição das regras do setor, já que elas poderão alterar radicalmente as contas, as obrigações e, com isso, o valor da empresa.

O pedido de recuperação judicial é o que envolve maior volume de dinheiro na história do Brasil. Mas não só isso mostra a dramaticidade da situação. O que está em jogo é também a garantia da continuidade da prestação dos serviços. Quase 14 milhões dos 24 milhões de assinantes de telefonia fixa atendidos por concessionárias têm contratos com a empresa, de acordo com dados da Anatel de julho deste ano. Em mais de 300 dos 4.859 municípios atendidos pela Oi, ela é a única prestadora desse serviço e, inclusive, de telefonia celular. A falência da empresa pode gerar um apagão nesses lugares e levar à desativação dos 640 mil terminais de uso público (TUP), os conhecidos orelhões.

A explicação do fracasso da operadora, que passou de “supertele”, em meados do governo Lula, a uma situação de quase falência em menos de dez anos, tem raízes na própria história da empresa e na lógica adotada no processo de privatização da Telebras. A opção feita foi pelo fatiamento da estatal em grandes holdings que operariam telefonia fixa em áreas distintas, além de nove empresas de telefonia celular e uma de longa distância, a Embratel. Os defensores diziam esperar ampla concorrência em todas as áreas, mas isso não aconteceu.

Coube à Tele Norte Leste, posteriormente rebatizada Telemar, fazer a única oferta para a prestação na área que abrangia 16 estados, incluindo a maior parte do Norte e todo o Nordeste. Relembrando a história da operadora, o jornalista Gustavo Gindre conta que “a Telemar foi adquirida por um grupo chamado pelo então ministro das Comunicações, Mendonça de Barros, de ‘rataiada’. Faziam parte desse grupo a Andrade Gutierrez e a família Jereissati, do senador cearense Tasso Jereissati”, além do BNDES, que detinha a maior participação acionária, mas abriu mão da administração da empresa. Outro grupo que adquiriu parte da estatal foi a Tele Centro Sul, a quem coube explorar o Distrito Federal e o Centro-Sul. Posteriormente transformada na Brasil Telecom, tinha entre seus acionistas o banco Opportunity, de Daniel Dantas, que brigou na Justiça com fundos de pensão pelo seu controle.

Já repletas de obrigações e com problemas de gestão, as empresas fundiram-se em 2008 e formaram a Oi, sob os auspícios do governo Lula, que queria uma “supertele” nacional para competir com as transnacionais que atuam no setor, especialmente os grupos América Móvil e Telefónica, que já então disputavam o controle das telecomunicações na América Latina. Além de alterar o Plano de Outorgas para viabilizar a integração, o governo aportou, por meio do BNDES, mais de R$ 2,5 bilhões à empreitada. A Oi virou concessionária de telefonia fixa em 26 estados do país – exceto em São Paulo, a praça mais lucrativa.

Como já era de se esperar, a transação não deu certo. Em 2013, depois de ter sido envolvida em uma disputa internacional, acabou fundindo com a Portugal Telecom. Reportagem recente do jornal português Público revela os bastidores dessa história, que resume como “acrônica da maior destruição de valor de que há memória na história empresarial portuguesa”. Corrupção, explosão de dívidas, calotes e prisões de executivos são alguns passos do caminho feito pela Oi em direção ao abismo.

A situação gerou a explosão da dívida da empresa e, nos últimos anos, o aumento da pressão para que o Estado resolva a questão, ao que ele está reagindo. Não necessariamente, o que deveria ser primordial, com vistas à garantia dos direitos dos usuários, mas sim para salvaguardar os interesses dos acionistas. Além da promoção de mudanças legais que a beneficiem, o governo pode decretar intervenção na operadora, levando à incorporação de seus bens à Telebras, ou à oferta de ajuda financeira, negociando o valor das multas ou injetando dinheiro.

No último dia de agosto, a Anatel anunciou que o Núcleo de Ações que acompanha a situação propôs ao Conselho Diretor, em uma medida de caráter cautelar, a abertura dos processos de caducidade das concessões e de cassação das autorizações do grupo. “Em resposta a um cenário desfavorável na recuperação judicial, a transferência dos meios necessários à prestação dos serviços para outros agentes econômicos, que poderão assegurar a continuidade das ofertas, deve ocorrer da forma célere, de modo a que se evitem prejuízos à sociedade”, diz a nota da agência. O pedido ainda será analisado.

Os possíveis caminhos ainda não são conhecidos, mas sabe-se que a saída é delicada, pois envolve ônus político e mesmo dificuldades para a Anatel intervir na Oi, já que apenas a telefonia fixa é prestada em regime de concessão e a operadora comercializa outras modalidades por meio de autorizações, como telefonia celular e banda larga. Apesar da situação, é preciso que o Estado tenha como preocupação fundamental garantir o interesse público, o que está longe de ser uma realidade no panorama brasileiro. Por isso, é preciso que a sociedade conheça o tamanho do ataque que está sofrendo, ainda que silenciosamente, e aja para intervir nos rumos de um setor que é estratégico também para a garantia da segurança nacional e para o exercício do direito à comunicação.

A internet livre sob ameaça no Brasil

Uma série de iniciativas de empresas e dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pode mudar radicalmente a forma como os/as brasileiros/as usam a rede

Trabalhar, estudar, locomover-se, informar-se, comunicar- se. Os usos da internet em nosso cotidiano são tão diversos e tão essenciais que nos deixam a dúvida se seria possível hoje viver sem conexão. Mais além, especialistas há muito apontam a existência de dois universos onde convivemos concomitantemente: físico e virtual. Não, isso não é coisa da ficção inspirada na trama da trilogia Matrix ou da recente ‘série-febre’ Black Mirror. Mesmo quando estamos aparentemente desconectados, os rastros virtuais e nossos dados pessoais continuam com vida própria, em transações bancárias, perfis em redes sociais, cadastros em big datas (espécie de arquivo com grande capacidade de processamento de dados), entre outras ações que se dão concomitantemente na internet e fora dela. Parece óbvio defender a vida física e os direitos fundamentais que a garantem, mas e os da rede, quem cuida? E se uma não existe mais sem a outra? Em 2014, uma Resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) dispõe que os direitos humanos do mundo off-line também valem para o online.

No Brasil, a Lei 12.965 de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet (MCI), estabelece um conjunto de princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país, além de consagrá-la como um serviço essencial. Ao longo de 2016, infringindo os princípios do MCI, uma série de iniciativas de empresas privadas, do Judiciário e de parlamentares busca alterar a lógica de funcionamento da internet da maneira como se conhece atualmente. Segundo o relatório Freedom on the Net da organização Freedom House, divulgado em novembro de 2016, o status da internet no Brasil perdeu três pontos e passou de “livre” a “parcialmente livre”.

Os motivos para a queda foram os constantes bloqueios judiciais ao aplicativo WhatsApp, a decisão de operadoras de implantar franquias na banda larga fixa e o Projeto de Lei 215/2015, conhecido como “PL espião”, que estabelece medidas polêmicas como a quebra do anonimato de internautas. Em declaração recente, Maximiliano Martinhão, secretário de políticas de informática do Ministério de Ciência Tecnologia Inovações e Comunicações (MTIC), defendeu a flexibilização da legislação vigente tanto no que diz respeito a alguns pontos colocados no Marco Civil da Internet quando na proposta que tramita de revisão da Lei Geral de Telecomunicações (LGT). Questões como a neutralidade de rede, o manejo e a guarda de dados pessoais, a revisão de contratos de prestação de serviços de telefonia e internet, o bloqueio de aplicativos, entre outros temas, estão atualmente em pauta no congresso e no judiciário e podem alterar radicalmente a maneira como os/as brasileiros/as utilizam a internet no dia a dia. Analisamos a seguir algumas destas ameaças.

Acesso

No último dia 9 de novembro, o Projeto de Lei 3453/15, de autoria do deputado Daniel Vilela (PMDB-Go) foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) por 36 votos favoráveis e 11 contrários. A aprovação foi questionada por vários deputados que alertaram que o PL representa uma entrega de patrimônio público e reduz a capacidade de regulação do Estado em um setor conhecido por ser um dos piores prestadores de serviço do país. O projeto impacta também o acesso à internet fixa que, no caso brasileiro, compartilha a infraestrutura com a telefonia. Rafael Zanatta, pesquisador em telecomunicações do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), alerta que, se aprovado, o PL pode piorar a qualidade de serviços essenciais como telefonia e internet além de abrir caminhos para o aumento do preço. Isso porque o projeto pretende mudar o regime de prestação de serviço de telefonia de regime público, que se dá atualmente por meio de contratos de concessão, para regime privado, mais flexível. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações e Defesa do Consumidor (Sindec), de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro do mesmo ano, as empresas Claro/ Embratel/Net, OI Fixo/Celular e Vivo Telefônica/GVT aparecem respectivamente em primeiro, segundo e terceiro lugar entre as 50 que mais receberam queixas nos Procons no último ano.

Dados divulgados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em 2016 sobre os serviços de telefonia e internet mostram que o setor com a pior avaliação em relação à satisfação dos consumidores é o de banda larga fixa, que obteve nota 6,58 em nível nacional, em uma escala de zero a 10. “No regime privado, deixa de existir a modicidade tarifária, ou seja, o consumidor pode se deparar com preços ainda mais elevados, ainda mais num mercado extremamente oligopolizado como o nosso que tem atualmente três grandes players”, explica.

Além disso, segundo o especialista, há um interesse das empresas de telefonia e dos parlamentares que encampam o projeto de rever metas de universalização (que significa acesso para todas as pessoas) direto com a Agência regulatória, a Anatel. Atualmente, pouco mais de metade dos domicílios brasileiros têm acesso à banda larga fixa. O modelo de mercado concentra a distribuição do serviço em áreas urbanas e de maior Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto isso, áreas rurais, principalmente do norte e nordeste do País são verdadeiros “desertos digitais”. Mas não só. Enquanto o mundo assistia aos jogos olímpicos sediados no Rio de Janeiro, moradores do Morro da Conceição, na região portuária da cidade olímpica há poucos metros de onde a tocha ficou aberta à visitação, denunciavam a falta de acesso à internet banda larga fixa. Outro ponto polêmico do PL é a busca das telefônicas por não devolver ao Estado brasileiro os chamados bens reversíveis. Segundo apuração do Ministério Público Federal (MPF), estes bens somam cerca de 100 bilhões em infraestrutura montada para prestação de serviços essenciais de telefonia.

O contrato de concessão das telecomunicações, realizado em 1998 por meio da privatização do sistema Telebrás, estabelece que, findado o prazo de outorga, o Estado retomaria a posse dos bens necessários para oferta do serviço e iniciaria um novo processo de concessão da prestação do serviço, incluindo obrigações de preço, continuidade e universalização. Com a aprovação do PL 3453/15, esses bens, que fazem parte da outorga de telefonia fixa, não voltam mais para o Estado e não há mais garantias de que essa soma seja revertida para ampliação do acesso aos serviços. Após aprovação na CCJC, a votação segue para o Senado. Enquanto a proposta avança, outras iniciativas no Congresso e no Judiciário também vêm causando preocupação entre internautas, especialistas e ativistas.

Bloqueio de aplicativos

Ao longo de 2016, várias decisões judiciais, com base em investigações criminais, têm resultado no bloqueio de alguns aplicativos usados por um amplo público, como o WhatsApp. Mais recentemente, o lobby da indústria de direitos autorais também tem investido pesado na tentativa de alterar o Projeto de Lei 5204/16 (baseado no PL 5204/16, apensado ao primeiro) que visa justamente proibir esse tipo de decisões arbitrárias da justiça. Os bloqueios também foram pontos determinantes na queda do Brasil no ranking de liberdade na internet da Freedom House. Também com o intuito de evitar que casos similares voltassem a ocorrer, o Partido da República (PR), ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 5.527 (ADI). Para especialistas, há uma distorção na interpretação do MCI pelo poder Judiciário, o que abre precedentes perigosos para a liberdade de escolha do consumidor/ usuário. A legislação aponta a possibilidade de bloqueio de aplicativos somente no caso destes descumprirem a proteção da privacidade dos dados do usuário. Em Amicus curiae que endossa a ADI citada, o Instituto Beta para Democracia e Internet argumenta:

“Não parece plausível e muito menos proporcional que o descumprimento de uma medida judicial de quebra de sigilo bancário ou telefônico, por exemplo, atinja todos os demais correntistas de uma instituição financeira ou os usuários de uma operadora de telefonia. O Marco Civil constitui um importante patamar regulatório de proteção dos direitos do usuário da internet, porém ainda requer uma cautelosa compreensão de suas premissas e a das formas de implementação das suas sanções”.

Zero Rating

Outra prática que vem sendo questionada por especialistas é a das operadoras de telecomunicações de ofertar “gratuitamente” o acesso a determinados aplicativos após o fim da franquia de internet móvel. Detentoras das infraestruturas por onde trafegam os dados de navegação, as operadoras têm trabalhado para criar mecanismos que favorecem alguns aplicativos e conteúdos em detrimentos de outros, o chamado zero rating. É como se a empresa concessionária do serviço de pedágio de uma rodovia tivesse também o poder de escolher quais carros trafegam ou não naquele trecho e com que qualidade de estrada ou limite de velocidade determinados motoristas irão se deparar. A prática confronta o princípio da neutralidade de rede, consagrado no inciso IV, artigo 3º do Marco Civil da Internet (MCI), segundo o qual a rede deve ser igual para todos, sem diferença quanto ao tipo de uso. Assim, ao obter um plano de internet, o usuário paga pela velocidade contratada e não pelo tipo de página ou conteúdo que vai acessar ou usar.

Segundo Flávia Lefèvre, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI – BR), a utilização de zero rating, sem regulação específica, também viola o princípio da neutralidade de rede e ameaça o modelo aberto da internet. “A prática do zero rating associada aos planos com limite de volume de dados e restrição de acesso à internet ao final da franquia cria condições para que a internet se torne um espaço voltado preponderantemente a interesses comerciais e contrários à verdadeira e efetiva inclusão digital”, defende.

Por outro lado, o governo demonstra abertura para a pressão das empresas em flexibilizar o princípio da neutralidade. “Para a gente poder avançar com a internet, e estou falando como secretário, e não como coordenador do CGI.br, não dá para pensar com tamanha rigidez o aspecto de neutralidade de rede, sem poder usar zero rating, até para vencer a insegurança jurídica que está posta”, declarou Maximiliano Martinhão, secretário de Políticas de Informática do MCTIC, em novembro de 2016.

Franquia de dados

O alerta feito por Flávia Lefèvre também se refere à tentativa das operadoras de implementar o modelo de franquia de dados na banda larga fixa. Este é o padrão de negócio utilizado na banda larga móvel, e consiste na forma de serviço em que o usuário, ao utilizar toda a capacidade contratada, tem a sua conexão interrompida e para voltar a navegar na web é incitado a comprar pacotes adicionais. O argumento das operadoras de telecomunicações é o de que o modelo de “internet ilimitada” é um modelo de negócio ultrapassado e que não contempla mais a atual fase de uso da rede, pois existem hoje muito mais dados trafegando do que há dez anos. À época, o presidente da Anatel, João Rezende, em entrevista ao G1, defendeu o limite de franquia e argumentou que obrigar as empresas a oferecer banda larga ilimitada pode elevar o preço do serviço ou reduzir a qualidade deste.

Rafael Zanatta, do Idec, argumenta que não há estudos específicos que comprovem que haja uma “escassez de rede”. O especialista aponta que, mesmo com a crise econômica, as telefônicas continuam com alta taxa de lucro que poderia ser revestido em investimento pra ampliar a infraestrutura. “No último balanço trimestral, por exemplo, os três players que dominam o mercado brasileiro apresentam uma margem de lucro superior a um milhão”. Rafael acrescenta que a internet no Brasil é um serviço caro, que chega a superar 2% da renda média familiar e, ainda assim, a velocidade está muito aquém dos padrões globais. “Existe a possibilidade de regular a franquia sem abusividade. Vendo se a empresa tem escassez temporária de infraestrutura, considerando as especificidades das pequenas operadoras, por exemplo. Não faz sentido isso nos casos onde há infraestrutura abundante”, defende. E completa: “A estratégia oculta [neste debate] é implementar a franquia e flexibilizar o Marco Civil da Internet para permitir o zero rating”, resume.

Durante audiência que discutiu a questão no Senado Federal em junho deste ano, Bia Barbosa, do Intervozes, argumentou que é possível que esta prática comercial crie um fosso entre aqueles que poderão ter a “liberdade” de navegar por quaisquer tipos de conteúdos e aqueles que, por questões financeiras, não poderão pagar um valor que garanta a navegação sem restrições. Isso sem falar nos prejuízos para a educação à distância, por exemplo, já que esta modalidade educacional exige várias horas na frente da tela do computador com aulas em vídeo de alta resolução.

Dados pessoais

Em 2014, a Oi, empresa de telefonia, foi condenada pelo Ministério da Justiça a pagar R$ 3,5 milhões por ser acusada de monitorar a navegação dos consumidores na internet para posterior comercialização de dados. Durante o processo administrativo, foi observado que a empresa violou direitos à informação, à proteção contra publicidade enganosa e o direito à privacidade e à intimidade. A porta de verificação do comportamento dos consumidores era o serviço Navegador, oferecido pelo Velox, o serviço de banda larga da Oi. Durante as investigações, verificou-se ainda que a parceria da empresa Oi com a britânica Phorm permitiu o desenvolvimento do software Navegador, que capturava e mapeava todo o tráfego de dados do usuário, permitindo a criação de um perfil de uso da internet.

Após a análise do episódio, o Ministério da Justiça entendeu que a empresa violou princípios contidos na Constituição Federal e no Marco Civil da Internet. De posse de todas as nossas informações, e com o uso de uma tecnologia que cada vez mais se aprimora por meio de algoritmos, Google, Facebook, Twitter, entre outras grandes corporações têm acesso a informações privilegiadas do dia a dia dos usuários. A localização exata, o percurso que fazemos ao nos deslocar de casa ao trabalho, os destinos de férias ou as pesquisas nas ferramentas de busca, os problemas de saúde, entre outras questões estritamente pessoais, são dados valiosos que estão sendo manipulados e negociados por essas grandes empresas.

Mas não só por elas. Há também os casos de dados pessoais de órgãos públicos que são vazados para empresas privadas. No início de 2016, aposentados do Espírito Santo que haviam pedido aposentadoria pelo INSS caíram nas mãos de bancos e agências financeiras. Segundo o Ministério Público do Estado, as pessoas que haviam requerido o benefício ao INSS receberam ligações de agências financeiras oferecendo empréstimos consignados antes mesmos dos pedidos serem aceitos. A investigação está apurando como essas agências tiveram acesso a esses dados pessoais. À época, o INSS informou que os dados dos segurados são mantidos em sigilo e que não fornece qualquer dado pessoal a outras instituições que não sejam as responsáveis pelo pagamento da aposentadoria.

“Cada vez mais, em todo e qualquer momento, todas as nossas relações sociais estão apoiadas em coletas ou tratamentos de dados. Basta pensar nas relações que a gente tem com o governo, com o setor estatal de uma maneira geral. É impossível você aderir a um programa social, pensar, por exemplo, num bolsa família ou financiamento estudantil, sem que você troque os seus dados pessoais para poder aderir a aquele determinado benefício social”, explica Bruno Bioni, advogado do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e pesquisador do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da USP (GPoPAI/USP). O pesquisador defende que é urgente pensar uma política de proteção de privacidade e uso de dados pessoais na rede, uma vez que grande parte dos modelos de negócios online e as próprias políticas públicas, como as apontadas, se baseiam no tratamento de nossos dados.

Até o momento, o Brasil não tem sancionada uma lei que regule a coleta, armazenamento, processamento e divulgação de dados pessoais. O PL 5276/2016, que trata do assunto, atualmente tramita na Câmara dos Deputados. A legislação protege os dados pessoais tanto no que diz respeito ao uso por entes privados quanto públicos e ainda impede a transferência internacional de dados para países com leis de proteção menos rigorosas do que a nossa.

Joana Varon, integrante da Coding Rights, organização liderada por mulheres que promove direitos no mundo digital, explica que vivemos atualmente num contexto de capitalismo de dados. “Tudo o que a gente faz na rede é registrado. E esses dados são utilizados como modelos de negócios das empresas que a gente usa pra navegar na rede e que a gente usa nos serviços digitais”, resume. Enquanto isso, também avançam na Câmara e no Senado algumas iniciativas de Projetos de Lei que caminham na direção contrária da promoção da privacidade e da liberdade de expressão na web, como o PL 2390/15 que propõe a criação de um “Cadastro Nacional de Acesso à Internet”. O cadastro incluiria informações como endereço e CPF do usuário e teria como função combater práticas de pedofilia na internet. Segundo o PL, a cada nova conexão, o usuário teria de fornecer todos os dados pessoais para que a conexão seja liberada.

O cadastro obrigatório põe em xeque não só direitos individuais mas também coletivos e ameaça organizações e movimentos sociais que trabalham com a defesa e promoção de direitos humanos e que têm o anonimato como retaguarda para resistir à perseguição ou retaliação. É o caso do aplicativo Nós por Nós. Lançado em março de 2016, o aplicativo, voltado para denúncias de violações de direitos cometidas por policiais no Rio de Janeiro, recebeu em quase um ano de funcionamento 250 denúncias. Segundo relatório “Você matou meu filho”, publicado pela Anistia Internacional, de 2005 a 2014 foram registrados 8.466 casos de homicídio decorrentes de intervenção policial no estado do Rio de Janeiro; 5.132 casos apenas na capital.

Ao checar o andamento de todas as 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção policial no ano de 2011 na cidade, a Anistia descobriu que foi apresentada denúncia em apenas um caso. Até abril de 2015 (mais de três anos depois), 183 investigações seguiam em aberto. O medo e a descrença no sistema judicial são os principais fatores apontados para a falta de denúncia.

Um dos idealizadores do aplicativo, Fransérgio Goulart, afirma que a ideia da ferramenta é justamente facilitar a reação da população atingida pela violência de Estado. “Tinha já algo se iniciando, mas o aplicativo Nós por Nós facilitou e potencializou essas denúncias. E a grande novidade é que temos para onde encaminhar a denúncia (rede de apoio) defensoria, Ministério Público, ONGs de direitos humanos de forma articulada”, contou.

Para fazer uma denúncia por meio de vídeo, foto, áudio ou texto no Nós por Nós, o usuário não precisa fazer nenhum cadastro anterior que permita sua identificação, o que no caso do teor da ferramenta, é um detalhe vital para o funcionamento.

Além do PL 2390/15, uma série de inciativas decorrentes dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos, conhecida como CPI Ciber, afetam a privacidade e a liberdade de expressão na rede. O relatório final da comissão apresentado em março deste ano, reúne oito propostas de projetos de leis que, segundo a própria comissão, objetivam combater os crimes cometidos na internet.

Direitos na rede

Diante deste cenário, entidades da sociedade civil brasileira criaram em julho de 2016 a Coalizão Direitos na Rede, como uma forma de combater as crescentes tentativas de retirada de direitos. Em manifesto lançado durante o VI Fórum da internet, ocorrido em julho de 2016, as entidades afirmam que o objetivo da coalizão é defender princípios fundamentais para a garantia de acesso universal à Internet: respeito à neutralidade da rede, liberdade de informação e de expressão, segurança e respeito à privacidade e aos dados pessoais, assim como assegurar mecanismos democráticos e multiparticipativos de governança.

Segundo a Coalizão, além de atacar a privacidade, a liberdade de expressão e comunicação e o direito à informação de cidadãos conectados, este conjunto de propostas legislativas não leva em conta as características da rede e instaura uma espécie de “censura preventiva”. Os níveis de vigilância massiva da série Black Mirror vêm causando furor em discussões e tentativas de prognósticos que se multiplicam nas redes sociais. Se as iniciativas analisadas avançarem, trabalhar, estudar, locomover- se, informar-se, comunicar-se, organizar protestos, denunciar violações de direitos, entre outras ações essenciais para democracia, devem ficar bem comprometidas. Se depender da pressão das empresas e de alguns entes do Estado, a realidade fictícia da série está mais próxima do que podemos imaginar.

Mídia, política e religião: mistura que ameaça a democracia

Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emissoras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da democracia brasileira e do conservadorismo político

Texto: Mônica Mourão | Colaboraram: Bráulio Araújo, Elizângela Araújo, Iara Moura e Ramênia Vieira

FIGURA 4.2 PROGRAMAÇÃO.

“Abri uma igreja em Lusaka (capital da Zâmbia) e os pastores haviam sido expulsos de lá. Com a carta do presidente Lula, não só os pastores puderam voltar, como o presidente Rupiah Banda (2008-2011) deu a eles uma concessão de rádio e televisão para que pudessem pregar o evangelho”. A frase acima foi uma das descobertas da mídia durante a reta final do segundo turno das eleições no Rio de Janeiro, quando a população da cidade vai escolher entre Marcelo Freixo (Psol) e Marcelo Crivella (PRB). O trecho foi retirado de um vídeo disponível no Youtube em que Crivella conta que entrou para a política forçado pela Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) e comenta a temporada em que viveu na áfrica. O senador, bispo da Iurd e sobrinho do fundador dessa igreja, Edir Macedo, dono da rede Record, associa diretamente missão evangelizadora, política e mídia. O caso é emblemático de um cenário que está longe de se resumir à disputa eleitoral do Rio de Janeiro.

Políticos evangélicos donos da mídia

Em novembro do ano passado, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, autorizou procuradores de São Paulo a receberem uma representação, assinada por diversas entidades da sociedade civil, pedindo o cancelamento das outorgas de radiodifusão dadas a pessoas jurídicas que tenham entre seus sócios políticos em exercício do mandato. No total, 32 deputados federais e oito senadores são denunciados. Dos 32 deputados federais, nove fazem parte da bancada evangélica, o que corresponde a quase 30% do total. Desses nove, quase a metade faz parte também da bancada ruralista. Um deles, Beto Mansur (PRB-SP), é ficha suja, condenado por exploração de trabalho escravo. A bancada evangélica – ou bancada da bíblia – é conhecida por seu caráter conservador. Mas se engana quem generaliza esse posicionamento para todos os evangélicos.

A professora Magali Cunha, da Universidade Metodista de São Paulo, explica que o senso comum associa evangélicos a conservadorismo por serem os grupos com esse perfil os que têm mais visibilidade na mídia e na política. Segundo Magali, na radiodifusão, “não existem evangélicos progressistas ou de posição mais aberta em relação à teologia, à prática pastoral e à participação política. Esta é uma característica dos grupos mais conservadores e que os coloca em vantagem no tocante à visibilidade buscaram uma presença intensa nas mídias rádio e tevê, mais ainda no rádio. Os grupos mais abertos ou progressistas estão presentes em mídias alternativas e na internet, e não há uma denominação específica: são grupos os mais variados, vários deles articulados em experiências ecumênicas”, explica.

A imbricação política, mídia e religião fica bem evidente em alguns casos: o deputado Antônio Bulhões (PRB- -SP), além de concessionário de três emissoras de rádio, foi apresentador do programa “Fala que eu te escuto”, da Rede Record, e do “Retrato de Família”, na Record News, durante nove anos. Atualmente está em seu terceiro mandato como parlamentar. Ele é um Exemplo do quanto a visibilidade midiática aumenta as  chances de eleição, mas também da relação entre o crescimento de concessões para grupos evangélicos ou espaços “arrendados” para eles na televisão, crescimento da bancada da bíblia e avanço das agendas conservadoras no Congresso Nacional. “Este avanço começou a se configurar com o surgimento da bancada evangélica tal como a conhecemos em 1986, com a eleição do Congresso Constituinte. Naquela ocasião, houve um farto oferecimento de concessões ao chamado ‘centrão’, onde se localizou a maior parte da bancada. Foi dali que surgiram alguns dos empresários de mídia evangélica e a força de igrejas como a Iurd.

Para estes grupos, estar nas mídias é parte de uma estratégia de ocupação de espaços na esfera pública”, conta a professora Magali Cunha. Atualmente, segundo levantamento de grupo de pesquisa coordenado pelo professor Jorge Miklos, da Universidade Paulista, a bancada evangélica é formada por 199 deputados federais e quatro senadores. O cruzamento dos dados da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e de concessionários de radiodifusão é uma tarefa difícil pela falta de transparência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A Agência não disponibiliza um documento único com todas as rádios e tevês e os sócios e diretores.

Existem dois sistemas separados: Sistema de Controle de Radiodifusão (SCR) e Sistema de Acompanhamento de Controle Acionário (Siacco). O SRD não fornece o quadro societário das emissoras, que precisa ser buscado no Siacco. “Esse programa, entretanto, só poderá revelar o capital investido nessa empresa, as nomeações que compõem o quadro societário, quanto cada sócio investiu e o cargo que ele assume, em consultas individuais, dificultando a investigação”, explica Jorge Miklos. O professor coordenou a pesquisa de uma média de 4.500 rádios para cruzar os nomes dos deputados, senadores e seus familiares com as rádios e televisões brasileiras. Porém, houve uma diferença no resultado dos dados. “Por exemplo, o nome do deputado federal cassado Eduardo Cunha encontra-se no anexo do Ministério das Comunicações, mas não no da Anatel”, relata Miklos.

Eduardo Cunha, evangélico da Assembleia de Deus, teve uma representação protocolada contra ele na Procuradoria da República do Rio de Janeiro em dezembro de 2016. Naquele mês, a revista Época divulgou que Cunha consta nos registros do Ministério das Comunicações como sócio da Rádio Satélite. O deputado cassado afirmou para a revista que, apesar de ainda estar na lista de acionistas do Siacco, vendeu suas cotas em 2007, e as transações de compra e venda constaram de suas declarações de renda à Receita Federal. Mesmo que a informação dada pelo ex-deputado esteja correta, trata-se de uma ilegalidade: a definição de que empresa terá direito de explorar o serviço de radiodifusão depende da sua participação em uma licitação, seguida de aprovação pelo Congresso Nacional. Assim, Cunha não poderia simplesmente ter vendido sua outorga.

Bancada religiosa e direitos humanos

FIGURA 4.1.QueméQuem

O aumento da bancada da bíblia é patente: na legislatura de 2003-2006, era formada por 58 congressistas, um crescimento de 25% em relação à legislatura anterior. No Senado, passou de nenhum representante para três mandatos. “A maior parte dos congressistas evangélicos eram pastores vinculados à Assembleia de Deus e à Igreja Universal do Reino de Deus”, segundo Jorge Miklos.

O professor explica: “A Frente Parlamentar Evangélica expressa os interesses das igrejas evangélicas em geral, embora seja principalmente constituída de deputados pertencentes a igrejas pentecostais, que por sua típica agressividade em evangelizar, formam a maior parte da população evangélica brasileira”. Contudo, ele vê diferença nos posicionamentos dos deputados e senadores da FPE: “Os parlamentares evangélicos nem sempre votam em bloco, pois representam correntes distintas no campo religioso e no econômico. Só falam a mesma língua em questões de conteúdo moral. Sua relação com a bancada católica é marcada tanto pela união na defesa de interesses comuns como pela oposição às eventuais tentativas de suprematismo católico”.

Apesar de não formarem um bloco totalmente coeso, uma série de retrocessos nos direitos humanos está associada à bancada da bíblia, especialmente durante o período em que o pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) foi presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara.

Para ficar apenas com casos mais recentes, atualmente, são deputados ligados às igrejas católica e evangélica que estão no comando dos trabalhos da comissão especial que analisa a proposta conhecida como “Escola sem Partido”. O deputado Marcos Rogério (DEM-RO) ocupa a presidência e Flavinho (PSB-SP) é o relator. Ambos defendem o PL 5069/2013, que tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo. Marcos Rogério foi repórter de televisão e radialista, atuando na Comunicação Social por mais de 12 anos. Como deputado, foi relator da cassação de Eduardo Cunha, apesar de, como ele, pertencer à Frente Parlamentar Evangélica.

Flavinho já foi ligado à comunidade católica Canção Nova e apoiou uma proposta para revogar a permissão do uso do nome social de travestis e transexuais em órgãos da administração pública. Ao se colocar contra a criação da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara, Flavinho disse que, em vez de empoderamento, as mulheres querem ser “cuidadas” e que as parlamentares feministas não sabem o que é ser “amadas”. Para o professor Jorge Miklos, “não é inconstitucional ou ilegal a presença da bancada evangélica no congresso nacional. Todos lá dentro foram eleitos democraticamente. O que é inconstitucional? Pautas que ferem a dignidade da pessoa humana, como prevê o Artigo 1º da Constituição Federal, e a pluralidade do povo brasileiro”.

Missas e cultos eletrônicos

Os grupos evangélicos conservadores não se contentam “apenas” com a concessão de emissoras de rádio e televisão. Também ocupam os espaços de outras emissoras, numa prática chamada de “arrendamento”. Ou seja, como se um horário da programação fosse um terreno, o “dono” (concessionário) o cede para que outra pessoa faça uso dele, mediante pagamento. A prática, contudo, é ilegal. “Isso ou é uma subconcessão, o que é vedado, já que a concessão de qualquer serviço (como de estradas) é sempre dada para aquela pessoa jurídica, e não para nenhuma outra, ou é publicidade. Se for publicidade, tem o limite de 25% da programação da tevê”, explicou o Procurador da República Sergio Suiama. Ele é responsável por um inquérito que investiga os casos de arrendamento praticados por Band, Record, Rede TV! e TV Gazeta, a partir de um estudo da programação feito pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).

FIGURA 4.3. PROGRAMAÇÃO DA TV

De acordo com o levantamento, em 2016, 21% do total de programação veiculada pela tevê aberta brasileira foram de programas religiosos. Esse é o gênero número 1 ao se considerar o espaço total das emissoras pesquisadas pela Ancine, representando 1/5 da programação. Dentro da grade de cada uma, o percentual do gênero religioso é o seguinte: Band (16,4%), CNT (89,85%), Globo (0,58%), Record (21,75%), Rede TV! (43,41%), SBT (0%), TV Brasil (1,66%), TV Cultura (0,69%) e TV Gazeta (15,80%).

Curioso notar que a Record, única do grupo cujo concessionário é um bispo da Igreja Universal, não é a que mais veicula conteúdo religioso. Esse dado pode mostrar que, para as demais emissoras, o arrendamento é um negócio como qualquer outro, e não interessa o conteúdo veiculado. Vale ressaltar também duas importantes exceções: dois canais com as maiores audiências, Globo e SBT (numa disputa já longa com a Record pelo segundo lugar), não exercem essa prática: a primeira veicula, por conta própria, a missa católica aos domingos; a segunda é a única emissora que não transmite nenhum programa religioso. “A TV Globo, ao que consta, não recebe pagamento para veicular a Santa Missa. No caso dessas outras emissoras, a gente vê que uma boa parte da programação diária é paga pelas igrejas. Então é diferente a situação. Essas emissoras estão usando as igrejas como fonte de financiamento”, avalia Suiama.

A Ancine contabilizou também o percentual de publicidade veiculada em cada uma das emissoras: Band (3,20%), CNT (0,10%), Globo (0,10%), Record (0,10%), Rede TV! (5,29%), SBT (0,25%), TV Brasil (0,10%), TV Cultura (0,10%), TV Gazeta (43,61%). Quase todas, com a marcante exceção da TV Gazeta, cumprem o teto de 25% de tempo de publicidade comercial estabelecido pelo artigo 28 do Decreto 52.795/63, que determina o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. Contudo, se o arrendamento para igrejas for considerado venda de espaço publicitário, CNT e Rede TV! Estariam infringindo o Regulamento. O caso visivelmente ilegal do Grupo CNT, que vende quase a totalidade do seu espaço, é alvo de ação ajuizada pelo Ministério Público Federal de São Paulo. Outra ação do MPF pelo mesmo motivo foi aberta contra a Rede 21 Comunicações S/A, ambas em 2014. As emissoras venderam 22 horas diárias de toda a sua grade à Igreja Universal. Segundo o MPF, os contratos firmados entre a Universal e as duas emissoras podem envolver R$ 900 milhões.

O Ministério Público solicita, nas ações, que as outorgas sejam invalidadas e que o Grupo CNT, a Rede 21 e a Iurd sejam condenados ao pagamento de indenização, em valor determinado pela Justiça, por danos materiais à União e por danos morais difusos. Além disso, o MPF pede que a Presidência da República e o Ministério das Comunicações sejam condenados a se abster de conceder futuras outorgas de radiodifusão aos dois grupos empresariais e à Universal.

Segundo a assessoria do Ministério Público de São Paulo, as duas ações seguem tramitando na Justiça Federal. A invalidação das outorgas do serviço de radiodifusão pode acontecer, mas depende ainda da decisão da Justiça. O caso das demais emissoras, cujo inquérito foi aberto pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em maio deste ano, ainda está num estágio inicial. A partir da abertura do inquérito, foram solicitadas informações das emissoras e, agora, o MPF aguarda resposta do Ministério das Comunicações.

Segunda colocada no ranking dos programas religiosos, a Rede TV! foi a única que respondeu nossa reportagem. Através de sua assessoria, a emissora afirmou ser “laica em sua programação, transmitindo programas de diversas igrejas evangélicas, a missa da Catedral da Sé da Igreja católica, entre outras. Seus programas discutem abertamente temas de todas as religiões, do espiritismo, do candomblé e de qualquer outra motivação religiosa. Entende que como agente de comunicação não tem o direito, nem a vontade, de cercear ou discriminar qualquer manifestação religiosa, garantindo a mais ampla liberdade de expressão”. Ainda de acordo com a Rede TV!, a programação religiosa não prejudica a democracia: “Programas religiosos existem em todos os países democráticos, sendo vistos por milhões de telespectadores. No Brasil, as coproduções, religiosas ou não, são agentes fundamentais na garantia da pluralidade das comunicações. A RedeTV! respeita integralmente toda a legislação do setor”.

Laicidade, política e comunicação pública

Mesmo sendo uma televisão pública, a TV Brasil veicula programas religiosos da igreja católica e da evangélica. Em 2016, um deles, o evangélico Reencontro, além de fazer proselitismo religioso, serviu também de palanque político. A reclamação foi feita por telespectadores. Segundo o Boletim da Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o programa entrevistou a candidata a vereadora e ex-deputada federal Liliam Sá (PROS- -RJ), no dia 21 de maio, para falar sobre o Rio de Janeiro. Ela já havia sido entrevistada no mês anterior, assim como um pré-candidato a prefeito de São Gonçalo (RJ) e um pastor que mencionou que a esposa seria candidata a vereadora. Liliam é ex-deputada federal. O apresentador abriu o microfone para a candidata apresentar suas propostas para a cidade: “a senhora voltando como vereadora para o Rio de Janeiro, para ajudar esse município, um dos mais importantes do Brasil, quais são os planos que a senhora tem em mente?”. O caso demonstra a desigualdade de possibilidades dos candidatos se comunicarem com o eleitorado, como publicamos em matéria especial do Observatório do Direito à Comunicação sobre políticos donos da mídia.

“O espaço de uma televisão não é propriamente igual ao de uma praça pública. Na praça pública, qualquer pessoa pode chegar e fazer uma pregação, o Estado não pode impedir um pastor, um pai de santo ou um padre de fazer uma pregação no meio da praça. Mas, no caso da televisão, não é um espaço público acessível a qualquer pessoa. O Estado tem que assegurar essa igualdade? A religião que não tem dinheiro para pagar também deveria ter espaço? Se o Estado fosse fazer isso, como ele iria fazer? Iria financiar todas as religiões? Qual seria o critério de financiamento?”. Os questionamentos do procurador Sergio Suiama dizem respeito a um dilema vivido atualmente pela comunicação pública no Brasil. Em 2011, a partir de reclamações de ouvintes e telespectadores à Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o Conselho Curador aprovou uma resolução que solicitava a suspensão dos programas religiosos nos veículos da EBC. Com a decisão, A Santa Missa e Palavras de Vida, produzidos pela Igreja Católica, e o evangélico Reencontro deveriam ter saído do ar. Contudo, a Justiça Federal de Brasília concedeu liminar mantendo a exibição dos programas.

Integrante do Conselho Curador da EBC cassado pelo governo ilegítimo de Michel Temer, a professora da UFPE Ana Veloso relembra o processo: “Nós recebemos várias manifestações, via Ouvidoria, de telespectadores e ouvintes que não estavam satisfeitos porque a EBC transmitia a missa”. A ação está no Supremo Tribunal Federal e ainda aguarda uma decisão de Justiça. “O Estado brasileiro é laico e a comunicação pública deve permitir a liberdade de expressão das diversas religiões e crenças. Então, além de a gente sugerir que esse tipo de programa fosse retirado do ar, e nossa fundamentação está na lei da EBC e na Constituição Federal, também sugerimos que a Empresa viabilizasse a produção de programas que primassem pela diversidade religiosa”, contou Ana Veloso. Os contratos de permissão dos programas religiosos são anteriores à constituição da EBC, em 2007.

O argumento da Arquidiocese do Rio de Janeiro e da Primeira Igreja Batista na Ilha da Conceição, de Niterói, que entraram na Justiça para manter a exibição dos programas, foi de que “a pluralidade máxima consegue-se com a ampliação dos programas religiosos, não com a supressão dos existentes”. Tentamos ouvir o arcebispo católico Dom Orani Tempesta, que defende a continuação das transmissões da Santa Missa, mas não obtivemos retorno da Arquidiocese do Rio de Janeiro até o fechamento desta reportagem. Dom Orani Tempesta foi o presidente do Conselho Nacional de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional, durante o período de 2012 a 2014.

Apesar de não ter conseguido, até o momento, a retirada do ar dos programas que veiculam cerimônias religiosas, o Conselho Curador obteve uma vitória neste processo:a EBC publicou, em 2014, o resultado final de um pitching (espécie de concurso) para contratação de produtoras responsáveis por dois programas sobre diferentes religiões e crenças: Entre o Céu e a Terra e Retratos de Fé. O primeiro foi produzido pela Realejo Filmes e custou R$ 1,3 milhão e, o segundo, pela Aldeia Produções, no valor de R$ 910 mil. “A gente respeita a religião de todas as pessoas, mas a gente defende o Estado laico. Não podemos, numa emissora pública, privilegiar uma religião em detrimento de outra, porque isso se chama manutenção de privilégios”, reforçou Ana Veloso.

Intolerância religiosa

“Na minha vida dei um chute na heresia / Houve tanta gritaria de quem ama a idolatria / Eu lhe respeito meu irmão, não quero briga / Se ela é Deus, ela mesmo me castiga”. Os versos acima, compostos pelo bispo Marcelo Crivella, fazem parte da canção “Um chute na heresia”, lançada em CD do atual senador e postulante à prefeitura do Rio de Janeiro em 1998. Divulgados na última semana pela imprensa, os versos relembram um marcante episódio de intolerância religiosa. No dia 12 de outubro, quando católicos celebram o Dia de Nossa Senhora Aparecida, o bispo da Igreja Universal Sérgio von Helder chutou uma imagem da santa no programa O Despertar da Fé, transmitido pela Rede Record. O episódio aconteceu em 1995 quando, por coincidência, a Igreja Católica passou a ter seu próprio canal de televisão, a Rede Vida.

O bispo foi condenado por intolerância religiosa e vilipêndio a imagem. O Ministério das Comunicações chegou a se comprometer a investigar se o pastor infringiu leis do setor e foi considerado parcialmente responsável pelo episódio pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio de Araújo Sales.

Mas, na “guerra santa” midiática, os que não professam nenhuma crença também já foram alvo de discurso de ódio. Em caso mais recente, a Band teve que assinar um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público Federal comprometendo-se a exibir 72 vezes um vídeo produzido pelo MPF cujo objetivo é conscientizar a população sobre a laicidade do Estado brasileiro. A assinatura do TAC, feita em 2016, é resultado de um processo aberto pelos procuradores contra a emissora após declarações preconceituosas do apresentador José Luiz Datena no programa Brasil Urgente contra cidadãos ateus, no dia 27 de junho de 2010. O apresentador teria associado práticas criminosas à “ausência de Deus”: “Porque o sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites, é por isso que a gente vê esses crimes aí”.

Para Daniel Sottomaior, presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), a veiculação desse tipo de conteúdo estimula o preconceito. José Luiz Datena, o repórter Maurício Campos e a Rede Bandeirantes foram condenados a pagar R$ 135.600,00 à Associação. Outro caso que acabou parando na Justiça diz respeito a uma ação foi movida, em 2004, pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) de São Paulo e o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro Brasileira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert). Naquela ocasião, a Justiça entendeu que a Rede Record e a Rede Mulher descumpriram o artigo 215 da Constituição de 1988, uma vez que deixaram de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e não protegeram as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras. As duas emissoras haviam produzido e veiculado conteúdos ofensivos contra as religiões de matriz africana.

Para a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Stela Guedes Caputo, apenas quando é cometida alguma violência contra um terreiro ou uma pessoa de religião de matriz africana é possível conseguir alguma abordagem positiva da mídia. No entanto, Stela considera a inclusão dos terreiros fundamental para se compreender o Rio de Janeiro e o Brasil: “Qualquer mídia e discussão política que exclua os terreiros não é democrática. Se uma criança de candomblé não pode andar na rua sem medo, não vivemos numa democracia”.

Que religião se vê na TV?

Apesar do crescimento do número de evangélicos, que aumentou mais de 61,45% nos últimos dez anos, o Brasil ainda é majoritariamente um país católico. De acordo com dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do país se divide entre 123.280.172 católicos; 42.275.440 evangélicos; 3.848.876 espíritas; 588.797 umbandistas, candomblecistas e pessoas de outras religiões afro-brasileiras; 5.185.065 cidadãs e cidadãos de outras religiões e 15.335.510 sem religião. Para a professora Magali Cunha, “os grupos religiosos são segmentos sociais como outros e podem participar do espaço público, inclusive da política. Isto é saudável numa democracia. A concessão de radiodifusão para grupos religiosos deveria obedecer aos mesmos processos de concessão para outros segmentos sociais, com as mesmas exigências de comprometimento”.

No entanto, como o interesse político e econômico influencia fortemente a aprovação de concessões de rádio e tevê, essa distribuição acontece de forma desigual. Segundo Stela Guedes, as religiões afrodescendentes são tratadas de forma negativa tanto pela mídia corporativa quanto pela mídia da Igreja Universal. “Lutar contra isso é muito difícil, porque os terreiros são unidades independentes e muito pobres, sem condições de ter meios de comunicação próprios como as igrejas católica e evangélica”, afirmou Stela, que é candomblecista e faz parte do grupo de pesquisa Kererê (“miúdo”, em iorubá).

Assim, enquanto milhares de pessoas de outras religiões não têm espaço na mídia, a Igreja Universal tem um verdadeiro conglomerado. De acordo com informações dos próprios veículos da Iurd, a Folha Universal é a publicação impressa de maior distribuição do Brasil, com tiragem semanal média de 1,6 milhão e circulação em todo o país. Dados de 2014 encontrados no site da Universal apontam que a Rede Aleluia, composta por emissoras de rádio e televisão, atinge 75% do território nacional. É formada por 64 emissoras, espalhadas por 22 estados. O missionário da Assembleia de Deus Cosme Felippsen acredita que o problema não é o fato de grupos religiosos serem detentores de outorgas de radiodifusão, mas o conteúdo que transmitem em suas pregações. “O pessoal demoniza as religiões de matriz africana, e isso é uma das faces do racismo. As igrejas cantam contra orixás e outras entidades”, conta. Felippsen critica sua igreja, considerada por ele uma das mais “machistas, homofóbicas e racistas”, porém ainda se identifica com ela por ser o espaço que frequenta desde os três anos de idade, quando sua mãe se converteu. Porém, lembra que é um erro associar todos os evangélicos ao conservadorismo: “Existe um grupo forte de comunidades de fé que se reúnem no Ato Aula Pública Evangelho e Desobediência Civil. São evangélicos de esquerda que se encontram para discutir política. É a contracorrente dentro do movimento”. Cosme Felippsen deixa o recado contra a intolerância: “O problema é que, às vezes, a gente generaliza tudo”.

Para a professora Magali Cunha, o que ocorre hoje é que os grupos religiosos tiram vantagem das concessões e dos arrendamentos da mesma forma que outros segmentos o fazem, uma vez que não há regulação. Segundo ela, “o mesmo ocorre com ‘abusos’ da presença religiosa em outras frentes do espaço público, na política partidária, em que não há regulação e freios para que estes grupos não ultrapassem o sentido democrático de sua participação”.

*A reportagem procurou a Igreja Universal do Reino de Deus através da única forma de comunicação que disponibiliza em seu site, um formulário para envio de email. Não obteve resposta até o fechamento da matéria.