Direitos humanos e mídia no Brasil: desafios na era da convergência

Texto: Iara Moura

Em abril deste ano, a expulsão de um dos participantes do Big Brother Brasil, reality da Rede Globo, aqueceu o debate sobre violência contra a mulher e a responsabilidade da mídia no respeito e garantia dos direitos humanos. Durante várias semanas, milhares de telespectadores/as acompanharam ao vivo o desenrolar de uma situação de agressão que marcou o relacionamento abusivo entre Marcos Harter e sua parceira no programa. As cenas geraram indignação em telespectadoras e telespectadores que se manifestaram nas redes sociais exigindo a saída do agressor da casa. Pressionada pela sociedade, a emissora decidiu pela expulsão do participante, após uma intervenção da Polícia Federal.

Recentemente, o caso voltou à tona, quando Marcos, acompanhado de Yuri, outro ex-BBB também acusado de violência contra a mulher, foram anunciados como participantes do reality A Fazenda, desta vez da Record.

Marcos e Yuri dois ex-BBB acusados de violência contra a mulher
Marcos e Yuri dois ex-BBB acusados de violência contra a mulher

O episódio gerou debate dentro e fora das redes. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha para um caso de violência que se desenrolou num reality show foi um dos temas. A responsabilização da Rede Globo, que prolongou a convivência da vítima com agressor no BBB17, alimentando-se da audiência gerada pela suposta polêmica até que o ato chegasse à violência física, também. Em nota, a Rede Mulher e Mídia, que reúne entidades da sociedade civil, pediu a atuação do Ministério Público Federal no caso:

“Numa sociedade em que uma mulher é agredida a cada 5 minutos, aproveitar-se de uma situação de violência para acumular índices de audiência, até o ponto em que uma agressão física chega a ser praticada de fato, é, para nós, mais que omissão. É cumplicidade”, defendeu.

O caso descrito traz pistas importantes para compreender como a chamada mídia tradicional (rádio e TV) e as novas mídias (Internet) podem ser utilizadas para violar ou para promover direitos.

O novo e o velho coexistem

Se a reprodução de desigualdades e opressões na mídia não é propriamente algo novo, é certo que a popularização do uso da Internet e suas ferramentas tornou ainda mais complexa uma equação outrora caracterizada por posições estáticas no que diz respeito a quem emite e quem recebe a mensagem. A possibilidade de gerar conteúdos próprios e através deles criar narrativas, emitir opiniões, expressar ideias e questionar, inclusive, as mensagens transmitidas pelas poderosas empresas de radiodifusão é uma das aberturas propiciadas pela Internet.

A percepção dessa potencialidade da rede levou a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH/OEA a publicar uma declaração em 2011 ratificando que a liberdade de expressão, direito previsto no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, se aplica também à Internet. Em informe publicado em 2013, a Relatoria estabelece cinco princípios orientadores para a defesa deste direito na rede: o acesso universal, a não discriminação, o pluralismo, a diversidade e a neutralidade de rede.

Por outro lado, a defesa de tais princípios e do próprio funcionamento da rede em consonância com uma arquitetura aberta, horizontal e livre, como previsto no Marco Civil da Internet, esbarra na conclusão de que velhas opressões e violências se reproduzem no ambiente online e voltam a recair sobre a população mais vulnerável: crianças, mulheres, jovens, LGBTs e negros e negras.

“A Internet fez avançar muito os grupos historicamente excluídos e discrimininados, mas ela é também um campo muito aberto à violência, à discriminação e à homofobia”, destaca Carlos Magno, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersex (ABGLT).

Quando se fala da violência contra as mulheres, os casos de perseguição, disseminação não consentida de imagens íntimas (NCII), ameaça, assédio, violência psicológica, censura e falsificação de identidade vêm se multiplicando. O racismo também se espraia nas redes culminando, para além dos discursos de ódio, ameaças e injúrias, em ataques coordenados (trollagem) de derrubada de perfis e páginas. Também este ano, a artista negra Michele Mattiuzzi sentiu na pele o ódio de grupos neofascistas.

A escritora e performer liderava a fase final de um certame, o prêmio Pipa, quando assistiu ao terceiro colocado na votação popular ultrapassar vertiginosamente sua posição. A virada foi resultado de uma ação articulada para impedir que ela viesse a ser vencedora. Ao mesmo tempo em que os votos para o concorrente cresciam exponencialmente, a artista foi alvo de mensagens e manifestações racistas, misóginas e gordofóbicas em seu perfil pessoal do Facebook e em suas postagens que denunciavam a suspeita virada.

Outra vítima dos ataques cibernéticos foi a cantora Pablo Vittar. Em agosto último, a artista teve o seu canal no Youtube, com quase 3 milhões de seguidores, invadido por hackers que excluíram o seu videoclipe “K.O.”, incluíram uma fotografia do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e adicionaram três vídeos com letras ofensivas, associando a cantora à pedofilia.

Também no que diz respeito aos direitos das crianças em sua relação com a mídia, observa-se que algumas situações e problemas coexistem nos meios tradicionais e na Internet. É o caso, por exemplo, da busca por firmar classificação etária para as programações (ou para as aplicações, no caso da Internet) e de pensar limites aos apelos comerciais da propaganda direcionada a esse público nas programações das TVs e nos canais do Youtube. Dados levantados pela pesquisadora Luciana Bittencourt, da ESPM, demonstram que, dos 100 canais mais vistos do Youtube, 1/3 são de conteúdo infantil. A pesquisa TICs domicílios de 2015 apurou que 79% das crianças e adolescentes brasileiras de 9 a 17 anos estão conectadas (cerca de 23 milhões, contra 3,6 milhões que nunca acessaram a rede). Desses, 1,4 milhão declararam que se sentiram discriminados na rede ou sofreram alguma violência no ano da pesquisa.

Em 2016, o Supremo Tribunal Federal derrubou a vinculação à classificação indicativa nas emissoras de TV, fragilizando ainda mais o instrumento de proteção da infância em sua relação com a mídia. No mesmo ano, o MPF aceitou uma denúncia do Instituto Alana relacionada ao caso de 15 empresas que oferecem produtos às crianças para que elas anunciem para outras crianças. “No nosso entendimento a abusividade é das empresas. A criança que faz o meio de campo nessa prática está também na condição de dupla vulnerabilidade, sendo anunciante e estando exposta a esse tipo de mensagem”, explica Renato Godoy, assessor de Relações Governamentais do Instituto.

Neste cenário, é desafiador pensar a proteção e promoção de direitos humanos num contexto midiático onde convivem analógico e digital, online e offline, no qual novas práticas políticas, sociais e identitárias esbarram na ressaca de ondas reacionárias.

Enquanto isso, na TV

Segundo dados da “Pesquisa Brasileira de Mídia 2016”, divulgada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência, quase 90% dos/as brasileiros/as se informam pela televisão sobre o que acontece no país, sendo que 63% têm na TV o principal meio de informação. A internet está em segundo lugar, como meio preferido de 26% dos entrevistados e citada como uma das duas principais fontes de informação por 49%.

Embora a TV aberta lidere com bastante folga os índices de penetração, o aumento do alcance do acesso às tecnologias de streaming, de vídeo sob demanda (VOD) e da própria TV por assinatura há algum tempo tiraram os produtores de conteúdo e radiodifusores da zona de conforto. As redes de TV erigidas sob poderosos monopólios nacionais vêm correndo atrás do prejuízo com a produção de conteúdo online e até com mudanças nas narrativas, com tramas mais rápidas e outras características próprias das séries estrangeiras, por exemplo.

Porém, a esse esforço de acompanhar os novos tempos, somam-se velhas formas de disputa de audiência, marcadas por opções estéticas e políticas de exploração da violência, apelos sensacionalistas, erotização precoce, manipulação político-religiosa, dentre outras estratégias que culminam na violação de direitos.

O caso dos programas policialescos é destaque nesse cenário. Em 2015, um monitoramento da Rede Andi em parceria com o Intervozes assistiu a 28 destes programas durante 30 dias e revelou a ocorrência de 4,5 mil violações de direitos e 15.761 infrações a leis brasileiras e a acordos multilaterais ratificados pelo Brasil. As violações mais comuns identificadas foram: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime, à violência e à desobediência às leis ou às decisões judiciais; exposição indevida de pessoas e famílias; discurso de ódio e preconceito; identificação de adolescente em conflito com a lei e violação do direito ao silêncio, tortura psicológica e tratamento degradante.

De lá para cá pouco mudou o cenário. Uma busca rápida no conteúdo disponibilizado online pelo programa Cidade Alerta RJ, por exemplo, exibido pela Record, é reveladora da exploração da violência contra a mulher. Somente no dia 19/09/2017, das 10 reportagens destaques no site do programa, três tratavam deste tipo de crime. Nas três, os detalhes das ocorrências são acompanhados da exposição de vítimas, parentes e acusados por meio de fotos e entrevistas. Em uma delas, é veiculado o vídeo do momento em que uma das vítimas é agredida a facadas. Apresentadores, repórteres e entrevistados/as levantam hipóteses sobre a motivação dos crimes: “a gravidez teria motivado”, “ele encontrou fotos íntimas dela mantendo relações sexuais com outro cara”, “segundo testemunhas, o homem não aceitava o fim do relacionamento”. Não há em nenhum momento referência à Lei Maria da Penha.

Neste contexto, o assassinato da jovem musicista Mayara Amaral, em julho deste ano, trouxe à tona o debate sobre o enquadramento da violência contra a mulher pela mídia. Inicialmente, os acusados de matarem a vítima a marteladas e depois carbonizar o corpo foram enquadrados no crime de latrocínio. Depois, a defesa alegou o uso de drogas por parte de um dos suspeitos. Em post no Facebook, a irmã da vítima defendeu a tese de feminicídio e criticou as narrativas veiculadas pela mídia:

“Quando escrevem que Mayara era a ‘mulher achada carbonizada’ que foi ensaiar com a banda, ela está em uma foto como uma menina. Quando a suspeita envolvia ‘namorado’, hiper-sexualizam a imagem dela. Quando a notícia fala que a cena do crime é um motel, minha irmã aparece vulnerável, molhada na praia. Quando falam da inspiração de Mayara, associam-na com a história do pai e avô e a foto muda: é ela com o violão, porém com sua face cortada. Esse tipo de tratamento não representa quem minha irmã foi. Isso é desumanização”, defende. Diante da polêmica, o Cidade Alerta MS, no programa que foi ao ar em 31/07/2017, chegou a convidar um advogado criminalista para explicar no estúdio a diferença entre as tipificações e penas de feminicídio e latrocínio.

Não obstante este aumento de visibilidade que se dá quando da ocorrência de crimes bárbaros com o de Mayara, de Eloá e de tantas outros que tiveram forte apelo midiático, a violência contra a mulher é explorada de maneira recorrente não só nos programas policialescos, mas em outras programações da TV aberta. Como relatamos no início deste texto, é também usada como instrumento para gerar polêmica e atrair audiência nos realities shows. E, nestes programas, as violações não se restringem aos direitos das mulheres.

Em A Casa, também da TV Record, exibido em julho deste ano, há uma competição entre 100 participantes que são colocados numa casa de 120 metros quadrados, com infraestrutura e espaço para uma família de quatro pessoas e que devem sobreviver em condições degradantes e humilhantes, como falta de lugar para dormir, comida escassa e ausência de condições mínimas de higiene. Por conta disso, o reality foi denunciado ao Ministério Público e, de acordo com o colunista da UOL Maurício Stycer, um dos participantes teve um surto e ameaçou se matar, após ser afastado por ter contraído conjuntivite.

Os humorísticos também fazem uso recorrente da banalização da violência em busca de atrair audiência. Os ataques recorrentes do humorista Danilo Gentili, atualmente à frente do The Noite, exibido pelo SBT, à deputada Maria do Rosário (PT/RS) são exemplares disso. Num dos mais recentes, em maio deste ano, o apresentador publicou um vídeo em sua página pessoal do Facebook no qual ofende a parlamentar e rasga uma notificação da Procuradoria Parlamentar que o avisava de uma denúncia de difamação aberta por Maria do Rosário. No vídeo, Gentili esconde a primeira e a última sílaba da palavra deputada, deixando visível a inscrição “puta”. Após isso, rasga a intimação e coloca os pedaços dentro da calça. Embora a acusação de Rosário refira-se a ofensas e injúrias feitas pelo apresentador em suas contas pessoais no Twitter e no Facebook, o apresentador já utilizou de seu expediente na TV aberta para debochar de violência sexual contra a mulher e fazer apologia a violações de direitos e desrespeito às leis.

Diante desta situação, vale questionar: quais as diferenças no tratamento e nas respostas às violações de direitos cometidas por emissoras de rádio e TV daquelas praticadas no ambiente online?

Diferente funcionamento, diferente regulação

Como visto, em sua busca incansável por audiência e lucro, as emissoras não têm tido uma atitude ativa no sentido de prevenir e combater violações de direitos humanos. E tal atitude não seria um favor ou uma ação de caridade cristã por parte das empresas: é previsão que consta na Constituição Federal e em diversos pactos e tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A própria Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, estabelece como tipos de violência contra a mulher a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. E determina, em seu artigo 8º, inciso III, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.

O problema é que o Brasil não conta com um órgão autônomo que faça o papel de fiscalizar essas situações. Com uma atuação frágil e pouco efetiva, cabe ao Ministério das Comunicações, hoje fundido no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), tal responsabilidade. Experiências de outros países mostram que caminhos diferentes são possíveis.

Em 2012, a Argentina criou a Defensoria do Público, órgão de Estado independente com prerrogativas de fiscalizar os canais de rádio e TV e propor políticas públicas na promoção e defesa do direito à comunicação e à liberdade de expressão no país.

Na França, em 2011, o Conselho Superior do Audiovisual (CSA), após realizar dezenas de audiências públicas sobre os reality shows, lançou um documento com recomendações às emissoras relacionadas à proteção dos direitos humanos.

O documento solicita aos produtores dos programas cuidados na seleção dos/as participantes que incluam acompanhamento médico e psicológico antes, durante e depois do programa; encoraja a identificação da faixa etária indicada; lembra que, qualquer que seja o conceito do reality, os/as participantes não deverão ser colocados em situações degradantes ou que os/as levem a adotar ou se submeter a atitudes humilhantes; e pede que os contratos com os/as participantes fiquem sujeitos à análise do CSA nas questões de sua competência.

Além disso, orienta que “os produtores e diretores reflitam sobre a sua responsabilidade social e ética em relação aos valores veiculados nos reality shows, susceptíveis de serem assistidos pelo público jovem qualquer que seja a faixa etária definida, e que podem encontrar eco particularmente forte na Internet, notadamente nos espaços comunitários (fóruns, blogs, redes sociais…) onde os conteúdos são menos regulados”.

A preocupação do órgão francês com o fato dos conteúdos transmitidos pelas redes de TV encontrarem eco também nas redes sociais aponta outro desafio que há que se ter em vista. Por ter um funcionamento diferente, a regulação da Internet também se dá de maneiras díspares da regulação dos meios tradicionais. Sendo assim, as respostas cabíveis ao Estado, às empresas, ao Judiciário e à sociedade civil, também.

A afirmativa de que os conteúdos são menos regulados na rede diz da dificuldade de se identificar e circunscrever responsabilidades num cenário de multi produtores e de atualização em tempo real. Quando se trata de uma rede de TV, concessão pública, com transmissão de conteúdo para milhares de pessoas ao mesmo tempo, é mais fácil identificar a autoria e sentido das violações. O que, por outro lado, não necessariamente resulta em ações efetivas por parte do Estado ou das empresas, como já apontado.

Pensando o problema da violência contra a mulher na Internet, Thandara Santos, da Marcha Mundial das Mulheres, traz uma reflexão interessante para se pensar a conexão entre os mundos online e offline na reprodução do machismo e as formas de combatê-lo. Para ela, é fundamental entender a Internet como um espaço importante de articulação das mulheres, como nos casos da mobilização gerados em torno das hashtags #MeuPrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e #NiUnaMenos. Ao mesmo tempo, a ativista alerta para urgência de se construir formas de enfrentamento às violências de gênero online.

“Um primeiro alerta é não ficar preso aos episódios da violência da mulher na rede e entender o debate de uma forma mais complexa. Entender violência contra a mulher de uma forma estruturante diz respeito à maneira como esse sistema capitalista está engendrado também nas redes. Se a gente fica preso em alguns casos, a gente pode acabar comprando a ideia de que a resposta é o aumento do controle sobre a Internet, o aumento da interferência do capital sobre essa rede e sobre a neutralidade da rede”, explica.

Violência de gênero online

A cientista social e fotógrafa Manu Justo teve, em setembro deste ano, uma postagem censurada no Facebook. O post tratava-se de um convite para a exposição Puta Que Pariu, projeto que reúne autorretratos de mulheres mães e explora a relação entre gênero e sexualidade. A foto era a imagem de uma vagina com uma breve descrição e convite. Ao postar, ela recebeu uma mensagem que justificava a remoção do conteúdo por não seguir os “padrões da comunidade Facebook”.

Convite para a exposição Puta Que Pariu censurado pelo Facebook
Convite para a exposição Puta Que Pariu censurado pelo Facebook

Como este, são recorrentes os casos de censura a imagens de mulheres amamentando ou de peito de fora durante manifestações políticas. Em 2015, a censura a uma foto de uma indígena que faz parte do acervo do Ministério da Cultura chamou atenção para a prática e gerou questionamentos quanto aos parâmetros estabelecidos pela plataforma e os limites colocados à liberdade de expressão. Neste sentido, a falta de transparência das políticas da plataforma e do próprio funcionamento dos algoritmos é algo central.

As violações de direitos no ambiente online, porém, estão longe de ficar a cargo apenas das plataformas. As velhas conhecidas práticas de invasão, hackeamento, vazamento de dados pessoais, roubo de identidade, criação de perfis fakes, ameaças de violência física, estupro, assédio, perseguição e ameaça às mulheres, por parte de parceiros ou ex-parceiros, ou de grupos LGBTfóbicos, racistas e machistas, se reproduzem no ambiente online e ganham graves contornos.

Num dos casos mais recentes e notórios, a justiça do Piauí determinou, em agosto de 2017, a prisão provisória por 30 dias de um homem acusado do crime de “estupro virtual”. Segundo a ação, o acusado vinha exigindo que sua ex-namorada se masturbasse e lhe enviasse fotos e vídeos do ato, sob ameaça de divulgar imagens dela nua nas redes sociais (“sextorsion”).

A inovação jurídica consiste no fato de que, embora não exista o tipo “estupro virtual” no Código Penal brasileiro, o acusado foi enquadrado com base no artigo 213, que prevê a condenação de quem obriga alguém a praticar qualquer tipo de ação de cunho sexual contra sua vontade, sob ameaça ou uso de violência.

Pensando neste cenário, Patricia Cornils, da Actantes, aponta a necessidade de que as mulheres se empoderem das ferramentas que as novas mídias possibilitam e das estratégias de autoproteção como forma também de contrapor-se às violências e proteger a rede do controle abusivo por parte das corporações e do Estado.

Mariana Valente, do InternetLab, defende a busca por soluções conjuntas do Estado, da sociedade civil e das empresas e aponta caminhos possíveis para além da criminalização. “Em 2017, a gente já sabe que a nossa vida e a Internet estão muito misturadas. A gente sabe que ela tem servido tanto pra ativismo quanto pra prática de violência contra grupos subalternizados. Isso mostra que a gente tem que sentar na mesma mesa e procurar soluções em novos termos. Primeiro em multicamadas e depois pensar um pouco fora da caixinha. Por que não pensar em comissões multissetoriais pra lidar com a questão de censura e violência na Internet? Isso é uma coisa que a Nova Zelândia está fazendo”, aponta.

Estas são algumas propostas apontadas pela Associação para o Progresso das Comunicações (APC), rede internacional que reúne entidades da sociedade civil que atuam no tema. Na publicação, resultado de um encontro internacional, são listados 15 Princípios para uma Internet Feminista que vão desde a garantia do direito ao acesso, o combate à violência online e a importância de manter preservada a privacidade, até o anonimato e a proteção de crianças e adolescentes.

Desafios entre o online e o offline

Em 2018, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos de existência. Junto dela, a concepção de que seres humanos são dotados de direitos inalienáveis, interdependentes e indivisíveis vem trilhando um caminho de consolidação que alterna períodos de refluxos e de ascendência.

No que tange à Internet, o Brasil precisa enfrentar, a um só tempo, o desafio de defender o caráter livre, aberto e plural e garantir a proteção aos direitos humanos na rede, e paralelamente correr atrás da dívida histórica que relegou metade da população a uma vida offline, no que se refere aos índices de acesso domiciliar.

Neste sentido, ficam as questões: como garantir a universalização do acesso num contexto em que a lógica de mercado se impõe, privilegiando regiões e parcelas da sociedade com maior poder aquisitivo? Como cobrar das plataformas maior transparência quanto às suas políticas de conteúdo, de privacidade e o funcionamento dos algoritmos? Como garantir espaços de participação e decisão multissetorial na governança da Internet (e contrapor-se aos ataques ao Conselho Gestor da Internet)? Como buscar respostas mais rápidas e eficazes às vítimas de violência online sem, necessariamente, recorrer à criminalização?

Enquanto os usos da Internet impõem alguns novos desafios como os dispostos, na radiodifusão persistem as questões conhecidas e enfrentadas desde o início deste século: como inverter a lógica dos grandes monopólios, centrados no lucro e na busca pela audiência a qualquer custo? Como aumentar a diversidade e pluralidade neste contexto? Como garantir uma participação da sociedade civil em todas as etapas do circuito, passando pela produção, recepção e consumo? Que papel cabe ao Estado na fiscalização e promoção dos direitos quando falamos de concessões públicas, como é o caso do rádio e da TV?

No Brasil atual, assiste-se a um período de crise político-econômica marcado pelo retrocesso na garantia e proteção de direitos, compreendidos em seu sentido mais amplo, abarcando os Direitos Humanos Econômicos Sociais, Culturais e Ambientais (Dhescas). Tal cenário tem reverberações profundas na vida cotidiana de mulheres, indígenas, LGBTs, crianças, jovens, negros e negras, defensores e defensoras de direitos humanos. O agravamento das condições materiais de existência, o aumento da violência contra a mulher, LGBTs, comunidades tradicionais e os ataques aos direitos civis são algumas delas.

O aumento exponencial no número de mortos nas favelas e periferias, nos presídios e as chacinas no campo também é revelador desta situação. Neste sentido, outro episódio paradigmático da relação entre mídia e direitos humanos foi o brutal ataque desferido contra os índios Gamela, na localidade de Viana, interior do Maranhão, em maio deste ano. A barbárie que resultou em pelo menos 13 indígenas gravemente feridos (com golpes de facas e membros decepados) foi antecedida por uma verdadeira campanha levada a cabo pela rádio local, conclamando e justificando a violência contra as vítimas.

No programa, que foi ao ar dois dias antes do fato, transmitido pela Rádio Maracu, ouve-se por diversas vezes: “dizem que são índios”, “arruaceiros”, “pseudo-índios” e “precisamos acabar com isso”, “não vamos tolerar”. São 41 minutos onde se sucedem no microfone políticos locais que, a despeito do que coloca a Constituição Federal, são sócios proprietários do grupo que detém a rádio. Destaca-se a fala do deputado federal Aluísio Mendes (PTN-MA), também reproduzindo discurso preconceituoso e de incitação à violência.

A partir desta imagem, pensar a proteção de direitos em sua relação com a mídia no Brasil é pensar desafios que se desenrolam não só no âmbito dos meios tradicionais ou das novas mídias, mas também dizem respeito a processos econômicos, sociais e políticos amplos que reproduzem desigualdades e violências em várias camadas da vida e, por isso mesmo, necessitam ser enfrentados de maneira estrutural.

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