Campanha convida cidadãos a lutar pela proteção de dados pessoais

O uso abusivo dos nossos dados não é uma batalha perdida. Para mudar a atual situação, é preciso que a sociedade pressione o Congresso

*Por Jonas Valente

Mais de 500 mil pessoas já baixaram o aplicativo “Pão de Açúcar Mais”, que garante descontos importantes em diversos produtos. Bom demais para ser verdade? O que teria feito uma rede tão grande abrir mão de parte das receitas deste jeito? A resposta é: os nossos dados pessoais. O objetivo do aplicativo é coletar o máximo de informações dos clientes, que podem ser tanto usadas pelo grupo quanto repassadas a fornecedores e empresas parceiras.

Os termos de uso e a política de privacidade do aplicativo afirmam que o programa pode também monitorar a navegação dos usuários em outros sites (por meio da instalação de cookies, arquivos de internet que armazenam temporariamente o que o internauta está visitando na rede). Segundo o texto, a empresa pode ainda alterar os termos a qualquer momento sem comunicar aos clientes. Os “termos”, aqueles que muita gente não lê e apenas assinala “eu concordo” quando instala algo deste tipo. Não são um acordo, mas uma imposição: se o usuário não aceitar as exigências, têm como única opção não ter o aplicativo e, por consequência, os descontos dos produtos.

Esse é mais um dos inúmeros exemplos da exploração abusiva (e muitas vezes ilegal) das informações de pessoas, fenômeno que cresce assustadoramente em nossa sociedade, inclusive no Brasil. Para além das redes de varejo, essa prática é adotada por plataformas (como o Facebook, que neste ano foi denunciado por negociar informações de jovens emocionalmente vulneráveis) e governos (como a tentativa do estado de São Paulo de privatizar a administração do bilhete único e a venda das informações de todos os passageiros cadastrados no programa).

Os dados pessoais são chamados de “novo petróleo” da economia por serem considerados fundamentais pelas empresas para seus negócios. Os diversos serviços “grátis” e descontos têm por trás um objetivo claro: ampliar a capacidade de controle sobre o que as pessoas fazem e como consomem. Enquanto corporações concorrem nesta corrida pela coleta e processamento da maior quantidade de informações possível, nós somos colocados à venda e ficamos totalmente desprotegidos.

Uma campanha pela proteção de dados

Para alertar cidadãs e cidadãos sobre esse problema, a Coalizão Direitos na Rede (que reúne dezenas de entidades da sociedade civil, pesquisadores e organizações de defesa do consumidor) lança, nessa semana, a campanha “Seus Dados São Você: liberdade, proteção e regulação”. A iniciativa vai promover diversas ações para pautar o tema e chamar atenção para a necessidade de construir regras que evitem esses abusos, em especial uma legislação para o assunto.

A mobilização se inicia hoje (19) no seminário de privacidade do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e terá novos eventos em diversas cidades. Ela também será tema de atividades durante a Semana pela Democratização da Comunicação, de 15 a 21 de outubro. Além de eventos, a campanha vai disseminar material nas redes sociais discutindo o assunto e denunciando casos de uso abusivo e ilegal de dados. Também serão feitas sugestões de como mudar esta realidade, para que possamos ter acesso a recursos tecnológicos sem violar nossa privacidade ou ficarmos à mercê dessas corporações, como por meio da aprovação de uma lei.

Não temos nada a esconder?

Um primeiro objetivo da iniciativa é mostrar que o controle sobre os dados é um direito. Há quem diga que não liga para o problema porque “não tem nada a esconder”. A questão não é sobre segredos, mas sobre o direito das pessoas de escolher o que divulgar e para quem. Todo mundo deixa o computador aberto no meio do trabalho? Ou aceita colocar todos os seus e-mails ou mensagens de Whatsapp na internet? Aceitamos “andar todos nus”?

O caráter privado dessas comunicações e recursos como senhas e afins existem exatamente porque muitos gostam de (e muitas vezes precisam) manter parte da sua vida para si. E a publicação de mensagens, fotos e vídeos já é possível em diversos espaços, como as redes sociais. A diferença é que isso deve ser uma escolha, e não uma imposição dos aplicativos, não? Não deveria o usuário poder dizer o que quer dividir, saber o que é feito com suas informações, aceitar ou não se estas vão ser usadas para recomendações automatizadas ou para publicidade personalizada?

Inês é morta?

Outro propósito é apontar que é possível uma situação diferente sim. A coleta massiva e o uso indiscriminado de dados não são uma realidade dada, mas um processo em disputa. Em conversas com amigos, não é difícil ouvir “ah, mas eles já sabem tudo sobre nós”. Este é o objetivo de plataformas, corporações e governos, mas a quantidade já coletada é pouco perto do que ainda podem acessar. Essa é a grande questão: as empresas estão fazendo de tudo para saber o que puderem sobre nós. E isso só ocorre porque no Brasil não há uma legislação de proteção de dados pessoais, que existe em outros países, como na União Européia e em oito nações da América Latina.

Garantir a proteção em lei

Nem todo mundo sabe que há propostas de lei sobre o tema em discussão no Congresso, sendo a mais importante delas o PL 5276/2016, enviado pelo Executivo após intensos debates e consultas. Aqui neste blog já publicamos antes análises sobre os projetos e a importância da sua aprovação. A Coalizão Direitos na Rede já se manifestou em defesa do PL 5276, apontando o que uma lei de proteção de dados precisa ter. A rede defende a garantia da coleta mínima e com consentimento, o uso apenas para a finalidade descrita no momento da permissão, o acesso aos dados pelas pessoas em qualquer momento do tratamento e a criação de uma autoridade que possa fiscalizar e punir abusos e ilegalidades, entre outros pontos.

Do outro lado, empresas de diversos setores, plataformas (como Facebook e Google) e operadoras de telecomunicações pressionam para assegurar em lei uma “farra dos dados”. Assim poderiam colher o máximo de informações, usar para o que bem entenderem sem pedir a nossa permissão, não ter qualquer obrigação de transparência com o usuário e ainda reduzir a capacidade de serem fiscalizadas e punidas se desrespeitarem a lei.

A Campanha Seus Dados São Você é lançada em um momento chave deste embate. A comissão especial criada para discutir o tema na Câmara está prestes a apreciar uma nova versão a partir dos projetos em análise, chamada na linguagem do Parlamento de substitutivo. Um primeiro esforço da campanha é garantir que a lei de dados pessoais seja votada e aprovada. O segundo, e mais importante, é impedir que ela prejudique cidadãs e cidadãos e, ao contrário, garanta a nossa proteção contra o avanço das corporações sobre nós e nossa vida.

Sua proteção depende também de você

Para conquistar uma vitória, a pressão deve ir além das entidades já envolvidas com o tema. É preciso que todas e todos com a preocupação sobre seus dados e o controle de suas vidas ajudem a pressionar os parlamentares e o governo. A Campanha traz este chamado: faça parte deste movimento. Mas como cada um pode ajudar? De diversas formas:

– Entre no site da campanha e saiba mais sobre o tema e sobre as propostas em discussão no parlamento;

– Siga a página da Coalizão Direitos na Rede no Facebook e o perfil no Twitter, compartilhe os posts, participe das mobilizações na rede (como o tuitaço marcado para quinta-feira, 21, a partir das 14h30);

– Se você faz parte de alguma organização, entre em contato com a Coalizão Direitos na Rede para saber como ajudar, organizar um debate ou contribuir de alguma forma;

– Fique ligado nas mobilizações sobre o Congresso e os parlamentares (que serão divulgadas nos perfis da Coalizão) pela aprovação da lei de dados pessoais.

Faça parte desta campanha. A mobilização de brasileiras e brasileiros já conseguiu garantir a aprovação do Marco Civil da Internet e barrar o limite de dados na internet fixa (as chamadas franquias). Agora chegou a hora de mostrar ao Parlamento que não aceitamos ser colocados à venda.

*Jonas Valente é integrante do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes e doutorando no departamento de Sociologia da UnB, onde estuda plataformas digitais

2017: privatização e exclusão de direitos do mapa das telecomunicações

Reportagem: Helena Martins

Há vinte anos, o Congresso Nacional aprovava a Emenda Constitucional que inseriu a possibilidade de reeleição do Presidente da República no sistema político brasileiro. No documentário Arquitetos do Poder, que trata da relação entre mídia e política, esse momento é retratado com a seguinte cena: o então deputado Michel Temer, líder do PMDB à época, sai de uma sala, empolgado, comemorando o feito. Em troca, Temer ganharia todo o apoio do presidente Fernando Henrique Cardoso e da máquina do Executivo para ser eleito presidente da Câmara.

A aprovação de tal emenda foi viabilizada com ampla compra de votos e o compromisso de que o patrimônio público seria entregue à iniciativa privada. Como parte disso, FHC efetivou a privatização das telecomunicações. A Telebras foi fatiada e vendida para diversas empresas, que, com gestos pouco nobres, em troca aportaram recursos para a reeleição de FHC. A “maior privatização do planeta”, conforme noticiou até mesmo O Globo à época, arrecadou R$ 22 bilhões.

Michel Temer e Gilberto Kassab - Foto: Beto Barata/PR
Michel Temer e Gilberto Kassab – Foto: Beto Barata/PR

Muitos desses personagens estão novamente em cena, aplicando o programa neoliberal de defesa da suposta redução do Estado e de favorecimento do mercado. No caso das telecomunicações, o golpe parlamentar que levou o mesmo Michel Temer ao poder acelerou o processo de maximização do Estado no que tange ao atendimento dos interesses privados e a eliminação da perspectiva cidadã e de direitos em um setor que, mais até do que há vinte anos, é estratégico para a continuidade da acumulação do capital. Isso porque as redes de telecomunicações concretizam a conexão de partes do globo, necessária à financeirização e à descentralização da produção, com a manutenção do controle nos países do centro capitalista, ao passo que sustentam toda uma nova gama de produtos e serviços digitais, cuja exploração interessa ao mercado.

Riscando o interesse público do mapa

Muitos ataques ao interesse público nas telecomunicações foram proferidos no último ano. A expressão mais completa do plano está no Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 79/2016, que propõe alterações drásticas na Lei Geral das Telecomunicações (LGT), que organiza o setor desde 1997. O projeto propõe a adaptação da modalidade de outorga de serviço de telefonia fixa de concessão para autorização, bem como a entrega de um patrimônio bilionário para as empresas. Os defensores da proposta alegam que, em troca, as operadoras vão investir valor equivalente ao que receberão de presente na expansão da rede de banda larga. O projeto, contudo, não detalha como essa contrapartida será efetivada.

Embora mude substancialmente o setor, a proposta passou pela Câmara dos Deputados de forma sorrateira, sem sequer ser debatida em plenário. O mesmo ocorreu no Senado, onde não passou nem pelas comissões técnicas vinculadas à matéria. Os senadores não puderam nem utilizar todo o prazo regimental para apresentar emendas. Sem debate com o conjunto dos parlamentares, muito menos com a sociedade, o projeto foi aprovado e remetido à sanção presidencial.

A questão foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), a partir de mandado de segurança impetrado por 13 senadores das bancadas do PT, PSB, PDT, PMDB e PC do B, que reivindicaram a análise de recursos que pediam que o plenário do Senado debatesse o tema. A liminar foi deferida pelo ministro Roberto Barroso, que impediu que o projeto fosse remetido novamente à sanção presidencial até o julgamento final das ações. A situação segue indefinida, e o Senado aguarda uma decisão final do STF, cujo relator do caso é o ministro Alexandre de Moraes.

Na prática, os efeitos do PLC 79 levarão à extinção do regime público no setor, acabando com obrigações impostas pela lei às empresas, que teriam, assim, mais liberdade para atuar exclusivamente em busca de lucros. De acordo com LGT, a exploração das telecomunicações está organizada em dois regimes: o público e o privado. As operadoras que prestam serviços em regime público recebem uma concessão e são submetidas a uma série de normas, como atendimento de metas de universalização, continuidade na oferta e controle dos valores das tarifas cobradas dos usuários. Já aquelas que funcionam no regime privado não têm essas mesmas obrigações, recebendo apenas uma autorização para que possam operar. Enquanto o artigo 65 da LGT estabelece que “não serão deixadas à exploração apenas em regime privado as modalidades de serviço de interesse coletivo que, sendo essenciais, estejam sujeitas a deveres de universalização”, o PLC 79 diz exatamente o contrário: que a exploração dos serviços essenciais ocorrerá “apenas em regime privado”.

Universalização do acesso à internet ficará comprometida

O fato de apenas a telefonia fixa ser prestada em regime público, segundo a LGT, fez com que houvesse grande crescimento desse serviço no País. Essa expansão foi pautada pelo Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado no Regime Público (PGMU), que tornou obrigatória a garantia de linhas telefônicas fixas em localidades com mais de 300 habitantes e fixou prazos para atendimentos de pedidos individuais e instalação de orelhões. Não à toa, pequenas localidades passaram a contar com um equipamento de telefone público. De acordo com o PGMU, as operadoras só poderiam atuar em outras localidades, além da região originalmente definida pela concessão, caso atendessem essas metas.

Os planos de universalização foram atualizados posteriormente, em 2003 e 2011, fixando novas obrigações para que o serviço se tornasse, de fato, acessível à população. Assim, as empresas Oi, Vivo e Claro, bem como a Sercomtel e a Companhia de Telecomunicações do Brasil Central (CTBC) que receberam concessões de telefonia fixa, têm se mantido, ao longo de todo esse tempo, atreladas a obrigações que, muitas vezes, contrariam os interesses comerciais.

Sem essas obrigações, dificilmente a população ribeirinha, por exemplo, terá acesso à rede de telecomunicações, afinal as empresas estão mais interessadas em investir em áreas lucrativas, como a capital paulista. Por isso, em vez de eliminar o regime público, é preciso ampliar a sua abrangência, incluindo nele a implantação de infraestrutura em redes de fibra ótica, já que o acesso à internet é considerado “essencial ao exercício da cidadania”, conforme fixa o Marco Civil da Internet. É isso que articulações da sociedade civil defendem, como a Campanha Banda Larga é um Direito Seu!, que apoia a proposta daquele artigo 65 da LGT. E é isso que o PLC 79 quer inviabilizar.

Diante da possibilidade de uma canetada riscar o interesse público do mapa das telecomunicações, mais de trinta organizações da sociedade civil, articuladas em torno da Coalizão Direitos na Rede, mobilizaram-se para denunciar os ataques e as manobras em torno do PLC 79. Em nota pública, elas destacaram que “é direito da população brasileira aprofundar as discussões sobre Projeto 79/2016 e suas consequências para o uso da infraestrutura de telecom do país e para as políticas de universalização de serviços essenciais como o acesso à internet no Brasil”.

Projeto propõe um presente para as teles: R$ 100 bilhões

Após a quebra do monopólio estatal, a Lei Geral de Telecomunicações determinou que os grupos que recebessem uma concessão ficariam obrigados a devolver ao Estado, após o término dos contratos, os bens públicos que seriam transferidos a eles para que pudessem prestar o serviço. Esses são os chamados bens reversíveis, que incluem, entre outros itens patrimoniais, prédios, antenas e cabos. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), a soma de todo esse patrimônio deve ultrapassar R$ 100 bilhões.

Com o PLC 79, as teles poderão ganhar de presente boa parte desses recursos, para investir em suas próprias redes e levar banda larga para onde bem entenderem. O projeto ainda prevê a redução do valor total dos bens devido pelas companhias à União, já que defende que sejam levados em consideração apenas os “ativos essenciais e efetivamente empregados na prestação do serviço concedido”, e não a totalidade do que foi emprestado no momento da outorga.

A drástica redução da dívida das operadoras frente à União que o projeto viabilizará foi apontada na Nota Informativa da Consultoria do Senado que analisou o PLC, bem como em parecer do Ministério Público Federal (MPF) sobre ele. Já o Ministério da Fazenda argumenta que a devolução dos bens foi prevista porque garantiria que o Estado tivesse condições de prestar o serviço, caso a iniciativa privada não se interessasse por ele. Como isso não ocorreu, o Ministério sustenta, em nota técnica, que “os bens reversíveis podem ser integralizados pelas empresas que podem investir mais na expansão da oferta de redes, o que viabilizará uma nova onda de investimentos no setor”. Ocorre que é difícil saber o que é ou não essencial, e não há mecanismos que definam como ocorrerá esse investimento.

Além disso, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) não tem sequer o controle desses bens. A situação foi atestada por auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), que destacou que o “processo de fiscalização da Anatel não garante a fidedignidade e a atualidade dos bens reversíveis”. O problema pode ser ainda maior. Reportagem da CartaCapital mostrou que muitas operadoras já venderam, de forma irregular, parte do patrimônio recebido. Investigando processos internos da agência e documentos do TCU, o repórter André Barrocal revelou que a Oi, operadora que possuía cerca de R$ 51,9 bilhões em bens, teve redução de R$ 10,5 bilhões do total desse patrimônio, apenas entre 2011 e 2013. Em anos anteriores, entre 2002 e 2007, 1.026.311 itens foram vendidos, de acordo com análise do TCU divulgada pela revista.

Segundo a CartaCapital, Brasil Telecom, Claro e Telefônica também venderam bens públicos de forma irregular, ainda que em quantidade bem menor do que a surrupiada pela Oi. As regras brasileiras estabelecem que a alienação desse patrimônio só poderia ocorrer após análise e autorização da agência reguladora, e os recursos arrecadados teriam que ser usados na prestação do serviço de telefonia fixa. Para facilitar a vida dos grupos empresariais, a Anatel passou recentemente a permitir essas vendas, sem anuência prévia, em transações de até R$ 750 mil.

Tentando amenizar a gravidade do problema, defensores da entrega dos bens para as empresas costumam argumentar que as redes de cabos de cobre que foram utilizadas para levar a telefonia fixa a praticamente todo o país estão obsoletas e, por isso, têm pouco valor. O que eles deixam de apresentar ao público são soluções tecnológicas que permitem o provimento de banda larga, inclusive em alta velocidade, por esses fios, como a tecnologia GFAST. O argumento também desconsidera que, embora o número de telefones fixos esteja caindo, esse serviço ainda é essencial especialmente em localidades desprovidas de outras formas de comunicação, exatamente porque não interessam às empresas privadas.

Oligopólio ad infinitum

O projeto também propõe medidas para manter a já alarmante concentração do mercado de telecomunicações do Brasil, que hoje é dominado por apenas quatro grandes operadoras, como mostra a tabela abaixo. Não é preciso ir muito longe para saber o que isso significa na nossa vida: ao tentar contratar serviços como telefonia ou Internet, é fácil perceber a falta de oferta e a pouca diversificação de pacotes e valores. Em regiões menos atrativas, sejam as zonas rurais ou mesmo as áreas periféricas das grandes cidades, é comum que os usuários tenham como opção apenas uma ou duas operadoras.

Na tabela, foram agregados os dados de empresas autorizadas e concessionárias da telefonia fixa. Embora possuam obrigações distintas em relação à universalização dos serviços, tarifas e outras questões, o que o quadro busca evidenciar é o controle do mercado por poucas operadoras. A Anatel não incluiu, no relatório de abril de 2017, a especificação dos dados de serviços pré e pós-pago, mas a diferenciação foi feita pela Teleco.

SERVIÇO(abril/2017) CLARO TELEFÔNICA/VIVO OI TIM
Telefonia Fixa 26,4% 23% 34% 1,27%
Telefonia Móvel pré-paga 25,80% 24,78% 20,35% 28,44%
Telefonia Móvel pós-paga 22,94% 42,11% 11,41% 19,09%
TV paga 51,3% 8,84% 7,3% _
Banda Larga Fixa 31,4% 27,6% 23,5% 1,3%
Banda Larga Móvel 27,67% 29,11% 16,05% 25,10%

Síntese da concorrência no setor de telecomunicações.
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados da Anatel e da Teleco de abril de 2017

O PLC 79 busca garantir que o controle do setor das telecomunicações permaneça nas mãos das poucas e mesmas empresas – as quais, à exceção da Oi, pertencem ao capital transnacional. Hoje, o prazo das concessões é de vinte anos, prorrogável uma vez por igual período. O projeto elimina a quantidade possível de prorrogações. Ele também abre espaço para negociações de autorizações entre os grupos, pois permite que uma empresa transfira para a outra a licença, sem passar por licitação, bastando apenas a anuência da amigável Anatel. A análise da Consultoria do Senado apontou que a alteração pode criar um “mercado privado concentrado de revenda de autorizações”.

Pela proposta, essa negociação entre entes privados pode ocorrer no caso dos serviços autorizados e até dos satélites, cujo contrato de exploração atual é de quinze anos, prorrogável pelo mesmo período. Para tanto, o PLC elimina os limites de prorrogação e revoga o parágrafo da LGT que prevê a realização de licitação em casos de transferência. Tendo em vista a escassez desses recursos, o MPF alerta que as mudanças “têm potencial de criar poder de monopólio em favor das empresas autorizadas a explorar faixas de radiofrequência e o satélite brasileiro, gerando barreiras ao incremento da competição nos serviços de telecomunicações”.

Recém-construído com recurso público, satélite poderá ser privatizado

No Brasil, 58% da população usam a internet, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2015. Detalhando esse quadro, notamos um abismo digital: enquanto 95% dos entrevistados da classe A haviam utilizado a rede menos de três meses antes da pesquisa, a proporção cai para 82% para a classe B; 57% para a C, e 28% para a D e E. Sendo tratado como mercadoria, o acesso à rede permanecerá restrito a quem tiver condições de pagar por ele, aprofundando a desigualdade, com suas marcas de gênero, classe e raça, pois os grupos oprimidos são os mesmos que permanecem excluídos da rede.

Lançamento do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas - Foto: Beto Barata/PR
Lançamento do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas – Foto: Beto Barata/PR

Para garantir a universalização da banda larga, é preciso maior regulação estatal, adoção de políticas públicas e subsídios que sejam revertidos em obrigações condizentes das empresas. Essa foi a compreensão seguida pelos países que conseguiram êxito na universalização, conforme mostra pesquisa realizada pelo Intervozes em 2012. Na Finlândia, França, Coreia do Sul, Japão e em outras nações, o acesso à banda larga se deu com a atuação do Estado como agente impulsionador fundamental.

No Brasil, o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), lançado em 2010, estabeleceu medidas para a massificação do acesso. Relacionada com essa política, no ano seguinte foi anunciada a construção do primeiro satélite geoestacionário brasileiro de uso militar e civil, o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC). Por meio do satélite, a banda larga poderia ser levada a áreas remotas. Dado o caráter público da iniciativa, o direito de exploração do SGDC foi repassado pela Anatel, sem licitação prévia, à Telebras. A estatal pagou apenas R$ 2 milhões.

Ao todo, a construção do satélite custou R$ 2,7 bilhões do orçamento público. Um investimento vultoso que deveria servir para levar banda larga por um preço acessível às escolas, postos de saúde, hospitais e outras instituições, especialmente na região amazônica, dado o alcance dessa tecnologia.

Mas a história se repete como farsa: assim como ocorreu com as redes de telecomunicações, o investimento do Estado poderá ser usufruído pela iniciativa privada. Em fevereiro, a Telebras anunciou que privatizaria a maior parte da capacidade do satélite, sem ao menos estabelecer um preço mínimo para cada lote. As vencedoras do leilão também não serão submetidas a metas de universalização ou controle de preços.

Para se ter ideia do fosso entre recursos investidos e quantia que deverá ser arrecadada com a venda, vale ter em vista os valores pagos pelas empresas no leilão de direitos de exploração de satélites, realizado em 2015. Segundo a própria Anatel, o preço mínimo de referência pelo direito de exploração foi de R$ 27.094.271,64 por lote. Tendo em vista a entrega do patrimônio público e o desvirtuamento do propósito do SGDC, parlamentares e organizações da sociedade civil entregaram representação ao Ministério Público Federal (MPF) e ao TCU.

“As empresas vencedoras terão total liberdade para se valerem do satélite exclusivamente com a intenção de satisfazer seus próprios interesses privados, sem qualquer exigência de contrapartida em benefício da população como um todo”, diz o texto da representação, que lembra que havia a expectativa de o satélite prover banda larga para mais de sessenta mil escolas rurais. O documento também aponta que a ausência de um preço mínimo pelo lote consiste em uma ilegalidade, pois a lei que regulamenta as licitações e contratos da administração pública (Lei nº. 8.666/93) condiciona o procedimento licitatório à existência de “orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os custos unitários”.

Instado a analisar a proposta elaborada pela Telebras, o TCU confirmou o óbvio: desvirtuamento do uso civil do satélite e possível dano ao erário. As pressões levaram a seguidos adiamentos do leilão, bem como a mudanças na proposta inicial de privatização. No primeiro plano de negócios divulgado pela estatal, apenas 20% da capacidade civil do satélite seria destinada a atender diretamente as demandas sociais de interesse público. Isso seria feito por meio da Telebras, que manteria em sua posse apenas o menor lote, de 11 Gbps.

Em julho, a estatal anunciou novo plano, fixando que seria cedido à iniciativa privada dois e não mais quatro lotes, o que ainda significa que será privatizada mais da metade (57%) da capacidade civil do satélite brasileiro. A fim de garantir minimamente que as empresas ofertem de fato o serviço, determinou que elas devessem ocupar 25% da capacidade de cada feixe em três anos, sob pena de ter que devolvê-los para uso da Telebras. A nova proposta segue sem fazer menção à exigência de atendimento aos serviços públicos. A fatia que caberá à estatal também segue sendo a com menor capacidade (21%, enquanto as duas que serão vendidas têm 35% e 22%). A entrega a preço de banana desse patrimônio público está prevista para o dia 27 de setembro.

Sem mudança na lei, Anatel dá um “jeitinho” de beneficiar as teles

Diante do breque nas manobras para mudar a LGT, a Anatel resolveu simplesmente desconsiderar as regras e beneficiar as teles diretamente, enquanto aguarda a aprovação do PLC 79. Para tanto, tentou estabelecer mudanças nos próprios contratos já firmados com as empresas, cuja revisão está pendente desde o fim de 2015. Como as regras não foram alteradas pelo Congresso, a revisão e os acordos deveriam ter como base a legislação atual.

No entanto, em maio deste ano, a agência reguladora anunciou que assinaria a renovação dos contratos com as operadoras, à revelia até da análise do cumprimento do PGMU por parte de seu Conselho Consultivo. A Anatel já vinha esvaziando o Conselho, que conta com a participação da sociedade civil, além dos representantes do governo e das empresas, atrasando a nomeação dos seus membros, o que inviabiliza a garantia de quórum mínimo para a tomada de decisões.

Para facilitar logo a vida das teles, o Conselho Diretor da agência admitiu alterações nos contratos de concessão dos serviços de telefonia fixa local, interurbana (LDN) e internacional (LDI). Na canetada, também aprovou modificações nas metas de universalização da Oi, Telefônica, Embratel, Sercomtel e Algar, cujos contratos vigorarão até 2020. Foi retirada, por exemplo, a obrigação de instalação de orelhões, o que passaria a ser feito apenas sob demanda. Também foram reduzidas as obrigações relativas à disponibilização de linhas de telefones individuais.

As novas medidas foram anunciadas pela Anatel por meio da divulgação da minuta do IV PGMU. Ocorre que o plano deveria ser confirmado por decreto presidencial, o que até agora não ocorreu. Ex-conselheira da Anatel e integrante da Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, Flávia Lefèvre afirmou em uma entrevista que “a edição de decreto do novo PGMU sem discussão  com a sociedade civil, especialmente neste momento, é extremamente preocupante, posto que a proposta elaborada pela Anatel reduz radicalmente obrigações de universalização e deixa de utilizar saldo bilionário em favor dos consumidores”.

Lefèvre alerta que, com as resoluções que propunham as mudanças nos contratos sem a análise prevista pelo Conselho Consultivo, “a Anatel gastou tempo e dinheiro público num processo realizado sem nenhum respaldo legal, atrasando a revisão dos contratos de concessão ou mesmo uma outra decisão no sentido de antecipar o vencimento desses contratos e estabelecer um novo caminho com base nas diretrizes fixadas na LGT que está em vigor”, o que poderia contribuir para a ampliação do acesso à internet em banda larga.

No fim de junho, foi anunciada a manutenção dos contratos, nos termos aprovados em 2011, quando houve a última revisão. As teles reagiram cobrando reabertura das discussões sobre o PGMU, especialmente sobre o valor que elas ficariam devendo ao Estado. Isso porque foi inserida na proposta de novo contrato de concessão uma cláusula que previa o reconhecimento, pelas concessionárias, de saldo derivado dos recursos que seriam economizados com a redução das metas de universalização. As operadoras pressionam para que esse saldo possa ser utilizado em investimentos nas próprias redes para oferta de novos serviços.

Novos investimentos para novos lucros, mas com dinheiro público

Da mesma forma, as operadoras objetivam transformar os valores que devem por terem recebido multas em investimentos nelas mesmas. Parece absurdo que uma empresa seja multada e acabe ganhando o dinheiro. Simplificando, é como se, ao receber uma multa do Detran, você ganhasse dinheiro para melhorar o automóvel. Pois bem, é isso que elas querem – e é isso que a Anatel tem tentado concretizar.

Para tanto, a agência tem firmado Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com as operadoras, nos quais tenta trocar as multas por investimentos. O TCU emitiu parecer contrário e determinou a suspensão dos acordos. Inicialmente, o TCU realizou auditoria para analisar os trabalhos da Anatel. Diante das irregularidades constatadas, o órgão abriu representação que resultou em medida cautelar impedindo que fosse assinado o termo de compromisso da empresa Oi. Depois, tendo em vista informações de que a Anatel celebraria outros termos, o TCU propôs que fosse determinado cautelarmente à Anatel que se abstivesse de assinar TACs – vedação que continua em vigor. Diante da situação, o órgão oficiou o MPF para que fosse apurada conduta dolosa dos membros do Conselho Diretor da Anatel por dano ao erário público.

Mais uma vez, estamos falando da entrega de bilhões de reais para as empresas por parte de um país que aprovou, recentemente, uma lei que limita os investimentos públicos em áreas essenciais exatamente por alegar falta de recursos. A previsão do TCU é que os 37 pedidos de celebração de TAC podem chegar ao valor de R$ 9,1 bilhões. O montante deve ser ainda maior, já que a conta foi feita em 2016 e deve aumentar com a atualização dos valores e a inclusão de novos processos em cada negociação. A tabela abaixo mostra a estimativa da dívida de cada operadora.  

multasTCU

Valores das multas devidas pelas empresas
Fonte: Relatório 022.280/2016-2 do TCU

Na análise do TCU, há preocupação com a expressiva redução do valor das multas diante da nova metodologia de contagem adotada nos termos. Como exemplos, cita redução de uma multa de R$ 8,8 milhões para R$ 727 mil e outra que passou de R$ 66,4 milhões para R$ 11,3 milhões. A Anatel defende que o estabelecimento de um acordo que resultaria na troca de multas por compromissos de investimentos novos beneficiaria a sociedade. Para o TCU, entretanto, o termo prejudica até a concretização dos investimentos, pois “a alteração nos valores das multas fragiliza os acordos negociados e os aprovados, reduzem ou até mesmo anulam os investimentos e benefícios que seriam obtidos dos TACs”.

Os TACs também vão de encontro à preocupação de garantia de acesso à internet pela população desprovida de conexão. Embora o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e a agência apontem que os recursos poderão subsidiar o Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações (PERT), plano em elaboração que o governo quer que substitua o PNBL, os termos discutidos mudam o direcionamento dos investimentos. “Fica claro que a escolha dos municípios a serem atendidos pelos compromissos adicionais do TAC da Telefônica prioriza localidades que possuem um nível de desenvolvimento maior e mais avançado, em detrimento de regiões deficitárias, o que beneficia indevidamente a prestadora”, pontua o relatório.

No caso de aprovação de novo PGMU, com novas regras sobre universalização, ou do PLC 79, levando à troca das concessões por autorizações, há risco das operadoras argumentarem que não há mais a obrigação de cumprir os acordos. Para o órgão, diante dessas possíveis mudanças, não há interesse público na celebração de TACs. “Isso porque as alterações prejudicarão ou anularão os compromissos de ajustamento de conduta a serem acordados, impedirão a atuação efetiva da Anatel sobre o objeto do TAC, inviabilizarão os benefícios à sociedade previstos”, esclarece o relatório.

Oi: expressão do erro da privatização, a empresa será a grande beneficiada

A principal beneficiada por esse conjunto de medidas será a Oi, que tem uma dívida de R$ 64,5 bilhões junto a 55.080 credores. De acordo com dados da própria empresa, 11% da dívida são devidos à Anatel e 3,3%, ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e internetSocial (BNDES). São recursos, portanto, da sociedade. Donos de títulos de dívida, bancos – entre os quais Itaú, Bradesco e Santander –, fornecedores e trabalhadores são outros credores.

Em recuperação judicial desde o ano passado, a Oi precisa se livrar das dívidas e das tarefas associadas à concessão, como a obrigação de levar serviços para recantos longínquos do país. Ela também possui o maior número de bens reversíveis, ainda que parte desses bens já tenha sido arrendado ou mesmo vendido ilegalmente pela empresa, que também busca a celebração de Termos de Ajustamento para reduzir o montante das dívidas contraídas com multas.

Com o plano de recuperação, a Oi ganhou mais tempo para pagar as contas. O prazo fixado atualmente é fevereiro de 2018. Até lá, ela precisa acordar com os credores uma proposta de recuperação, que pode incluir medidas para atrair capital estrangeiro. Esses planos da Oi, contudo, dependem da definição das regras do setor, já que elas poderão alterar radicalmente as contas, as obrigações e, com isso, o valor da empresa.

O pedido de recuperação judicial é o que envolve maior volume de dinheiro na história do Brasil. Mas não só isso mostra a dramaticidade da situação. O que está em jogo é também a garantia da continuidade da prestação dos serviços. Quase 14 milhões dos 24 milhões de assinantes de telefonia fixa atendidos por concessionárias têm contratos com a empresa, de acordo com dados da Anatel de julho deste ano. Em mais de 300 dos 4.859 municípios atendidos pela Oi, ela é a única prestadora desse serviço e, inclusive, de telefonia celular. A falência da empresa pode gerar um apagão nesses lugares e levar à desativação dos 640 mil terminais de uso público (TUP), os conhecidos orelhões.

A explicação do fracasso da operadora, que passou de “supertele”, em meados do governo Lula, a uma situação de quase falência em menos de dez anos, tem raízes na própria história da empresa e na lógica adotada no processo de privatização da Telebras. A opção feita foi pelo fatiamento da estatal em grandes holdings que operariam telefonia fixa em áreas distintas, além de nove empresas de telefonia celular e uma de longa distância, a Embratel. Os defensores diziam esperar ampla concorrência em todas as áreas, mas isso não aconteceu.

Coube à Tele Norte Leste, posteriormente rebatizada Telemar, fazer a única oferta para a prestação na área que abrangia 16 estados, incluindo a maior parte do Norte e todo o Nordeste. Relembrando a história da operadora, o jornalista Gustavo Gindre conta que “a Telemar foi adquirida por um grupo chamado pelo então ministro das Comunicações, Mendonça de Barros, de ‘rataiada’. Faziam parte desse grupo a Andrade Gutierrez e a família Jereissati, do senador cearense Tasso Jereissati”, além do BNDES, que detinha a maior participação acionária, mas abriu mão da administração da empresa. Outro grupo que adquiriu parte da estatal foi a Tele Centro Sul, a quem coube explorar o Distrito Federal e o Centro-Sul. Posteriormente transformada na Brasil Telecom, tinha entre seus acionistas o banco Opportunity, de Daniel Dantas, que brigou na Justiça com fundos de pensão pelo seu controle.

Já repletas de obrigações e com problemas de gestão, as empresas fundiram-se em 2008 e formaram a Oi, sob os auspícios do governo Lula, que queria uma “supertele” nacional para competir com as transnacionais que atuam no setor, especialmente os grupos América Móvil e Telefónica, que já então disputavam o controle das telecomunicações na América Latina. Além de alterar o Plano de Outorgas para viabilizar a integração, o governo aportou, por meio do BNDES, mais de R$ 2,5 bilhões à empreitada. A Oi virou concessionária de telefonia fixa em 26 estados do país – exceto em São Paulo, a praça mais lucrativa.

Como já era de se esperar, a transação não deu certo. Em 2013, depois de ter sido envolvida em uma disputa internacional, acabou fundindo com a Portugal Telecom. Reportagem recente do jornal português Público revela os bastidores dessa história, que resume como “acrônica da maior destruição de valor de que há memória na história empresarial portuguesa”. Corrupção, explosão de dívidas, calotes e prisões de executivos são alguns passos do caminho feito pela Oi em direção ao abismo.

A situação gerou a explosão da dívida da empresa e, nos últimos anos, o aumento da pressão para que o Estado resolva a questão, ao que ele está reagindo. Não necessariamente, o que deveria ser primordial, com vistas à garantia dos direitos dos usuários, mas sim para salvaguardar os interesses dos acionistas. Além da promoção de mudanças legais que a beneficiem, o governo pode decretar intervenção na operadora, levando à incorporação de seus bens à Telebras, ou à oferta de ajuda financeira, negociando o valor das multas ou injetando dinheiro.

No último dia de agosto, a Anatel anunciou que o Núcleo de Ações que acompanha a situação propôs ao Conselho Diretor, em uma medida de caráter cautelar, a abertura dos processos de caducidade das concessões e de cassação das autorizações do grupo. “Em resposta a um cenário desfavorável na recuperação judicial, a transferência dos meios necessários à prestação dos serviços para outros agentes econômicos, que poderão assegurar a continuidade das ofertas, deve ocorrer da forma célere, de modo a que se evitem prejuízos à sociedade”, diz a nota da agência. O pedido ainda será analisado.

Os possíveis caminhos ainda não são conhecidos, mas sabe-se que a saída é delicada, pois envolve ônus político e mesmo dificuldades para a Anatel intervir na Oi, já que apenas a telefonia fixa é prestada em regime de concessão e a operadora comercializa outras modalidades por meio de autorizações, como telefonia celular e banda larga. Apesar da situação, é preciso que o Estado tenha como preocupação fundamental garantir o interesse público, o que está longe de ser uma realidade no panorama brasileiro. Por isso, é preciso que a sociedade conheça o tamanho do ataque que está sofrendo, ainda que silenciosamente, e aja para intervir nos rumos de um setor que é estratégico também para a garantia da segurança nacional e para o exercício do direito à comunicação.

Justiça Federal cancela concessão de emissora de rádio gaúcha ligada a deputado federal

O deputado federal João Rodrigues integrava o quadro societário da Rádio Nonoai, situação vedada pela Constituição Federal. Ação pedindo cancelamento da concessão foi  ajuizada pelo MPF-RS

A 10ª Vara Federal de Porto Alegre (RS) cassou, na segunda-feira passada, dia 04, a concessão da rádio Nonoai, emissora localizada no município de Nonoai, no Rio Grande do Sul, em função do deputado federal João Rodrigues (PSD/SC) integrar o quadro societário.

A decisão, da juíza federal substituta Ana Maria Wickert Theisen, levou em consideração o fato de a autorização para serviços de radiodifusão ser vedado a congressistas e atende ao pedido formulado pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão no Rio Grande do Sul, Fabiano de Moraes, em ação civil pública ajuizada em novembro do ano passado.

A ação, ajuizada pelo Ministério Público Federal do estado (MPF-RS), apontou que 90% do capital social da Rádio pertence ao deputado catarinense. De acordo o autor, a Constituição Federal proíbe a participação de detentores de mandato eletivo como sócios de empresas prestadoras de serviço público de radiodifusão.

Na justificativa a magistrada pontuou que a Constituição proíbe que parlamentares detenham concessão de serviços de radiodifusão. E reafirmou que a norma proibitiva serviria para garantir “a livre formação da opinião pública, afastando potenciais influências ou contaminação com o poder político”.

A juíza também relatou sobre o fato das cotas da empresa terem sido repassadas para a filha do deputado. Para ela, “mantido o capital social no âmbito da família do réu, não há, pelo menos em um juízo perfunctório, a garantia de que esteja fora de seu âmbito de influência” e acrescentou que “democracia não consiste apenas na submissão dos governantes à aprovação em sufrágios periódicos. Sem que haja liberdade de expressão e de crítica às políticas públicas, direito à informação e ampla possibilidade de debate de todos os temas relevantes para a formação da opinião pública, não há verdadeira democracia.”

Com a decisão a União também não poderá conceder novas outorgas à empresa enquanto tiver parlamentar em seu quadro societário. Cabe recurso da sentença ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

O que diz a Constituição

A Constituição Federal, no artigo 54, inciso I, alínea a, proíbe deputados e senadores de celebrar ou manter contratos com concessionárias de serviço público, incluindo emissoras de rádio e televisão. Já o inciso II, a, do mesmo artigo veda aos congressistas serem proprietários, controladores ou diretores de empresas que recebam da União benefícios previstos em lei. Tal regra também impede a participação dos parlamentares em prestadoras de radiodifusão, visto que tais concessionárias possuem isenção fiscal concedida pela legislação.

A situação revela ainda um claro conflito de interesses, uma vez que cabe ao Congresso Nacional apreciar os atos de concessão e renovação das licenças de emissoras de rádio e TV, além de fiscalizar o serviço. Dessa forma, parlamentares inclusive já participaram de votações para a aprovação de outorgas e renovações de suas próprias empresas.

A posse de veículos de radiodifusão por políticos é um fenômeno presente em diversos países em desenvolvimento e identificado no Brasil pela expressão “coronelismo midiático”. Em junho de 2016, a ONG Repórteres Sem Fronteiras destacou em um relatório que critica a “parede invisível formada por dinheiro e conflitos de interesse” que afeta a liberdade de informação.

A investigação sobre a propriedade de emissoras de rádio e TV por políticos foi iniciada pelo MPF em São Paulo, a partir de um levantamento feito em todo o país das concessões de radiodifusão que tinham políticos como sócios. A partir disso, várias ações foram iniciadas em vários estados.

Já existem decisões judiciais em tribunais superiores retirando as concessões das mãos de parlamentares, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal – que também já se manifestou contrário ao controle de políticos sobre veículos de comunicação

Sendo assim o cancelamento das concessões visa a evitar o tráfico de influência e proteger os meios de comunicação da ingerência do poder político.

A rádio e o deputado divulgaram nota contestando e argumentando que, anterior ao ajuizamento do processo, a empresa alterou o quadro societário, tendo o congressista cedido integralmente suas cotas para terceiros. Sustentou ainda que, antes de ser parlamentar, já era dono do veículo e que seu mandato é em outro Estado. Segundo ele, a constituição prevê que deputados não podem ser diretores ou administradores de emissoras.

Suspensão de atividades de rádio de parlamentar paulista

No mesmo dia em que retirou a concessão da Rádio Nonoai, a 10ª VF de Porto Alegre (RS) concedeu liminar suspendendo as atividades da Rádio Cultura de Gravataí, cujo um dos sócios proprietários é o deputado federal Antonio Bulhões (PRB/SP).

A ação com pedido de tutela foi ajuizada pelo MPF, que se valeu de argumentos semelhantes aos utilizados na ação que envolveu o congressista catarinense. Bulhões, apresentou defesa na qual afirmou não ser sócio da rádio desde setembro de 2015, ocasião em que teve seu nome retirado do quadro social da empresa, dando lugar a outros dois homens.

Após avaliar as provas processuais, a juíza federal Ana Maria Wickert Theisen decidiu levar em consideração o fato de que a alegada alteração contratual não foi devidamente registrada junto ao Ministério das Comunicações.

A decisão é em caráter liminar. O mérito da ação ainda será julgado pela Justiça Federal.

Para livrarem-se de possível perda da concessão de radiodifusão, alguns parlamentares vem utilizando como estratégia a mudança no quadro societário das empresas, muitas vezes passando para um familiar com intuito de enganar a justiça, casos como do o senador Agripino Maia e seu filho, o deputado Felipe Maia e também da família Barbalho.

Denúncia – Na época do ajuizamento da ação, organizações da sociedade civil denunciaram à Procuradoria da República em São Paulo que 40 parlamentares de 19 estados brasileiros eram sócios de emissoras de rádio e televisão no país, segundo o Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (Siacco), da Anatel. As entidades solicitavam a atuação do MPF para que essas empresas tivessem suas licenças canceladas, tendo em vista as proibições contidas na Constituição.

O documento entregue aos procuradores elencava 32 deputados federais e 8 senadores dos estados de Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins. A representação foi encaminhada às unidades do Ministério Público Federal em cada um dos estados para que os procuradores analisassem as medidas a serem tomadas localmente.

Coronéis da Mídia têm apoio do governo

A pedido de Michel Temer a Advocacia-Geral da União (AGU) requereu em outubro de 2016 ao ministro Gilmar Mendes, do STF, “medida cautelar incidental” com o objetivo de suspender o andamento de todos os processos e decisões judiciais que tenham relação com a outorga e a renovação de concessões de rádio e televisão mantidas por empresas de parlamentares. A medida pretende conter uma série de vitórias que as entidades do campo da democratização da comunicação estão obtendo nos estados.

Em resposta à ação da AGU, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), autor de duas ações no Supremo Tribunal Federal que tratam deste tema, em conjunto com representantes do Intervozes e da Artigo 19, organizações que solicitaram participar das ações como amicus curiae, entregaram ao ministro Gilmar Mendes, relator das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 246 e 379, uma petição solicitando que ele, antes de analisar o pedido da AGU, conceda as medidas liminares solicitadas em ambas as ADPFs.

As arguições ajuizadas no STF estão fundamentadas no fato de que a Constituição é descumprida quando atos do Executivo permitem que políticos com mandato eletivo sejam beneficiados com a outorga de concessões de emissoras de rádio e de televisão. A ADPF 246 foi protocolada em dezembro de 2011, enquanto que a ADPF 379, em dezembro de 2015. Ambas contam com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República e aguardam pela apresentação de voto de Gilmar Mendes.

Por Ramênia Vieira, com informações do Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul

Entidades debatem Liberdade de Expressão e Direitos Humanos na Internet

Realizado pelo Intervozes com parceria do CNDH, o seminário “Liberdade de Expressão e Direitos Humanos na Internet: em busca do equilíbrio” reuniu movimentos sociais e ativistas da rede, em Brasília

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social realizaram, nesta terça-feira, dia 22, em Brasília, o Seminário Liberdade de Expressão e Direitos Humanos na Internet: em busca do equilíbrio.

A atividade contou com a participação de várias entidades de direitos humanos e de defesa da internet, que juntos construíram um diálogo para efetivação dos direitos humanos dentro dos espaços virtuais da rede.

Segundo Iara Moura, conselheira do CNDH e integrante do Intervozes, não se trata de restringir o direito à liberdade de expressão, mas sim de proteger grupos que são historicamente negligenciados, não só no mundo real, mas também no espaço digital. “O efeito silenciador vem do próprio discurso. Precisamos promover um debate público e aberto de forma democrática”, destacou. Iara mencionou ainda o acúmulo histórico sobre o tema, como o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA), que destaca princípios norteadores para Liberdade de Expressão e Internet.

O procurador Domingos Neto, coordenador do Grupo de Trabalho Comunicação Social da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) reforçou que a internet é “um instrumento que potencializa a realização plena do artigo 19”, pois ela permite que qualquer um com acesso à rede possa não só consumir, mas também produzir comunicação.

Para os temas referentes à garantia dos Direitos Humanos na internet, ele frisou que o artigo 222 da Constituição Federal diz, no parágrafo 3º: “Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221”.

Ele conclui que esse olhar sobre o artigo reforça que toda produção da internet deverá respeitar os princípios de preferências para finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, como descrito no artigo 221. “O discurso de ódio não tem espaço nesse artigo. A internet é uma experiência coletiva que a gente vive e que deve ser respeitada de forma coletiva e não sobre as ‘minhas’ regras”, finalizou.

Entidades representativas de direitos das mulheres, LGBTI e movimento de negros destacaram a importância da internet para suas organizações, porém eles também relatam que é justamente na rede que acontecem os maiores ataques. “O mundo online para a população LGBTI é muito importante, pois é lá que estamos encontrando ajuda, apoio e organização, porém, ao mesmo tempo é um espaço de muita violência e a maioria tem base é fomentada por grupos religiosos”, lamentou Carlos Magno Fonseca, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Travestis e Intersexos (ALBTI).

Laura Tresca, ativista da Artigo 19, reforçou que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, assim como qualquer outro direito. “Ela pode, e deve, ser restringida se baseando nos parâmetros dos direitos humanos internacionais, porém o que a gente vê é que essa restrição só acontece quando se tratam de políticos para calar as vozes dissidentes”.

Para os presentes, é unânime que não se devem criar novas leis em relação aos crimes cometidos pela internet. O consenso é que as regras do código penal são aplicáveis também no ambiente virtual.

Paulo Rená, do Instituto Beta para Internet e Democracia (Ibidem), afirmou que a internet ainda é um espaço limitado e centralizado em zonas economicamente atrativas. “Não é calando as vozes que resolveremos a questão dos direitos fundamentais”.

A advogada Flávia Lefèvre, conselheira do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), alertou sobre a importância de se fortalecer os espaços já existentes, como o CGI.br. Ela lembrou que hoje a entidade passa por um ataque, promovido pelo governo, que visa a enfraquecer a participação da sociedade e fortalecer as ações das empresas de telecomunicações. “Temos que fortalecer os mecanismos de gestão da internet, para que as teles não desmontem a participação que se tem hoje. Neste momento, o envolvimento de todos para o processo de revisão do processo de governança multiparticipativa no Brasil é fundamental para a preservação de direitos humanos, direito à comunicação, direito à informação e dos direitos de consumidores”.

Criado em 1995, o CGI.br é responsável pelo estabelecimento das diretrizes do setor; a promoção de estudos e padrões técnicos para segurança e serviços de internet; recomendações de procedimentos e padrões técnicos e promoção de programas de pesquisa e desenvolvimento.

No dia 08, deste mês o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações iniciou uma consulta pública com intenção de alterar o modelo do CGI.br, principalmente em relação às atribuições e à composição do Comitê. A atitude do governo de forma unilateral e sem diálogo prévio no interior do CGI.br é considerada um equívoco para entidades que defendem a internet no Brasil e que compõe a Coalizão Direitos na Rede.

O seminário discutiu ainda o papel das plataformas no combate às violações de direitos e na responsabilização de infratores e a importância de assegurar a aplicação do Marco Civil da Internet na garantia da defesa dos direitos humanos na rede.

A lei 12.965/14 , conhecida popularmente como o Marco Civil da Internet, rege o uso da rede no Brasil, definindo direitos e deveres de usuários e provedores da web no país.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Bolsonaro paga pela língua: violência não é liberdade de expressão

Ao afirmar que a deputada Maria do Rosário não merecia ser estuprada, Jair Bolsonaro atentou contra a dignidade humana e foi condenado pelo STJ

Por Júlia Lanz Monteiro*

A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao condenar o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) por danos morais à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) reafirmou que o direito à liberdade de expressão não é o direito de falar o que bem entender, mas sim a convergência entre liberdade e responsabilidade. Inclusive quando se trata de parlamentares com a prerrogativa da imunidade.

A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 5º, caracteriza a liberdade de expressão como uma liberdade ampla, reconhecendo o direito à livre manifestação do pensamento e exigindo identificação de autoria para que quem abusar desta liberdade seja responsabilizado. Neste sentido, a ministra Nancy Andrighi, relatora do processo no STJ, votou pela responsabilização do parlamentar Jair Bolsonaro.

O deputado em questão, em dezembro de 2014, proferiu na tribuna da Câmara que não estupraria a deputada Maria do Rosário por que ela não merecia. Além disso, em entrevista para um veículo de comunicação, Bolsonaro explicou porque Maria do Rosária não merecia ser estuprada. “Não merece porque ela é muito ruim, muito feia, não faz o meu gênero. Jamais a estupraria, não sou estuprador, mas se fosse, não a estupraria porque não merece”, afirmou. Ele disse também que não temia ser punido pelas manifestações a respeito da colega parlamentar.

Como se não bastasse, Bolsonaro também postou um vídeo nas redes sociais com trechos da fala dele em plenário, juntamente com imagens de defensores da ditadura e de uma discussão ocorrida entre os dois parlamentares há mais de uma década. Até o momento que os advogados da deputada entraram com a ação, o vídeo estava com 290 mil visualizações na internet.

Liberdade de expressão é fundamental, mas não absoluta

O princípio utilizado pela ministra Nancy Andrighi para condenar Bolsonaro segue padrões internacionais segundo os quais a liberdade de expressão não pode ser compreendida isoladamente no sistema de direitos humanos. Também não é hierarquicamente superior a outros direitos. Órgãos reguladores de diferentes países têm sido claros e firmes em considerar que, para além da liberdade de expressão, a proteção a outros direitos deve entrar na balança.

Segundo o Direito Internacional dos Direitos Humanos, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, mas exige que qualquer limitação a ela imposta deva ser cuidadosa e restritivamente desenhada. Primeiramente, qualquer restrição deve ser prevista por lei. Em segundo lugar, toda restrição deve servir a um fim legítimo, de acordo com as justificativas previstas na letra das normas internacionais. Por fim, toda e qualquer restrição deve se provar necessária.

Referindo-se especificamente à liberdade de expressão, o filósofo italiano Norberto Bobbio fala em “direitos relativos”, no sentido de que sua garantia encontra, em certo ponto, um limite insuperável na garantia de um direito igualmente fundamental. Por isso mesmo, havendo conflito entre dois direitos fundamentais, é preciso adotar o chamado “sopesamento de direitos”: um equilíbrio ou contrapeso, visando a uma harmonização. A ideia é que um direito não seja totalmente sacrificado em relação aos demais.

Imunidade parlamentar não é impunidade

Durante a leitura de seu voto, a ministra Nancy Andrighi explicou a diferença entre o que é liberdade de expressão e o que é a imunidade concedida aos parlamentares. Andrighi lembrou que o artigo 53 da Constituição garante o direito da livre expressão por parte dos parlamentares no exercício da função. A ministra afirmou ainda que a prerrogativa não pode ser considerada absoluta, pois a inviolabilidade parlamentar deve ser limitada em razão do encontro de um direito fundamental com outros citados na Constituição. “A imunidade não é um privilégio pessoal de cada parlamentar, mas uma garantia para o desempenho de suas funções nesta qualidade”, concluiu a ministra.

No caso de Jair Bolsonaro, ao proferir as palavras em uma entrevista e ao postar o discurso na internet, ele não estava realizando uma função parlamentar e, com isso, não estava em sua prerrogativa institucional. Isso faz com que o caso se encaixe nas definições internacionais e em prerrogativas da Suprema Corte brasileira. Uma decisão anterior do STJ definiu que a palavra, o voto e a opinião não possuem inviolabilidade em casos de crimes contra a honra (como injúria e difamação) cometidos em situação que não seja do exercício do mandato, segundo a ministra Andrighi.

Após o voto da relatora, os ministros que a seguiram votaram por unanimidade pela condenação de Bolsonaro. Em poucas palavras, os demais ministros apoiaram a ministra Andrighi e destacaram trechos de seu relatório que reafirmam a diferença entre a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar. Por fim, o ministro Moura Ribeiro reforçou que “desaforo não tem preço” e que o julgamento do STJ reconheceu isso.

Com esta decisão, o deputado federal Jair Bolsonaro deverá indenizar a deputada Maria do Rosário por danos morais no valor de R$ 10 mil e se retratar nas redes sociais. No processo sobre o mesmo caso que está em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF), ele já é réu e deve ser julgado em breve por injúria e por incitação ao crime de estupro. O STJ julgou a ação civil de danos morais, o STF vai julgar a ação penal.

O STF definiu no Habeas Corpus nº 82.424-2/RS que “o direito à livre expressão não pode abrigar em sua abrangência manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal”. Com base nisso, aceitou a denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR) e também a queixa-crime da deputada Maria do Rosário pelo mesmo caso.

O site Huffpost consultou especialistas que explicaram o desenrolar do processo. Segundo elas, se Bolsonaro também for condenado pelo STF, dificilmente será impedido de se candidatar nas próximas eleições. Isso porque a Lei da Ficha Limpa não prevê inelegibilidade para condenação de crimes contra a paz pública, como é o caso de incitação ao crime, nem contra a honra, no caso de injúria.

Porém, existe a possibilidade remota de que o deputado tenha seus direitos políticos cassados, caso o STF decida que essa punição é válida quando acontece a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos (quando se substitui o encarceramento por prestação de serviços à comunidade, por exemplo) e leve em conta que houve condenação criminal transitada em julgado.

Muito além de Maria

Apesar de emblemático, o caso de Maria do Rosário não é uma exceção. A violência de gênero que já acontecia fora da internet ganha novos contornos com o uso de ferramentas online. Segundo relatório de 2015 da Comissão de Banda Larga da ONU, 73% das mulheres que estão conectadas no mundo já foram expostas a algum tipo de violência online, como assédio sexual e ameaças físicas que podem se concretizar no “mundo real”.

De acordo com dados de 2014 do 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2013 o Brasil teve um caso de estupro notificado a cada 11 minutos. Considerando a subnotificação desse tipo de crime, é possível que a cada minuto uma pessoa seja estuprada no país. O medo de sofrer esse tipo de violência envolve principalmente as mulheres: pesquisa do Datafolha do ano passado concluiu que 90% das brasileiras temem ser estupradas.

As palavras têm poder. Assim, é extremamente necessário que o direito à liberdade de expressão, de suma importância para a vida democrática, seja conciliado com o respeito aos demais direitos humanos para garantir a dignidade das pessoas. A decisão do STJ é pela dignidade de Maria do Rosário.

Mas, acima disso, é pela dignidade de todas as mulheres que sofrem o machismo e o sexismo no cotidiano. É uma vitória de todas nós, mulheres, pois combate a impunidade e a banalização da cultura do estupro, tão presente em nosso país.

*Júlia Lanz Monteiro é integrante do Coletivo Intervozes e assessora parlamentar da deputada Maria do Rosário (PT-RS)