Telecomunicações: universalização segue distante, limitando o exercício de direitos

Texto: Helena Martins*

Em 2018, o Brasil registrou a passagem dos 20 anos da privatização do setor de telecomunicações. O aniversário foi marcado pelo aprofundamento do viés privatista que orientou a abertura do setor à concorrência em 1998. Embora cada vez mais importante por suportar serviços considerados essenciais, como a conexão à Internet, as telecomunicações brasileiras ainda não incorporaram a perspectiva da universalização. Sem isso, brasileiros e brasileiras dependem da própria sorte para acessá-las.

Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ao longo de todo o ano de 2018, o setor empresarial deu continuidade à pressão pela aprovação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 79/2016. A proposta legislativa propõe alterações drásticas na Lei Geral das Telecomunicações (LGT), que organiza o setor desde 1997. O PLC foi o grande destaque do rol das violações do direito à comunicação nas telecomunicações em 2017. Conforme abordado em nosso relatório daquele ano, o projeto propõe a adaptação da modalidade de outorga de serviços de telefonia fixa de concessão para autorização, acabando, na prática, com o único serviço prestado em regime público no setor, e ainda entrega de um patrimônio avaliado em mais de R$ 100 bilhões, os bens reversíveis, para as empresas.

Considerando as necessidades de conexão dos brasileiros, é evidente que, ainda que o serviço telefônico não seja mais considerado essencial, é por meio dessa infraestrutura que boa parte da população se conecta à Internet. Cerca de 15% das conexões de domicílios utilizam ADSL, ou seja, os cabos de cobre da telefonia fixa. Assim, é importante ter um olhar atento para a importância desta infraestrutura que, inclusive, pode ser atualizada e alcançar novos patamares de velocidade.

Explica Marina Pita, conselheira do Intervozes e representante dos usuários no Comitê de Defesa dos Usuários de Serviços de Telecomunicações da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

No entanto, o setor empresarial segue pressionando pelo fim da concessão do serviço de telefonia fixa e um modelo que seja altamente lucrativo a eles, ainda que não assegure o acesso à conexão.

Ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Gilberto Kassab participou da abertura do Painel Telebrasil 2018. Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil
Ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Gilberto Kassab participou da abertura do Painel Telebrasil 2018. Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil

No documento final do Painel Telebrasil 2018, evento que reúne as empresas do setor, a primeira medida apontada como urgente para ampliar o potencial e garantir a conexão à Internet, maior cobertura de celular e Internet móvel e fixa, uso intensivo da chamada Internet das Coisas e implantação de serviços de Cidades Inteligentes foi exatamente a aprovação imediata do PLC 79/16. A atualização legal e regulatória, segundo o texto, liberaria ainda mais investimentos para viabilizar isso. Nesse sentido, requerimentos com pedidos de urgência foram feitos para que o projeto fosse votado pelo plenário do Senado, onde está parado desde 2017, após mobilização da sociedade civil e decisão, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de que ele deveria voltar a ser debatido.

Apesar desses interesses e das promessas do governo Temer, nada mudou. Com o fim da legislatura, o PLC 79 voltou para a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática do Senado (CCTCI), onde será relatado pela senadora Daniella Ribeiro (PP/PB). Há pelo menos 16 emendas sugeridas do final do ano passado que devem ser averiguadas pela Casa. Para a sociedade civil, o retorno dessa discussão é preocupante. “A gente acredita que o PLC 79 aponta, a grosso modo, para a privatização da privatização”, critica Marcos Urupá, integrante da coordenação do Intervozes.

“A proposta do PLC 79 e sua retomada agora apontam para o contrário das necessidades da sociedade, que tem o direito de ter acesso à Internet. Acreditamos que uma proposta ideal seria um debate amplo sobre a Lei Geral de Telecomunicações, observando a realidade da expansão do serviço de oferta de banda larga, o que pode trazer rentabilidade às empresas e casar com a consideração sobre o interesse público na oferta desse serviço, que cada vez mais é essencial”, pondera.

Urupá destaca ainda que o projeto poderá viabilizar a entrega de um patrimônio de R$ 100 bilhões para as operadoras de telecomunicações. Para ele,

Se trata de uma entrega sem clareza das contrapartidas e, o que é pior, sem uma clareza do que é efetivamente esse patrimônio, pois há contradições em torno da lista dos bens reversíveis. Por isso, o PLC é danoso para a União, para a sociedade, rentável apenas para o setor de telecomunicações.

Para Pita, além do fato de o valor dos bens reversíveis estar sendo “extremamente desvalorizado”, não há parâmetros transparentes para a análise do saldo da troca da concessão para a autorização, o que faz com que a sociedade civil organizada seja contra a proposta de mudança da LGT. É fundamental ter em conta que além de o saldo poder ser usado pelas empresas para investimentos em suas redes privadas, não há critérios suficientes para assegurar que esses recursos serão investidos onde a população brasileira precisa, nas áreas em que a conexão fixa não existe ou é cara. Não há também perspectiva clara de redução da concentração na oferta de banda larga, o que torna o serviço tão caro para boa parte da população.

Para piorar, ainda que a discussão e a deliberação públicas sobre esses temas não tenham sido finalizadas, o governo Michel Temer adotou medidas que ampliaram o caráter comercial e não a perspectiva dos direitos no setor das telecomunicações. Em dezembro, no apagar das luzes de seu governo, Temer editou dois decretos direcionando políticas para a área.

O primeiro, Decreto 9.612/2018, dispõe sobre as políticas de telecomunicações. Ele decreto veio substituir uma série de decretos editados desde 2003 que trataram do reposicionamento das políticas de telecomunicações, de modo a colocar no foco da atuação do poder público a necessidade de implantação de infraestrutura para atender a crescente demanda por redes que dêem suporte para os serviços de acesso a Internet. O decreto anterior, 4.733/2003, definiu novas orientações para as políticas de telecomunicações já no contexto da reforma do Estado e privatizações ocorridas em julho de 1998 e previu expressamente o caráter universal do acesso à rede mundial de computadores, em consonância com o que determina a Constituição Federal.

Entretanto, os decretos editados posteriormente ignoraram este direito. É o caso, inclusive, do Decreto 7.175/2010 – que instituiu o Plano Nacional de Banda Larga –, que excluiu a previsão do caráter universal dos serviços de telecomunicações, passando a falar em massificação, cujas consequências jurídicas têm diferenças significativas, na medida em que retira do Estado a obrigação de se comprometer com a garantia de acesso.

O mesmo ocorre com o Decreto 9.612, que apesar de ter introduzido aspectos importantes, continua a não dar efetividade ao caráter universal dos serviços de telecomunicações e acesso a Internet, como expressamente previsto no Marco Civil da Internet.

Entre os aspectos relevantes do atual decreto está a previsão de que a Telebrás atue como indutora da implementação das políticas de telecomunicações, estando estabelecida inclusive a atribuição de prestar serviços de acesso a Internet diretamente ao consumidor nas localidades onde não existam oferta adequada. Igualmente relevante é a previsão de que as redes implantadas com base nas políticas estabelecidas pelo novo decreto devem estar sujeitas a obrigação de compartilhamento desde o início de sua operação, reservando-se parte de sua capacidade com o cumprimento dos objetivos das políticas públicas.

Outra mudança efetivada em 2018 se deu por meio do Decreto 9.619/2018, também apresentado nos últimos meses de mandato de Michel Temer. O texto aprovou o novo Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado no Regime Público. Ocorre, como alerta a advogada Flávia Lefèvre, integrante do Comitê Gestor da Internet no Brasil e do Intervozes, que ele “deixou de fora mais de R$ 3,7 bilhões a favor das concessões decorrentes do saldo da troca de metas dos Postos de Serviço de Telecomunicações (PSTs) para o backhaul, infraestrutura de rede de suporte do STFC para conexão em banda larga, que interliga as redes de acesso ao backbone da operadora”. Desde a edição do Decreto 6.424/2008, a meta de instalação dos PSTs deixou de existir, colocando em seu lugar a ampliação da infraestrutura de banda larga. O atual estimula novamente a conexão 4G, precária em relação à qualidade da Internet.

Queda nos acessos contraria crescente importância dos serviços

Sem políticas públicas para que seja garantida a universalização dos serviços, o que temos visto é a ampliação da dificuldade da população, que enfrenta um contexto de crise financeira no país, exercer o seu direito à comunicação. Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), da PNAD e TIC Domicílios consolidados pela consultoria Teleco apontam que havia, apenas, 31,2 milhões de assinantes de banda larga no Brasil em janeiro de 2019. Em 12 meses, entre setembro de 2018 e agosto de 2018, foram adicionados apenas 2,49 milhões de contratos desse serviço em todo o território nacional. Pouco para a importância que a Internet tem adquirido no cotidiano como instrumento necessário, inclusive, para o acesso a políticas públicas.

A quantidade de acessos com velocidade acima de 34 Mb/s quase dobrou no ano passado, tornando-se a segunda categoria mais popular, assim como o número de clientes usando Internet via fibra óptica. Já a faixa de 2 Mb/s a 12 Mb/s ainda segue concentrando a maioria dos clientes. Isso significa que poucas pessoas estão tendo a oportunidade de usufruir de uma conexão rápida, ao passo que a maior parte da população depende de acessos móveis, uma situação que amplia a desigualdade digital em nosso país.

A dificuldade está associada aos preços cobrados, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2017, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), realizada por meio do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). Lançada em julho do ano passado, a pesquisa mostrou que o preço da conexão permanece como principal motivo mencionado para a ausência de Internet nos domicílios. Ao todo, 27% dos entrevistados afirmam que o serviço é caro.

O mesmo é diagnosticado na pesquisa do Intervozes intitulada Marco Civil da Internet – Violações ao direito de acesso universal previsto na lei, lançada em fevereiro de 2018, que mostra, ainda, que a própria Anatel tem dificuldades para obter dados sobre preços ofertados concretamente à população em diferentes municípios e aponta como um dos problemas a carga tributária que incide sobre o setor.

Evidenciando como a violação do direito à comunicação acompanha outras problemáticas, a pesquisa do CGI.br mostra ainda que as desigualdades por classe socioeconômica e por áreas urbanas e rurais demarcam diferenças em relação ao acesso à Internet. A rede mundial de computadores está presente em 30% dos domicílios de classe D/E (proporção que era de 23% em 2016) e 34% das residências da área rural (em 2016, era 26%). Já nas classes A e B, as proporções atingem 99% e 93%, respectivamente. Os dados mostram, portanto, que o acesso aumentou, mas que ainda está longe de ser comparado ao que é vivenciado por pessoas mais ricas e moradoras dos centros urbanos. Além disso, 19% dos domicílios conectados não possuem computador, o que representa 13,4 milhões de residências. Essa proporção era de apenas 4% em 2014, o que mostra também que o acesso está se dando de forma precária, sobretudo por meio dos dispositivos móveis.

Horta em pequena propriedade rural em Avaré (SP). Créditos: José Reynaldo da Fonseca/ Wikimedia Commons
Horta em pequena propriedade rural em Avaré (SP). Créditos: José Reynaldo da Fonseca/ Wikimedia Commons

Essa situação decorre também da baixa concorrência no setor. Praticamente quatro operadoras controlam 73% das conexões. A líder, o Grupo Claro, detém 9,4 milhões delas (30% do total). Em segundo lugar está a Vivo, com 7,6 milhões de assinantes (24%). Enquanto isso, a Oi vem a seguir com 6 milhões (ou 19%). De acordo com a Anatel, somente a Claro/NET conseguiu adicionar clientes ao longo do ano, tendo registrado um crescimento de 5% de sua base de assinantes. Enquanto isso, a Vivo ficou estável e a Oi sofreu queda de 5% no número de contratos ativos.

Se a Internet cresceu pouco, o acesso à telefonia caiu. No caso da fixa, o país registrou, ao todo, a existência de 37,5 milhões de linhas em dezembro de 2018, segundo a Anatel, cerca de 2 milhões a menos que no mesmo mês de 2017, o que representa uma variação negativa de 5,23%. Os estados com taxas que ultrapassam a faixa de 40% dos domicílios com telefone fixo estão concentrados nas regiões Sudeste e Centro Oeste. Nas regiões Norte e Nordeste, os percentuais variam entre 10% e 30%, à exceção, sendo o que registra maior presença, entre estes, o estado do Acre, com 32,3%.

Mesmo a telefonia móvel, que fechou dezembro de 2018 com 229 milhões de linhas, sofreu queda no comparativo com 2017, ano que terminou com 236 milhões, uma variação negativa de 3,08%. As regiões Norte e Centro-Oeste são as com menor taxa de acesso, totalizando 16 milhões e 18,8 milhões, respectivamente. Do total das linhas, 56,5% são pré-pagas, ao passo que 43,5%, pós-pagas. Em relação às tecnologias que viabilizam conexão por meio do celular, a mais comum já é a 4G, representando 56,6% do total. A 3G atinge 23,9%. Já a 2G, 10,8%.

A queda nos acessos é ainda mais expressiva na TV paga, que no Brasil é considerada um serviço de telecomunicações. As operadoras perderam no ano passado 549 mil assinantes. Com isso, o serviço fechou 2018 com 17,5 milhões de contratos ativos, segundo a Anatel. É o quarto ano seguido com registro de queda. A situação começou a ser verificada em 2014. Após registro de expansão entre 2011 e 2013, quando o crescimento da TV por assinatura e da banda larga aconteciam de forma quase paralela, a crise econômica levou ao cancelamento de contratos.

A esse fator somou-se outro nos últimos anos: a popularização de serviços de vídeo sob demanda, como o Netflix, com tarifas bem mais baixas que as cobradas pelas empresas de TV paga. Em fevereiro de 2019, a empresa Amdocs divulgou estudo em que aponta que os serviços de vídeo que funcionam por meio da Internet estão presentes em 39% dos lares, ao passo que a TV paga, em 26%. Eles já são a principal forma de assistir TV em 8% das casas. No país, detalha o estudo, três novos contratos do serviço foram adicionados para cada casa que abriu mão da TV por assinatura no ano de 2017. Essa mudança expressa uma tendência mundial e que tende a ainda se aprofundar no Brasil. Na Austrália, por exemplo, 17% dos lares já privilegiam essa modalidade de acessar conteúdos, percentual que chega a 16% no México e 13% nos Estados Unidos. Mas para acessá-los com qualidade, faz-se necessária uma boa conexão à Internet.

Bem comum ou mercadoria?

O cenário das telecomunicações no Brasil mostra que há uma enorme desigualdade na participação da sociedade no setor e que ainda estamos longe de garantir que o acesso à Internet seja tratado como um serviço essencial no Brasil, embora esse conceito conste no Marco Civil da Internet desde 2014.

A ausência de uma postura efetiva de defesa da universalização das telecomunicações e do acesso à Internet acaba afetando outras políticas públicas, como alertam organizações da sociedade civil, entre elas a ONG Internet Sem Fronteiras (ISF). Diretora da organização no Brasil, Florence Poznanski cita o exemplo da construção do cabo ELLAlink, feito para conectar América Latina e Europa. Florence explica que o projeto surgiu sem fins lucrativos, a partir de aliança entre a brasileira Rede Nacional de Pesquisa (RNP), a rede universitária europeia GEANT e a sul-americana RedCLARA.

Além de uma oportunidade para fortalecer a inclusão digital do continente e reduzir os custos de acesso, o cabo traz um modelo de governança inovador que abre uma grande esperança para o reconhecimento da Internet como um bem comum da humanidade, dedicando uma parte de sua banda larga para a comunicação de organizações não-comerciais. “Isso nos interessou, porque era possível pensar em um acesso à Internet sem fins lucrativos, mas sob a ótica do bem comum”, inclusive com uma proposta inicial de gestão compartilhada, que significaria uma mudança no modo de governança dos cabos submarinos que até então foram utilizados quase exclusivamente para fins comerciais, detalha. Ademais, a criação de uma rota alternativa para o tráfego mundial teria importância geopolítica, pois ele é atualmente controlado, em mais de 99%, por multinacionais norte-americanas.

No entanto, esse potencial foi condicionado por escolhas que transcendem a tecnologia. “A existência de um cabo – no caso do ELLAlink –, que vai chegar em Fortaleza e em São Paulo, não necessariamente se traduz diretamente em mais acesso, porque na verdade isso significa conectar essa quantidade de banda larga em um lugar, mas que pode ser usada em data centers em São Paulo, por exemplo, que vão contribuir para conectar ainda mais setores que já estão conectados. Caso tenha uma política realmente de universalização, através de pontos de trafego etc., poderia servir a outros lugares para o país, barateando o acesso à rede”, opina Florence.

Inicialmente, a Telebras seria parte dos investidores do que veio a se converter na empresa ELLAlink, mas no segundo semestre de 2018 ela deixou de ser membro do consórcio alegando restrições orçamentárias e renegociou as condições da parceria. Agora, ficou garantido apenas a contratação da capacidade do cabo, frustrando as expectativas de quem defendia que ele poderia fomentar outros modelos de gestão da rede e reiterando que “não é o próprio cabo que resolve em si o problema, mas a maneira como ele é inserido na política”, conforme resume a diretora da ISF.

Como em todo o campo da comunicação, nas telecomunicações é preciso que haja postura ativa de agentes do poder público para que o desenvolvimento tecnológico seja transformado em vivência para o conjunto da sociedade. A Lei Geral de Telecomunicações prevê que a oferta dos serviços será garantida basicamente por meio de três modalidades: estímulo à competição, regulação e subvenção econômica. Vinte anos depois de aprovada a LGT, parece nítido que o país ainda está longe de utilizar de maneira eficaz esses mecanismos e caminhar para o tratamento da comunicação como direito e não mercadoria.

* Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante da Coordenação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Do sequestro ao extermínio: os difíceis momentos da comunicação pública no Brasil

Texto: Gésio Passos*

“Alguém aqui presente assistiu um programa da EBC? Então tem que ser fechada. Não pode gastar um bilhão por ano e ninguém assistir”. Questionado pela imprensa, no dia 30 de novembro de 2018, um mês após a eleição, o presidente eleito Jair Bolsonaro reafirmou sua intenção em extinguir a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública criada pelo governo Lula em 2008 com a missão de implementar o sistema público de comunicação federal. Mesmo que falsa, já que o orçamento da EBC nunca ultrapassou os R$ 600 milhões, essa não foi a primeira declaração do novo mandatário de extrema direita sobre o futuro da emissora. Antes mesmo do período eleitoral, em fevereiro de 2018, em entrevista para a rádio Jovem Pan, Bolsonaro se posicionou contra a empresa pública. Dez anos antes, durante a votação na Câmara dos Deputados sobre a Medida Provisória de criação da EBC, ele havia se abstido da votação, contrariando a orientação do seu antigo partido, o Partido Progressista (PP), que era base de apoio ao governo petista.

Durante toda a campanha eleitoral do ano passado, outros candidatos da direita também se colocaram publicamente contra a EBC. Geraldo Alckmin (PSDB) e o estreante João Amoedo (NOVO) publicamente se somaram aos ataques de Bolsonaro. A ânsia privatista do neoliberalismo encampado por esse polo político havia colocado a comunicação pública como alvo. Em resposta, a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, uma articulação de entidades da sociedade civil, reagiu às ameaças dos presidenciáveis. “A existência da EBC não é mera vontade ou determinação deste ou daquele governante, mas sim um mandamento da Constituição, que em seu artigo 223 prevê o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”, afirmavam as entidades. Elas prepararam um documento enviado a todas as campanhas pedindo um compromisso com a empresa pública, que foi assinado apenas pelas candidaturas do campo da esquerda: Guilherme Boulos (PSOL), Vera Lúcia (PSTU), João Goulart Filho (PPL) e Fernando Haddad (PT), que foi derrotado no segundo turno. Os outros seis candidatos não se pronunciaram.

Dois dias após as eleições, em assembleia relativa à campanha salarial dos trabalhadores da EBC, o assunto dominante entre funcionários eram as declarações de Bolsonaro. Diante o medo, os empregados decidiram organizar o comitê “Fica EBC” e tentar dissuadir o novo governo de seu projeto, buscar apoio da sociedade e divulgar informações sobre o papel que a empresa desempenha. A campanha tomou corpo nas redes sociais, com informações sobre orçamento, alcance, premiações, tudo que a empresa pouco divulga para a população. Um grupo passou a percorrer o Congresso buscando apoio parlamentares e um diálogo com o governo de transição formado. Outros trabalhadores buscaram diálogo com os novos mandatários, principalmente militares. Os generais Augusto Heleno e o vice-presidente general Hamilton Mourão deram declarações positivas à manutenção da empresa. Mesmo assim, Bolsonaro reafirmava na imprensa sua falta de apreço à EBC.

Para Carolina Barreto, jornalista e integrante da Comissão de Empregados da EBC, os trabalhadores da empresa vivem um horizonte de medo. “O cenário é extremamente nebuloso, porque ninguém sabe ao certo o que vai acontecer com a empresa. De um lado, vê-se Bolsonaro falando em fechar. De outro, todo tipo de especulação na imprensa. E ainda há reuniões entre a direção da empresa e o governo eleito. No meio disso tudo, a empresa realiza um Plano de Demissões Voluntárias com prazo de adesão de apenas duas semanas, em cenário de forte terrorismo e incerteza quanto ao futuro”, conta.

Uma história de tensões e resistências

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Em 10 de outubro de 2007, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinava a Medida Provisória que dava origem a EBC. Era o primeiro passo para regulamentar o artigo 223 da Constituição Federal, tirando do papel uma das principais demandas para garantir a pluralidade da mídia no país. A medida só foi efetivada em abril de 2008, após intenso debate no Congresso Nacional, com a promulgação do texto acordado no Legislativo, a Lei 11.652/2008. A EBC nascia da fusão entre dois órgãos que geriam os veículos federais de comunicação: a Radiobrás, sediada em Brasília, a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP), localizada no Rio de Janeiro.

Tereza Cruvinel, jornalista e primeira presidente da EBC, aponta que um dos grandes desafios para implementação da empresa foi enfrentar a oposição virulenta do Congresso e da mídia privada. “Ninguém queria discutir comunicação pública para valer, porque no argumento eles perderiam, mas o governo Lula tinha uma base parlamentar sólida para aprovar o projeto. Fizemos um grande trabalho para a aprovação da Medida Provisória, com apoio do governo, dos participantes do Fórum de TV Pública, dos movimentos da sociedade civil para debater e derrotar o discurso contrário”, afirma. Outro desafio apontado por Tereza foi fazer uma nova televisão em pouco tempo. Em cerca de dois meses da publicação da MP enviada ao Congresso a TV Brasil estava no ar.

A EBC priorizou a criação de uma nova TV Pública, a TV Brasil, ainda em dezembro de 2007, ao fundir a TV Nacional – criada em 1960 e administrada pela Radiobrás – e a TVE do Rio (1975) e do Maranhão (1969), mantidas pela ACERP. Além das televisões, a EBC assumiu oito emissoras de rádio e a responsabilidade de executar sob contrato também os serviços de comunicação do governo federal, com a TV NBR e Voz do Brasil.

Para Guilherme Strozi, empregado da empresa desde a Radiobrás e ex-Secretário Executivo do Conselho Curador da EBC, havia uma expectativa grande com a criação da empresa. “Foi uma esperança de que naquele momento algo grandioso estava acontecendo com a comunicação pública do país”, conta. Ainda assim, ele conta que havia em alguns empregados mais antigos certa desconfiança, “talvez pela não compreensão da diferença entre comunicação pública e governamental”.

As inovações se focaram no processo de participação social, com a criação de um Conselho Curador e uma ouvidoria. A legislação que criou a empresa ainda buscou a autonomia da gestão, com mandatos fixos para o presidente e para o diretor geral da empresa, que eram nomeados pelo Presidente da República, mas só poderiam ser destituídos pelo Conselho Curador. Além disso, foi criado um fundo exclusivo para a manutenção da empresa, a Contribuição para Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP).

Em seus passos iniciais, a EBC buscou se estruturar para o tamanho de seu desafio. Inaugurou uma sede em São Paulo, contratou quase 1400 empregados por concurso público, lançou editais para incentivo à produção independente e buscou mudar a cultura da comunicação governamental para a pública. O desafio da gestão ainda era presente. Com um Conselho Curador atuante, era frequente o conflito entre os representantes da sociedade e a direção nomeada pela empresa, principalmente na aprovação do plano de trabalho anual da emissora. Outras polêmicas surgiram, como a veiculação de programação religiosa confessional combatida pelo Conselho, a criação do Manual de Jornalismo da emissora, entre outros.

A questão orçamentária foi também fonte de cotidiana de polêmica. A Contribuição criada como uma pequena parcela do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (FISTEL), foi judicializada pelas empresas de telecomunicações, alegando desvio de finalidade. Sem os recursos da contribuição, a EBC passou a ser ainda mais dependente dos repasses do orçamento da União, sujeita a contingenciamento e dependente dos contratos para execução dos serviços de comunicação governamental. Esta situação ampliava a fragilidade da autonomia prevista para a empresa. Vinculada à Secretaria de Comunicação da Presidência da República, responsável pela imagem do governo, a EBC ainda era frequentemente pressionada a seguir os anseios do Planalto.

Para a pesquisadora da Universidade de Brasília, também empregada da empresa e associada do Intervozes, Mariana Martins, a EBC foi uma das políticas de comunicação mais importantes das últimas décadas. Para ela,

A EBC é uma reparação histórica do Estado brasileiro com a comunicação pública, pendente de políticas específicas para o seu fortalecimento desde o início da radiodifusão no Brasil. Do ponto de vista prático, a EBC foi responsável por trazer para o âmbito da radiodifusão o cidadão, a cidadania, dar voz e lugar a quem nunca foi representado.

“Com todas as limitações, que também estiveram presentes nos dez anos de vida da EBC, é inegável a mudança positiva que os veículos da EBC representaram para melhora do ecossistema midiático no Brasil”, afirma.

Ataques de Temer

Os ataques à EBC não começaram nas eleições de 2018. Com o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, uma primeira onda de desmonte atacou a comunicação pública federal. Uma das primeiras medidas de Michel Temer foi exonerar o jornalista Ricardo Melo da presidência da empresa. A medida contrariava a lei que criou a EBC, que impedia a Presidência da República de derrubar o presidente da EBC durante seu mandato. Melo havia sido nomeado alguns dias antes do afastamento de Dilma durante o processo de impedimento. Para seu lugar, Temer indicou o também jornalista Laerte Rimoli, que tinha longa relação com o PSDB e com Eduardo Cunha.

O presidente Michel Temer concede entrevista a jornalista Roseann Kennedy, da TV Brasil.
Presidente Michel Temer concede entrevista a jornalista Roseann Kennedy, da TV Brasil.

Ricardo Melo conseguiu reverter a decisão através de uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), retornando provisoriamente ao comando da empresa. Em resposta, Temer editou uma medida provisória modificando estruturalmente a lei da EBC, o que levou o STF a caçar a liminar de Melo e permitir o retorno de Rimoli ao comando da emissora.

A Medida Provisória foi convertida na Lei 13.417/2017, que atacou diretamente o modelo de governança da empresa. O Conselho Curador foi complemente extinto. Até então, ele era formado em sua maioria pela sociedade civil e o único capaz de demitir o presidente da empresa durante seu mandato, atuando também como guardião dos princípios estabelecidos para a comunicação pública. A medida também eliminou o mandato de quatro anos do presidente da empresa, o que afetou diretamente sua autonomia e a deixou ainda mais refém das indicações do governo federal.

As mudanças vieram acompanhadas de forte crítica da sociedade civil organizada, que formou uma Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública. No âmbito internacional, a Relatoria Especial das Nações Unidas e a Relatoria Especial da OEA sobre Liberdade de Opinião e de Expressão também se posicionaram manifestando preocupação com as medidas.

O Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, considerou inconstitucionais as mudanças realizadas pelo governo Temer e solicitou à Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, que apresentasse uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, nenhuma medida foi tomada nesse sentido até o momento.

Com as mudanças, Temer e Rimoli ampliaram o controle sobre a empresa federal. A ruptura causou impactos editoriais abalando a já frágil autonomia da comunicação pública. Sem nenhum obstáculo representado pelo controle social, a empresa adotou uma linha oficial pró-governo até então não vista desde sua fundação em 2008.

O ex-integrante do Conselho Curador, Guilherme Strozi, aponta que o fim do Conselho acabou com a possibilidade de fiscalização da comunicação pública. “A EBC ao ter seu Conselho Curador cassado praticamente retorna ao papel de empresa de comunicação governamental, o que ainda não ocorreu por duas questões: um, porque legalmente a EBC ainda deve fazer comunicação pública para ter sua razão de ser institucional enquanto estrutura ligada ao Estado brasileiro; e dois, por causa da resistência de seus empregados e empregadas, que ao trabalharem para fazer valer o que está escrito na lei de criação da empresa”, afirma. “Sem um conselho com participação social, a EBC deixa de ter um pilar fundamental de sustentação de seu caráter público”, conclui Strozi.

Umas das poucas mudanças realizadas pelo Congresso Nacional na Medida Provisória de Temer sobre a EBC que sobreviveu aos vetos foi a instalação de um Comitê Editorial e de Programação com especialistas, que até hoje não foi efetivada.

Em meio a esse contexto houve também uma asfixia financeira da empresa pública. O governo continuava a não repassar para a empresa a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, que se acumulava. Até os contratos para a realização da Voz do Brasil e da TV NBR foram enxugados. As sedes em São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão acabaram sucateadas e, em Brasília, o parque de transmissores das rádios foi afetado levando a Rádio Nacional da Amazônia pra fora do ar. A partir de remendos com geradores auxiliares, hoje a rádio funciona parcialmente, enquanto a Rádio Nacional AM de Brasília segue em baixa potência.

Segundo Mariana Martins, houve uma ruptura com os princípios e objetivos para os quais a empresa foi criada. Ela firma que

Isso pode ser visto com o aumento significativo da censura e da cultura do medo e do assédio na redação. Casos como a cobertura do Fórum Mundial da Água, que aconteceu no Brasil em 2018, são exemplos categóricos de que a empresa passava a cumprir papel institucional e publicitário em detrimento da sua missão pública e cidadã.

A EBC em 2018

No ano de 2018 o comando da empresa passou por várias mãos. Em maio, o então presidente Laerte Rimoli foi substituído pelo embaixador Alexandre Parola. Foi a primeira vez em dez anos que a EBC não era dirigida por um jornalista. Rimoli deixou a empresa afirmando que zerou déficit de R$ 95 milhões que encontrou em 2016. O alegado déficit representava recursos não repassados ou contingenciados pelo próprio governo federal ao longo de 2016, o que causou falta de caixa para honrar os compromissos da empresa. Rimoli alardeou ainda recordes de investimento de R$ 27 milhões em 2017. Dados do Portal da Transparência, porém, indicam que menos de R$ 2 milhões foram liquidados, o menor valor na história da empresa.

Para os trabalhadores da empresa, o projeto de Temer para a EBC, executado por Rimoli e Parola, teve como objetivo castrar o projeto de comunicação pública. Em janeiro de 2018, os sindicatos denunciaram os casos de assédio e perseguição na Agência Brasil. Durante o carnaval, a cobertura do evento foi alvo de censura, já que não foi permitida repercutir o destaque “Vampirão Neoliberal”, um parodia do presidente Temer, ou as alas “Manifestoches” e “Guerreiros da CLT” da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti.

A direção da EBC ainda tentou modificar o papel da Agência Brasil, priorizando a cobertura oficial do governo federal. A proposta foi seguida pela retirada no plano estratégico da empresa da referência a “comunicação pública” e a intenção de unificar a TV Brasil com a NBR – a TV do poder Executivo. Nota do Fórum Nacional pela Democratização (FNDC) afirma que a EBC buscou “sufocar o que ainda existe de conteúdo público produzido pela determinação e convicção do corpo de funcionários da empresa, e desta forma impedir a disseminação de informações que possam ser constrangedoras para o governo”. A medida também foi alvo de mobilizações dos empregados e de ex-presidentes da EBC. “Protestamos contra mais esta intervenção ilegal e autoritária que busca liquidar com a mais importante experiência de comunicação pública havida no Brasil”, disseram em nota, Tereza Cruvinel, Nelso Breve, Ricardo Melo e os ex-ministros da Secretaria de Comunicação do Governo, Franklin Martins e Helena Chagas.

Alexandre Parola assumiu a empresa pública em maio de 2018 sabendo que o aguardava o cargo de delegado permanente do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) para 2019. Durante sua gestão, a Comissão de Empregados da EBC articulou uma campanha dentro da empresa para sistematizar casos de censura e governismo Foram identificados mais de 60 casos, posteriormente publicados em relatório. Na ocasião, a direção da empresa se pronunciou acusando os trabalhadores de confundir edição com censura e reafirmando seu compromisso “jornalismo isento, apartidário, plural e equilibrado”. Questionada pela reportagem sobre seu posicionamento em relação às denúncias de censura, a assessoria de imprensa da EBC afirmou que seus veículos “têm como orientação produzir um jornalismo profissional, informativo e com prestação de serviços” e que “os editores, produtores e jornalistas tratam as informações com seriedade e transparência”.

Parola também teve que responder pela histórica cultura de assédio moral na EBC. Em agosto de 2018, o Ministério Público do Trabalho (MPT) conquistou uma liminar obrigando a empresa a adotar medidas efetivas contra o assédio moral. “A empresa é um pacote completo de assédio moral: de humilhações públicas à exposição e hostilidade por escrito e em instrumento de comunicação contra trabalhadores”, afirmou a procuradora Renata Coelho ao site do MPT. Mesmo após a decisão, os empregados continuaram acusando assédio por parte da empresa. A própria Comissão de Empregados realizou pesquisa apontado que 8 em cada 10 empregados relatam que já sofreram assédio e ameaças.

Nem a Ouvidoria da EBC sobreviveu. Com o fim do mandato da Ouvidora nomeada na gestão anterior em março, a empresa passou meses com indicações provisórias que acabaram aniquilando o órgão. O trabalho crítico da Ouvidoria foi trocado por elogios e amenidades pelas novas chefias. Os trabalhadores do setor relataram o cerceamento do próprio trabalho e assédio. Após meses, Alexandre Parola indicou como ouvidora a então diretora geral da empresa, Christiane Samarco. Até então, somente acadêmicos haviam assumido o cargo de ouvidores da EBC.

Em outubro de 2018, no meio do processo eleitoral, o embaixador Parola deixou a empresa sem sequer comunicar os empregados da saída. Em seu lugar assumiu o ex-diretor administrativo da EBC, Luiz Antonio Ferreira. Ele e Lourival Macedo, ex-diretor de jornalismo, haviam sido denunciados à Comissão de Ética Pública por terem criado regras que os beneficiavam no Plano de Desligamento Voluntário (PDV) realizado no começo de 2018 – o processo acabou sendo arquivado.

Durante o restante de 2018, as práticas de controle editorial dos veículos públicos se seguiram, assim como o desmonte estrutural da empresa. Com falta de recursos, as sedes do Rio de Janeiro e no Maranhão passaram por situações ainda mais adversas. Em São Paulo, o espaço alugado para o funcionamento da EBC foi diminuído em quase a metade. Além disso, foi realizado um corte de pessoal por meio de dois PDVs realizados. No primeiro, em janeiro, menos de 100 pessoas aderiram ao plano. Já no segundo, realizado em dezembro, após as declarações de Jair Bolsonaro defendendo a extinção da empresa, 257 novas pessoas aderiram ao plano, entre elas, 54 jornalistas. Uma perda total de cerca de 16% do seu corpo funcional. Restaram 1705 empregados concursados para manter a produção de todas as emissoras.

Para a jornalista da EBC Carolina Barreto, os golpes de Temer deixaram a empresa mais vulnerável “às investidas do governo federal e às tentativas de borrar as fronteiras entre comunicação pública e estatal”. “O número de casos de censura aumentou significativamente e a linha editorial foi se tornando a cada dia mais oficialista e restou aos empregados tentar resistir nas redações”, diz.

Os veículos públicos

Mesmo frente às várias formas de desmonte, os veículos da EBC continuam em funcionamento oferecendo alternativas à população.

A TV Brasil tem uma das maiores faixas de programação infantil na TV aberta, ao lado da TV Cultura de SP, com mais 7 horas diárias. Segundo dados da Ancine de 2016, ela é também a maior exibidora do cinema nacional na TV aberta, com 229 veiculações de filmes brasileiros, e a única a exibir curta-metragens nacionais. A emissora é a TV que mais exibe conteúdo brasileiro independente, com 13% de sua programação, e mantém o único programa LGBT fora da TV por assinatura, o Estação Plural. A TV Brasil também abriga um programa voltado aos portadores de necessidade especial, o Programa Especial, com a primeira repórter com Síndrome de Down do país, Fernanda Honorato.

Exposição Rá-Tim-Bum, o Castelo (Rovena Rosa/Agência Brasil)
Exposição Rá-Tim-Bum, o Castelo recria cenários do seriado infantil da TV Cultura (Rovena Rosa/Agência Brasil)

No ambiente digital, o carro chefe da empresa é a Agência Brasil, cujas informações são repercutidas por portais de notícias de todo o país. Diretamente, através de seu site, a Agência Brasil chegou a 15 milhões de usuários únicos em 2017. Já a RadioAgência Nacional mantém seu papel importante na difusão de conteúdos sonoros. Em 2018, a EBC lançou o aplicativo de vídeo sob demanda EBC Play, com a programação da empresa de conteúdo de entretenimento, jornalismo e infantil também de forma gratuita.

A questão orçamentária
Nos últimos meses de 2018 foram difundidas falsas informações sobre os custos da EBC. Bolsonaro afirmou que a empresa custava R$ 1 bilhão por ano, quando os valores reais nunca passaram de R$ 600 milhões anuais.

O orçamento anual liquidado pela empresa em 2017 foi de R$ 557 milhões. Em 2016, esse valor chegou a R$ 580 milhões, em 2015, R$ 529 milhões, e em 2014, foi de R$ 477 milhões. Dos valores de 2017, 240 milhões foram gastos com os veículos públicos: TV Brasil, Agência Brasil, Rádios Nacional e MEC. O custo da operação dos veículos governamentais do Executivo chegou a R$ 111 milhões, sendo que os contratos com o Governo Federal cobriram apenas R$ 28 milhões.

Os recursos para investimentos na EBC caem ano após ano. Em 2017, foram apenas R$ 1,9 milhões liquidados nessa rubrica. O resultado é o sucateamento da estrutura da emissora, além de graves problemas operacionais, como a transmissão parcial da Rádio Nacional da Amazônia e a redução da produção audiovisual no Rio de Janeiro.

A principal fonte de recursos da EBC, como de outras emissoras públicas no mundo, vem do caixa público. Pouco se fala, porém, que na origem da empresa foi criada uma fonte de recursos específica buscando garantir sua autonomia em relação ao governo: a Contribuição para o Fomento da Comunicação Pública. A Contribuição consistia na destinação de parte do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel) para a comunicação pública, mas nunca saiu do papel. Parte de seus valores acabaram judicializados por algumas empresas de telecomunicações e o que foi de fato arrecadado foi contigenciado durante todos esses anos pelo governo federal. Os valores não se perderam, continuam congelados em uma aplicação. O máximo que se conseguiu nos últimos anos foi a utilização dos rendimentos da Contribuição. No orçamento de 2018, a expectativa era de que cerca de R$ 100 milhões de reais dos rendimentos fossem utilizados pela empresa pública. Para 2019, espera-se que sejam repassados R$ 200 milhões de reais correspondentes aos rendimentos da Contribuição – o valor corresponde a quase um terço do orçamento total da EBC.

O pesquisador Octávio Pieranti fez uma análise dos orçamentos per capita das emissoras de radiodifusão pública em vários países. No Brasil, o orçamento da EBC é o menor entre os 17 países estudados, com um investimento de 84 centavos de euro por habitante em 2016, o que hoje equivale a R$3,53. O número é inferior até ao dos Estados Unidos, que tinha em 2012 o equivalente a R$12,29 (€2,92) per capita destinados à radiodifusão pública.

Ataque a outras emissoras públicas

A comunicação pública brasileira não se resume a EBC. Dezenas de emissoras geridas pelos governos estaduais, por universidades públicas e por fundações privadas compõe a rede pública de comunicação que também passa por ameaças permanentes com o avanço do conservadorismo na política brasileira. O maior exemplo disso são a TVE-RS e a Rádio Cultura de Porto Alegre, emissoras então administradas pela Fundação Piratini – entidade vinculado ao Governo do Rio Grande do Sul – que teve seu processo de extinção avançado em 2018. A administração dos veículos passou para a Secretaria de Comunicação do governo do Rio Grande do Sul, que decretou encerrada as atividades da fundação em maio.

A emissora pública gaúcha foi um dos alvos do governo de José Ivo Sartori (PMDB) já em 2015. Sua proposta foi extinguir seis fundações públicas logo no começo de seu governo, entre elas a Fundação Piratini. A medida foi aprovada pela Assembleia Legislativa em 2016, apesar da forte resistência da sociedade gaúcha. O movimento “Salve, Salve TVE e FM Cultura” ainda mobiliza diversos segmentos sociais em defesa das emissoras.

Diversas ações postergaram a extinção das emissoras, com contestações trabalhistas, no Tribunal de Contas e na Justiça Federal. Em junho de 2018, o Ministério Público Federal conseguiu suspender a extinção da Fundação alegando riscos à continuidade do serviço de comunicação pública no estado e ilegalidade no repasse das funções do órgão para a Secretaria de Comunicação. A maioria dos trabalhadores concursados da Piratini se mantém vinculada ao estado do Rio Grande do Sul por liminar judicial conseguida pelos sindicatos, mas a intenção do governo é demitir 137 empregados.

Com a extinção da Fundação Piratini o jornalismo da TVE-RS foi encerrado e sua programação consiste na retransmissão de grande parte da grade da TV Brasil. Na rádio Cultura diversos programas foram extintos.

O movimento dos servidores da TVE e FM Cultura afirmou que lideranças dos trabalhadores ainda buscam diálogo com o novo governador eleito Eduardo Leite (PSDB) para a retomada da Piratini. Durante a campanha eleitoral, Leite afirmou que a comunicação pública não seria um setor estratégico para o estado e defendeu uma parceria privada para gestão da emissora.

O avanço de setores neoliberais na eleição de 2018 pode fragilizar ainda mais as emissoras estaduais. A Fundação Padre Anchieta, que administra a TV e Rádio Cultura de São Paulo, deve seguir seu processo de desmonte com a eleição de João Dória (PSDB). Em Minas Gerais, a recém criada Empresa Mineira de Comunicação (EMC), que gere a TV Minas e a Rádio Inconfidência, também é motivo de preocupações com a eleição de Romeu Zema (Novo) para o governo do estado. O eventual fim da EBC também pode trazer novas ameaças para as demais emissoras públicas que dependem da rede da TV Brasil, já que não teriam mais acesso a programação disponibilizada pela emissora federal.

Perspectivas para futuro

Em um país cada vez mais mediado pelas redes sociais qual seria o papel da comunicação pública? Para Mariana Martins, a comunicação pública, representada pela EBC, é extremamente relevante em qualquer conjuntura desde que o país se pretenda uma democracia. “Uma democracia depende de uma comunicação plural, diversa, autônoma e não há como prover isso apenas com sistema comercial e, muito menos, com um sistema comercial hegemônico e monopolista”, ressalta. Para ela, somente

um governo autoritário não convive com uma comunicação pública estruturada para servir ao cidadão e fortalecer a cidadania, porque, no fundo, ela representa uma ameaça quando cumpre o seu papel de forma plena.

O capítulo V da Constituição Federal, sobre a Comunicação Social, trouxe princípios fundamentais para democracia brasileira. O artigo 223 da Constituição, que criou o princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal nas outorgas de rádio e TV, colocou no horizonte a necessidade do equilíbrio do sistema de mídia brasileiro, altamente concentrado nos veículos privados. O papel da comunicação pública é garantir esse equilíbrio, fazer contraponto aos veículos privados, garantir a expressão dos mais marginalizados e dos que não tem voz dentro do sistema privado.

E esse foi o maior desafio da instalação tardia da EBC: conseguir não só ser diferente, mas se diferenciar dos veículos comerciais, trazer cultura, informação, cidadania para todo país. E para cumprir essa missão, a empresa precisa superar a herança governamental dos antigos veículos geridos pela Radiobrás e enfrentar as tentativas dos governos de cassar sua autonomia. O sonho de uma emissora pública independente, que deveria prestar contas para a sociedade foi afetado diretamente pelas mudanças provadas por Temer na EBC.

Para o ex-membro do Conselho Curador Guilherme Strozi, apesar do cenário de total desvalorização da comunicação pública federal, “a semente de algo que constitucionalmente precisa acontecer no Brasil foi plantada”. Mesmo assim, ele ressalta as dificuldades para o futuro: “para os próximos anos é certo que a autonomia da EBC frente ao governo federal ficará totalmente ameaçada, uma vez que a empresa não tem um Conselho Curador, não tem um mandato que dê segurança para a sua presidência e não há, até o momento, nenhuma intenção de que seja estimulada a produção de conteúdos críticos e tampouco que seja reforçada a Rede Nacional de TVs e de Rádios públicas estaduais”.

O relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Edison Lanza, em visita oficial da CIDH ao país em novembro, alertou sobre a necessidade de uma emissora pública, com independência e em conformidade com os parâmetros internacionais no Brasil. Ele declarou ao jornal Brasil de Fato que “um dos avanços importantes que o Brasil teve nesses últimos dez anos em matéria de comunicação, de diversidade e de pluralismo foi a criação e o desenvolvimento de uma televisão de raio público, e não de interesse governamental”. O relator advertiu o governo brasileiro quando se iniciaram as mudanças que culminariam na extinção do Conselho Consultivo da EBC.

Mesmo com a posição já marcada de Jair Bolsonaro contra a EBC, ainda é possível que sobrevivam parte das emissoras públicas fundamentais para a população brasileira. Não há expectativa para a retomada dos princípios legais que nortearam a comunicação pública federal há mais de dez anos, quando a empresa foi criada, mas se iniciou uma resistência de entidades da sociedade civil e trabalhadores em defesa do seu papel na atual conjuntura. A comunicação pública será mais uma das lutas a ser enfrentada nas ruas, nas redes e na política neste próximo período de ameaça as liberdades democráticas.

* Gésio Passos é jornalista licenciado da Empresa Brasil de Comunicação, coordenador geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, mestre em comunicação pela Universidade de Brasília e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Proteção de dados: lei apresenta avanços, mas não esgota desafios à privacidade e liberdade de expressão

Texto: Luciano Gallas*

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) foi sancionada em agosto de 2018 com o objetivo de “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”, conforme determinado em seu Artigo 1º. Ela entraria em vigor em fevereiro de 2020, 18 meses após a aprovação e depois de pelo menos oito anos de debates envolvendo o poder público e os diversos setores da sociedade, mas uma Medida Provisória de dezembro de 2018 adiou a vigência para agosto de 2020. O período anterior à entrada em vigor da legislação, conhecido como “vacatio legis” no meio jurídico, é tido como necessário para a adequação dos diversos atores que serão afetados por ela.

A Lei 13.709/2018 é considerada um avanço significativo em termos de proteção à privacidade e à liberdade de expressão no Brasil, tanto no meio on-line quanto no off-line, constituindo uma base legal de segurança para transações e o intercâmbio internacional de dados. Sua aprovação tardia em relação a outros países demonstra o quanto o Brasil ficou atrasado em termos de regulação de coleta e tratamento de dados pessoais. Somente na América do Sul, Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai já contam atualmente com legislações específicas no setor – os dois primeiros, com leis implementadas nos anos 2000 e 1999, respectivamente. Na América Latina, ainda Costa Rica, Honduras, México, Nicarágua, Panamá e República Dominicana, entre outros países, possuem normativas do tipo. Em todo o mundo, são mais de 125 países com legislações de proteção de dados.

Na Europa, praticamente todas as nações já têm legislação regulatória para a coleta e processamento de dados. No continente, data de janeiro de 1981 a publicação de texto normativo para a proteção de dados de caráter pessoal, o qual constituiu a base para a elaboração de uma diretiva de 1995. Esta, por sua vez, viria a ser revogada pela publicação do Regulamento nº 679 do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, de abril de 2016, que entrou em vigor em maio de 2018. A norma europeia regula, inclusive, as relações comerciais entre as nações europeias e países de outros continentes, pois se aplica ao tratamento de dados de pessoas residentes na Europa em qualquer caso, mesmo quando a empresa responsável pela coleta e/ou o tratamento das informações tenha sede em outros continentes. A criação da lei brasileira se torna, portanto, uma condição para que o Brasil preserve suas relações comerciais com os países europeus.

“A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais vem para tentar regular um mercado de coleta massiva e indiscriminada de dados dos cidadãos e de tratamento, compartilhamento e, muitas vezes, venda destas informações, no setor privado e até mesmo pelo poder público”, afirma Bia Barbosa, coordenadora executiva do Intervozes, entidade integrante da Coalizão Direitos na Rede. Segundo ela, a lei é fundamental para combater discriminações. “Um serviço pode ter cobranças diferenciadas em função dos perfis de consumo, por exemplo, como no caso do plano de saúde que tem acesso ao tipo de medicamento que você usa e cuja compra está sendo monitorada sem você saber. Ou pode ocorrer discriminação em um emprego, em função de dados pessoais que chegaram ao conhecimento daquela empresa sem que você soubesse”, explica a jornalista.

Créditos: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Créditos: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Do ponto de vista do setor privado, também há uma avaliação positiva quanto à criação da legislação. “A Lei procura dar mais transparência e traçar limites na maneira como hoje os dados pessoais são usados e dar direitos aos titulares”, diz Andriei Gutierrez, coordenador do Comitê Regulatório da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES) e cofundador do Movimento Brasil, País Digital. Para ele, a Lei 13.709/2018 tem também o papel de “estimular a confiança do cidadão de que ele pode seguir usando serviços e dispositivos, pois, de uma certa maneira, ele vai estar amparado juridicamente”. “Se a Lei for usada de uma maneira transparente e que atenda às expectativas, o cidadão vai ter mecanismos de apelação jurídica. E essa confiança é essencial para fazer avançar todo o desenvolvimento econômico e social baseado em dados”, completa.

Apesar dos avanços obtidos com a futura vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, há ainda muitos desafios a serem enfrentados. O principal deles é a atuação independente de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) prevista na legislação, a qual foi criada por medida provisória no apagar das luzes do governo Michel Temer, no dia 28 de dezembro de 2018.

Autoridade vinculada à Casa Civil

Em uma legislação tão complexa como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, é essencial a atuação autônoma e independente de uma agência reguladora. É papel desta autoridade fiscalizar o cumprimento da lei tanto pelo setor privado quanto pelo poder público e orientar quanto às formas previstas na legislação para a coleta e o tratamento dos dados. No entanto, o texto da legislação sofreu vários vetos por parte do Poder Executivo, o principal deles justamente à criação de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Na última sexta-feira do mês de dezembro, entre os atos derradeiros de Michel Temer à frente do Executivo, foi publicada no Diário Oficial da União a Medida Provisória (MP) 869/2018 de criação da autoridade, mas com sérias limitações à sua autonomia. A MP tem validade de 60 dias, prorrogável por mais 60, período em que deve ser aprovada pelas duas casas do Congresso para que efetivamente entre em vigência.

O presidente Michel Temer discursa na cerimônia de sanção da Lei Geral de Proteção de Dados, no Palácio do Planalto. Créditos:  Valter Campanato/Agência Brasil
O presidente Michel Temer discursa na cerimônia de sanção da Lei Geral de Proteção de Dados, no Palácio do Planalto. Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil

A criação tanto da Autoridade Nacional de Proteção de Dados quanto do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade estava prevista, respectivamente, nas seções I e II do capítulo IX da Lei 13.709. Contudo, a MP de Temer criou um órgão vinculado à Casa Civil – e, consequentemente, à Presidência da República, o que compromete a independência de suas decisões e sua autonomia orçamentária, deixando-a a mercê dos interesses econômicos e políticos do governo de turno. Também compromete a separação de poderes, pois um órgão vinculado ao Poder Executivo Federal deverá fiscalizar a coleta e o tratamento de dados pelos poderes Legislativo e Judiciário, assim como pelos demais entes federativos (municípios, estados e Distrito Federal). Além disso, a MP altera a Lei 13.709/2018, abrindo espaço para que os pedidos de revisão feitos por usuários sobre decisões automáticas tomadas nos sistemas de tratamento de dados não tenham que ser feitos necessariamente por seres humanos – ao contrário do que ocorre na regra europeia, por exemplo.

A Medida Provisória de Temer ainda desvincula a nomeação dos cinco membros do Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados de sua aprovação ou sabatina pelo Congresso Nacional, diferentemente do que ocorre hoje, por exemplo, com outras duas autoridades reguladoras: a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que fiscaliza a telefonia fixa e móvel e as transmissões de rádio e televisão, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que apura situações de abuso do poder econômico. Além de facilitar o compartilhamento de dados entre o poder público e o setor privado, comprometendo a privacidade dos usuários e enfraquecendo a Lei antes mesmo de sua entrada em vigor.

Em reunião com o setor privado à época da aprovação da lei, Michel Temer apontava entre suas restrições à criação da ANPD a possibilidade de questionamentos jurídicos futuros sobre um ato do Congresso Nacional criar uma estrutura administrativa no âmbito do Poder Executivo, o que para ele caracterizaria um “vício de iniciativa” – já que este tipo de órgão só poderia ser criado por um ato do Executivo. Outra ressalva do ex-presidente dizia respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal, dadas as limitações impostas para a criação de novos gastos nos últimos seis meses de governo. Por fim, um terceiro fator motivador para o veto à criação da autoridade reguladora alegado por Temer durante a reunião dizia respeito especialmente à autonomia funcional que a ANPD teria diante do governo. Ou seja, na visão de Michel Temer, a independência de atuação da autoridade, que seria justamente a característica essencial para que pudesse atuar efetivamente como uma agência reguladora, era vista por Michel Temer como um possível problema para o governo.

Sem independência, lei será enfraquecida

A atuação independente de uma agência reguladora é essencial para que a lei possa ser aplicada adequadamente. Do contrário, a legislação será mais uma entre tantas a existirem somente no papel, sem ter efeito prático na organização social. A sua independência administrativa também é imprescindível quando se leva em conta que tal autoridade deve fiscalizar o próprio poder público, que igualmente precisa responder à legislação. “Caso essa autoridade esteja subordinada à Casa Civil ou à Presidência da República, está muito claro que seu poder de fiscalização e de sanção sobre os órgãos públicos vai ser muito comprometido”, destacava Bia Barbosa antes da publicação MP 869/2018, lembrando que todas as esferas federativas terão que respeitar as formas de tratamento e os cuidados previstos na Lei em relação aos dados pessoais dos cidadãos. E ressaltava que “é por isso que a imensa maioria dos países que têm leis de proteção de dados pessoais têm também a atuação de autoridades independentes, para poder garantir a fiscalização do cumprimento da legislação por parte do poder público”.

Para Flávia Lefèvre, membro do Intervozes e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), sem a atuação independente e autônoma de uma autoridade com efetivos poderes regulatórios, “a lei passa quase a ser inócua, na medida em que a regulação e fiscalização por um órgão especializado são fundamentais no setor, dada a complexidade da tecnologia envolvida”. Ela enfatiza que não há como os cidadãos controlarem todos os aspectos da aplicação da lei sem a atuação autônoma de uma agência reguladora provida de “ferramentas institucionais que promovam a aplicação da lei sobre os agentes econômicos”.

A advogada aponta que são justamente os governos que mais coletam e tratam dados dos cidadãos, especialmente informações sensíveis, e que, até para fortalecer suas relações comerciais junto à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil “precisa atender a uma série de requisitos, entre eles, possuir não só uma lei de proteção de dados pessoais, mas também um organismo de regulação e controle”. E ressalta que

a lei perde efetividade sem uma Autoridade de Proteção de Dados que tenha de fato autonomia e independência em relação ao governo.

Andriei Gutierrez também considera a atuação da ANPD como fundamental para a aplicação da lei, principalmente em pontos da legislação que ainda carecem de regulamentação. Para ele, o mais importante da autoridade não seria a regulamentação em si ou a aplicação da lei e de multas. “Eu considero que o mais importante dessa autoridade está relacionado à transparência e a um uso responsável dos dados, ela tem o papel fundamental de ajudar a sociedade brasileira a mudar sua mentalidade”, pondera.

De acordo com o coordenador do Comitê Regulatório da ABES, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados terá, assim, o papel fundamental de organizar campanhas de educação e de treinamento, especialmente dedicadas a pequenas e médias empresas para que melhorem suas práticas, mas também direcionadas à conscientização dos usuários em geral sobre a importância do tema. Para ele,

talvez o maior desafio seja mudar a mentalidade do setor privado, do governo e do cidadão. É preciso que tenha alguém pensando isso e a Autoridade de Proteção de Dados tem essa função. Mais importante até do que multar e regulamentar.

Um consenso possível

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais foi gestada ao longo de toda a última década, tendo recebido contribuições de amplos setores da sociedade para a sua elaboração. Ainda em 2010, ocorreu o primeiro processo de consulta pública sobre seu teor, retomado depois, em 2015, com uma segunda consulta. Neste intervalo de cinco anos, as discussões sobre a necessidade de uma lei que protegesse o direito à privacidade dos usuários e a liberdade de expressão no meio digital continuaram no contexto das organizações da sociedade civil. Ao mesmo tempo, outras concepções, focadas majoritariamente no interesse econômico, defendiam uma legislação que concedesse maior liberdade para o tratamento e compartilhamento das informações. Somente após a segunda consulta pública é que o texto foi apresentado na Câmara dos Deputados, na forma do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 53/2018. Na Casa, foi então tema de diversas audiências públicas.

De acordo com o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais na Câmara, a legislação tem um caráter principiológico: “Consolidamos conceitos de forma precisa, como o de dado pessoal, dado sensível, dado anônimo, legítimo interesse, consentimento, segurança da informação e responsabilidades para quem violar a privacidade”. Segundo ele, a lei proposta também é flexível para que se adapte às inovações tecnológicas, além de ter incorporado “o que há de mais avançado na legislação internacional”.

O parlamentar enfatiza que a legislação tornou-se ainda mais urgente depois do mega escândalo de vazamento de dados de 87 milhões de usuários do Facebook no início de 2018, o que afetou diretamente 443 mil brasileiros. Também lembra que, desde maio de 2018, entrou em vigência plena o Regulamento da União Europeia que veda a transferência internacional de dados para países que não possuam legislação capaz de garantir a mesma proteção de dados estabelecida na Europa. Sem uma lei que regule de modo eficaz a coleta e o tratamento de dados pessoais, portanto, o Brasil pode perder investimentos e se isolar cada vez mais no cenário mundial, ficando ultrapassado em termos de inovação tecnológica.

Brasília - Comissão Especial sobre Tratamento e Proteção de Dados Pessoais (PL 4.060/12) promove audiência pública para debater o legítimo interesse.  Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil
Comissão Especial sobre Tratamento e Proteção de Dados Pessoais (PL 4.060/12) promove audiência pública para debater o legítimo interesse. Créditos: Wilson Dias/Agência Brasil

 

“O texto final foi o mais consensuado e equilibrado possível, dentro de uma tensão existente entre liberdade e direitos fundamentais e os interesses econômicos no tratamento dos dados pessoais”, avalia Bruno Bioni, advogado do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto Br/NIC.br e membro da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). Para ele, houve ampla participação da sociedade civil tanto nas consultas públicas como também nos debates realizados no Congresso Nacional, o que gera um saldo positivo. “A lei aprovada contempla uma função dupla de qualquer lei de proteção de dados pessoais: proteger as liberdades fundamentais do cidadão e, ao mesmo tempo, garantir o uso dos dados pessoais dentro de várias atividades econômicas dependentes destes dados, não só no âmbito do setor privado, mas também no âmbito do setor público”, sintetiza.

A avaliação é corroborada por Andriei Gutierrez. “Nem todos saíram contentes. Há elementos [na Lei] que poderiam estar mais adequados, do ponto de vista do desenvolvimento de ecossistemas de inovação. Certamente não fomos atendidos 100%, como imagino que sociedades de defesa dos direitos humanos, de defesa dos consumidores, também têm pontos que não foram atendidos. Mas, ela vem pacificar esse tema e é resultado da busca pelo equilíbrio”, destaca ele.

Na avaliação de Bioni, os debates públicos realizados pelo Ministério da Justiça serviram para aproximar atores com posicionamentos distantes e montar um consenso mínimo para aprovação da proposta no Legislativo. Quando o projeto foi apresentado na Câmara, “os atores que tinham interesses antagônicos e conflitantes, já tinham feito contribuições que ensaiassem o meio termo para suas respectivas posições e isso facilitou o debate feito no Congresso Nacional”, pondera o advogado, destacando a importância dos processos de consultas públicas para aproximar interesses de diferentes espectros e amadurecer debates em curso.

Flávia Lefèvre, por sua vez, entende que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais “é fundamental num cenário em que as relações entre consumidores e fornecedores, cidadãos e governos se dão cada vez mais no ambiente da Internet, com coleta e tratamento de dados cada vez mais intensos. O que viabiliza um monitoramento profundo de informações a nosso respeito e, consequentemente, uma invasão indesejada e abusiva da nossa privacidade”. Situação, portanto, que precisava ser regulada por meio da legislação.

Segundo Lefèvre, ao estabelecer obrigações como a de que o titular deve declarar consentimento para que possa ocorrer o tratamento dos seus dados, a Lei 13.709/2018 torna-se “um grande passo institucional e civilizatório, tanto no campo pessoal quanto no campo do comércio internacional, que cada vez mais exige que os países possuam suas leis e autoridades regulatórias e fiscalizadoras da exploração econômica”.

Ameaças à liberdade de expressão e à democracia

Atualmente, muito da informação que recebemos e a partir da qual formamos nossas opiniões sobre os fatos públicos são acessadas por meio das redes sociais e dos sites de buscas. Em muitos casos, essas informações nos são disponibilizadas com base em um perfil composto sobre nossos interesses e preferências, a partir do nosso histórico de uso dessas mesmas plataformas. Em última análise, a nosso acesso à informação é limitado pela coleta e tratamento de nossos dados pessoais, o que tem implicações diretas também no exercício da liberdade de expressão.

“Um grande reflexo disso é o chamado efeito bolha: você tem acesso a informações que são condizentes com um perfil pré-formado, pré-concebido, sobre uma série de assuntos”, aponta Bruno Bioni. “Isso dificulta que você tenha acesso a informações que são contrárias às suas e com as quais você poderia até mesmo refletir criticamente e mudar de posição e isso pode reforçar o ódio e a intolerância”, explica. Segundo ele,

numa dinâmica em que o acesso à informação é calibrado pelo uso de nossos dados, o direito à liberdade de expressão é cada vez mais congestionado pelo direito à proteção de dados pessoais.

“Por conta disso, a gente costuma dizer que o direito à proteção dos dados pessoais e também o direito à privacidade são como um guarda-chuva para outras liberdades, entre elas a liberdade de expressão”, complementa o advogado.

Flávia Lefèvre concorda que a plena liberdade de expressão não será possível se o direito à privacidade for desrespeitado. “Num ambiente em que ficamos expostos, sem a proteção dos dados que revelam nossos aspectos de personalidade e que permite um monitoramento constante de nossas atividades, não há como exercer plenamente a liberdade de expressão” diz. “Isso traz efeitos negativos para o livre fluxo de informações e, consequentemente, para os processos educacionais e de formação e desenvolvimento dos indivíduos, como também para as construções sociais e políticas”, pondera a advogada, para quem a exposição dos dados pessoais resulta em um alto grau de insegurança.

Bia Barbosa também ressalta que quanto maior a vigilância, mais riscos há à liberdade de expressão e, consequentemente, à democracia. “Uma parte importante da coleta e tratamento de dados é feita pelo poder público. Em Estados autoritários, isso certamente alimenta mecanismos de vigilância. E sabemos que, o que você está fazendo, os lugares que está visitando, as manifestações das quais está participando ou a opinião que está expressando em diferentes espaços, tudo isso pode ser usado contra você no cenário de países de baixa democracia ou de democracia ameaçada”, ilustra a jornalista.

Limitações para coleta e processamento

Um dos grandes avanços da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais foi introduzir critérios para a coleta e o processamento de dados. Em seu artigo 7º, ela traz dez hipóteses em que isso seria permitido. Uma delas é a do consentimento informado do titular. “O cidadão precisa saber que seus dados estão sendo coletados e precisa poder dizer ‘concordo com essa coleta de dados’”, explica Bia Barbosa. Mas há outras hipóteses previstas. “Você pode ter seus dados coletados também para o desenvolvimento de políticas públicas, por exemplo, desde que o poder público utilize os dados única e exclusivamente para aquela finalidade com a qual foram coletados”, ressalta a jornalista.

Outra das hipóteses previstas na Lei para a qual é justificada a coleta e tratamento de dados, objeto do artigo 4º da legislação, é a do uso das informações para fins exclusivamente jornalísticos e artísticos. O mesmo ocorre quando se trata do uso de dados para fins de pesquisa. Tal entendimento busca o equilíbrio entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão, impedindo que a proteção aos dados pessoais seja utilizada como justificativa para restringir a realização de reportagens investigativas, por exemplo. “Seja quando blinda atividades como jornalísticas, seja quando prevê a aplicação para fins de atividade de pesquisa, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais tem dentro da sua alma, do seu perfil, algo preocupado com a liberdade de expressão e com o acesso à informação”, alega Bruno Bioni.

Apesar das limitações impostas pela lei, Bia Barbosa ressalta que ela não tem como objetivo proibir a coleta e o tratamento de dados, mas “regular e estabelecer algumas condições em que as empresas e o poder público podem coletar e tratar esses dados”. Segundo ela, isso se deve ao entendimento de que “o compartilhamento massivo e o tratamento para finalidades diferentes daquelas para as quais houve a coleta podem gerar danos ao titular dos dados, ou seja, ao cidadão”.

Para além do uso para fins jornalísticos, artísticos e de pesquisa, a lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado para fins de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado e atividades de investigação e repressão de infrações penais. O que significa que, além das forças de defesa e segurança nacional, também as forças da segurança pública, incluindo as polícias Militar e Civil e os demais atores das forças de repressão interna, não têm suas atividades submetidas às regras de proteção de dados.

A exclusão desses setores gerou críticas por parte da sociedade civil, pois pode trazer prejuízos diretos à proteção da privacidade e ao pleno exercício da liberdade de expressão. Para Bia Barbosa, uma exceção tão ampla é um grande problema da legislação, principalmente por conta “dos aspectos do vigilantismo e da criminalização, que podem ser exacerbados em governos mais autoritários”. “Vigilância tem tudo a ver com o exercício da liberdade de expressão, não só porque os movimentos sociais têm que poder organizar suas manifestações, organizar seus protestos, conduzir sua atuação para lutar por direitos, para reivindicar melhorias nas condições de vida no país, mas também porque um jornalista que vai denunciar um abuso policial tem que ter privacidade no diálogo com as suas fontes”, alerta ela.

Escândalos de vazamentos de dados

A coleta massiva e o armazenamento por tempo indeterminado de dados pessoais para os mais variados fins introduz também fragilidades de segurança aos sistemas informáticos que podem implicar em vazamentos de dados. Essa situação é potencialmente mais lesiva se ocorrer de modo simultâneo à concentração econômica. A concentração dessas informações em grandes conglomerados traz grave ameaça à privacidade, à liberdade de expressão e mesmo à concorrência entre as companhias.

Entre os graves escândalos recentes de vazamento de informações, está o episódio que afetou 87 milhões de usuários do Facebook no início de 2018, evento este que serviu como motivador para a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil. Os perfis afetados tiveram seus dados acessados indevidamente por um aplicativo de teste de personalidade, que foram depois repassados à Cambridge Analytica, empresa criada em 2013 pelo milionário estadunidense Robert Mercer, apoiador de causas políticas conservadoras. As suspeitas são de que a consultoria britânica tenha usado os dados coletados na base do Facebook para induzir resultados de processos eleitorais e políticos ao redor do mundo. Entre os casos emblemáticos de atuação da empresa, estão as eleições à Presidência dos Estados Unidos que resultaram na vitória de Donald Trump e o plebiscito sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), ambos ocorridos em 2016.

Créditos: Anthony Quintano/Wikimedia Commons
Créditos: Anthony Quintano/Wikimedia Commons

 

O vazamento foi tornado público depois que um ex-funcionário da Cambridge Analytica denunciou o fato a órgãos de imprensa dos Estados Unidos e Reino Unido, relatando a atuação da consultoria nas respectivas eleições. A grande maioria das pessoas afetadas, cerca de 70 milhões, reside nos Estados Unidos, mas o Facebook estima que 443 mil usuários do Brasil também tenham sido afetados.

Mas este não foi o único escândalo de vazamento de dados ocorrido em 2018 que envolveu o Facebook. No final de setembro, a rede social anunciou que hackers tinham acessado cerca de 50 milhões de perfis por meio de uma vulnerabilidade existente na função “ver como”, que permitia aos invasores terem acesso ao token de um dado usuário. O token é um substitutivo da senha de acesso à conta, gerado no momento do login justamente para que a senha não precise ser informada a cada acesso a partir de um mesmo dispositivo e navegador ou aplicativo. O vazamento foi identificado pelo Facebook no momento em que os invasores automatizaram o processo, gerando picos de acesso.

O ano ainda marcou a divulgação de um gigantesco escândalo de vazamento de dados envolvendo a rede Marriott de hotéis, proprietária dos hotéis Le Meredien e Sheraton, entre outros. O vazamento, que vinha ocorrendo desde 2014, resultou no acesso indevido a informações pessoais de cerca de 500 milhões de hóspedes no mundo todo, inclusive seus dados sobre cartões de crédito e passaportes. Após investigação, divulgada em setembro, foi constatado que o vazamento ocorreu a partir do banco de dados da rede Starwood, que se fundiu à Marriott em 2016. Foram acessados dados como nome, data de nascimento, gênero, telefones, endereço, e-mail, datas de chegada e de partida de reservas, canais preferenciais de comunicação, informações da conta bancária e números de passaporte e do cartão de crédito.

Também o Google enfrentou problemas de vazamento durante 2018, mais precisamente em sua rede social Google+, e anunciou que a mesma será desativada a em agosto de 2020 – a partir de então, somente a versão para empresas permanecerá ativa. O escândalo pode ter afetado até 500 mil contas por meio de uma falha de software, que permitiu acesso dos desenvolvedores a informações como nome, idade, gênero, profissão e e-mail do usuário, mesmo em se tratando de perfis privados. O vazamento teria ocorrido no mês de março, na mesma época em que o aplicativo MyFitnessPal, da empresa do ramo esportivo Under Armour, teve o banco de dados de mais de 150 milhões de usuários comprometido com o acesso a informações como nome, e-mail e senhas dos clientes. Estes foram notificados pela empresa a a mudar suas senhas imediatamente.

Eleições e o uso indevido dos dados pessoais

No Brasil, as eleições de 2018 foram igualmente marcadas por denúncias de uso ilegal de bases de dados, o que é vedado pela legislação brasileira em se tratando de publicidade eleitoral. De acordo com informações divulgadas inicialmente pelo jornal Folha de S. Paulo, a campanha do então candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) teria se utilizado dessas bases. De acordo com a apuração realizada pelo jornal, foram gastos cerca de R$ 12 milhões na compra de cada contrato de disparos de milhões de mensagens pelo WhatsApp com conteúdo contrário ao candidato Fernando Haddad (PT), que concorria com Bolsonaro no segundo turno das eleições. Ainda conforme o jornal, uma das empresas que teria feito a contratação dos disparos massivos de mensagens, o que configuraria doação à campanha de Bolsonaro não declarada à Justiça, seria a rede de lojas Havan. Os fatos seguem sob análise do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

“O que aconteceu neste processo eleitoral demonstra o quanto a proteção dos nossos dados pessoais já fez falta. Os escândalos envolveram o uso de CPF das pessoas para habilitação de chips de celular para disparo de notícias falsas, o uso de dados obtidos em cadastros de empresas para disparo de mensagens de WhatsApp e a inclusão do número de telefone das pessoas em grupos. O uso de dados pessoais de eleitores sem sua autorização já tem impacto direto na nossa democracia”, avalia Bia Barbosa.

Bruno Bioni explica que o uso de dados pessoais é fundamental para certas estratégias de campanha política e inclusive de desinformação, como a observada nas eleições brasileiras de 2018. “Quanto mais uma outra parte sabe sobre você, maior é o poder dela de te levar a tomar certos tipos de decisão, de te levar a decidir de determinadas formas e de fazer inferências sobre você”, pondera. Segundo ele, a manipulação da informação em um contexto político a partir do uso indiscriminado de dados pessoais é um dos grandes danos à democracia que pode ser observado quando não há uma regulação adequada.

“Para além do conteúdo, isso só se torna potente porque se sabe qual é a narrativa que tem que ser construída com base no perfil do destinatário dessa informação. E essa precisão só se tornou possível porque, agora, se tem os dados pessoais dessas pessoas ou grupos. Com eles, se sabe como seduzir melhor o destinatário desta informação. E as técnicas de processamento de dados estão aí para isso”, enfatiza o advogado.

De acordo com Bia Barbosa, os escândalos de vazamento evidenciam a forma como as empresas coletam e tratam dados: sem maiores cuidados com a privacidade das pessoas e sem garantir nenhuma segurança a esses dados. Neste sentido, ela ressalta que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais traz garantias inéditas na legislação brasileira. “A Lei é muito positiva na responsabilização de quem não trata esses dados de uma maneira correta e que permite esse tipo de vazamento, de invasão nos bancos de dados”, avalia. Resta agora que a Lei 13.709/2018 seja efetivamente aplicada, inclusive por uma autoridade que tenha independência e autonomia para exercer seu papel de agência reguladora.

* Jornalista, com graduação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Possui mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). É integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Donos de rádio e TV se beneficiam eleitoralmente das concessões públicas

Texto: Eduardo Amorim*

O complexo sistema de desinformação que funcionou nas eleições brasileiras de 2018 deu condições para resultados surpreendentes. Muito se fala do escândalo envolvendo o envio massivo de mensagens via WhatsApp e da força das redes sociais na campanha, evidenciados principalmente pelo crescimento de candidatos antes pouco conhecidos ligados ou filiados ao Partido Social Liberal (PSL). No entanto, o poderio da mídia tradicional continua sendo grande no Brasil, uma vez que essas empresas ao mesmo tempo dominam a radiodifusão e atuam como grandes produtoras de conteúdo para os meios digitais.

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Em um país caracterizado por um sistema de mídia historicamente concentrado e pouco plural, os meios de comunicação de massas podem contribuir com a polarização política ao compartilhar visões parciais de mundo de acordo com linhas editoriais determinadas pelos interesses de seus detentores. E, em períodos eleitorais, associações entre meios de comunicação e políticos podem ser centrais para a vitória de determinados candidatos.

Políticos donos da mídia são eleitos e empossados

Efetivamente, pouca gente sabe que no Brasil de 2018 muitos políticos são também detentores de meios de comunicação, que são utilizados de acordo com seus interesses eleitorais. Levantamento do Intervozes em dez estados apontou que pelo menos 24 candidatos às eleições possuíam concessões de rádio ou televisão em cidades com mais de 100 mil habitantes. Os donos de mídia listados concorreram aos cargos de deputado federal (11), senador (6), deputado estadual (16) e governador (1). A maior parte são políticos de carreira: 16 tentaram a reeleição, cinco possuíam outros cargos políticos eletivos no momento e sete já tiveram cargos eletivos no passado.

Outros 23 candidatos se destacaram por sua participação em programas de rádio e televisão, especialmente nos chamados “policialescos”. Embora a legislação eleitoral impeça a aparição dos candidatos na programação normal das emissoras durante o período de campanha, não há uma legislação específica que coíba a presença de políticos com mandatos em vigência na apresentação de programas de rádio e TV e eles também utilizam deste espaço para fazer crescer suas redes sociais e tornar conhecidos seus nomes.

O levantamento também mostra que a maior parte desses apresentadores e repórteres participa das eleições 2018 em partidos que tem a família e a religião como bandeira, numa posição que vai de encontro ao discurso de ódio pregado em parte significativa dos programas em que atuam. O Intervozes apontou ainda que, nos estados pesquisados, os candidatos e candidatas às eleições oriundos das forças de segurança (Polícia Militar, Civil, Exército, Bombeiros, entre outras) ultrapassaram 800.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, o número de políticos que também eram sócios de empresas de radiodifusão diminuiu de 2014 para 2018 de 40 para 28. Isso porque nas eleições anteriores quatro não se candidataram e 11 não se elegeram, enquanto 25 se reelegeram e outros três novos donos de rádios entraram para a Câmara dos Deputados.

Um fator importante nesse processo é que o Ministério Público Federal (MPF), por pressão da sociedade civil, deu início em 2015 a uma série de ações judiciais questionando a participação de políticos em empresas concessionárias de rádio ou TV. Muitos deixaram as sociedades em que participavam, porém alguns se utilizam de familiares para continuarem controlando a pauta das emissoras. É o caso de Jader Barbalho, que passou a empresa para os filhos. Helber Barbalho, porém, foi eleito no Pará e é um dos três governadores citados na reportagem da Folha como dono de concessão de radiodifusão junto com Ratinho Júnior (Paraná) e Wilson Lima (Amazonas).

O MPF contesta a mudança no quadro societário das concessionárias públicas de radiodifusão como estratégia dos políticos donos da mídia para se esquivar de processos judiciais. Para o órgão, a mudança não altera a irregularidade – em especial se o empresário já detinha um mandato quando da obtenção da concessão da emissora, seja ela de rádio ou de televisão. Em São Paulo existem três ações tramitando contra políticos donos da mídia.

Candidatos radiodifusores se beneficiam ilegalmente

O pesquisador em Ciência Política, Cristiano Aguiar Lopes, aponta como a propriedade de uma concessão de radiodifusão beneficiou candidatos às eleições municipais. Ele levantou os casos de 1.058 candidatos aos pleitos de 2000, 2004, 2008, 2012 e 2016. “Podemos concluir que, no agregado das cinco eleições municipais realizadas no período entre 2000 e 2016, a propriedade de uma outorga de radiodifusão local foi um fator que ampliou em 30,36% as chances de um candidato radiodifusor se eleger, quando comparado à população em geral”, conclui.

Segundo a pesquisa, “a exploração de uma emissora de rádio em municípios nos quais esse tipo de mídia conta com o monopólio sobre a difusão de conteúdos locais amplia significativamente as chances de eleição do seu proprietário”. Os resultados positivos para os candidatos donos da mídia nas localidades que contam apenas com o rádio como meio de comunicação local independe da competitividade eleitoral.

Apesar de não configurar ilegalidade, foram muitos os casos também de políticos que se elegeram depois de se tornarem figuras conhecidas por apresentarem programas nas emissoras de televisão. Os casos de repórteres policialescos que se apresentaram como candidatos e conseguiram “surfar” no discurso do combate à violência não são raros. Um exemplo ocorreu no município de Caruaru, onde o apresentador Fernando Rodolfo se elegeu na sua primeira tentativa eleitoral para deputado federal.

Um dos apresentadores locais da TV Jornal Interior, Rodolfo conseguiu fazer um vídeo viralizar na Internet após ser demitido e propagar a informação de que estaria saindo da emissora por sua atuação enquanto jornalista e por ter denunciado irregularidades na Secretaria de Planejamento do Governo do Estado de Pernambuco. A diretora de Jornalismo da TV e Rádio Jornal, no entanto, divulgou nota explicando que o jornalista teria comunicado sua intenção de ser candidato nas eleições de 2018 e, seguindo as normas da empresa, foi oficializado seu afastamento.

Cristiano Aguiar Lopes acredita que o número de candidatos radiodifusores pode estar diminuindo lentamente, mas pretende seguir analisando o tema nas eleições de 2020. Para ele, independentemente dessa queda quantitativa, os donos de emissoras ainda controlam o que sai nos meios de comunicação. “Os meios de comunicação de massas promovem uma desigualdade de cobertura não só durante as eleições, mas também ao longo do mandato, pois têm poder para controlar a agenda pública”, afirma.

Emissoras favorecem candidatos de forma irregular

Novidade nas eleições de 2018 foi a adesão explícita de algumas emissoras à candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República. A ação gerou uma representação ao Ministério Público Federal (MPF), assinada em conjunto pelo Intervozes e pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).

Créditos: José Cruz/Agência Brasil
Créditos: José Cruz/Agência Brasil

O documento relata os casos em que a Rede Record, RedeTV, TV Bandeirantes, Rádio Jovem Pan e TV Cidade/SBT Pará favoreceram o então candidato. As entidades exigiam que o MPF tomasse as devidas providências para garantir o respeito à legislação em vigor no país, sobretudo a Lei Eleitoral. A Lei 9.504/1997, que estabelece as normas eleitorais determina, em seu Artigo 45, que: “[e]ncerrado o prazo para a realização das convenções no ano das eleições, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e em seu noticiário: IV – Dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação”.

O texto cita ainda a resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que prevê as multas a serem aplicadas no caso de desrespeito a esse artigo da Lei Eleitoral citado acima; o artigo 53 da Lei 4.117/1962, que estabelece que “[c]onstitui abuso, no exercício de liberdade da radiodifusão, o emprego desse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País”.

Leia a representação do Intervozes e FNDC na íntegra aqui.

No dia 28 de setembro, a Rede TV veiculou entrevista exclusiva, por 26 minutos, no programa RedeTV News, com candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL). No mesmo dia, a TV Bandeirantes exibiu conteúdo semelhante por 45 minutos, no programa Brasil Urgente. Na noite do dia 4 de outubro de 2018, às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais, a Rede Record de televisão também privilegiou o candidato Jair Bolsonaro, concedendo a ele 26 minutos de exposição exclusiva, em entrevista exibida em telejornal noturno. Poucos dias antes, o candidato recebeu o apoio público do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário da Record.

Pesquisadores analisam eleição presidencial

Pesquisador Fullbright na Tulane University (Estados Unidos) e professor da Universidade Católica de Pernambuco, Juliano Domingues acompanha atentamente o cenário político brasileiro. Para ele, os meios de comunicação tradicionais vêm perdendo relevância na determinação dos resultados eleitorais desde 2006. “Quando o ex-presidente Lula foi reeleito, ficou um tanto mais evidente o quanto a grande mídia é uma condição, mas não suficiente para se chegar e manter no poder”, afirma. Ele acredita que naquelas eleições houve uma oposição muito forte da grande mídia e mesmo assim Lula foi reeleito.

Apesar disso, parece evidente que a grande mídia continua influenciando as eleições majoritárias e sendo fundamental em eleições de candidatos proporcionais. Como no famoso caso da edição do debate da TV Globo nas eleições de 1989, em que Fernando Collor foi beneficiado e acabou derrotando Lula, o processo eleitoral de 2018 também tem potencial para se tornar um caso a ser debatido pelas próximas gerações de jornalistas a saírem das universidades.

Domingues, que atuou como repórter da TV Globo em Pernambuco no início da sua carreira, acredita que um processo a ser analisado é a aproximação do agora presidente eleito com a segunda maior emissora de televisão do país. Nas eleições de 2018, para ele, “o que chama atenção em relação às empresas de radiodifusão é um ensaio de Bolsonaro no sentido de estabelecer de maneira clara a Record como sua emissora aliada em oposição à TV Globo, isso se torna um tanto claro naquele momento em que no último debate a Record transmitiu uma entrevista exclusiva com Bolsonaro e é reforçado quando Bolsonaro uma vez eleito concede a primeira entrevista após eleito à Record e agradece no início da entrevista a cobertura isenta do jornalismo da Record, se a gente pensa esse tipo de gesto no contexto mais amplo de alianças políticas e de aproximação entre o Bispo Edir Macedo e Bolsonaro ainda durante as eleições, ajuda a gente a montar um quebra-cabeças sobre o que pode vir pela frente”.

Ele acredita que não temos segurança para prever um cenário para o futuro das nossas principais emissoras televisivas nos próximos quatro anos, mas tende a achar que a Record pode se fortalecer e a Globo perder espaço no Governo Bolsonaro. No entanto, diferentes emissoras de radiodifusão nem de longe beneficiaram apenas o presidente eleito no pleito de 2018 e certamente a vantagem (ilegal) dos radio-difusores nos pleitos ainda permanecerá sendo vista por algum tempo.

Audiência das principais emissoras no dia do último debate do primeiro turno
Emissora Programa Audiência
Globo Debate com candidatos à Presidência 22%
Record O Voto na Record: entrevista com Jair Bolsonaro (das 22h05 às 22h32) 13,6%
SBT Chiquititas 11,3%

Fonte: Com entrevista de Bolsonaro, Record dobra audiência e ofusca debate da Globo / UOL

Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Intervozes, Helena Martins, afirma que “o fato de a Record ter beneficiado um candidato, no caso Jair Bolsonaro, deixa muito nítido o uso político dos meios de comunicação, o uso político de concessões públicas por parte dos grupos que detém essas concessões e que deveriam prestar um serviço com esse caráter público, mas acabam se valendo desses espaços para promoverem seus próprios interesses”. Para ela a situação também evidencia “a falta de mecanismos de denúncia, cobrança e de responsabilização, inclusive dos meios de comunicação, diante de flagrante ilegalidade”.

Helena pontua que a ação beneficiou o candidato dada a grande audiência da TV Record, a segunda maior emissora aberta do Brasil. “As emissoras abertas têm uma penetração muito grande no nosso país, a Record tem entre 14% e 18% da audiência”, diz. “São milhões de pessoas que tiveram acesso privilegiado a um determinado conteúdo e outros candidatos não tiveram o direito de ter esse espaço tão importante”. A pesquisadora considera ainda que, pela lógica integrada dos veículos de comunicação, a aparição de um candidato com tanto destaque em uma emissora reverbera em outros veículos e também na Internet, o que implica em uma visibilidade ainda maior. “Numa eleição absolutamente disputada e muito polarizada, esse tipo de projeção pode sim ter tido um impacto no resultado eleitoral: o lugar da mídia nessa sociedade é muito grande e afeta vários campos da vida social”, opina.

Judiciário se ausentou no debate eleitoral e ficou longe de ser isento

Atualmente, tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) três Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) sobre a propriedade de meios de comunicação por parte de políticos.

As ADPFs 246 e 379, de iniciativa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do Intervozes, requerem que o STF declare inconstitucional a participação de políticos como sócios em empresas de radiodifusão. As ações se baseiam no artigo 54 da Constituição Federal, que proíbe que deputados federais e senadores sejam donos de canais de rádio e TV. Em 2015, o MPF moveu ações em diversos estados solicitando o cancelamento de outorgas que estavam em nome de 32 deputados federais e oito senadores.

Uma terceira ADPF (429) foi instaurada pela Presidência da República, em 7 de novembro de 2016, durante o governo de Michel Temer, em contraponto às anteriores. A ação pede que seja declarada a constitucionalidade da posse de emissoras por políticos com mandatos, evidenciando a relação intrínseca de certos grupos no poder com esta prática que claramente fere os preceitos explicitados na Constituição Federal. A Procuradoria Geral da República (PGR) se pronunciou sobre o tema, sustentando o não cabimento da ADPF 429.

“Concessão ou manutenção da exploração do serviço de radiodifusão por pessoas jurídicas das quais participem, como sócios ou associados, detentores de mandato eletivo choca-se com a isenção e independência que deve haver no exercício dessas funções, viola frontalmente os arts. 54, I, a, e 54, II, a, da Constituição, e contraria as finalidades buscadas pelos arts. 22, IV, e 223 da Constituição”, afirma o texto assinado pela PGR, Raquel Dodge, no último dia 18 de dezembro.

Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil
Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil

Logo após dar entrada na ADPF 429, o governo de Michel Temer tentou, sem sucesso, suspender todas as ações nos estados por meio de liminar. A tentativa parece refletir preocupação por parte do governo com as decisões positivas que deixam claro que efetivamente a Constituição Federal proíbe a posse de emissoras de rádio e TV por políticos com mandatos.

A ADPF 246 foi impetrada em 2011. São oito anos de espera por um posicionamento do STF em um tema que é de extrema importância para a democracia brasileira. O MPF pede nos mais recentes pareceres em relação à temática que o Supremo reconheça a inconstitucionalidade de políticos que são sócios de empresas de radiodifusão. Isso permitiria, por exemplo, que o Judiciário não mais diplome políticos que sejam sócios de empresas de radiodifusão por violação ao Artigo 54.

Levantamento da Folha de S. Paulo indica que 55 concessões no país são de propriedade de deputados e senadores que tomarão posse na próxima legislatura.

Regulação, responsabilização e fiscalização são o caminho

De acordo com o pesquisador Cristiano Lopes, se um processo de outorga de radiodifusão comunitária é “apadrinhado” por um político, ele tem 47,7% mais chance de ter sucesso do que aqueles que não estão ligados a um parlamentar. Ou seja, se não começarmos a frear o uso da mídia por políticos isso continuará causando problemas cada vez mais graves.

Helena Martins resume um caminho a se traçar na luta pelo direito à comunicação. Para ela são necessários “mecanismos de regulação da mídia, de denúncia de irresponsabilidade, de responsabilização dos veículos e das empresas que chegarem a cometer alguma irregularidade”. Ela lembra que os serviços de radiodifusão são essencialmente públicos e que, por mais que sejam ofertados por empresas privadas por meio de concessões, eles devem servir ao público e não aos donos da mídia e a possíveis apoiadores e parceiros desses empresários.

Sem uma cobrança de toda a sociedade e uma real mudança na postura do Judiciário, a tendência é que os próximos pleitos continuem sendo exemplos para o mundo de como não se deve realizar eleições numa democracia.

* Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Violência contra ativistas e comunicadores compromete liberdade de expressão em 2018

Texto: Alex Hercog*

“Mataram um negro, não vou me calar!”. Assim gritavam os manifestantes no Pelourinho e nas ruas de Salvador durante os diversos atos realizados em homenagem a Mestre Moa do Katendê, capoeirista assassinado após o primeiro turno das eleições. Envolvido em uma discussão política com um eleitor de Bolsonaro, Mestre Moa acabou recebendo 12 facadas que lhe tiraram a vida.

O episódio simboliza o clima de ódio, violência e tentativa de silenciamento que pautaram as eleições presidenciais no Brasil. A tática da intimidação prevaleceu, transpondo para as ruas a tensão que há muito dominava as redes sociais. Ataques individuais, repressão policial e omissão do poder público comprometeram a já abalada democracia no ano em que a população foi às urnas eleger seus futuros representantes.

Impedido de disputar a eleição, o ex-presidente Lula esteve no centro do debate. Após ser preso, em abril deste ano, diversas manifestações foram realizadas contrárias à decisão. Cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba registraram violenta repressão policial contra os manifestantes. Na capital paranaense nove pessoas – incluindo duas crianças – ficaram feridas e uma ordem judicial proibiu novos protestos nas imediações da Superintendência da Polícia Federal. Também foram realizadas manifestações contrárias ao ex-presidente, mas em nenhuma houve ocorrência de violência policial.

O próprio Lula já havia sido alvo de um atentado contra sua caravana, em março deste ano antes de sua prisão. Ao passar pelo interior do Paraná, um dos ônibus foi alvejado por tiros. O ex-presidente não estava no veículo e ninguém ficou ferido. A Polícia Civil afirmou que o ataque foi planejado, mas os autores dos disparos não foram identificados e o inquérito permanece sem solução.

O crime ocorreu duas semanas após o assassinato de Marielle Franco. Quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro, eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) –, mulher, negra, bissexual, oriunda da favela da Maré, Marielle foi executada no centro da cidade com pelo menos cinco tiros que a atingiram na cabeça. O ataque vitimou também seu motorista Anderson Gomes. As investigações relacionam o caso às denúncias feitas pela vereadora contra as milícias que atuam no município do Rio.

Nove meses após o assassinato de Marielle, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Richard Nunes, declarou que os interesses dos mandantes estavam relacionados à grilagem de terra. Segundo ele, os milicianos acreditavam que a vereadora poderia atrapalhar seus negócios ilícitos.

Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O atentado à caravana do ex-presidente Lula e os assassinatos de Marielle e Mestre Moa, por motivações políticas, não foram casos isolados no ano de 2018. Durante o período eleitoral, diversos ataques foram notificados.

De um lado, o então candidato Jair Bolsonaro (PSL) pregava publicamente o desejo de “metralhar a petralhada”, “banir” os “marginais vermelhos” e colocar um “ponto final em todos os ativismos no Brasil”. Sempre seguido pelo seu principal gesto de simular uma arma e acompanhado de manifestantes portando revólver. Nada disso provocou reação ou punição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Nas ruas, vários ataques foram registrados em todo o país. Um levantamento produzido pela Agência Pública em parceria com a Open Knowledge Brasil revelou que ao menos 70 ataques foram denunciados durante o período eleitoral. Destes, 50 cometidos por apoiadores de Bolsonaro e seis contra seus eleitores, além de 15 agressões indefinidas.

Atropelamento, socos, chutes e espancamento foram alguns dos tipos de ataques registrados. A própria Polícia Militar é acusada de participar das agressões. Em São Paulo, a cozinheira Luisa Alencar afirmou à Pública ter sido agredida por policiais após ser abordada quando pintava um estêncil escrito “Ele Não” – expressão usada principalmente por mulheres para repudiar o candidato Jair Bolsonaro e suas pautas.

De acordo com Luisa, os policiais lhe jogaram no chão e lhe agrediram com chutes. Enquanto torciam o seu braço e lhe algemavam, ela conta que um dos policiais lhe gritava ao ouvido: “Sua puta, ele sim. Sua puta, sua vagabunda, ele sim”. A manifestante também afirma ter sido encarcerada sem roupas e exposta na cela às vistas de outros homens.

O clima de violência que marcou o ano eleitoral, o ódio disseminado nas redes sociais e as ameaças feitas pelo então candidato Bolsonaro também atingiram o próprio futuro presidente. Durante comício na cidade de Juiz de Fora (MG) no início de setembro, Bolsonaro levou uma facada na barriga e teve que passar por cirurgias e internamento.

O autor acusado pelo atentado foi Adélio Bispo de Oliveira, preso imediatamente após o ataque. De acordo com a investigação da Polícia Federal, Adélio agiu sozinho, rebatendo as acusações que circularam nas redes sociais que atribuíam ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao PSOL envolvimento com o crime. Na delegacia, Adélio afirmou que praticou o atentado “a mando de Deus”.

Declínio nos índices de liberdade de expressão no Brasil e no mundo

Os recorrentes casos de repressão contra manifestantes e violência contra políticos e eleitores também atingiram comunicadores pelo país. Um dos episódios mais recentes foi o ataque à rádio comunitária Educadora de Gurupá (PA), que foi invadida e incendiada por autores ainda não identificados.

No Recife, uma jornalista que portava um crachá de imprensa foi agredida após deixar sua zona eleitoral. De acordo com a vítima, um dos agressores usava uma camisa de Jair Bolsonaro e teria afirmado que “quando o comandante ganhasse, a imprensa toda ia morrer”. Ela foi espancada, teve o rosto e braços cortados e foi ameaçada de estupro.

Segundo dados publicados pela entidade internacional Press Emblem Campaign (PEC), o Brasil foi o oitavo país no mundo com mais assassinatos de comunicadores em 2018: quatro. Jefferson Pureza (Goiás), Jairo de Souza (Pará), Ueliton Brizon (Rondônia) e Marlon Carvalho (Bahia) foram os jornalistas mortos. De acordo com o mapeamento da PEC, o Brasil teve 22 registros de homicídios a comunicadores entre 2014 e 2018, aparecendo, assim, na lista dos 10 países com mais assassinatos, no ranking liderado pela Síria, México, Afeganistão e Iraque.

Estudos realizados pela organização não-governamental Artigo 19 apontam que 70% dos crimes cometidos contra comunicadores no país são praticados ou encomendados por agentes públicos, sobretudo políticos e policiais. Jornalistas de veículos de pequeno porte, blogueiros e radialistas comunitários são os principais alvos, de acordo com documento lançado pela organização em dezembro de 2018.

O relatório também aponta que a impunidade e negligência das autoridades em relação a esses casos é uma constante no país. O documento denuncia ainda o corte no orçamento de instituições e enfraquecimento de leis de proteção a ativistas, a partir do governo de Michel Temer. Além disso, é destacada a incitação ao ódio e à violência contra defensores de direitos humanos, a partir de empresários, políticos e líderes religiosos na televisão, jornais e internet. Segundo dados da Artigo 19, o Brasil foi o país que mais matou ativistas em 2017, com o maior índice de assassinatos já registrado no mundo em um único ano: 57.

O documento analisou o panorama do direito à liberdade de expressão em diversos países e apontou uma tendência global de declínio da garantia desse direito, sobretudo nos três últimos anos, incluindo ataques à liberdade de imprensa e intimidação de comunicadores.

O Brasil é o segundo país em que o índice de liberdade de expressão mais decaiu desde 2014. A maior queda se refere à liberdade de expressão em ambientes on-line e no espaço público comum, a exemplo de manifestações. O documento ainda cita segmentos vulneráveis a esse tipo de ataque, como ativistas LGBTI, ambientalistas e ativistas ligados à causa indígena e quilombola.

América em chamas

Essa tendência internacional de queda de liberdade de expressão também se nota nos demais países do continente americano. Nos Estados Unidos, os conflitos raciais se destacam, com episódios de manifestantes negros sendo alvos de ataques de supremacistas brancos e seguidores da Ku Klux Klan. Nos confrontos, a exemplo do que ocorreu na Virgínia1, os policiais são acusados de não coibirem as agressões promovidas por grupos racistas.

Na Venezuela, casos de repressão a manifestantes se repetem. Um relatório divulgado pela agência de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) classificou como “lamentável” a situação no país e destacou o uso generalizado e sistemático de força excessiva e arbitrária do Estado contra manifestantes e opositores do governo do presidente Nicolás Maduro. O Chefe de Direitos Humanos da ONU chegou a pedir investigação internacional para apurar as violações cometidas pelo governo venezuelano.

Já a Argentina experimentou ao longo de 2018 uma série de manifestações contra os pacotes de medidas neoliberais do presidente Mauricio Macri, incluindo uma greve geral. A violenta repressão policial foi denunciada em diversos protestos, especialmente a que resultou na detenção de 27 manifestantes contrários ao projeto orçamentário aprovado em outubro. Dentre eles, quatro eram comunicadores da revista La Garganta Poderosa, que cobriam o protesto.

Mas a situação mais crítica no continente americano acontece na Nicarágua. Protestos que se iniciaram contra as mudanças na Previdência propostas pelo governo de Daniel Ortega foram violentamente atacados por grupos “pró-governo”. Esses ataques desencadearam uma série de manifestações ao longo do ano, com uma escalada de repressão e violência que vitimou centenas de pessoas.

A estudante brasileira Raynéia Lima foi uma das vítimas, após ser alvejada por um vigilante próximo à universidade em que estudava. A princípio, o caso não tem relação com os protestos, ainda que o reitor da Universidade Americana em Manágua tenha acusado um suposto envolvimento de paramilitares no caso.

A Associação Nicaraguense dos Direitos Humanos apresentou um relatório afirmando que 448 pessoas foram mortas. Não há dados oficiais do governo sobre o número exato de assassinatos. Além da polícia, grupos “pró-governo” formado por franco atiradores são os principais acusados pelo massacre contra os manifestantes contrários a Ortega, formados, sobretudo, por estudantes universitários. Entidades como a Lafede.cat e o Centro Nicaragüense de Derechos Humanos vêm acusando o governo de perseguir e criminalizar organizações não-governamentais que atuam na Nicarágua.

Instituições de Ensino, Ativistas e Movimentos Sociais na mira

Após a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições presidenciais brasileiras, parlamentares aliados aproveitaram o momento para pôr em tramitação projetos polêmicos que afetam diretamente os movimentos sociais e o ambiente acadêmico e escolar: Lei Antiterrorismo e “Escola Sem Partido”.

O primeiro projeto foi incluído na pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado pelo senador Magno Malta (PR) – um dos principais cabos eleitorais de Bolsonaro durante as eleições. O texto apresentado tende a criminalizar os movimentos sociais, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), apontados pelo presidente eleito como “organizações criminosas”.

Créditos: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Créditos: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A Lei Antiterrorismo atual foi sancionada em 2016 pela presidenta Dilma Rousseff (PT) para atender a exigências internacionais visando à realização da Copa do Mundo no Brasil. Muito criticado pelos movimentos sociais, o projeto sofreu vetos da presidenta e modificações no Legislativo em pontos considerados fundamentais para os movimentos, a exemplo do artigo adicionado que excluía “manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosas e de classe” do conceito de “terrorismo”.

Já o projeto atual proposto pelos aliados de Bolsonaro propõe resgatar os artigos vetados por Dilma e tornar mais subjetivo a definição de prática terrorista. Após ter a tramitação suspensa pela Comissão, que entendeu que deveriam haver audiências públicas para debater o tema, o projeto poderá ser votado já em 2019.

Na opinião de Thiago Ferreira, mestre e doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal da Bahia e que pesquisa o ciclo de manifestações de Junho de 2013 até 2018, projetos como esse fazem parte de uma estratégia retórica do futuro governo de “colocar a esquerda como bode expiatório, desviando a atenção” de outras propostas polêmicas, a exemplo da Reforma da Previdência que deverá ser votada no primeiro semestre de 2019, de acordo com o atual presidente.

No entanto, Ferreira ressalta que é possível que o futuro governo não fique apenas na retórica e, de fato, implemente medidas como perseguição aos sindicatos e criminalização dos movimentos sociais. Essa expectativa ganha ainda mais força após decreto de Bolsonaro que atribuiu à Secretaria de Governo, via Medida Provisória 870, a função de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar” as organizações não-governamentais que atuam no país. Em nota a Associação Brasileira de ONGs (Abong) afirmou que não reconhece a legitimidade da MP e que irá “interpelar administrativamente o Governo Bolsonaro para que adeque os termos da MP às normas constitucionais”.

Ainda assim, Ferreira acredita que, em um primeiro momento o perigo está mais associado ao que pode ser feito pelos seguidores de Bolsonaro “ali na esquina” do que em medidas de governo, que ainda perpassariam por outros poderes institucionais. “Mas partidos e ativistas estão sob ameaça, a exemplo de duas lideranças do MST que foram recentemente assassinadas”, complementa. Ele se refere a Rodrigo Caetano e José Bernardo da Silva, coordenadores do acampamento do MST em Alhambra (PB), que foram executados por homens encapuzados que invadiram o acampamento no dia 9 de dezembro de 2018.

Outra proposta colocada para tramitar na Câmara de Deputados logo após a vitória de Bolsonaro é o “Escola Sem Partido”, projeto que já havia tido destaque nas eleições municipais de 2016 e que é uma das principais bandeiras defendidas pelos movimentos que apoiaram a candidatura de Bolsonaro, a exemplo do Movimento Brasil Livre (MBL).

O argumento dos seus defensores é de que o projeto visa impedir a “doutrinação ideológica” nas salas de aula, supostamente praticadas por professores “marxistas” e de “esquerda”. O projeto sofreu a reação de centenas de entidades da área da educação e direitos humanos, que, de acordo com um relatório da ONU, pode resultar em “censura e ou autocensura significativa nos professores”. O projeto foi arquivado na Câmara dos Deputados em 2018, mas poderá ser retomado com a nova legislatura.

Para a jornalista Renata Mielli, que é coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), responsável pela CalarJamais! – campanha que denuncia violações à liberdade de expressão –, o “Escola Sem Partido” é um dos exemplos mais emblemáticos de 2018, no que se refere à tentativa de censura.

“Essa ofensiva contra a liberdade de expressão e pensamento livre nas escolas e universidades acabou tendo projeção internacional”, destaca Mielli. Para a jornalista, o que os defensores do projeto querem com o ‘Escola sem Partido’ é “a defesa de uma escola com o partido deles, que propague o pensamento deles”.

Ela também cita a censura praticada nas universidades durante o período eleitoral, quando policiais e fiscais de tribunais regionais desencadearam operações em universidades de ao menos cinco estados para proibir manifestações contrárias ao fascismo. O caso mais emblemático ocorreu na Universidade Federal Fluminense, onde fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) chegaram a ordenar a retirada de uma faixa com a mensagem “Direito UFF Antifascista”. No entanto, mais de 25 universidades foram afetadas por intervenções.

A seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) afirmou, em nota, que as decisões da Justiça Eleitoral tentaram “censurar a liberdade de expressão dos estudantes e professores da faculdade de Direito, que, como todos os cidadãos, têm o direito constitucional de se manifestar politicamente”.

Também em nota, entidades da área da educação questionaram as ações nas universidades do país: “por que panfletos, debates e palestras que discutem a democracia, as eleições e o que é o fascismo estão sendo considerados como propaganda pela Justiça Eleitoral em todo o Brasil”, questionam.

As ações policiais e dos TREs nas universidades repercutiram nacionalmente, provocando reação do Supremo Tribunal Federal (STF). A pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), a ministra Cármen Lúcia suspendeu todos os efeitos das ações da Justiça Eleitoral que vetavam manifestações nas universidades públicas. “Pensamento único é para ditadores”, afirmou a ministra no seu despacho.

Quem também se pronunciou foi o ministro Marco Aurélio Mello que, além do STF, integra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele classificou as ações nas universidades de “indevida” e “incabível”. “Universidade é campo de saber. O saber pressupõe liberdade, liberdade no pensar, liberdade de expressar ideias. Interferência externa é, de regra, indevida. Vinga a autonomia universitária”, afirmou.

O papel do Judiciário

Os recentes casos de violações à liberdade de expressão expõem o Judiciário e revelam suas contradições. Alternando posições contrárias e favoráveis aos princípios da liberdade, a atuação das diversas instâncias deixa um clima de incerteza sobre a atuação desse Poder durante o mandato do próximo governo.

Em 2018 foram diversas ações que Renata Mielli classifica como “judicialização da censura”, destacando medidas judiciais para a retirada de conteúdos da Internet e a proibição de veiculação de reportagens com denúncias. Outro caso de violação à liberdade de expressão, destacado pela jornalista, foi a proibição à Folha de São Paulo de entrevistar o ex-presidente Lula, que tinha conseguido autorização concedida pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski.

Antes da realização do primeiro turno eleitoral, o ministro do Supremo Luiz Fux acatou um pedido liminar do Partido Novo e proibiu que o ex-presidente concedesse entrevista ao jornal Folha ou a qualquer outro meio de comunicação. A veiculação de possíveis entrevistas realizadas antes dessa decisão, no período em que Lula esteve preso, também teve sua divulgação proibida, sob pena de “crime de desobediência”, afirmou o ministro no seu despacho.

A Folha se manifestou, condenando o que chamou de “censura prévia”. Patrícia Mello, colunista do jornal, fez uma publicação questionando a decisão e ressaltando que Adélio – que esfaqueou Jair Bolsonaro – pôde ser entrevistado por jornalistas ainda na cadeia, enquanto a entrevista com Lula foi negada.

O FNDC também se posicionou sobre o caso, afirmando que o ministro Fux violou o artigo 5º da Constituição que garante a liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de expressão e direito ao acesso à informação. A coordenadora geral do Fórum, Renata Mielli, ressaltou que essa decisão expõe as contradições do Judiciário.

Para ela, a recorrência é de que as decisões de primeira instância endossem a “escalada de violação à liberdade de expressão”, com juízes “dando sentenças favoráveis a medidas de retirada de conteúdo, de censura, de proibição de divulgação de conteúdos e de entrevistas”. Ela atribui isso à pressão sofrida pelos juízes que, em muitas vezes, “ficam reféns de poderes políticos e econômicos locais para dar sentenças favoráveis à violação da liberdade de expressão”.

No entanto, Mielli destaca que alguns posicionamentos das instâncias superiores são conflituosos, variando de acordo com o contexto político. Apesar de decisões do STF como a da proibição de Lula em conceder entrevista, o Supremo teve “posições firmes em relação à garantia da liberdade de expressão nas escolas e universidades”, aponta.

Liberdade de Expressão como um direito fundamental

A compreensão de que a garantia da liberdade de expressão é algo fundamental para o funcionamento das democracias motivou a compromissos nacionais e a adesão a acordos internacionais para a proteção a esse direito. O capítulo V da Constituição Federal já afirma que nenhuma lei pode constituir “embaraço à plena liberdade de imprensa”. No seu artigo 220, é dito que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação” não sofrerão “qualquer restrição”.

A Constituição de 1988 surge no contexto de redemocratização do país, no período pós-Ditadura. Durante as duas décadas de regime autoritário no Brasil, que se iniciou em 1964, a censura era institucionalizada e a repressão aos movimentos considerados de “esquerda” e a jornalistas resultou em perseguição, prisões, torturas e assassinatos promovidos pelas forças do Estado.2

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas após a II Guerra Mundial, em seu artigo 19, determina que “todo ser humano tem direito à liberdade de expressão”, resguardando o direito à livre opinião21.Portanto, o combate à censura e a garantia do direito à manifestação foram condições indispensáveis para a transição democrática. Esses valores se alinhavam com diversos tratados ao redor do mundo, incluindo os que o Brasil passou a ser signatário.

Tais princípios também serviram de influência para o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado em 1966 e promulgado pelo Brasil em 199222. O acordo internacional afirma que “ninguém poderá ser molestado por suas opiniões”, que não violem o “respeito dos direitos e à reputação de demais pessoas”. O Pacto também cita a liberdade de expressão e o direito de “procurar, receber e difundir informações”.

Esse acordo foi também reafirmado em 1969, na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)23 e que envolveu países do continente americano. O tratado internacional assinado pelo Brasil dispõe sobre os direitos fundamentais na perspectiva democrática. A liberdade de expressão, a vedação de censura prévia e a proteção da imprensa são princípios que constam no acordo que foi ratificado pelo Brasil em 1992.

O Brasil de Bolsonaro

O período eleitoral de 2018 expôs um ambiente hostil na política brasileira. As ameaças feitas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, contra ativistas, jornais, movimentos sociais e partidos de oposição, em especial o PT, deixa uma incógnita sobre o futuro do país em relação à liberdade de expressão.

De acordo com o professor Thiago Ferreira, o perigo inicial está nas ações aleatórias dos seguidores de Bolsonaro, apostando nos limites institucionais da presidência e no poder de mediação das instituições e do próprio Judiciário. Para a jornalista Renata Mielli, o STF pode se reposicionar e assumir “uma posição mais efetiva pela garantia dos direitos constitucionais”.

Segundo a Artigo 19, o Brasil poderá passar por dificuldades caso se confirme a tendência que surgiu na corrida eleitoral. O relatório relaciona governos com tendências autocráticas ao declínio no índice de liberdade de expressão.

Já a Anistia Internacional se posicionou após o resultado das eleições, classificando a vitória de Bolsonaro como um “enorme risco para os povos indígenas e quilombolas, comunidades tradicionais, pessoas LGBTI, jovens negros, mulheres, ativistas e organizações da sociedade civil, caso sua retórica seja transformada em política pública”.

A tendência é de agravamento das violações à liberdade de expressão no país. Essa afirmação considera os recorrentes casos de repressão, perseguição e violência por motivações políticas e que não receberam do poder público uma resposta à altura.

Além disso, o próprio presidente eleito manifesta suas ameaças, que reverbera em seus simpatizantes, capazes de cometer violência, como ocorreu durante o período eleitoral. O desejo dos movimentos sociais e entidades em defesa dos direitos humanos, portanto, é de que Bolsonaro não cumpra o que prometeu durante a campanha e que as instituições funcionem para resguardar a democracia e garantir as liberdades individuais, a exemplo do direito à comunicação e à liberdade de expressão.

1. Desde 2017, as tensões raciais vêm aumentando em Charlottesville (Vírginia), quando uma marcha racista resultou na morte de uma mulher e deixou mais de 30 feridos, após confrontos com manifestantes antifascistas. Em 2018 a marcha voltou a se repetir, mas atraindo menos pessoas e sem conflitos registrados.

2.Um dos casos mais emblemáticos foi o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, que foi torturado e executado dentro da cela onde estava preso. O crime, ocorrido em 1975, nunca teve seu inquérito concluído. Em 2018, o Ministério Público Federal reabriu as investigações, após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos das Organizações dos Estados Americanos que determinou que o assassinato de Herzog representa um crime contra a humanidade.

* Relações Públicas, membro do Intervozes– Coletivo Brasil de Comunicação Social, articulador do Coletivo Baiano pelo Direito à Comunicação (CBCom) e representante do Intervozes no Conselho Estadual de Comunicação Social da Bahia.