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Violência contra ativistas e comunicadores compromete liberdade de expressão em 2018

Texto: Alex Hercog*

“Mataram um negro, não vou me calar!”. Assim gritavam os manifestantes no Pelourinho e nas ruas de Salvador durante os diversos atos realizados em homenagem a Mestre Moa do Katendê, capoeirista assassinado após o primeiro turno das eleições. Envolvido em uma discussão política com um eleitor de Bolsonaro, Mestre Moa acabou recebendo 12 facadas que lhe tiraram a vida.

O episódio simboliza o clima de ódio, violência e tentativa de silenciamento que pautaram as eleições presidenciais no Brasil. A tática da intimidação prevaleceu, transpondo para as ruas a tensão que há muito dominava as redes sociais. Ataques individuais, repressão policial e omissão do poder público comprometeram a já abalada democracia no ano em que a população foi às urnas eleger seus futuros representantes.

Impedido de disputar a eleição, o ex-presidente Lula esteve no centro do debate. Após ser preso, em abril deste ano, diversas manifestações foram realizadas contrárias à decisão. Cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba registraram violenta repressão policial contra os manifestantes. Na capital paranaense nove pessoas – incluindo duas crianças – ficaram feridas e uma ordem judicial proibiu novos protestos nas imediações da Superintendência da Polícia Federal. Também foram realizadas manifestações contrárias ao ex-presidente, mas em nenhuma houve ocorrência de violência policial.

O próprio Lula já havia sido alvo de um atentado contra sua caravana, em março deste ano antes de sua prisão. Ao passar pelo interior do Paraná, um dos ônibus foi alvejado por tiros. O ex-presidente não estava no veículo e ninguém ficou ferido. A Polícia Civil afirmou que o ataque foi planejado, mas os autores dos disparos não foram identificados e o inquérito permanece sem solução.

O crime ocorreu duas semanas após o assassinato de Marielle Franco. Quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro, eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) –, mulher, negra, bissexual, oriunda da favela da Maré, Marielle foi executada no centro da cidade com pelo menos cinco tiros que a atingiram na cabeça. O ataque vitimou também seu motorista Anderson Gomes. As investigações relacionam o caso às denúncias feitas pela vereadora contra as milícias que atuam no município do Rio.

Nove meses após o assassinato de Marielle, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Richard Nunes, declarou que os interesses dos mandantes estavam relacionados à grilagem de terra. Segundo ele, os milicianos acreditavam que a vereadora poderia atrapalhar seus negócios ilícitos.

Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O atentado à caravana do ex-presidente Lula e os assassinatos de Marielle e Mestre Moa, por motivações políticas, não foram casos isolados no ano de 2018. Durante o período eleitoral, diversos ataques foram notificados.

De um lado, o então candidato Jair Bolsonaro (PSL) pregava publicamente o desejo de “metralhar a petralhada”, “banir” os “marginais vermelhos” e colocar um “ponto final em todos os ativismos no Brasil”. Sempre seguido pelo seu principal gesto de simular uma arma e acompanhado de manifestantes portando revólver. Nada disso provocou reação ou punição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Nas ruas, vários ataques foram registrados em todo o país. Um levantamento produzido pela Agência Pública em parceria com a Open Knowledge Brasil revelou que ao menos 70 ataques foram denunciados durante o período eleitoral. Destes, 50 cometidos por apoiadores de Bolsonaro e seis contra seus eleitores, além de 15 agressões indefinidas.

Atropelamento, socos, chutes e espancamento foram alguns dos tipos de ataques registrados. A própria Polícia Militar é acusada de participar das agressões. Em São Paulo, a cozinheira Luisa Alencar afirmou à Pública ter sido agredida por policiais após ser abordada quando pintava um estêncil escrito “Ele Não” – expressão usada principalmente por mulheres para repudiar o candidato Jair Bolsonaro e suas pautas.

De acordo com Luisa, os policiais lhe jogaram no chão e lhe agrediram com chutes. Enquanto torciam o seu braço e lhe algemavam, ela conta que um dos policiais lhe gritava ao ouvido: “Sua puta, ele sim. Sua puta, sua vagabunda, ele sim”. A manifestante também afirma ter sido encarcerada sem roupas e exposta na cela às vistas de outros homens.

O clima de violência que marcou o ano eleitoral, o ódio disseminado nas redes sociais e as ameaças feitas pelo então candidato Bolsonaro também atingiram o próprio futuro presidente. Durante comício na cidade de Juiz de Fora (MG) no início de setembro, Bolsonaro levou uma facada na barriga e teve que passar por cirurgias e internamento.

O autor acusado pelo atentado foi Adélio Bispo de Oliveira, preso imediatamente após o ataque. De acordo com a investigação da Polícia Federal, Adélio agiu sozinho, rebatendo as acusações que circularam nas redes sociais que atribuíam ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao PSOL envolvimento com o crime. Na delegacia, Adélio afirmou que praticou o atentado “a mando de Deus”.

Declínio nos índices de liberdade de expressão no Brasil e no mundo

Os recorrentes casos de repressão contra manifestantes e violência contra políticos e eleitores também atingiram comunicadores pelo país. Um dos episódios mais recentes foi o ataque à rádio comunitária Educadora de Gurupá (PA), que foi invadida e incendiada por autores ainda não identificados.

No Recife, uma jornalista que portava um crachá de imprensa foi agredida após deixar sua zona eleitoral. De acordo com a vítima, um dos agressores usava uma camisa de Jair Bolsonaro e teria afirmado que “quando o comandante ganhasse, a imprensa toda ia morrer”. Ela foi espancada, teve o rosto e braços cortados e foi ameaçada de estupro.

Segundo dados publicados pela entidade internacional Press Emblem Campaign (PEC), o Brasil foi o oitavo país no mundo com mais assassinatos de comunicadores em 2018: quatro. Jefferson Pureza (Goiás), Jairo de Souza (Pará), Ueliton Brizon (Rondônia) e Marlon Carvalho (Bahia) foram os jornalistas mortos. De acordo com o mapeamento da PEC, o Brasil teve 22 registros de homicídios a comunicadores entre 2014 e 2018, aparecendo, assim, na lista dos 10 países com mais assassinatos, no ranking liderado pela Síria, México, Afeganistão e Iraque.

Estudos realizados pela organização não-governamental Artigo 19 apontam que 70% dos crimes cometidos contra comunicadores no país são praticados ou encomendados por agentes públicos, sobretudo políticos e policiais. Jornalistas de veículos de pequeno porte, blogueiros e radialistas comunitários são os principais alvos, de acordo com documento lançado pela organização em dezembro de 2018.

O relatório também aponta que a impunidade e negligência das autoridades em relação a esses casos é uma constante no país. O documento denuncia ainda o corte no orçamento de instituições e enfraquecimento de leis de proteção a ativistas, a partir do governo de Michel Temer. Além disso, é destacada a incitação ao ódio e à violência contra defensores de direitos humanos, a partir de empresários, políticos e líderes religiosos na televisão, jornais e internet. Segundo dados da Artigo 19, o Brasil foi o país que mais matou ativistas em 2017, com o maior índice de assassinatos já registrado no mundo em um único ano: 57.

O documento analisou o panorama do direito à liberdade de expressão em diversos países e apontou uma tendência global de declínio da garantia desse direito, sobretudo nos três últimos anos, incluindo ataques à liberdade de imprensa e intimidação de comunicadores.

O Brasil é o segundo país em que o índice de liberdade de expressão mais decaiu desde 2014. A maior queda se refere à liberdade de expressão em ambientes on-line e no espaço público comum, a exemplo de manifestações. O documento ainda cita segmentos vulneráveis a esse tipo de ataque, como ativistas LGBTI, ambientalistas e ativistas ligados à causa indígena e quilombola.

América em chamas

Essa tendência internacional de queda de liberdade de expressão também se nota nos demais países do continente americano. Nos Estados Unidos, os conflitos raciais se destacam, com episódios de manifestantes negros sendo alvos de ataques de supremacistas brancos e seguidores da Ku Klux Klan. Nos confrontos, a exemplo do que ocorreu na Virgínia1, os policiais são acusados de não coibirem as agressões promovidas por grupos racistas.

Na Venezuela, casos de repressão a manifestantes se repetem. Um relatório divulgado pela agência de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) classificou como “lamentável” a situação no país e destacou o uso generalizado e sistemático de força excessiva e arbitrária do Estado contra manifestantes e opositores do governo do presidente Nicolás Maduro. O Chefe de Direitos Humanos da ONU chegou a pedir investigação internacional para apurar as violações cometidas pelo governo venezuelano.

Já a Argentina experimentou ao longo de 2018 uma série de manifestações contra os pacotes de medidas neoliberais do presidente Mauricio Macri, incluindo uma greve geral. A violenta repressão policial foi denunciada em diversos protestos, especialmente a que resultou na detenção de 27 manifestantes contrários ao projeto orçamentário aprovado em outubro. Dentre eles, quatro eram comunicadores da revista La Garganta Poderosa, que cobriam o protesto.

Mas a situação mais crítica no continente americano acontece na Nicarágua. Protestos que se iniciaram contra as mudanças na Previdência propostas pelo governo de Daniel Ortega foram violentamente atacados por grupos “pró-governo”. Esses ataques desencadearam uma série de manifestações ao longo do ano, com uma escalada de repressão e violência que vitimou centenas de pessoas.

A estudante brasileira Raynéia Lima foi uma das vítimas, após ser alvejada por um vigilante próximo à universidade em que estudava. A princípio, o caso não tem relação com os protestos, ainda que o reitor da Universidade Americana em Manágua tenha acusado um suposto envolvimento de paramilitares no caso.

A Associação Nicaraguense dos Direitos Humanos apresentou um relatório afirmando que 448 pessoas foram mortas. Não há dados oficiais do governo sobre o número exato de assassinatos. Além da polícia, grupos “pró-governo” formado por franco atiradores são os principais acusados pelo massacre contra os manifestantes contrários a Ortega, formados, sobretudo, por estudantes universitários. Entidades como a Lafede.cat e o Centro Nicaragüense de Derechos Humanos vêm acusando o governo de perseguir e criminalizar organizações não-governamentais que atuam na Nicarágua.

Instituições de Ensino, Ativistas e Movimentos Sociais na mira

Após a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições presidenciais brasileiras, parlamentares aliados aproveitaram o momento para pôr em tramitação projetos polêmicos que afetam diretamente os movimentos sociais e o ambiente acadêmico e escolar: Lei Antiterrorismo e “Escola Sem Partido”.

O primeiro projeto foi incluído na pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado pelo senador Magno Malta (PR) – um dos principais cabos eleitorais de Bolsonaro durante as eleições. O texto apresentado tende a criminalizar os movimentos sociais, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), apontados pelo presidente eleito como “organizações criminosas”.

Créditos: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Créditos: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A Lei Antiterrorismo atual foi sancionada em 2016 pela presidenta Dilma Rousseff (PT) para atender a exigências internacionais visando à realização da Copa do Mundo no Brasil. Muito criticado pelos movimentos sociais, o projeto sofreu vetos da presidenta e modificações no Legislativo em pontos considerados fundamentais para os movimentos, a exemplo do artigo adicionado que excluía “manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosas e de classe” do conceito de “terrorismo”.

Já o projeto atual proposto pelos aliados de Bolsonaro propõe resgatar os artigos vetados por Dilma e tornar mais subjetivo a definição de prática terrorista. Após ter a tramitação suspensa pela Comissão, que entendeu que deveriam haver audiências públicas para debater o tema, o projeto poderá ser votado já em 2019.

Na opinião de Thiago Ferreira, mestre e doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal da Bahia e que pesquisa o ciclo de manifestações de Junho de 2013 até 2018, projetos como esse fazem parte de uma estratégia retórica do futuro governo de “colocar a esquerda como bode expiatório, desviando a atenção” de outras propostas polêmicas, a exemplo da Reforma da Previdência que deverá ser votada no primeiro semestre de 2019, de acordo com o atual presidente.

No entanto, Ferreira ressalta que é possível que o futuro governo não fique apenas na retórica e, de fato, implemente medidas como perseguição aos sindicatos e criminalização dos movimentos sociais. Essa expectativa ganha ainda mais força após decreto de Bolsonaro que atribuiu à Secretaria de Governo, via Medida Provisória 870, a função de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar” as organizações não-governamentais que atuam no país. Em nota a Associação Brasileira de ONGs (Abong) afirmou que não reconhece a legitimidade da MP e que irá “interpelar administrativamente o Governo Bolsonaro para que adeque os termos da MP às normas constitucionais”.

Ainda assim, Ferreira acredita que, em um primeiro momento o perigo está mais associado ao que pode ser feito pelos seguidores de Bolsonaro “ali na esquina” do que em medidas de governo, que ainda perpassariam por outros poderes institucionais. “Mas partidos e ativistas estão sob ameaça, a exemplo de duas lideranças do MST que foram recentemente assassinadas”, complementa. Ele se refere a Rodrigo Caetano e José Bernardo da Silva, coordenadores do acampamento do MST em Alhambra (PB), que foram executados por homens encapuzados que invadiram o acampamento no dia 9 de dezembro de 2018.

Outra proposta colocada para tramitar na Câmara de Deputados logo após a vitória de Bolsonaro é o “Escola Sem Partido”, projeto que já havia tido destaque nas eleições municipais de 2016 e que é uma das principais bandeiras defendidas pelos movimentos que apoiaram a candidatura de Bolsonaro, a exemplo do Movimento Brasil Livre (MBL).

O argumento dos seus defensores é de que o projeto visa impedir a “doutrinação ideológica” nas salas de aula, supostamente praticadas por professores “marxistas” e de “esquerda”. O projeto sofreu a reação de centenas de entidades da área da educação e direitos humanos, que, de acordo com um relatório da ONU, pode resultar em “censura e ou autocensura significativa nos professores”. O projeto foi arquivado na Câmara dos Deputados em 2018, mas poderá ser retomado com a nova legislatura.

Para a jornalista Renata Mielli, que é coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), responsável pela CalarJamais! – campanha que denuncia violações à liberdade de expressão –, o “Escola Sem Partido” é um dos exemplos mais emblemáticos de 2018, no que se refere à tentativa de censura.

“Essa ofensiva contra a liberdade de expressão e pensamento livre nas escolas e universidades acabou tendo projeção internacional”, destaca Mielli. Para a jornalista, o que os defensores do projeto querem com o ‘Escola sem Partido’ é “a defesa de uma escola com o partido deles, que propague o pensamento deles”.

Ela também cita a censura praticada nas universidades durante o período eleitoral, quando policiais e fiscais de tribunais regionais desencadearam operações em universidades de ao menos cinco estados para proibir manifestações contrárias ao fascismo. O caso mais emblemático ocorreu na Universidade Federal Fluminense, onde fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) chegaram a ordenar a retirada de uma faixa com a mensagem “Direito UFF Antifascista”. No entanto, mais de 25 universidades foram afetadas por intervenções.

A seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) afirmou, em nota, que as decisões da Justiça Eleitoral tentaram “censurar a liberdade de expressão dos estudantes e professores da faculdade de Direito, que, como todos os cidadãos, têm o direito constitucional de se manifestar politicamente”.

Também em nota, entidades da área da educação questionaram as ações nas universidades do país: “por que panfletos, debates e palestras que discutem a democracia, as eleições e o que é o fascismo estão sendo considerados como propaganda pela Justiça Eleitoral em todo o Brasil”, questionam.

As ações policiais e dos TREs nas universidades repercutiram nacionalmente, provocando reação do Supremo Tribunal Federal (STF). A pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), a ministra Cármen Lúcia suspendeu todos os efeitos das ações da Justiça Eleitoral que vetavam manifestações nas universidades públicas. “Pensamento único é para ditadores”, afirmou a ministra no seu despacho.

Quem também se pronunciou foi o ministro Marco Aurélio Mello que, além do STF, integra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele classificou as ações nas universidades de “indevida” e “incabível”. “Universidade é campo de saber. O saber pressupõe liberdade, liberdade no pensar, liberdade de expressar ideias. Interferência externa é, de regra, indevida. Vinga a autonomia universitária”, afirmou.

O papel do Judiciário

Os recentes casos de violações à liberdade de expressão expõem o Judiciário e revelam suas contradições. Alternando posições contrárias e favoráveis aos princípios da liberdade, a atuação das diversas instâncias deixa um clima de incerteza sobre a atuação desse Poder durante o mandato do próximo governo.

Em 2018 foram diversas ações que Renata Mielli classifica como “judicialização da censura”, destacando medidas judiciais para a retirada de conteúdos da Internet e a proibição de veiculação de reportagens com denúncias. Outro caso de violação à liberdade de expressão, destacado pela jornalista, foi a proibição à Folha de São Paulo de entrevistar o ex-presidente Lula, que tinha conseguido autorização concedida pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski.

Antes da realização do primeiro turno eleitoral, o ministro do Supremo Luiz Fux acatou um pedido liminar do Partido Novo e proibiu que o ex-presidente concedesse entrevista ao jornal Folha ou a qualquer outro meio de comunicação. A veiculação de possíveis entrevistas realizadas antes dessa decisão, no período em que Lula esteve preso, também teve sua divulgação proibida, sob pena de “crime de desobediência”, afirmou o ministro no seu despacho.

A Folha se manifestou, condenando o que chamou de “censura prévia”. Patrícia Mello, colunista do jornal, fez uma publicação questionando a decisão e ressaltando que Adélio – que esfaqueou Jair Bolsonaro – pôde ser entrevistado por jornalistas ainda na cadeia, enquanto a entrevista com Lula foi negada.

O FNDC também se posicionou sobre o caso, afirmando que o ministro Fux violou o artigo 5º da Constituição que garante a liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de expressão e direito ao acesso à informação. A coordenadora geral do Fórum, Renata Mielli, ressaltou que essa decisão expõe as contradições do Judiciário.

Para ela, a recorrência é de que as decisões de primeira instância endossem a “escalada de violação à liberdade de expressão”, com juízes “dando sentenças favoráveis a medidas de retirada de conteúdo, de censura, de proibição de divulgação de conteúdos e de entrevistas”. Ela atribui isso à pressão sofrida pelos juízes que, em muitas vezes, “ficam reféns de poderes políticos e econômicos locais para dar sentenças favoráveis à violação da liberdade de expressão”.

No entanto, Mielli destaca que alguns posicionamentos das instâncias superiores são conflituosos, variando de acordo com o contexto político. Apesar de decisões do STF como a da proibição de Lula em conceder entrevista, o Supremo teve “posições firmes em relação à garantia da liberdade de expressão nas escolas e universidades”, aponta.

Liberdade de Expressão como um direito fundamental

A compreensão de que a garantia da liberdade de expressão é algo fundamental para o funcionamento das democracias motivou a compromissos nacionais e a adesão a acordos internacionais para a proteção a esse direito. O capítulo V da Constituição Federal já afirma que nenhuma lei pode constituir “embaraço à plena liberdade de imprensa”. No seu artigo 220, é dito que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação” não sofrerão “qualquer restrição”.

A Constituição de 1988 surge no contexto de redemocratização do país, no período pós-Ditadura. Durante as duas décadas de regime autoritário no Brasil, que se iniciou em 1964, a censura era institucionalizada e a repressão aos movimentos considerados de “esquerda” e a jornalistas resultou em perseguição, prisões, torturas e assassinatos promovidos pelas forças do Estado.2

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas após a II Guerra Mundial, em seu artigo 19, determina que “todo ser humano tem direito à liberdade de expressão”, resguardando o direito à livre opinião21.Portanto, o combate à censura e a garantia do direito à manifestação foram condições indispensáveis para a transição democrática. Esses valores se alinhavam com diversos tratados ao redor do mundo, incluindo os que o Brasil passou a ser signatário.

Tais princípios também serviram de influência para o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado em 1966 e promulgado pelo Brasil em 199222. O acordo internacional afirma que “ninguém poderá ser molestado por suas opiniões”, que não violem o “respeito dos direitos e à reputação de demais pessoas”. O Pacto também cita a liberdade de expressão e o direito de “procurar, receber e difundir informações”.

Esse acordo foi também reafirmado em 1969, na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)23 e que envolveu países do continente americano. O tratado internacional assinado pelo Brasil dispõe sobre os direitos fundamentais na perspectiva democrática. A liberdade de expressão, a vedação de censura prévia e a proteção da imprensa são princípios que constam no acordo que foi ratificado pelo Brasil em 1992.

O Brasil de Bolsonaro

O período eleitoral de 2018 expôs um ambiente hostil na política brasileira. As ameaças feitas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, contra ativistas, jornais, movimentos sociais e partidos de oposição, em especial o PT, deixa uma incógnita sobre o futuro do país em relação à liberdade de expressão.

De acordo com o professor Thiago Ferreira, o perigo inicial está nas ações aleatórias dos seguidores de Bolsonaro, apostando nos limites institucionais da presidência e no poder de mediação das instituições e do próprio Judiciário. Para a jornalista Renata Mielli, o STF pode se reposicionar e assumir “uma posição mais efetiva pela garantia dos direitos constitucionais”.

Segundo a Artigo 19, o Brasil poderá passar por dificuldades caso se confirme a tendência que surgiu na corrida eleitoral. O relatório relaciona governos com tendências autocráticas ao declínio no índice de liberdade de expressão.

Já a Anistia Internacional se posicionou após o resultado das eleições, classificando a vitória de Bolsonaro como um “enorme risco para os povos indígenas e quilombolas, comunidades tradicionais, pessoas LGBTI, jovens negros, mulheres, ativistas e organizações da sociedade civil, caso sua retórica seja transformada em política pública”.

A tendência é de agravamento das violações à liberdade de expressão no país. Essa afirmação considera os recorrentes casos de repressão, perseguição e violência por motivações políticas e que não receberam do poder público uma resposta à altura.

Além disso, o próprio presidente eleito manifesta suas ameaças, que reverbera em seus simpatizantes, capazes de cometer violência, como ocorreu durante o período eleitoral. O desejo dos movimentos sociais e entidades em defesa dos direitos humanos, portanto, é de que Bolsonaro não cumpra o que prometeu durante a campanha e que as instituições funcionem para resguardar a democracia e garantir as liberdades individuais, a exemplo do direito à comunicação e à liberdade de expressão.

1. Desde 2017, as tensões raciais vêm aumentando em Charlottesville (Vírginia), quando uma marcha racista resultou na morte de uma mulher e deixou mais de 30 feridos, após confrontos com manifestantes antifascistas. Em 2018 a marcha voltou a se repetir, mas atraindo menos pessoas e sem conflitos registrados.

2.Um dos casos mais emblemáticos foi o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, que foi torturado e executado dentro da cela onde estava preso. O crime, ocorrido em 1975, nunca teve seu inquérito concluído. Em 2018, o Ministério Público Federal reabriu as investigações, após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos das Organizações dos Estados Americanos que determinou que o assassinato de Herzog representa um crime contra a humanidade.

* Relações Públicas, membro do Intervozes– Coletivo Brasil de Comunicação Social, articulador do Coletivo Baiano pelo Direito à Comunicação (CBCom) e representante do Intervozes no Conselho Estadual de Comunicação Social da Bahia.