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Donos de rádio e TV se beneficiam eleitoralmente das concessões públicas

Texto: Eduardo Amorim*

O complexo sistema de desinformação que funcionou nas eleições brasileiras de 2018 deu condições para resultados surpreendentes. Muito se fala do escândalo envolvendo o envio massivo de mensagens via WhatsApp e da força das redes sociais na campanha, evidenciados principalmente pelo crescimento de candidatos antes pouco conhecidos ligados ou filiados ao Partido Social Liberal (PSL). No entanto, o poderio da mídia tradicional continua sendo grande no Brasil, uma vez que essas empresas ao mesmo tempo dominam a radiodifusão e atuam como grandes produtoras de conteúdo para os meios digitais.

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Em um país caracterizado por um sistema de mídia historicamente concentrado e pouco plural, os meios de comunicação de massas podem contribuir com a polarização política ao compartilhar visões parciais de mundo de acordo com linhas editoriais determinadas pelos interesses de seus detentores. E, em períodos eleitorais, associações entre meios de comunicação e políticos podem ser centrais para a vitória de determinados candidatos.

Políticos donos da mídia são eleitos e empossados

Efetivamente, pouca gente sabe que no Brasil de 2018 muitos políticos são também detentores de meios de comunicação, que são utilizados de acordo com seus interesses eleitorais. Levantamento do Intervozes em dez estados apontou que pelo menos 24 candidatos às eleições possuíam concessões de rádio ou televisão em cidades com mais de 100 mil habitantes. Os donos de mídia listados concorreram aos cargos de deputado federal (11), senador (6), deputado estadual (16) e governador (1). A maior parte são políticos de carreira: 16 tentaram a reeleição, cinco possuíam outros cargos políticos eletivos no momento e sete já tiveram cargos eletivos no passado.

Outros 23 candidatos se destacaram por sua participação em programas de rádio e televisão, especialmente nos chamados “policialescos”. Embora a legislação eleitoral impeça a aparição dos candidatos na programação normal das emissoras durante o período de campanha, não há uma legislação específica que coíba a presença de políticos com mandatos em vigência na apresentação de programas de rádio e TV e eles também utilizam deste espaço para fazer crescer suas redes sociais e tornar conhecidos seus nomes.

O levantamento também mostra que a maior parte desses apresentadores e repórteres participa das eleições 2018 em partidos que tem a família e a religião como bandeira, numa posição que vai de encontro ao discurso de ódio pregado em parte significativa dos programas em que atuam. O Intervozes apontou ainda que, nos estados pesquisados, os candidatos e candidatas às eleições oriundos das forças de segurança (Polícia Militar, Civil, Exército, Bombeiros, entre outras) ultrapassaram 800.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, o número de políticos que também eram sócios de empresas de radiodifusão diminuiu de 2014 para 2018 de 40 para 28. Isso porque nas eleições anteriores quatro não se candidataram e 11 não se elegeram, enquanto 25 se reelegeram e outros três novos donos de rádios entraram para a Câmara dos Deputados.

Um fator importante nesse processo é que o Ministério Público Federal (MPF), por pressão da sociedade civil, deu início em 2015 a uma série de ações judiciais questionando a participação de políticos em empresas concessionárias de rádio ou TV. Muitos deixaram as sociedades em que participavam, porém alguns se utilizam de familiares para continuarem controlando a pauta das emissoras. É o caso de Jader Barbalho, que passou a empresa para os filhos. Helber Barbalho, porém, foi eleito no Pará e é um dos três governadores citados na reportagem da Folha como dono de concessão de radiodifusão junto com Ratinho Júnior (Paraná) e Wilson Lima (Amazonas).

O MPF contesta a mudança no quadro societário das concessionárias públicas de radiodifusão como estratégia dos políticos donos da mídia para se esquivar de processos judiciais. Para o órgão, a mudança não altera a irregularidade – em especial se o empresário já detinha um mandato quando da obtenção da concessão da emissora, seja ela de rádio ou de televisão. Em São Paulo existem três ações tramitando contra políticos donos da mídia.

Candidatos radiodifusores se beneficiam ilegalmente

O pesquisador em Ciência Política, Cristiano Aguiar Lopes, aponta como a propriedade de uma concessão de radiodifusão beneficiou candidatos às eleições municipais. Ele levantou os casos de 1.058 candidatos aos pleitos de 2000, 2004, 2008, 2012 e 2016. “Podemos concluir que, no agregado das cinco eleições municipais realizadas no período entre 2000 e 2016, a propriedade de uma outorga de radiodifusão local foi um fator que ampliou em 30,36% as chances de um candidato radiodifusor se eleger, quando comparado à população em geral”, conclui.

Segundo a pesquisa, “a exploração de uma emissora de rádio em municípios nos quais esse tipo de mídia conta com o monopólio sobre a difusão de conteúdos locais amplia significativamente as chances de eleição do seu proprietário”. Os resultados positivos para os candidatos donos da mídia nas localidades que contam apenas com o rádio como meio de comunicação local independe da competitividade eleitoral.

Apesar de não configurar ilegalidade, foram muitos os casos também de políticos que se elegeram depois de se tornarem figuras conhecidas por apresentarem programas nas emissoras de televisão. Os casos de repórteres policialescos que se apresentaram como candidatos e conseguiram “surfar” no discurso do combate à violência não são raros. Um exemplo ocorreu no município de Caruaru, onde o apresentador Fernando Rodolfo se elegeu na sua primeira tentativa eleitoral para deputado federal.

Um dos apresentadores locais da TV Jornal Interior, Rodolfo conseguiu fazer um vídeo viralizar na Internet após ser demitido e propagar a informação de que estaria saindo da emissora por sua atuação enquanto jornalista e por ter denunciado irregularidades na Secretaria de Planejamento do Governo do Estado de Pernambuco. A diretora de Jornalismo da TV e Rádio Jornal, no entanto, divulgou nota explicando que o jornalista teria comunicado sua intenção de ser candidato nas eleições de 2018 e, seguindo as normas da empresa, foi oficializado seu afastamento.

Cristiano Aguiar Lopes acredita que o número de candidatos radiodifusores pode estar diminuindo lentamente, mas pretende seguir analisando o tema nas eleições de 2020. Para ele, independentemente dessa queda quantitativa, os donos de emissoras ainda controlam o que sai nos meios de comunicação. “Os meios de comunicação de massas promovem uma desigualdade de cobertura não só durante as eleições, mas também ao longo do mandato, pois têm poder para controlar a agenda pública”, afirma.

Emissoras favorecem candidatos de forma irregular

Novidade nas eleições de 2018 foi a adesão explícita de algumas emissoras à candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República. A ação gerou uma representação ao Ministério Público Federal (MPF), assinada em conjunto pelo Intervozes e pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).

Créditos: José Cruz/Agência Brasil
Créditos: José Cruz/Agência Brasil

O documento relata os casos em que a Rede Record, RedeTV, TV Bandeirantes, Rádio Jovem Pan e TV Cidade/SBT Pará favoreceram o então candidato. As entidades exigiam que o MPF tomasse as devidas providências para garantir o respeito à legislação em vigor no país, sobretudo a Lei Eleitoral. A Lei 9.504/1997, que estabelece as normas eleitorais determina, em seu Artigo 45, que: “[e]ncerrado o prazo para a realização das convenções no ano das eleições, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e em seu noticiário: IV – Dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação”.

O texto cita ainda a resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que prevê as multas a serem aplicadas no caso de desrespeito a esse artigo da Lei Eleitoral citado acima; o artigo 53 da Lei 4.117/1962, que estabelece que “[c]onstitui abuso, no exercício de liberdade da radiodifusão, o emprego desse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País”.

Leia a representação do Intervozes e FNDC na íntegra aqui.

No dia 28 de setembro, a Rede TV veiculou entrevista exclusiva, por 26 minutos, no programa RedeTV News, com candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL). No mesmo dia, a TV Bandeirantes exibiu conteúdo semelhante por 45 minutos, no programa Brasil Urgente. Na noite do dia 4 de outubro de 2018, às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais, a Rede Record de televisão também privilegiou o candidato Jair Bolsonaro, concedendo a ele 26 minutos de exposição exclusiva, em entrevista exibida em telejornal noturno. Poucos dias antes, o candidato recebeu o apoio público do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário da Record.

Pesquisadores analisam eleição presidencial

Pesquisador Fullbright na Tulane University (Estados Unidos) e professor da Universidade Católica de Pernambuco, Juliano Domingues acompanha atentamente o cenário político brasileiro. Para ele, os meios de comunicação tradicionais vêm perdendo relevância na determinação dos resultados eleitorais desde 2006. “Quando o ex-presidente Lula foi reeleito, ficou um tanto mais evidente o quanto a grande mídia é uma condição, mas não suficiente para se chegar e manter no poder”, afirma. Ele acredita que naquelas eleições houve uma oposição muito forte da grande mídia e mesmo assim Lula foi reeleito.

Apesar disso, parece evidente que a grande mídia continua influenciando as eleições majoritárias e sendo fundamental em eleições de candidatos proporcionais. Como no famoso caso da edição do debate da TV Globo nas eleições de 1989, em que Fernando Collor foi beneficiado e acabou derrotando Lula, o processo eleitoral de 2018 também tem potencial para se tornar um caso a ser debatido pelas próximas gerações de jornalistas a saírem das universidades.

Domingues, que atuou como repórter da TV Globo em Pernambuco no início da sua carreira, acredita que um processo a ser analisado é a aproximação do agora presidente eleito com a segunda maior emissora de televisão do país. Nas eleições de 2018, para ele, “o que chama atenção em relação às empresas de radiodifusão é um ensaio de Bolsonaro no sentido de estabelecer de maneira clara a Record como sua emissora aliada em oposição à TV Globo, isso se torna um tanto claro naquele momento em que no último debate a Record transmitiu uma entrevista exclusiva com Bolsonaro e é reforçado quando Bolsonaro uma vez eleito concede a primeira entrevista após eleito à Record e agradece no início da entrevista a cobertura isenta do jornalismo da Record, se a gente pensa esse tipo de gesto no contexto mais amplo de alianças políticas e de aproximação entre o Bispo Edir Macedo e Bolsonaro ainda durante as eleições, ajuda a gente a montar um quebra-cabeças sobre o que pode vir pela frente”.

Ele acredita que não temos segurança para prever um cenário para o futuro das nossas principais emissoras televisivas nos próximos quatro anos, mas tende a achar que a Record pode se fortalecer e a Globo perder espaço no Governo Bolsonaro. No entanto, diferentes emissoras de radiodifusão nem de longe beneficiaram apenas o presidente eleito no pleito de 2018 e certamente a vantagem (ilegal) dos radio-difusores nos pleitos ainda permanecerá sendo vista por algum tempo.

Audiência das principais emissoras no dia do último debate do primeiro turno
Emissora Programa Audiência
Globo Debate com candidatos à Presidência 22%
Record O Voto na Record: entrevista com Jair Bolsonaro (das 22h05 às 22h32) 13,6%
SBT Chiquititas 11,3%

Fonte: Com entrevista de Bolsonaro, Record dobra audiência e ofusca debate da Globo / UOL

Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Intervozes, Helena Martins, afirma que “o fato de a Record ter beneficiado um candidato, no caso Jair Bolsonaro, deixa muito nítido o uso político dos meios de comunicação, o uso político de concessões públicas por parte dos grupos que detém essas concessões e que deveriam prestar um serviço com esse caráter público, mas acabam se valendo desses espaços para promoverem seus próprios interesses”. Para ela a situação também evidencia “a falta de mecanismos de denúncia, cobrança e de responsabilização, inclusive dos meios de comunicação, diante de flagrante ilegalidade”.

Helena pontua que a ação beneficiou o candidato dada a grande audiência da TV Record, a segunda maior emissora aberta do Brasil. “As emissoras abertas têm uma penetração muito grande no nosso país, a Record tem entre 14% e 18% da audiência”, diz. “São milhões de pessoas que tiveram acesso privilegiado a um determinado conteúdo e outros candidatos não tiveram o direito de ter esse espaço tão importante”. A pesquisadora considera ainda que, pela lógica integrada dos veículos de comunicação, a aparição de um candidato com tanto destaque em uma emissora reverbera em outros veículos e também na Internet, o que implica em uma visibilidade ainda maior. “Numa eleição absolutamente disputada e muito polarizada, esse tipo de projeção pode sim ter tido um impacto no resultado eleitoral: o lugar da mídia nessa sociedade é muito grande e afeta vários campos da vida social”, opina.

Judiciário se ausentou no debate eleitoral e ficou longe de ser isento

Atualmente, tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) três Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) sobre a propriedade de meios de comunicação por parte de políticos.

As ADPFs 246 e 379, de iniciativa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do Intervozes, requerem que o STF declare inconstitucional a participação de políticos como sócios em empresas de radiodifusão. As ações se baseiam no artigo 54 da Constituição Federal, que proíbe que deputados federais e senadores sejam donos de canais de rádio e TV. Em 2015, o MPF moveu ações em diversos estados solicitando o cancelamento de outorgas que estavam em nome de 32 deputados federais e oito senadores.

Uma terceira ADPF (429) foi instaurada pela Presidência da República, em 7 de novembro de 2016, durante o governo de Michel Temer, em contraponto às anteriores. A ação pede que seja declarada a constitucionalidade da posse de emissoras por políticos com mandatos, evidenciando a relação intrínseca de certos grupos no poder com esta prática que claramente fere os preceitos explicitados na Constituição Federal. A Procuradoria Geral da República (PGR) se pronunciou sobre o tema, sustentando o não cabimento da ADPF 429.

“Concessão ou manutenção da exploração do serviço de radiodifusão por pessoas jurídicas das quais participem, como sócios ou associados, detentores de mandato eletivo choca-se com a isenção e independência que deve haver no exercício dessas funções, viola frontalmente os arts. 54, I, a, e 54, II, a, da Constituição, e contraria as finalidades buscadas pelos arts. 22, IV, e 223 da Constituição”, afirma o texto assinado pela PGR, Raquel Dodge, no último dia 18 de dezembro.

Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil
Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil

Logo após dar entrada na ADPF 429, o governo de Michel Temer tentou, sem sucesso, suspender todas as ações nos estados por meio de liminar. A tentativa parece refletir preocupação por parte do governo com as decisões positivas que deixam claro que efetivamente a Constituição Federal proíbe a posse de emissoras de rádio e TV por políticos com mandatos.

A ADPF 246 foi impetrada em 2011. São oito anos de espera por um posicionamento do STF em um tema que é de extrema importância para a democracia brasileira. O MPF pede nos mais recentes pareceres em relação à temática que o Supremo reconheça a inconstitucionalidade de políticos que são sócios de empresas de radiodifusão. Isso permitiria, por exemplo, que o Judiciário não mais diplome políticos que sejam sócios de empresas de radiodifusão por violação ao Artigo 54.

Levantamento da Folha de S. Paulo indica que 55 concessões no país são de propriedade de deputados e senadores que tomarão posse na próxima legislatura.

Regulação, responsabilização e fiscalização são o caminho

De acordo com o pesquisador Cristiano Lopes, se um processo de outorga de radiodifusão comunitária é “apadrinhado” por um político, ele tem 47,7% mais chance de ter sucesso do que aqueles que não estão ligados a um parlamentar. Ou seja, se não começarmos a frear o uso da mídia por políticos isso continuará causando problemas cada vez mais graves.

Helena Martins resume um caminho a se traçar na luta pelo direito à comunicação. Para ela são necessários “mecanismos de regulação da mídia, de denúncia de irresponsabilidade, de responsabilização dos veículos e das empresas que chegarem a cometer alguma irregularidade”. Ela lembra que os serviços de radiodifusão são essencialmente públicos e que, por mais que sejam ofertados por empresas privadas por meio de concessões, eles devem servir ao público e não aos donos da mídia e a possíveis apoiadores e parceiros desses empresários.

Sem uma cobrança de toda a sociedade e uma real mudança na postura do Judiciário, a tendência é que os próximos pleitos continuem sendo exemplos para o mundo de como não se deve realizar eleições numa democracia.

* Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

ACM: morre um ícone do coronelismo eletrônico brasileiro

A morte do senador baiano Antônio Carlos Magalhães, na última sexta-feira, pode ser considerada um acontecimento simbólico na esfera política nacional por muitas razões, mas, em particular, para o setor da comunicação social, pelo desaparecimento de um ícone da prática do coronelismo eletrônico, que representou para o Brasil – como diria Daniel Herz – “as vontades que se opõem à democratização da comunicação”.

A trajetória de Antônio Carlos Magalhães (ACM) na política brasileira foi extensa. No momento de sua morte, na última sexta-feira, ocupava mandado de Senador da República pela segunda vez. Do ponto de vista da comunicação social, a carreira do baiano – nascido em Salvador há 79 anos – foi especialmente ousada. “Estreando no Ministério das Comunicações um estilo que marcou suas passagens por governos e órgãos públicos, Antônio Carlos Magalhães iniciou muito cedo uma luta implacável contra seus inimigos políticos”, escreveu Daniel Herz no livro A história secreta da Rede Globo (Ed. Ortiz). Representante no governo do setor econômico da radiodifusão, ACM teve, segundo seus críticos, uma atuação exemplar em interesse próprio – ele também era radiodifusor.

Porém, antes de assumir o Ministério das Comunicações – do qual foi o titular entre 1985 e 1990, no governo Sarney (Nova República) – Magalhães foi um grande aliado da ditadura militar que governava o país. “ACM foi uma figura que nasceu na ditadura, foi construído na ditadura, como uma grande fatia de políticos dessa geração. Só que a diferença dele para a maioria desses políticos, é que ele teve essa capacidade de se manter no poder praticamente até agora, até sua derrota na política na Bahia”, destaca o professor Antônio Albino Canelas Rubim, da Universidade Federal da Bahia, lembrando que ACM passou de um mando autoritário e colado aos militares (o poder dele emanava da sua relação com os militares) para um outro tipo de mando, “que tinha características autoritárias, mas que era feito no regime democrático”, assinala.

Esse novo mando, em boa medida, segundo Rubim, dependeu do controle que ACM tinha sobre os meios de comunicação da Bahia. “Assim, ele foi capaz de se reciclar, passar para um governo democrático e permanecer no poder, quando a maioria dos políticos da ditadura entrou em colapso. Ele teve uma sobrevida impressionante, considerando sua relação com a ditadura”, observa.

Atuação na Constituinte

Venício Lima, pesquisador e professor da Universidade de Brasília (UnB), lembra das manobras de ACM, na época da Assembléia Constituinte (1987/1988), quando o então ministro comandou uma bancada específica para garantir que os interesses dos radiodifusores fossem contemplados no capítulo da Comunicação Social da nova Carta. Venício acompanhou as discussões da Comunicação e os acontecimentos, tanto na Comissão Temática quanto na subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação, e Informática, Educação, cuja relatora era a deputada Cristina Tavares (PMDB-PE). “Houve uma ação coordenada, tanto na subcomissão, quanto na comissão, que ficou conhecida como a ‘bancada da comunicação’, que representava os interesses dos radiodifusores, e era coordenada de fora pelo então ministro Antônio Carlos Magalhães. O irmão dele fazia parte da subcomissão e da comissão”, lembra o professor.

Às iniciativas dos radiodifusores enfrentaram – e venceram – as propostas democratizadoras apresentadas pela Frente Nacioal de Lutas por uma Comunicação Democrática. Integrada por partidos de esquerda, organizações dos trabalhadores, representantes da academia organizações classistas e movimentos sociais, a Frente originou o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). A história do capítulo da Comunicação na Constituinte foi escrita por Venício Lima para o Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte, da UnB, publicado em caderno especial. A análise do capítulo pode ser lida clicando aqui.

Da trajetória de Antônio Carlos Magalhães nas comunicações, Venício destaca a sua gestão no governo de José Sarney, a qual ele chama de “período áureo”. Nesta fase, na opinião do professor, foi quando houve a forma mais direta e evidente do uso da mídia eletrônica como moeda política (um tipo de negócio batizado de “coronelismo eletrônico”), da qual o exemplo de ACM é o mais expressivo no país. “Ele (ACM) foi, com certeza, o ministro das Comunicações que mais se utilizou desse tipo de negócio. Foi o indivíduo que conseguiu usar seu poder político de forma mais intensa, formando um império próprio de comunicação”, aponta. O uso como moeda política das concessões de rádio e televisão foi largamente apontado pelo FNDC, cujos comitês, organizados em vários estados, disseminaram informações sobre a comunicação brasileira até então restritas aos gabinetes de Brasília e a alguns setores da academia.

Império forjado no governo

ACM possuía uma rede de retransmissoras sem paralelos no país. Suzy dos Santos, professora do programa de pós-graduação e da escola de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), descreve em seu artigo Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho conceito, as propriedades que Magalhães mantinha, junto com sua família e alguns aliados: Era proprietário da Rede Bahia, que domina todos os segmentos de comunicações no estado, seis geradoras de TV aberta e 311 retransmissoras – todas afiliadas à Rede Globo; uma emissora de TV UHF; parte de operadora de TV a cabo da capital, com outorga também em Feira de Santana; parte de uma operadora de MMDS com outorgas na capital, em três cidades do interior da Bahia e em Petrolina-PE, afiliadas à franquia Net Brasil, também da Rede Globo; duas emissoras e uma rede de rádio FM; um selo fonográfico; uma editora musical; um jornal diário; uma gráfica; e uma empresa de conteúdo e entretenimento.

O Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom) realizou e publicou a pesquisa denominada "Donos da Mídia", que pode ser vista aqui. Embora esteja parcialmente desatualizada (nova pesquisa está em andamento para a atualização), ela ilustra adequadamente como se estruturou o "coronelismo eletrônico" no país, cujos alicerces assentam-se no domínio das emissoras de televisão. Regionalmente, o poder de ACM ergue-se especialmente pelo controle dos MCMs e, destes, a televisão. Ascendendo ao Minicom, ACM obtém o direito de retransimitir o sinal da TV Globo.

Segundo o Ministério das Comunicações e o Diário Oficial da União, no período de 1985 a 1988 (Governo Sarney), quando ACM era o titular do Ministério das Comunicações, foram outorgadas 632 rádios FM; 314 rádios OM; 82 TVs. Ao total, foram 1.028 concessões e permissões.

Feito um cartório

ACM beneficiou-se com uma prática que expandiu nacionalmente. Representante de um importante setor econômico, o da radiodifusão, ACM atuava em interesse próprio, reafirma o jornalista Sérgio Murillo, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). “O ACM ajudou a formar a imagem do ministério como um cartório de grupos de rádio e TV do país. Ele era o agente político desses grupos que controlam a mídia no país. E foi um dos mais competentes neste sentido, nessa tradição de misturar interesses públicos com interesses privados”, avalia Murillo.

Suzy dos Santos considera que Antônio Carlos Magalhães teve um papel crucial no fortalecimento da rede clientelista que configura o mercado de radiodifusão brasileiro nos últimos 20 anos. “O coronelismo eletrônico não começa com a dupla ACM/Sarney. Começa ainda na ditadura militar. Mas o auge desse sistema é, de fato, a atuação de ACM no Ministério”, avalia Suzy. Junto com Sarney, ACM optou por reforçar ainda mais o clientelismo que já existia no governo militar. “Era como se os militares se afastassem do poder deixando a mídia com pessoas próximas de suas idéias, divulgadas pelo rádio e pela televisão”, segundo Suzy.

Coronelismo ameaçado?

“Não acho que a morte de ACM, nem a derrota política dele e de Sarney nas últimas eleições, marquem o fim do coronelismo eletrônico. O sistema de barganha política entre esfera federal e elites oligárquicas locais é mais complexo e arraigado”, diz Suzy. Venício Lima aponta para o surgimento de um “coronelismo eletrônico de novo tipo”, por meio do qual as rádios comunitárias se transformaram em instrumento de barganha política, (leia aqui).

O professor Canelas Rubim pensa que a morte de Magalhães não é tão significativa para acabar com o coronelismo eletrônico. “Acho que o controle anti-democrático dos meios de comunicação, hoje, passa por mecanismos mais sutis e talvez até piores, porque mais truculentos, não tão abertamente antidemocráticos, dissimulados”, diz, afirmando que as novas estruturas têm tramas muito mais complexas, mais difíceis de desmontar.

A Rede Bahia é uma das regionais da Globo que dá maior lucro e as maiores audiências até hoje, “é uma rede empresarialmente muito competente”, destaca Rubim. Segundo o professor, porém, pela primeira vez no ‘Carlismo’, ACM e seus aliados não têm nenhum peso no governo federal, nenhum peso no governo estadual e nenhum peso no governo municipal. “Nunca, na história do Carlismo, eles estiveram alijados simultaneamente dessas três linhas de poder. Talvez isso afete mais do que ao grupo político, mas também, financeiramente, as empresas dele, que recebiam recursos muito grandes do governo federal, estadual e municipal em outros momentos”, analisa.

Sérgio Murillo também acredita que não houve ainda uma superação dessa era. “O país tem ainda muitos coronéis eletrônicos. A estrutura do sistema de comunicação no Brasil não se altera. E a novidade, nos últimos, é a participação cada vez maior dos grupos religiosos nos meios de comunicação”, aponta. Simbolicamente, conforme Murillo, sai de cena um dos artífices dessa estrutura. “Darão continuidade os filhos e netos do doutor Antônio Carlos Magalhães, assim como os filhos do jornalista Roberto Marinho. São empresas que, embora sejam cada vez mais profissionalizadas, mantêm ainda a presença da administração familiar muito marcante, e que deve honrar a administração anterior”, analisa.

Caminhos opostos

Para os que lutam pela democratização dos meios de comunicação no Brasil, Antônio Carlos Magalhães representou a extrema oposição. Conforme o artigo de Suzy dos Santos E-Sucupira: o Coronelismo Eletrônico como herança do Coronelismo nas comunicações brasileiras, (leia aqui) publicado pela Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós, em 2006, “A dominação pelos coronéis dos principais meios de comunicação nas esferas locais e regionais configura uma barreira à prática de cidadania no país”, isto porque a compreensão das referências que elaboram a construção de sentidos na sociedade está intimamente relacionada à compreensão das forças que ligam os indivíduos em relações sociais simétricas ou assimétricas. “Neste viés, o domínio dos espaços de debate público mostra-se uma das mais relevantes ferramentas de persuasão social”, escreve Suzy dos Santos.

Em momento algum, em sua vida política e de empresário da mídia, ACM atuou para que o espaço da comunicação fosse “mais oxigenado, mais plural, mais representativo da diversidade social, política e econômica do país”, destaca o jornalista Sérgio Murillo.

 

Active Image publicação, desde que citada a fonte original (Redação FNDC / e-FÓRUM)