Tupinambás processam Rede Bandeirantes e exigem direito de resposta

Por Thaís Brito*

A notícia intitulada “Bandeirantes contra índios Tupinambás” poderia ser uma referência a algum acontecimento do século XVI, mas é o mais atual episódio no cenário de luta dos Tupinambás de Olivença, pela demarcação de seu território na região sul da Bahia.

Os Tupinambás estão processando a Rede Bandeirantes por incitar o ódio, promover a violência e a deslegitimação da luta dos indígenas em duas reportagens veiculadas, em rede nacional, nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2014. O processo é de autoria da comunidade indígena da Serra do Padeiro, em nome de Rosival Ferreira de Jesus, o cacique Babau. Hoje Babau encontra-se preso em Brasília. O cacique foi impedido de encontrar o Papa Francisco no Vaticano, por conta de uma acusação sobre a morte de um agricultor na área indígena. Ao saber da acusação, Babau se entregou à Polícia Federal.

“Tiraram nós do nosso território e agora continuamos no mesmo impasse. Estão querendo nos matar. Querendo, não, estão nos matando. Quero que este parlamento ou nos mate de uma vez ou faça alguma coisa. Daqui eu vou sair pra prisão, daqui a pouco”, disse Babau ao chegar à Câmara Federal. Babau disse ainda que não irá fugir: “Não devo nada. Tupinambá não foge. Vamos até o fim”.

A matéria da Rede Bandeirantes, certamente, colabora para o clima de tensão e calúnias contra os Tupinambá. Os indígenas pedem liminarmente o direito de resposta da comunidade Tupinambá à Rede Bandeirantes pelas reportagens transmitidas no Jornal da Band. Nas reportagens, o povo indígena é acusado invadir fazendas, ameaçar e expulsar moradores, de práticas de roubo e extorsão. Os caciques Babau e Valdelice são os alvos das matérias, que criminalizam os Tupinambás de Olivença.

Retomada é o termo correto para o que ocorre hoje no território Tupinambá e em outras terras indígenas em processo de demarcação. “Retomamos de volta o que nos foi tomado”, é como conta Lorena Tupinambá, 29, mãe de cinco filhos, criados nas áreas de retomadas.

Todas essas retomadas de terra são feitas dentro dos limites do território que consta no relatório publicado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), delimitando a Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença em cerca de 47mil hectares. A primeira fase de demarcação teve início, em 2009, com a publicação do resumo do relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. A conclusão do processo de demarcação depende da assinatura da portaria declaratória da TI pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Entretanto, a presença do Estado, atualmente, tem se limitado à ocupação do território indígena com 5000 homens do Exército Brasileiro e à determinação do “estado de exceção” na área.

O território Tupinambá tem registros históricos que remetem a 1680, quando missionários jesuítas criaram o aldeamento Nossa Senhora da Escada. A terra em processo de demarcação fica na região de Mata Atlântica do sul da Bahia, nas proximidades da cidade de Ilhéus, Una e Buararema e se estende da costa marítima da vila de Olivença até a Serra das Trempes e a Serra do Padeiro.

Rede Bandeirantes

Em 1926, foi criada a Reserva Caramuru-Paraguaçu no sul da Bahia, reunindo índios de diferentes etnias. Uma das famílias com histórico de mobilização contra índios, os Kruschewsky, lideraram, na década de 1930, um grupo de fazendeiros que se mobilizou para extinguir a Reserva Indígena Caramuru-Paraguaçu. Não por acaso, esse é, também, o sobrenome de uma das fontes da reportagem da Band. O secretário de turismo de Ilhéus, Alcides Kruschewsky, que aparece na reportagem como agente do poder público lamentando as retomadas indígenas, é também proprietário de área no interior da Terra Indígena.

Como reclama o indígena Case Angatu, “o problema é que o Jornal da Band, não assume junto ao público sua parcialidade, como fazemos em nossos espaços na rede social virtual. Um bom exemplo é este nosso perfil, que defende abertamente: a Demarcação Já do Território Tupinambá de Olivença por sermos indígenas e acreditarmos na ancestralidade do Povo que reivindica seus direitos originários.”

A Rede Bandeirantes faz jus a sua marca e não apenas faz uma reportagem parcial e claramente contrária aos indígenas, mas aos princípios fundamentais da ética jornalística e do respeito aos direitos humanos. A postura da emissora é recorrente. O Ministério Público Federal na Bahia propôs, em 2012, um ação civil pública* contra a Band Bahia por veicular conteúdos violadores da dignidade humana.

Na reportagem “Pessoas são coagidas a fazer cadastro na FUNAI”, a Band, além de descontextualizar a questão indígena, não ouve um índio sequer. Também não cita, como lembram as antropólogas Daniela Fernandes e Patricia Navarro, o assassinato de três indígenas do povo Tupinambá em uma emboscada, no interior da TI. As vítimas – Aurino Santos Calazans (31 anos), Agenor Monteiro de Souza (30 anos) e Ademilson Vieira dos Santos (36) – foram atacadas a tiros e golpes de facão por quatro homens, que se aproximaram em duas motocicletas. A esposa de Aurino também estava no local, mas conseguiu escapar. Ela descreveu um ataque brutal. Um dos indígenas foi encontrado quase decepado, apresentando sinais de tortura (foi chicoteado) e muitos ferimentos provocados por facão.

No texto da ação dos Tupinambás contra a emissora, os indígenas pedem uma posição da judiciário e exigem direito de resposta: “Após todos esses anos, ao arrepio da história, o mesmo povo, que vem lutando para não ser dizimado, sofre perseguição midiática, sendo taxado de terrorista, criminoso, assassino e estuprador, como se nota das reportagens aqui questionadas. O judiciário não pode quedar-se inerte ante esse atentado aos direitos dos povos indígenas, muito menos ante as falsas informações injuriosas, caluniosas e de má fé do canal de televisão réu, numa tentativa de jogar a sociedade contra aqueles que foram acossados, perseguidos e mortos em função da gana de não-indígenas pela terra naquela região, historicamente habitada pelo Povo Tupinambá”

Não é por acaso que a relação entre a propriedade de terra e a propriedade dos meios de comunicação caminham de mãos dadas no Brasil. Assim como as capitanias hereditárias, as concessões de televisão foram distribuídas de forma arbitrária e hereditária. A atualidade da matéria revela o atraso na abordagem da questão indígena no país e a permanência da relação intrínseca entre a concentração de terras e a concentração dos meios de comunicação.

* Thaís Brito é integrante do Intervozes, representante da sociedade civil no Conselho de Comunicação Social da Bahia e doutoranda em Antropologia Social na UFBA.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Entidades criticam documento final do NET Mundial

Entidades da sociedade civil leram, durante o encerramento do evento, no dia 24 de abril uma crítica ao documento final do Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança da Internet (NETmundial), afirmando que o resultado “não foi suficientemente além do status quo no que diz respeito à proteção dos direitos fundamentais e ao equilíbrio de poder e influência dos diferentes grupos de interesse”.

A crítica publicizada pelo grupo de entidades da sociedade civil de diversas partes do mundo considerou “desapontadora” a falta de reconhecimento em relação à neutralidade de rede, que sequer foi mencionada diretamente. De acordo com o texto publicado na internet, a denúncia em relação à “vigilância em massa” não teria sido feita também com a necessária ênfase. Além disso, afirma-se que o documento teria falhado em assegurar a devida salvaguarda dos direitos à liberdade de expressão e privacidade.

A ausência de uma menção direta à “neutralidade de rede” no documento final do evento (aparece apenas uma única vez sob o tópico “ponto para ser discutido depois”) expressa o poder de pressão das grandes corporações de telecomunicação no setor, maiores inimigas do princípio. Para essas grandes empresas, a garantia de igualdade no tratamento de dados na internet fere seus interesses comerciais e diversas batalhas vem sendo travadas em torno desse ponto no cenário internacional atualmente.

O governo estadunidense, por outro lado, foi o principal adversário da crítica à vigilância em massa. O país, envolvido em diversos escândalos de espionagem, tem interesse em desviar o foco dessa sua prática, que vem sendo utilizada para garantir vantagens políticas, econômicas e militares no cenário mundial. O documento final do evento faz duas breves menções ao tema, considerando-o como um problema que “enfraquece a confiança na internet na sua governança” e que deve ser revisto sob a ótica da privacidade e da lei internacional de direitos humanos.

Outro ator que se destacou na pressão que fez para enfraquecer os avanços do documento do NET Mundial foi o governo indiano. Suas ações foram no sentido de estabelecer restrições ao modelo “multistakeholder”, no qual participam diversos setores da sociedade, em nome de um papel de maior destaque aos governos dos países.

O apontamento dos limites do evento são alternadas com o destaque de sua importância. Veridiana Alimonti, advogada do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), reafirma a crítica feita ao documento do NET Mundial, mas defende “sua relevância dentro de um processo maior que consiga endereçar os dois desafios presentes no documento: o estabelecimento de princípios globais para a governança da Internet e a construção de um roteiro para a evolução do ecossistema de governança em direção a um modelo multissetorial fortalecido”.

Segundo Bia Barbosa, coordenadora do Coletivo Intervozes, “o documento é bom por ter saído nesse momento em que o mundo todo está discutindo a internet, mas merece várias críticas”. A jornalista destaca a vitória da indústria do copyright, que conseguiu introduzir uma menção aos direitos autorais no texto final do NET Mundial. “Embora consideremos importante os direitos autorais, a forma como ele vem sendo utilizado tem impedido o acesso ao conhecimento a diversos sujeitos da sociedade. Se fizermos uma comparação, o Marco Civil da Internet é muito mais avançado do que a declaração final do NetMundial em termos de garantia de direitos dos usuários", completa.

Márcio Patusco, um dos diretores do Clube de Engenharia, destacou a importância da realização do evento paralelo “Arena Net Mundial”, que reuniu várias contribuições da sociedade civil para o debate mundial em torno da internet, inclusive promovendo consultas públicas sobre o futuro da rede. Realizado entre os dias 22 e 24 de abril, o Arena Net Mundial foi organizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil em parceria com a Secretaria Geral da Presidência da República, e reuniu setores mais amplos para discutir que internet queremos, do ponto de vista dos usuários.

O NETmundial foi realizado nos dias 23 e 24 de abril. O evento concentrou as atenções, de um lado, daqueles que hoje torcem para que a internet seja um espaço de promoção de liberdades, da democracia e dos direitos humanos e, de outro, daqueles grupos que.querem garantir ou aumentar seus privilégios.

FNDC realiza em São Paulo sua XVIII plenária

Redação – FNDC

Entidades filiadas ao Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação estarão reunidas, em Guararema (SP), para a XVIII Plenária Nacional do FNDC, entre os dias 25 e 27 de abril. A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), construída e mantida por movimentos sociais, foi o espaço escolhido para os debates, avaliações, troca de experiências e confraternização das organizações.

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O dia da aprovação do Marco Civil da Internet

Por Bia Barbosa e Jonas Valente*

Na manhã dessa terça-feira (22/04), os corredores do Senado ficaram movimentados. Era a corrida contra o tempo para aprovar em três comissões o texto do Marco Civil da Internet, de modo que ele pudesse ir a Plenário ainda na tarde do mesmo dia.

Na Comissão de Ciência e Tecnologia, o texto passou com duas emendas de redação que traziam ajustes pontuais. Na Comissão de Constituição e Justiça, o relator, Vital do Rêgo (PMBD-PB), acatou outras duas emendas. Uma delas mudava o Artigo 15 definindo que apenas delegados de polícia e o Ministério Público – e não mais “autoridades judiciárias e administrativas”, como estava na redação original – poderiam requisitar as informações de acesso do usuário que, pelo projeto, deveriam ser guardadas por até seis meses. Não havia acordo do texto com o Ministério da Justiça e a alteração, mesmo anunciada como de redação, mexia no mérito do projeto e poderia abrir um flanco para questionamentos futuros da lei no Poder Judiciário.

Na Comissão de Meio Ambiente, o senador Luiz Henrique (PMDB-SC) desistiu de apresentar relatório em protesto por aquilo que classificou como “atropelo”. E a reunião para apreciar a matéria foi cancelada. Mas isso não atrapalhou o processo, uma vez que o prazo para a manifestação das comissões já havia se encerrado e a inexistência do parecer da CMA não prejudicava a tramitação.

Enquanto isso, organizações da sociedade civil integrantes da Articulação Marco Civil Já, entre elas o Intervozes, percorriam as comissões e os gabinetes para defender a aprovação do MCI naquele dia. Frente aos questionamentos de alguns senadores sobre a pressa, representantes das organizações reafirmavam que o Marco Civil era um projeto da sociedade e que o texto expressava um acordo construído a duras penas. A mudança do texto geraria o retorno para a Câmara, o que poderia enterrar o projeto ou fazê-lo suscetível novamente ao lobby do empresariado das telecomunicações. O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do texto na Câmara, que já se encontrava em São Paulo para os eventos sobre internet que ocorrem esta semana na cidade, pegou às pressas um avião para Brasília.

No plenário, a base governista fez uma disputa regimental com o PSDB e o DEM, únicas bancadas resistentes à votação da proposta. Senadores governistas tentaram um acordo com tucanos e democratas, mas havia resistência. Apesar de concordar com o mérito no geral, os dois partidos argumentavam que a pressa para garantir a aprovação a tempo de sancionar o Marco no evento NetMundial colocava o Senado a serviço do Executivo. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) rebateu a tese, afirmando que a agenda apertada tinha como objetivo apresentar o projeto como modelo e pautar a agenda internacional na linha de afirmação dos direitos dos usuários.

Sem acordo, coube ao governo exercer sua maioria. Quando a aprovação já estava consolidada, senadores de diversos partidos subiram à tribuna para ratificar o caráter histórico daquele momento e como o Brasil se tornava referência mundial ao aprovar uma das mais avançadas legislações para a área da Internet. Ativistas que acompanhavam a discussão na Tribuna de Honra conseguiram, com o apoio do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), entrar no plenário. A sessão foi suspensa para que os representantes das organizações pudessem estirar a mesma faixa que marcou a sessão de aprovação na Câmara. A presença e a contribuição da sociedade foram reconhecidas como elemento fundamental dessa conquista da população brasileira.

Em São Paulo, a votação do Marco Civil no Senado foi acompanhada por um telão montado no Arena NetMundial, evento paralelo ao NetMundial, organizado pela Secretaria Geral da Presidência da República e pelo Comitê Gestor da Internet. No momento do anúncio, mais de 100 participantes vibraram com a aprovação da lei. Os últimos meses de intensa mobilização da sociedade civil, nas redes, nas ruas e no Congresso Nacional, foram retratados em vídeos, fotos e memes.
#Veta15Dilma

Ao mesmo tempo em que a articulação dos cidadãos em torno da defesa do Marco Civil foi destacada como fundamental para sua aprovação, todos lembraram que a luta continuaria com o pedido de veto da Presidenta Dilma ao artigo 15 do texto. Polêmico desde que foi incluído no relatório ainda em tramitação na Câmara, por força do lobby da Polícia Federal e de parte do Ministério Público, o artigo obriga todas as empresas a guardarem os dados de aplicação dos usuários por seis meses, para futuras investigações. Mesmo que o acesso a esses dados só possa se dar mediante decisão judicial, o texto viola a privacidade do cidadão e o princípio da presunção de inocência, ao tratar todos os internautas, indiscriminadamente, como supostos criminosos. Vale lembrar que esta brecha para a violação da privacidade tem impactos significativos no exercício da liberdade de expressão na rede. Afinal, se sei que meus dados de navegação serão guardados por seis meses por terceiros, provavelmente agirei de forma diferente da que agiria.

Negociado com seis partidos políticos para garantir a aprovação do texto na Câmara – e depois no Senado – o artigo acabou se transformando na principal insatisfação da sociedade civil, que tanto celebrou a aprovação do Marco Civil. Uma campanha contra a vigilância presente no texto foi então lançada logo após a aprovação da lei no Parlamento. E se prorrogou até a cerimônia de abertura do Net Mundial na manhã desta quinta feira.

Em um encontro privado com a Presidenta Dilma, representantes da Articulação Marco Civil Já reforçaram o pedido de veto, protocolado oficialmente em seu gabinete antes mesmo da aprovação no Congresso. A Presidenta lembrou do acordo firmado na Câmara e, minutos depois, subiu ao palco do NetMundial e sancionou o Marco Civil sem alterações. Diante dela e de uma plateia de mais de 700 participantes, de cerca de 80 países, ativistas brasileiros abriram uma faixa pedindo o veto ao artigo 15. Do outro lado do auditório, ativistas franceses, indianos, ingleses e africanos lembraram que “todos somos vítimas da vigilância” na rede.

Marco Civil aprovado e sancionado, os próximos passos desta jornada ainda são muitos. Falta, por exemplo, regulamentar a nova lei em pelo menos dois aspectos: as exceções à neutralidade de rede e o próprio artigo 15. As organizações da sociedade civil esperam, com isso, limitar a coleta massiva de dados dos usuários para um número mais restrito de empresas. Um caminho seria aplicar a guarda obrigatória de dados somente a empresas que sejam responsáveis por páginas ou serviços que, num dado período, tenham sido alvo de um grande número de denúncias de atividade suspeita ou ilegal. A continuação do debate sobre regulação da internet também se dará na reforma da lei de direitos autorais e na lei de proteção a dados pessoais. Nenhuma das duas teve sua tramitação iniciada no Parlamento.

No âmbito internacional, o Marco Civil da Internet deve ainda impulsionar, em diferentes países, legislações baseadas nos seus três pilares, todos destacados pela Presidenta Dilma em seu discurso no NetMundial, logo após a sanção do texto: neutralidade de rede, liberdade de expressão e privacidade.

Fica claro, assim, que o processo de construção e aprovação do Marco Civil, que durou ao todo mais de sete anos, não termina agora. Entre disputas e aprovação no Senado, campanha relâmpago pelo veto de um artigo e sanção do texto na abertura do NetMundial, ele agora entra pra história como uma lei modelo para a regulação da internet em todo o mundo. Mas novos desafios estão colocados sobre a mesa. Novos mais surgirão. A síntese que fica desta conquista, no entanto, ao menos para a sociedade civil, é a de que se organizar para garantir seus direitos pode, sim, fazer toda a diferença.

* Bia Barbosa e Jonas Valente são jornalistas e integrantes do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Crianças e redes sociais: estudo indica novas relações e desafios

A professora Nélia Mara defendeu, em fevereiro deste ano, sua tese de doutorado, em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com o título Você tem face?, o estudo pesquisou as experiências infantis com as redes sociais online, tendo como plataformas de investigação o Orkut e o Facebook.

“Em 2009, meus alunos de seis anos, na classe alfabetização, perguntavam frequentemente se eu tinha Orkut e revelavam, com frequência, novidades sobre seus perfis. Enquanto isso, o grupo de pesquisa do qual faço parte desde 2005, Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea, coordenado pela professora Rita Ribes, na UERJ, voltava seu foco de estudos para a relação das crianças com as mídias digitais, oportunizando a sistematização teórica e metodológica das minhas questões nascidas na escola. Buscava entender porque as crianças estavam no Orkut, como acessavam e o que gostavam de fazer nas redes sociais online. Dois anos depois, as crianças migraram para o Facebook e, em pouco tempo, muitas tinham suas primeiras experiências com as redes sociais nele. Por isso, os dois sites foram as principais plataformas de análise”, conta.

Segundo Nélia, o grande desafio foi conseguir construir uma metodologia que não desprezasse a dimensão técnica do fenômeno que pretendia estudar e que conseguisse captar, de alguma forma, a fugacidade das relações online e, em última instância, a dinâmica da cultura contemporânea. “Foi assim que nasceu uma pesquisa online, em que eu conversei com crianças entre oito e onze anos através dos chats, além de observar constantemente todas as atualizações nos perfis infantis”, destaca.

Em entrevista à revistapontocom, Nélia conta detalhes do estudo e suas principais conclusões sobre a relação das crianças com as redes sociais online. “Desejo que a entrevista seja o começo de uma conversa com quem se interesse pelo tema e que traduza também num convite para a leitura da tese”, afirma.

O que leva as crianças a participarem, cada vez mais, das redes sociais?

Nélia Mara – As redes sociais despontam na fase atual da cibercultura como uma potência que inaugura novas experiências nas formas de se relacionar, aprender, conviver, se expressar… Quando me interessei pelo tema, busquei selecionar os sites que as crianças mais acessavam, como forma de conhecer suas experiências e preferências na internet. Queria ir onde elas estivessem. E apesar de, em 2009, época em que surgiram os primeiros movimentos da pesquisa, eu ter conhecido alguns sites de rede social voltados especialmente para crianças, estes não eram sequer citados pelas crianças quando as indagava sobre o que faziam na internet. Talvez esse seja um bom exemplo para pensar que as crianças não vivem num mundo apartado dos adultos, mas estão inseridas na cultura e dela participam ativamente. As crianças querem estar onde todos estão.

Como podemos definir as crianças que participam das redes sociais?

N.M. – São crianças que inauguram experiências que situam a infância em um lugar social inédito na cultura. A pesquisa me permite afirmar que a presença e a participação das crianças nas redes sociais online possibilitam que as vozes das crianças habitem o ciberespaço numa relação de horizontalidade com as vozes dos adultos. Estão todos lá, convivendo, interagindo, comunicando. Isto quer dizer que a possibilidade de as crianças serem emissoras de conteúdo guarda uma potência que liberta a infância dos estatutos modernos calcados na ideia de menoridade e inferiorização em relação ao adulto. São crianças que burlam os protocolos dos sites – que é bom lembrar, ostentam uma proibição hipócrita, visto que atraem as crianças de forma velada –, criam e se apropriam cada vez mais de novas linguagens, novas formas de ser criança e de viver a infância. Para essas crianças, as redes sociais representam hoje, sobretudo, novas formas de interação e sociabilização. Elas jogam, brincam, conversam, assistem a vídeos, produzem vídeos, se informam, aprendem coisas novas, consomem. No entanto, é importante não perder de vista que a cibercultura, essa cultura em rede que vivemos hoje, nos afeta não só materialmente, mas, sobretudo, simbolicamente. Está em jogo a produção de novas linguagens, subjetividades, de novas formas de aprender, de se relacionar, novas relações com o tempo e com o espaço, o que é também vivido por quem não tem, necessariamente, um perfil no Facebook.

São grandes as diferenças de formação, oportunidade, experiência e conhecimento entre crianças que acessam e as que não acessam as redes?

N.M. – Pesquisas oficiais de cunho quantitativo sobre crianças e internet, como as realizadas pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (CETIC) em todo o território nacional, têm demonstrado o quanto a condição socioeconômica é fator que determina o acesso à internet, a frequência com que ocorre, bem como a posse de aparatos técnicos. Renda familiar, classe social e região do país – dada desigualdade no investimento das condições técnicas para a distribuição da conexão, se compararmos os dados da região norte com a sudeste, por exemplo – são elementos que interferem de maneira decisiva para a participação das crianças nas redes sociais. No caso específico da pesquisa que realizei, é importante dizer que não se adotou um recorte de classe, pois se buscou, inicialmente, dialogar com crianças que já possuíam perfis em sites de redes sociais e, num segundo momento, crianças que fizessem parte da minha rede de contatos. Dito isto, a pesquisa que realizei não se debruçou sobre um estudo comparativo entre as crianças que têm acesso e as que não têm. No entanto, se aceitamos a ideia de que a cibercultura nos afeta simbolicamente, a questão se complexifica e exige aprofundamento. Mas é inegável que a oportunidade de entrar em contato com o mundo através do seu próprio celular posiciona a criança no mundo de maneira diferente daquela que, sequer, tem o que comer. São, sem dúvida, experiências de infância distintas qualitativamente. Penso que autonomia e criatividade estão no centro da participação nas redes sociais online. Inclusive, as crianças precisam, muitas vezes, criar datas de nascimento fictícias para terem acesso a uma conta no site. Precisam criar um perfil com inúmeras informações sobre si. O próprio ato de apenas “curtir”, no Facebook, alguma postagem, já evidencia uma expressão. Solidariedade e ética são noções por demais subjetivas para serem definidas aqui como algo propiciado pelas redes sociais. As crianças que estão nas redes sociais estão em diálogo com o mundo – elas têm acesso à informação, são encorajadas a se mostrar, a emitir opiniões, a compartilhar o que gostam, a conversar. Mas a formação se dá a todo momento: para a leitura, para a escrita, para a relação com o outro, para a construção da própria identidade, para a construção das noções de privacidade, formação para o consumo… Por isso, ao mesmo tempo em que é indiscutível reconhecer a centralidade que ocupam hoje as redes sociais na vida de muitas crianças, é indispensável pensar em formas articuladas de oferecer uma mediação que possam amplificar e qualificar todas estas fontes de in(formação).

Quando falamos de mediação pensamos no papel dos adultos. As crianças estão sozinhas na rede?

N.M. – Não, elas não estão sozinhas, ainda que acessem a internet sem ninguém por perto fisicamente. Penso que o grande desafio, hoje, para pais, professores e pesquisadores é pensar em novas formas de mediação online. Dado o caráter diferenciado das tecnologias digitais, a mediação não pode ser pensada sobre as mesmas bases, já consolidadas, das mídias eletrônicas. A mobilidade, por exemplo, é uma realidade e uma tendência também entre as crianças, já que a miniaturização dos aparelhos produz também condições para um uso mais individualizado. Se, por um lado, a impossibilidade de acompanhar fisicamente os acessos das crianças à rede pode sugerir menos possibilidade de acompanhamento dos adultos ao que as crianças acessam, há que se compreender que, online, as crianças nunca estão sozinhas. Estar nas redes sociais pressupõe estar em diálogo com alguém, seja um amigo, um familiar, um estranho ou mesmo uma empresa. O “estar com” é a essência do “estar em rede”. Por isso, friso, nosso papel enquanto adultos é buscar o diálogo com as crianças também online, fazendo-se presente também nas redes sociais. Há responsáveis que, sim, marcam sua presença de diferentes formas nos perfis de seus filhos; outros não. Há uma diversidade nas formas como a permissão do acesso às redes sociais acontece nas casas das crianças: há pais que criam os perfis dos filhos, incentivando que coexistam em rede; também há filhos que criam contas para seus pais, em busca de “atualizá-los”. Há famílias, por exemplo, que impõem uma idade mínima para que a criança conquiste o direito de estar numa rede social online, entendendo que é preciso crescer para ganhar novas responsabilidades, mesmo que não seja uma idade inferior à recomendada por sites como o Facebook ou o Orkut. Há pais que usam seus perfis com os filhos, um uso compartilhado. Em outros casos, e aqui já me posiciono como forma de dizer que penso ser a postura mais interessante, cada indivíduo da família possui um perfil, mas os pais e demais adultos interagem online com a criança frequentemente, além de conversarem em casa sobre o assunto. É uma forma de estar junto em rede, de acompanhar o que a criança faz, com quem interage, o que comunica, mas permitindo que ela tenha seu espaço, que ela construa seu perfil com suas características, preferências, fotos que gosta, podendo expressar a singularidade da sua identidade na internet.

E quanto à escola?

N.M. – A escola, de maneira geral, ainda não consegue ocupar o espaço de quem pode e deve colocar esse assunto como questão curricular porque ainda se baseia na lógica da vigilância, da proibição ou mesmo da didatização das tecnologias sob um viés, algumas vezes, empobrecedor e distante dos usos que as crianças fazem fora das salas de aula. Há instituições que, inclusive, proíbem o uso de aparelhos em suas dependências, parecendo fechar-se a uma realidade que está posta. Em paralelo, crianças postam, em seus perfis, fotos na escola em tempo real, o que denuncia que, a despeito de normas meramente burocráticas, as crianças estão em rede, se conectam de seus dispositivos móveis e, na maioria das vezes, a escola não se oferece para o diálogo.

E ao contrário do que se pensa, as crianças têm conhecimento dos perigos da internet, não é isso?

N.M. – As crianças demonstram ter muita informação sobre os perigos a que, possivelmente, estamos todos expostos na internet e nas redes sociais. Essas informações e ressalvas chegam de variadas fontes: a família conversa e instrui, a televisão noticia casos variados sobre o assunto e, mais timidamente, mas progressivamente, a escola também vai se envolvendo neste debate, ainda que o uso de sites de redes sociais seja comumente proibido em seus espaços. As crianças mostraram que elegem critérios para aceitar ou recusar pedidos de amizade e eu fui, inclusive, recusada por muitas quando busquei realizar a pesquisa com crianças indicadas por amigos, desconhecidas para mim. As recusas me obrigaram a redesenhar os critérios de escolha dos interlocutores e foram fundamentais no percurso da pesquisa. Ao longo do processo, também me dei conta, em diálogo com outras pesquisas a que fui tendo acesso, que as redes sociais são espaços de encontro entre pessoas que têm ou já tiveram algum tipo de relação face a face. Assim, sob esta lógica, as recomendações dos pais aos filhos sobre os perigos de dar atenção a pessoas estranhas é incorporada também para a vida online. É possível que esta constatação na minha tese, que nem sempre emerge em outros estudos, tenha a ver com a abordagem teórico-metodológica que adotei na pesquisa. A minha premissa foi de que as crianças estão de forma ativa e autônoma nos sites de redes sociais e me interessou ver o que fazem, como usam, por que usam e, em última instância, o que comunicam sobre suas experiências quando estão em rede, enquanto sujeitos criativos e produtores de cultura que são. Há outros estudos que, embora se detenham em temática similar, se fundamentam em concepções de infância que remetem aos pilares modernos de vulnerabilidade, inabilidade e menoridade, já elencando como premissa que há perigos, há uma proibição burocrática e, portanto, as crianças não deveriam estar lá. Penso que falamos, portanto, de lugares distintos; logo, nos posicionamos de formas diferentes em relação às crianças e às experiências de infância, conduzindo as pesquisas por caminhos que, nem sempre, se encontram. É preciso enfatizar aqui que reconhecer que as crianças entendem os perigos a que estamos expostos na internet não representa ignorar a importância do adulto no que diz respeito ao seu papel de proteção da criança. Friso que é fundamental que o adulto assuma o seu lugar de quem se oferece ao diálogo e aponta o caminho seguro. No entanto, me preocupa observar como essa relação se traveste, muitas vezes, em controle e vigilância por parte dos pais. Se é certo admitir que estamos todos, adultos e crianças, aprendendo a viver em rede, também é preciso compreender que a produção compartilhada de sentidos sobre o que nos desafia é um processo que se dá em diálogo.

A participação de crianças e adultos no ambiente online vem estabelecendo um novo tipo de relacionamento?

N.M. – Essa pergunta conduz ao debate pertinente em torno da questão geracional que marca os estudos sobre crianças e tecnologias digitais. Quando nos espantamos com a intimidade dos bebês com um tablet nas mãos, evidenciamos que a questão geracional está posta. Mas é importante não perder de vista que a relação com as mídias sempre esteve atravessada por essa tensão. O que parece complexificar a questão no contexto cibercultura é que a velocidade das transformações e a obsolescência como marca dessa era nos coloca, enquanto adultos, num lugar frágil de quem também se vê inseguro e rendido pelas constantes novidades, tão bem recebidas e incorporadas pelas crianças. Elas lidam com os aparatos de forma lúdica, criativa e desbravadora, enquanto o adulto, com um olhar mais cristalizado para a realidade, se relaciona de forma menos espontânea. Mas, se as redes sociais podem ser concebidas como lugares de encontro, podemos percebê-las na potência do encontro entre adultos e crianças, e não como algo que produz algum tipo de impacto negativo, ou que gera um abismo geracional.

Entrevista concedida a Marcus Tavares, publicada na revistapontocom e reproduzida do Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br