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Imprensa: personagem político ainda mais complexo em 2017

Texto: Mônica Mourão

Dizer que os jornalistas não devem mentir, inventar, distorcer, caluniar, etc, é como afirmar que as pessoas devem ser honestas. O problema, aqui, é ultrapassar o óbvio, obter um consenso sobre o conceito de honestidade. Quanto ao jornalismo, a dificuldade seria conseguir um acordo sobre o que é a verdade, quais são os fatos que merecem ser relatados e sob que ângulo político, ideológico e filosófico (Genro Filho, 2012, p. 147).

A provocação do professor Adelmo Genro Filho, que faleceu pouco depois de ter publicado sua teoria marxista sobre o jornalismo (no livro O Segredo da Pirâmide), coloca-nos na posição de criticar a ideia de manipulação feita pela imprensa. Afinal, defender que algo foi manipulado significa afirmar que seria possível – desde que dotados de técnicas adequadas e justas intenções – que os jornalistas relatassem a verdade. Ora, não é preciso cair nas armadilhas pós-modernas do relativismo para compreender que não existe uma única verdade sobre um mesmo fato.

Uma outra linha de pensamento, ainda sob a ótica da “manipulação”, é que são os interesses de classe em jogo que levam a imprensa a cobrir os acontecimentos de uma maneira, e não de outra. Mas aí também existe uma armadilha. Como lembra Genro Filho, ao se analisar tudo pela ótica da luta de classes, visto que a imprensa é uma invenção burguesa, seu posicionamento seria sempre de defesa dos valores burgueses. Porém, segundo ele mesmo, primeiro, isso não faz da imprensa uma arma exclusiva da burguesia. Em segundo lugar, e o mais importante para nossa análise, ainda que o veículo seja burguês, nem todos os seus funcionários-jornalistas o são; a ideologia não funciona como uma correia de transmissão automática.

É a partir desses pressupostos que buscamos compreender a cobertura midiática sobre o que consideramos os temas mais candentes de 2017: os posicionamentos a favor e contra Temer; a cobertura das manifestações e das reformas trabalhista e previdenciária; a abordagem da imprensa sobre Lula e o PT; e a incorporação de pautas de grupos minoritários de forma positiva. Nosso principal alvo de análise é a TV Globo, pela força política e liderança cultural que exerce há anos no país, mas outras emissoras e veículos impressos também são incluídos no texto.

Que imprensa é essa?

Primeiramente, não custa reparar no sujo falando do mal lavado. Globo no Fifagate, acusada de pagar propina para conseguir a transmissão dos jogos; SBT, alinhado a Temer, passa propaganda das reformas e retransmite sinal da TV governamental NBR; Record, não é de hoje, financia-se com dinheiro da Igreja Universal; e a Band ocupa, com seu Brasil Urgente, o segundo lugar no ranking de violações aos direitos humanos. É desse tipo de empresas privadas (nesse caso, concessionárias de um serviço público) que estamos falando aqui. Em sua maioria, junto com os impressos, são ligadas a grandes grupos empresariais cujos donos também atuam em outros setores, como o educacional, financeiro, imobiliário, agropecuário, de energia, de transportes, de infraestrutura e de saúde, segundo detalhou a pesquisa “Quem controla a mídia no Brasil?”.

Globo #ForaTemer

“Saem os militares, entram os presidentes civis, a relação é exatamente a mesma. Quer dizer, a Globo não tem uma vocação necessariamente militarista ou ditatorial. Mas ela tem uma vocação governista: onde tem governo está a Rede Globo”. A frase é do jornalista Gabriel Priolli e foi dita em 1993, para o documentário da BBC inglesa “Muito além do Cidadão Kane” – verdadeiro “best seller proibido”.

Há mais de 20 anos, justamente no período da transição democrática – lenta, gradual e segura para os setores conservadores e as elites –, seria inimaginável ver a Globo na posição atual: defendendo a saída do presidente ilegítimo sem sucesso. E o que surpreende é não ter conseguido e se mantido, assim, na “oposição” ao governo federal. Mas, contraditoriamente, não à sua agenda político-econômica.

Até maio desse ano, a cobertura anti-Dilma e pró-impeachment desembocava no óbvio, que era a defesa da legitimidade e da política do governo Temer. Naquele mês, as denúncias dos donos da JBS contra Michel Temer desnudaram de forma indisfarçável o que para os opositores do golpe já estava evidente: a reputação do vice decorativo não era ilibada, já que eleestava mergulhado em corrupção.  

Naquele 17 de maio, William Bonner titubeou e chamou Temer de “ex-presidente” na escalada do Jornal Nacional, corrigindo-se em seguida. Renata Vasconcelos encerrou a edição anunciando que o Jornal da Globo traria mais informações sobre a “notícia bombástica” que Lauro Jardim havia publicado em sua coluna no site d’O Globo algumas horas antes do JN. A bomba foi a gravação feita por Joesley Batista em uma conversa com Temer sobre a “mesada” paga pelo silêncio de Eduardo Cunha, que incluía a resposta do presidente: “Tem que manter isso aí”.

O JN exibiu o áudio, confirmou as informações contidas nele com investigadores da Lava Jato e repercutiu a reação dos parlamentares e do próprio presidente no Palácio do Planalto. Naquela noite, o Jornal Nacional terminou mais cedo. Era quarta-feira, dia de futebol. Mas bem que vinha a calhar um tempinho a mais para afinar o posicionamento da emissora, que parecia realmente pega de surpresa com o furo jornalístico do colunista da mesma organização. Mais tarde, no anunciado Jornal da Globo, William Waack decretou: “O assunto no qual o governo está condenado a se concentrar é um só: a própria sobrevivência”.

A partir daí, o jogo virou. No dia seguinte, a cobertura jornalística da Globo assumiu um caráter escancaradamente antigoverno. Os gritos de #ForaTemer que invadiam os links ao vivo em quase toda situação com um aglomerado de pessoas, antes abafados e censurados, viraram alvo de comentários nas matérias, inclusive durante o festival Rock in Rio. Até num seriado sobre o período da independência do Brasil de Portugal, o Filhos de Pátria, de Bruno Mazzeo, apareceu um “Fora, Pedro” (e também uma frase típica dos golpistas: “Primeiro a gente tira o Pedro, depois a gente vê”.

As articulações pela saída de Temer não ficaram “apenas” na cobertura jornalística do maior grupo de comunicação do país. Segundo noticiado pela Folha de S. Paulo, no domingo seguinte à “notícia bombástica” o vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo, Paulo Tonet Camargo, recebeu em sua residência, em Brasília, a visita de Rodrigo Maia, presidente da Câmara e primeiro lugar na linha sucessória caso se efetivasse a queda de Michel Temer.

No dia seguinte, seria lida a relatoria sobre a denúncia contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), cujo relator, Sergio Zveiter (PMDB-RJ), tem o Grupo Globo como cliente de serviços jurídicos há mais de 40 anos. No Congresso, Zveiter, também considerado próximo a Maia, chega a receber a alcunha de “advogado da Globo”.

Segundo o jornalista Daniel Fonsêca, a atividade de bastidores não é novidade na história da Globo: “Entre os anos 1990 e o começo dos 2000, um alto executivo da Globo chegou a ser apelidado em Brasília de ‘Senador Evandro’. Era Evandro Guimarães, que ocupava na época exatamente o mesmo cargo que hoje ocupa Paulo Tonet, dono da casa no Lago Sul”.

Se apenas a editorialização das matérias já são uma mostra de que a imprensa não exerce apenas o papel de mediação, mas sim de ator político ativo no cenário brasileiro, as movimentações extrajornalísticas evidenciam ainda mais esse caráter. Talvez então a frase de Priolli no início desse texto siga fazendo sentido: a Globo tentou (e atuou para) manter-se alinhada ao governo. Frustrada essa expectativa, porém, seguiu com o viés #ForaTemer, mas desde que mantida a agenda neoliberal de perda de direitos e enfraquecimento dos serviços públicos.

Globo seguiu na oposição em raia própria

Apesar do esforço de interpretação sobre a nova linha editorial da Globo, uma pergunta permanecia no ar: por que a gigante seguiu isolada na oposição ao governo? Para entender melhor esse cenário, o Intervozes acompanhou a cobertura feita pela chamada grande mídia da votação realizada no dia 2 de agosto na Câmara dos Deputados sobre o acatamento ou não das denúncias contra Temer feitas pela Procuradoria Geral da República, em análise feita por Bia Barbosa e Camila Nobrega.

Naquele dia, a Globo suspendeu o Jornal Nacional e a novela Força do Querer para transmitir ao vivo a votação no Congresso, por quatro horas ininterruptas. A análise ficou por conta do Jornal das Dez, da Globonews.

“O governo trabalhou pesado, atendendo no atacado e no varejo, ao longo do dia, os pedidos de seus aliados. Até a última hora e durante a sessão, o Presidente trabalhou pessoalmente para barrar a investigação”, anunciou a âncora Renata LoPrete. Para a comentarista Cristiana Lobo, foi uma vitória “magra”. O tom era de denúncia da compra de votos e de fracasso político, apesar da votação vitoriosa.

Essa também foi a linha defendida no editorial do impresso O Globo de 2 de agosto, assim como nas manchetes online do jornal após a votação: “Com 263 votos, Câmara ignora provas e barra denúncia contra Temer”; “Com sorriso no rosto, Temer diz que resultado não é vitória pessoal”, “Deputado preso em regime semiaberto vota a favor de presidente”, “Internautas promovem vomitaço em rede social de Michel Temer”.

Mais discreta, a Folha de S. Paulo publicou em sua capa no dia seguinte à votação: “Temer usa máquina, demonstra força e barra denúncia”. Dentro do jornal, afirmou: “Balcão de negócios com o recurso público garante vitória governista”, e trouxe duas páginas centrais sob o título “Placar da Denúncia”, com fotos, nomes e partidos dos deputados e como cada um votou.

Entre os veículos que seguiram outra linha, estão a Band e o Estado de S. Paulo.  O Jornal da Noite, da Bandnews, destacou: “Mercado financeiro e empresários defendem continuidade de Michel Temer na Presidência”. Em seguida, uma longa reportagem ouviu empresários de diversos setores que afirmaram ser positiva a permanência de Temer para a continuidade das reformas e para a economia. Encerrada a votação, o destaque do Estadão foi o pronunciamento do Presidente: “Após barrar denúncia, Temer diz que é urgente pôr o país nos trilhos”.

Mais recentemente, o Estadão se mostrou panfletário na defesa do governo Temer. No dia 4 de agosto, em editorial intitulado “Vitória da responsabilidade”, o jornal declarou que “afastar o presidente da República do exercício do cargo seria uma evidente irresponsabilidade, e a Câmara dos Deputados, no cumprimento de suas atribuições constitucionais, rejeitou com acerto tal imprudência”.

Dialogando indiretamente com a posição da Globo, para o Estado de S. Paulo, no mesmo editorial acima, defendia que “ao contrário do que alguns afirmam, o presidente Michel Temer sai fortalecido do episódio, mostrando, uma vez mais, sua capacidade de articulação com o Congresso”.

Com ou sem Temer, imprensa defende perda de direitos

“Cabe agora a Michel Temer, com a máxima urgência, reorganizar o seu governo, estabelecendo as condições para o prosseguimento das reformas, em especial, a reforma da Previdência. Há muito a fazer e nenhum tempo a perder”. Era o que dizia o Estado de S. Paulo, em mais um trecho do editorial de 4 de agosto. O tom de que as reformas são positivas e necessárias ao crescimento econômico tem sido geral na imprensa – inclusive nos veículos do Grupo Globo.

Com ou sem Temer, imprensa defende perda de direitosNa edição de 12 de agosto, o Jornal Nacional anunciou que “um estudo concluiu que a reforma trabalhista, aprovada em 2017, vai criar 1,5 milhão de empregos e estimular o crescimento do país nos próximos quatro anos”. Depois de mostrar uma vendedora de loja de roupas satisfeita por poder dividirsuas férias em três vezes, a matéria revela que o “estudo” (como de praxe no jornalismo, utilizado de maneira pouco ou nada crítica, como se pesquisas fossem isentas) havia sido feito pelo banco Itaú.

A cobertura do Jornal Nacional sobre a votação da reforma trabalhista no Senado, no dia 11 de julho, evidenciava o posicionamento pró-reforma. A abertura do programa dedicou quase 6 minutos abordando a ocupação da mesa diretora pelas senadoras contrárias à votação e apenas 37 segundos para explicar o conteúdo do projeto aprovado.

O tom do JN foi de que o protesto das senadoras foi algo violento e, durante toda a matéria, apenas opiniões dos senadores pró-reforma foram exibidas. “A atitude das senadoras foi condenada por colegas de diversos partidos”, anunciou a repórter, transmitindo a ideia de que foi ampla a suprapartidária a crítica às parlamentares. A matéria trouxe falas de Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), Cristóvam Buarque (PPS-DF) e Eunício Oliveira (presidente da Casa), que tacharam a atitude das senadoras de “ato de força”, “desrespeito total” e “gesto antidemocrático”, de acordo com os três primeiros. Segundo Eunício Oliveira, “nem a ditadura militar ousou ocupar mesa do Congresso Nacional”.

Já os poucos segundos dedicados a explicar o texto votado no Senado, trouxeram uma perspectiva favorável à sua aprovação. “A reforma trabalhista dá força de lei a acordos entre trabalhadores e patrões, respeitando os direitos assegurados pela Constituição, como FGTS e 13º; permite que férias possam ser divididas em até três períodos; acaba com a obrigatoriedade da contribuição sindical, equivalente a um dia de salário do trabalhador; permite que intervalo de almoço possa ser reduzido para 30 minutos, diminuindo a jornada mediante negociação coletiva; e inclui a jornada intermitente, o trabalho em dias alternados ou por algumas horas, como o de trabalhadores de bares ou eventos”. Nenhuma palavra de crítica às reformas, nenhuma palavra das senadoras “antidemocráticas”, nenhuma informação sobre o fechamento de todas as entradas do plenário pelo senador Eunício.

Dois dias depois, em 13 de julho, William Waack associou a reforma trabalhista a uma atualização de uma lei que seria retrógrada: “Até agora essa relação [entre empregados e empregadores] foi submetida a uma legislação com mais de 70 anos de idade”.

O Jornal da Globo seguiu com matéria da repórter Renata Ribeiro, que explicou as mudanças. Segundo ela, a reforma vai permitir contratos de trabalho mais flexíveis e direitos assegurados – como FGTS, 13º salário, licença-maternidade e férias proporcionais ao tempo de trabalho – serão mantidos. A repórter disse ainda que acordos entre trabalhadores e empresas irão prevalecer e anunciou o fim da contribuição sindical. Afirmando que as mudanças foram bem recebidas, Renata ouviu dois especialistas: ambos favoráveis à reforma. Para eles, assim como havia sugerido Waack, nossa lei trabalhista até então em vigor seria atrasada e tornaria o país pouco competitivo.

A defesa das reformas estava presente também meses antes, quando havia uma unanimidade pró-Temer na imprensa hegemônica. Em artigo do Intervozes no blog da CartaCapital, foram analisados o Jornal Nacional, o Jornal da Globo, o Jornal da Band, o Jornal da Record e o Repórter Brasil, da TV Brasil do dia 13 de março. Neste dia, mais de 125 cidades registraram manifestações e paralisações contra as reformas trabalhista e da previdência.

Único canal da comunicação pública analisado, o Repórter Brasil aparentemente havia sofrido censura: o vídeo com gritos de “Fora, Temer!” não foi ao ar no site do jornal. Nos demais telejornais noturnos, “o tom das matérias foi muito mais o impacto das paralisações – sobretudo dos trabalhadores das redes de transporte – do que os atos em si. Flashes rápidos dos protestos, nenhum número sobre o total de participantes e, principalmente, nenhuma entrevista com os organizadores das manifestações foram a maneira escolhida pela mídia de censurar o motivo que levou milhares de brasileiros e brasileiras às ruas”.

Temer ainda vivia sua lua-de-mel com a imprensa, quando estourou a primeira greve geral no país, no dia 28 de abril desse ano. O tom da cobertura foi o mesmo da nota do presidente ilegítimo e da entrevista com o ministro da Justiça Osmar Serraglio: a ordem era não falar em “greve geral”, mas sim em “dia de protestos” e, no máximo, “paralisações”.

Informações de bastidores dão conta de que essa foi também a orientação das chefias de redação em diferentes veículos. A confusão proposital entre “greve geral” e “dia de protestos”, feita por quase toda a imprensa, foi crucial para o tom negativo da cobertura. Ora, o sucesso de uma greve é, visualmente, quase o contrário do de um dia de protestos: ruas vazias, ao invés de cheias. Embora também houvesse manifestações marcadas para aquele dia, não mencionar a greve prejudica gravemente o entendimento daquele 28 de abril.

“Segundo a BandNews, o que houve no Rio de Janeiro ‘não foi uma greve. […] Foi um dia de muitos problemas, de muito caos para as pessoas que seguiam para o trabalho, que queriam tocar a vida’. No Jornal Hoje, da Globo, foram ao ar 40 minutos de matérias sobre a greve sem que a palavra fosse usada. Falou-se em ‘paralisação de 24 horas chamada pelos sindicatos’ [como se sindicatos fossem entes apartados da população]. Na Record, nada da expressão ‘greve geral’. O tom da cobertura deu ênfase para as depredações e nenhuma explicação das motivações do movimento”, conforme análise publicada no dia seguinte à greve.

Como de praxe, a cobertura silenciou manifestantes, mostrou especialmente atos “violentos” cometidos por eles (mas não contra eles) e focou nos transtornos no trânsito e nos serviços, como se pode perceber a partir de algumas manchetes do dia 29: “Protesto de centrais afeta transportes e tem violência” (O Globo), “Greve afeta transporte e comércio e termina com atos de vandalismo” (O Estado de S. Paulo), “Greve afeta transporte e termina em vandalismo” (Correio Braziliense), “Greve atinge transportes e escolas em dia de confronto” (Folha de S. Paulo).

(Na tevê, uma importante exceção foi o Jornal Nacional. Ele foi o único telejornal a falar acerca do conteúdo das reformas trabalhista e da previdência e ouviu diferentes fontes sobre o tema (incluindo Paulinho da Força Sindical, o presidente da CUT Wagner Freitas e o ministro da Justiça Osmar Serraglio). Na GloboNews, uma mudança na linguagem: ela colocou repórteres no chão, sofrendo com o gás lacrimogêneo como os manifestantes. Uma grande diferença na cobertura anteriormente feita com o distanciamento proporcionado pelo “globocop”.)

Nada de novo sob o sol. Como já havia sido analisado, os motivos dos protestos do dia 24 de maio também não foram publicados. Ao invés de ouvir as razões que levaram mais de 100 mil pessoas às ruas naquele dia, a imprensa focou nas chamas e na depredação de parte da Esplanada dos Ministérios. Era a desculpa perfeita para criminalizar todo o movimento social, as cidadãs e cidadãos contrários à perda de direitos levada a cabo pelo governo Temer. O ataque à Esplanada funcionou também para que a mídia justificasse a ação violenta das Forças Armadas.  

Embora uma ressalva no início deste artigo lembre que a luta de classes não é a única chave interpretativa para o entendimento da imprensa, isso não significa que ela não é uma fundamental ótica de análise. Em casos de acirramento dessa luta, como são os de reformas que interferem diretamente nas relações de trabalho, o caráter burguês da imprensa fica ainda mais evidente. E, como dizia Gramsci, em 1916, “para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores”.

Lula e PT sob ataque

Na já famosa “polarização política” na qual o Brasil se viu imerso especialmente desde a vitória apertada de Dilma Rousseff nas eleições de 2014, o posicionamento antipetista da imprensa hegemônica é evidente. Embora os governos Lula e Dilma não tenham feito frente às demandas dos movimentos sociais por uma comunicação mais democrática (entre outras pautas históricas da esquerda), a relação entre governos petistas e mídia não se constituiu numa oposição acirrada – mas também esteve longe de ser um mar de rosas.

Identificados como “esquerda” ou “comunistas” em tempos de debates acalorados nas redes sociais, os petistas foram aceitos pela grande imprensa. Mas apenas aceitos, sem grande entusiasmo. Desde que sua força política mostrou-se mais frágil, não houve titubeio em atuar ativamente pela derrubada da presidenta reeleita em 2014. Mesmo depois da queda, sobram casos que evidenciam a tomada de posição antiPT e, especialmente, antiLula. Comentaremos alguns que consideramos emblemáticos.

Lula e PT sob ataqueConforme publicado na página do Intervozes no Facebook, no dia 10 de maio, a mídia brasileira dedicou-se o dia todo a um único fato: o depoimento do ex-presidente Lula ao juiz Sérgio Moro, em mais uma fase crucial da operação Lava Jato. Ao longo do dia, enquanto o país buscava informações sobre os rumos do depoimento, a GloboNews enfatizou repetidamente a narrativa de “confronto”, “duelo”, no estilo FlaxFlu: “O embate está marcado para essa tarde”; “eles ficarão frente a frente pela primeira vez hoje”, “luta de novela” foram algumas das chamadas feitas durante a programação do canal fechado do Grupo Globo. O clima já havia sido antecipado pelas revistas IstoÉ e Veja.

 

Ao longo do dia, concomitante à narrativa pré-luta, os telejornais da GloboNews foram aos poucos respondendo a essa pergunta. Um dos comentaristas analisou num matutino “O PT quer transformar esse depoimento em fato político. Pelo Lula, ele daria esse depoimento num palanque”. Até às 14h, horário de início do depoimento, nenhuma imagem mostrava os manifestantes que, solidários a Lula, se deslocaram em caravanas até Curitiba. A tentativa de esconder e justificar o injustificável foi escancarada quando a cobertura mostrou repetidas vezes o grande aparato policial montado para o depoimento, na frente na sede da Justiça Federal, sem, sobretudo, justificar o porquê desse esquema de segurança.

Quando já não dava mais para evitar, a poucos minutos de ter início o “duelo”, uma entrada ao vivo de 2 minutos (num total de 1 hora de telejornal) mostrou um pequeno grupo de pessoas pró Lava Jato num bate-boca com um “militante petista”. A narrativa era: o partidário de Lula tinha ido ali provocar e procurar encrenca.

À noite, a mesma GloboNews respondeu de forma definitiva ao questionamento que lançamos acima. No Em Pauta, veiculado às 20h, montou-se um verdadeiro tribunal para julgar o depoimento de Lula. Quatro comentaristas revezaram-se numa espécie de “júri popular midiático” que ocorreu a despeito do trâmite e das prerrogativas exclusivas do Judiciário. Trechos do depoimento de Lula foram transmitidos, comentados e, mais que isso, confrontados.

O Jornal Nacional e o Jornal da Globo tiveram tons bem mais contidos que a TV por assinatura. Mostraram longos trechos dos depoimentos sem comentários “julgadores” como os da Gnews. Na abertura do Jornal Nacional, a âncora justificou o fato de aquela edição não conseguir dar um panorama geral do que tinha sido o depoimento de Lula pelo pouco tempo que tiveram para a montagem do jornal: “Tivemos só 40 minutos para editar todo o depoimento”, disse a certa altura enquanto se comprometia com uma cobertura mais apurada ao longo da programação da emissora no dia seguinte. A essa chamada, seguiu-se uma que enfocava a queda da inflação, a “taxa alcança o patamar mais baixo em dez anos”, pauta favorável ao governo Temer.

A edição dos dois jornais noturnos da Globo se ateve à divulgação de alguns trechos do depoimento, sobretudo aqueles que tematizavam o triplex do Guarujá e seguiram a linha de invisibilizar ou diminuir a manifestação pró-Lula. O JN mostrou imagem do momento da dispersão dos manifestantes.

Outro caso emblemático aconteceu meses depois. Quem passava pelas bancas de revista no dia 5 de setembro e via o jornal O Globo exposto à venda teve um mau entendimento dos fatos envolvendo corrupção no país. A manchete de capa trazia em letras garrafais: “Janot denuncia Lula, Dilma e mais seis por organização criminosa”. Abaixo dela, uma fotografia das malas contendo os 51 milhões de reais descobertos pela Polícia Federal num apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB). O texto referente a essa foto, porém, estava à direita dela, em tamanho menor, com bem menos destaque. A relação espontânea feita pelo olhar ligava a manchete com denúncias contra o PT à fotografia das malas de dinheiro de Geddel. Certamente, os editores e diagramadores do jornal O Globo sabem disso.

Lula e PT sob ataque 2O foco do noticiário em Lula também serviu para tirar a atenção das reformas: em 12 de julho, dia posterior à aprovação da reforma trabalhista no Senado, o Jornal Nacional dedicou 29 minutos e 40 segundos de sua edição a matérias sobre a condenação do ex-presidente pelo juiz Sérgio Moro. Desse total, 15 minutos e 26 segundos foi a duração da matéria que trazia apenas os argumentos utilizados por Moro. Na abertura, William Bonner decretou: “É a primeira vez na história que um ex-presidente da República é condenado por um crime comum no Brasil”. Outro vídeo, de 1 minuto e 57 segundos, citou as sentenças de cada um dos condenados: Lula, Léo Pinheiro (ex-presidente da OAS), Agenor Franklin Magalhães Medeiros (executivo da OAS). Em 3 minutos e 6 segundos, foi explicado o trâmite da condenação: e só então o telespectador ficou sabendo que ela foi feita em primeira instância e ainda cabia apelação por parte da defesa.

Além dessas, foram ao ar, naquela noite, mais três matérias sobre a condenação de Lula. Uma delas, com 3 minutos e 17 segundos, tratou da repercussão no Congresso de maneira equilibrada (apenas 7 segundos a mais para os defensores do ex-presidente). Outra, com 4 minutos e meio, ouviu exclusivamente apoiadores de Lula: seu advogado de defesa, Cristiano Zanin Martins; o vice-presidente do PT, Márcio Macedo; o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Wagner Santana. Também foi citada uma nota do Partido dos Trabalhadores. Em 1 minuto e 24 segundos, os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos informaram que Lula ainda é réu em mais quatro ações penais.

A disparidade de espaço dado para os argumentos condenatórios e os de defesa do ex-presidente evidenciam: no tribunal midiático, a sentença já foi dada.

De olho em 2018

A artilharia contra Lula se mantém pesada e assim deve prosseguir, com o objetivo de inviabilizar sua candidatura nas eleições do ano que vem. Parte da estratégia é fortalecer outros nomes de presidenciáveis. É isso que foi feito no dia 23 de novembro, pelo escancaradamente pró-Temer Estadão. “Aprovação a Huck dispara e atinge 60%, mostra pesquisa” foi a manchete de capa da edição daquela quinta-feira.

De olho em 2018Com o título “Aprovação a Huck cresce 17 pontos, afirma Ipsos”, e o subtítulo “Conforme o Barômetro Político Estadão-Ipsos, apresentador é a personalidade com a melhor avaliação entre os 23 nomes relacionados pelo instituto aos entrevistados”, o jornal deu a entender algo diferente do que está escrito na matéria assinada por Daniel Bramatti.

Apenas no terceiro parágrafo, a matéria explica os dados: “A pesquisa Ipsos não é de intenção de voto. O que os pesquisadores dizem aos entrevistados é o seguinte: ‘Agora vou ler o nome de alguns políticos e gostaria de saber se o (a) senhor (a) aprova ou desaprova a maneira como eles vêm atuando no País’”. No parágrafo seguinte, uma fala de Danilo Cersosimo, diretor do Ipsos, joga água fria no entusiasmo pró-Huck que inicia o texto: “Se a eleição fosse hoje, ele teria um desempenho razoável, mas não esse cacife todo”.

Mas, antes de chegar até esse ponto do texto, o leitor desavisado já construiu uma imagem vitoriosa da candidatura de Huck. E, provavelmente, esqueceu-se de que o próprio Estadão havia noticiado, no dia 19 de setembro, que “Lula lidera intenções de voto em todos os cenários, diz pesquisa da CNT”.

No dia 24 de novembro, o blog Direto da Fonte, do Estadão, afirmou que “Huck pode anunciar hoje estar fora da eleição presidencial”. No dia 27, o próprio Huck publicou artigo na Folha de S. Paulo negando que será candidato. O jornalismo declaratório, sem base em informações seguras, aposta num futuro “talvez” e parece demonstrar que o jogo político está mesmo entrelaçado à imprensa. E que, ao contrário do que a mídia conservadora tem buscado convencer o público, as fake news estão longe de ser um problema exclusivo da internet e das redes sociais.  

Também no dia 24, a Folha de S. Paulo publicou matéria sobre o perigo representado pela possível eleição de Lula: “A eventual vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderia derrubar a Bolsa dos atuais 74 mil pontos para abaixo de 55 mil pontos e deixar o dólar acima de R$ 4,10, indica pesquisa realizada pela XP Investimentos. O levantamento, feito entre os últimos dias 21 e 23, ouviu 211 investidores institucionais, como gestores de recursos, economistas e consultorias”.

O medo do desastre econômico dá o tom da construção da ideia de que a candidatura de Lula representa uma ameaça para o país. Como se investidores representassem os principais interesses da maioria da população brasileira.

#GloboLixo: ataque conservador e questões estruturais

O Brasil não é mesmo para iniciantes. Depois de colocar no ar, no dia 8 de outubro, uma matéria do Fantástico sobre brincadeiras e brinquedos sem distinção de gênero, a hashtag #GloboLixo chegou aos trending topics do Twitter.  

Como já havia sido analisado por Pedro Ekman, a Globo fez mudanças na sua programação que deram a ela ares mais progressistas, especialmente no entretenimento: em programas de humor (como o novo Zorra Total), de auditório (o Amor e Sexo pautou o feminismo em janeiro desse ano) e na dramaturgia (como a já citada série Filhos da Pátria, com suas menções a questões políticas atuais, e a novela Força do Querer, com dois personagens transgêneros, sendo um também interpretado por um homem trans).

Porém, acreditamos que essa seja tanto uma estratégia para a emissora se manter com sua posição hegemônica quanto fruto de brechas e tensões entre as forças conservadoras e progressistas que atuam por dentro da empresa, que obviamente não é monolítica. No primeiro caso, vale lembrar que a Globo, diferente das demais emissoras de televisão, sempre procurou se posicionar como uma vanguarda cultural.

Faz isso, porém, sem abrir mão das pautas político-econômicas neoliberais. Encara a fúria reacionária contrária à – muitas aspas nessa hora – “ideologia de gênero”, mas segue defendendo a perda de direitos trabalhistas e as privatizações, por exemplo. O que coloca inclusive limites à sua postura “feminista” (mais aspas), por não fazer o recorte de gênero ao pautar a reforma trabalhista sem mencionar o quanto ela prejudicará especialmente as mulheres.

Progressista no entretenimento, conservadora no jornalismo, a platinada mantém sua liderança, mas segue de olho nas necessidades de inovação num mercado televisivo cada vez menos atraente para a juventude. Além disso, é preciso lembrar que problemas estruturais como o racismo e o machismo seguem fortes não só na Globo, mas em outras emissoras da TV aberta. Recentemente, o apresentador William Waack foi flagrado proferindo uma fala racista, o que é apenas a ponta do iceberg da subrepresentação de negras e negros nas telas. A população LGBT ainda é alvo de invisibilidade e estereótipos, e as mulheres sofrem violência ao vivo em reality shows, que seguem escalando homens agressores.

Estratégias e armadilhas narrativas

No jogo desigual de ideias, em que as grandes empresas privadas de comunicação são as donas da bola, são recorrentes algumas estratégias para divulgar notícias do ângulo político, ideológico e filosófico de interesse dessas empresas.

Pesquisas, números e dados estatísticos são comumente usados sem nenhum quê de desconfiança, como se fossem verdades exatas. Muitas vezes também os responsáveis pelas pesquisas não aparecem com destaque nas matérias, e saber se as conclusões publicadas como fatos foram extraídas de institutos ligados ao capital financeiro ou à própria imprensa faz toda a diferença. Esse foi o caso das matérias sobre a candidatura de Luciano Huck (que, ainda pior, confundiu aprovação da imagem de uma pessoa com intenção de voto) e da que falava dos riscos para a economia caso Lula seja eleito presidente em 2018.

Também na cobertura antiPT se viu a artimanha de “esconder” a informação principal da notícia. No caso, o destaque dado a um aspecto dos acontecimentos, e não a outros, colocava como mais importante algo que seria desdito adiante. (Pela própria matéria, a candidatura de Luciano Huck não tinha tanta força quanto a manchete afirmava). Além da ordem das informações no texto, a organização das imagens (e a relação imagem-texto) foi outra armadilha narrativa usada pela imprensa, como na já clássica capa d’O Globo com as malas de dinheiro de Geddel.  

As opiniões de especialistas também são usadas para legitimar uma “verdade”. Essa foi a estratégia-mor das matérias sobre as reformas: como duvidar do que diz um economista, que estaria apresentando uma ideia embasada na “isenção” e “neutralidade” científicas? Embora haja exceções (o Estúdio I, da GloboNews, é um oásis de pluralidade de ideias em meio ao deserto midiático), os “isentos” especialistas são escolhidos a dedo para não falar nada que destoe da linha editorial do veículo que o procurou.  

Quem é ouvido nas matérias, aliás, segue sendo uma grande tática para mostrar apenas um lado das questões, invisibilizando ou minimizando atores e atrizes sociais fundamentais para um olhar mais abrangente sobre os temas. Chega a ser inacreditável quando se pensa nos preceitos básicos do jornalismo, mas é muito comum – e escapa ao leitor/telespectador que não está atento – a veiculação de notícias sobre manifestações que não ouvem manifestantes, sobre reformas trabalhistas que não ouvem trabalhadores, sobre o protesto de senadoras de oposição que não ouvem as senadoras etc.

Sem contar na seleção de quem fala e em que momento fala. De acordo com a análise de enquadramento, as primeiras fontes ouvidas dão o tom da matéria; as demais entram na sequência na condição de dar uma resposta a elas, uma posição defensiva que aparece na narrativa, mas não necessariamente condiz com as disputas políticas extratexto.

Por fim, a grande reclamação dos movimentos sociais é de fato uma estratégia eficaz: a simples ausência de certas pautas, fontes e pontos de vista na grande imprensa. Silenciar na mídia é trabalhar para que algo não exista na esfera pública. É diminuir drasticamente as condições de convencimento de boa parte da população da existência de certos problemas e das diferentes maneiras de enfrentá-los. Entre brechas e disputas, a mídia hegemônica segue sendo muito eficiente em excluir do debate público a pluralidade e diversidade que poderiam colaborar de fato com mudanças estruturais na sociedade.

Mônica Mourão é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes

* A análise das coberturas só foi possível graças aos textos produzidos por diferentes militantes do Intervozes ao longo do ano, todos devidamente creditados nos links. A referência a um post na nossa página de Facebook é de um texto de autoria de Iara Moura.

Lei de Direito de Resposta pretende equilibrar relação entre cidadãos e meios de comunicação

Legislação está em vigor há quase dois anos e busca preencher vazio deixado pela revogação da Lei de Imprensa

Por Raíssa Vila

Desde a revogação da Lei de Imprensa, suspensa sob a alegação de ser considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, a Lei de Direito de Resposta vem preenchendo o espaço deixado por ela. A partir desse período e apesar da invalidez da lei, o direito de resposta ainda poderia ser requerido, porém apenas com um ação jurídica.

Com a Lei de Direito de Resposta (Lei nº 13.188), sancionada e publicada em 11 de novembro de 2015, assegura-se o direito de retificação do ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social. Ela permite veicular uma resposta proporcional ao agravo, ocupando o mesmo espaço ou destaque do material veiculado inicialmente. Além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

O pedido de resposta funciona da seguinte forma:

  • A pessoa ofendida notifica o órgão de comunicação que publicou a matéria, sem a necessidade de acionar a Justiça, em até 60 dias após a divulgação, publicação ou transmissão;
  • O veículo tem até 7 dias para conceder ou não o direito;
  • Caso o direito não seja concedido, a Justiça deve ser acionada para analisar o caso e determinar (ou não) o exercício do direito;
  • Após a análise do juiz e este determinando a necessidade de retificação, o órgão de comunicação tem até 24h para se manifestar sobre a notificação e a não concessão do direito;
  • Concluído este processo, a Justiça pode determinar que a resposta seja veiculada pelo órgão de comunicação em no máximo 10 dias.

Os prazos são rigorosos e buscam evitar o agravamento das consequências do material publicado. A prolação da sentença tem um prazo máximo de 30 dias após o ajuizamento da ação. O texto de resposta deve ser redigido pelo prejudicado, mas a réplica não pode ser ofensiva.

Há quem questione o exercício deste direito como forma de prejudicar a atividade do jornalista. Em tempos de fake news e julgamentos midiáticos, é necessário porém refletir sobre esse posicionamento. Seria uma limitação à liberdade de expressão? Uma maximização do direito do ofendido?

Na visão do advogado criminalista Alberto Toron, o Judiciário faz um bem para imprensa com a aplicação desta lei, pois, a cada retificação, o órgão de comunicação tende a se deslegitimar e a deixar de passar credibilidade ao seu público, o que incentiva uma análise mais rigorosa antes da divulgação de conteúdos sem comprovação. “O Judiciário precisa ter um pouco mais de coragem para começar a dar sentenças contra os órgãos da imprensa, e mais coragem para não dar liminares sustando a divulgação das respostas”, opina Toron.

De acordo com a jornalista, mestra em Políticas Públicas e coordenadora executiva do Intervozes, Bia Barbosa, a lei é um mecanismo importante que prevê uma celeridade no processo de correção. ”A lei não tem nenhum tipo de cerceamento à liberdade de imprensa, porque a imprensa pode veicular o que entender como necessário naquele momento. Mas, se errar no exercício do jornalismo, ela precisa garantir um tipo de reparação aos cidadãos”, defende a jornalista.

Um dos critérios de validação da lei que preocupa os veículos e divide opiniões é o sentimento de ofensa. Como classificar uma informação ofensiva em um meio onde críticas e emissão de fortes opiniões são comuns? É uma questão relativa. Cabe ao juiz julgar cada pedido e buscar o equilíbrio do julgamento, ouvindo todas as partes envolvidas.

Para a jornalista, mestra em comunicação midiática e professora da Fapcom Fernanda Iarossi, esse critério é uma linha tênue perigosa, mas o profissional de jornalismo deve ter um olhar criterioso sobre as possíveis consequências do seu trabalho e uma preocupação ética e moral antes de divulgar qualquer notícia.

No resto do mundo, o direito de resposta é garantido em convenções e tratados internacionais, além das constituições nacionais.

O Tratado Internacional Sobre o Direito de Correção das Nações Unidas, por exemplo, defende a veiculação de notícias que não violem os direitos humanos e ressalta o dever de ética dos profissionais de comunicação. Contudo, o Brasil não é signatário deste documento.

Há também a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que garante o direito de retificação ou de reposta a “toda pessoa atingida por informações inexatas ou ofensivas emitidas em seu prejuízo” divulgadas pelos órgãos de comunicação social, e da qual o Brasil é signatário.

Outro documento, The European Convention on Human Rights, estabelece que o exercício da liberdade de expressão não é absoluto, de forma que os demais direitos devem ser garantidos, como o direito à reputação.

No Brasil, portanto, a Lei de Direito de Resposta completa dois anos em 2017, e pretende proporcionar aos cidadãos a defesa de eventuais abusos da imprensa e um equilíbrio de poder.

“Do mesmo jeito que os veículos podem e devem denunciar e colocar luz para irregularidades, tem que haver um compromisso ético no que ele publica. O direito de resposta vem contribuir com essa relação de pesos e medidas e faz parte de um processo democrático”, esclarece a professora Fernanda Iarossi.

*Reportagem de Raíssa Vila, originalmente produzida para a 3ª edição do projeto Repórter do Futuro: Direito de Defesa e Cobertura Criminal 

Editada por Ramênia Vieira para o Observatório do Direito à Comunicação

Pesquisa avalia nível de transparência na comunicação brasileira

Parceria entre Intervozes, e a organização internacional Repórteres Sem Fronteiras mapeou 50 empresas para analisar concentração de propriedade e relações políticas e econômicas mantidas pelos grupos de mídia no país

O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e a organização internacional Repórteres Sem fronteiras lançaram ontem, dia 31, em São Paulo, o Monitoramento da Propriedade da Mídia (Media Ownership Monitor – MOM) versão Brasil, uma iniciativa global de pesquisa e incidência política para avaliar a transparência nos meios de comunicação e identificar quais são efetivamente seus proprietários, de modo a responder à pergunta: “Quem controla a mídia?”. A pesquisa mapeou os 50 veículos de maior audiência/circulação, sendo 11 deles redes de TV (aberta e por assinatura), 12 redes de rádio e 17 veículos de mídia impressa (jornais de circulação diária e revistas de circulação semanal), além de 10 veículos online (portais de notícias), reunindo informações sobre os grupos econômicos a que pertencem, seus controladores, os outros negócios mantidos por estes e suas relações políticas, entre outras. Os resultados estão disponibilizados em forma de indicadores, banco de dados e temas em destaque.

Os 50 veículos mapeados na pesquisa pertencem a 26 grupos ou empresas de comunicação, os quais, pelos seus níveis de audiência, têm potencial para influenciar a opinião pública brasileira. A diferença entre as quantidades de veículos nas quatro mídias se deve à maior ou menor concentração de audiência e ao alcance geográfico dos mesmos. O levantamento demonstrou que 16 destes grupos possuem também outros negócios no setor de mídia, como produção cinematográfica, edição de livros, agência de publicidade, programação de TV a cabo, entre outros. Também demonstrou que 21 dos grupos ou seus acionistas possuem atividades em outros setores econômicos, entre os quais educação, financeiro, imobiliário, agropecuário, energia, transportes, construção civil e saúde. Além disso, há vários proprietários que são políticos ou lideranças religiosas.

Os resultados da pesquisa apontaram alerta vermelho para quase todos os indicadores de riscos ao pluralismo e à independência da mídia, principalmente no que diz respeito à elevadíssima concentração de audiência e à propriedade cruzada de meios de comunicação. A mídia brasileira mostra alta concentração de audiência e de propriedade, alta concentração geográfica, falta de transparência quanto ao controle acionário e receitas, além de possíveis interferências econômicas, políticas e religiosas sobre a informação veiculada nos meios. Não é possível que se tenha uma democracia efetiva sem pluralidade e diversidade de vozes em circulação. A mídia independente seria um fator de garantia importante para este pluralismo. Outro indicador avaliado é o da transparência: os riscos se tornam ainda maiores quando não está claro para a audiência quem tem controle sobre os veículos, que outros negócios seus controladores mantêm e que interesses podem impactar sobre a produção das notícias.

Apesar de toda a diversidade regional existente no país e das dimensões continentais de seu território, as quatro principais redes nacionais de televisão aberta, ainda o meio de comunicação mais consumido no país – Globo, SBT, Record e Bandeirantes –, concentram uma audiência que ultrapassa os 70%. Também a concentração geográfica é alarmante: 19 dos 26 grupos analisados (73%) têm suas sedes na Região Metropolitana de São Paulo, a grande maioria na cidade de São Paulo. A localização da sede dos 50 veículos ou redes analisados obedece lógica similar: 62% estão na cidade de São Paulo, enquanto outros 12% estão no Rio de Janeiro – onde fica a matriz do maior conglomerado de mídia da América Latina, o Grupo Globo. A chamada “região concentrada”, que neste caso corresponde às regiões Sudeste e Sul, abriga 80% dos escritórios de comando dos grupos controladores dos 50 veículos de mídia analisados.

“A concentração da mídia realmente produz um paradoxo, e a internet, que deveria significar uma quantidade ilimitada de conteúdo e de variedade, reproduz essa mesma lógica de concentração da informação. Essa concentração vem crescendo em nível global, com o Facebook e o Google, por exemplo, criando bolhas de informação”, avalia Olaf Steenfadt, coordenador global do MOM no Repórteres Sem Fronteiras e especialista no assunto. Conforme ele, a luta a ser travada é a luta pelos Direitos Humanos, e que o está sendo atacado é o direito à comunicação. “Nesse panorama, é quase impossível defender a independência do jornalismo. É difícil garantí-la, sem a transparência do ‘quem é quem?’, de ‘o que está por trás da mídia?’ ”, ressalta Olaf, para quem o Brasil é dos países com maior concentração da mídia, inclusive em termos de modelo de negócios, pois é dos poucos países em que os donos da mídia ainda obtém muito lucro.

Olaf Steenfadt relata que falar sobre a mídia no Brasil é um tabu, e explica: “Nós fizemos hoje uma conferência de imprensa, fizemos isso em 11 países até agora, em todos nós estivemos nas primeiras páginas dos jornais, na televisão, etc. Isso só não aconteceu na Turquia, que talvez não seja uma boa comparação quando o assunto é mídia, e no Brasil. Então a minha sensação é de que não há uma censura oficial (do sistema político), mas sim uma censura feita pelos próprios canais. Ou seja, os veículos são parte do problema”, lamenta.

André Pasti, coordenador da pesquisa pelo Intervozes, relata que o levantamento será fundamental na colaboração com outras pesquisas sobre concentração na mídia, servindo também como subsídio para a ação política. “O MOM traz dados que iram facilitar na hora de pensar a formulação de políticas públicas de comunicação, ainda que numa conjuntura bastante difícil. Com tantos retrocessos, quando estamos tendo que defender um direito básico que é a liberdade de expressão, até pode parecer um pouco deslocado fazer um levantamento como esse, já que não seria a primeira prioridade, mas, na realidade, a gente não consegue avançar nesse debate sem conhecer de fato o que acontece na mídia brasileira”, enfatiza.

Pasti avalia que a pesquisa é um grande passo para que se avance em uma série de decisões. Apesar de não ser a primeira pesquisa de mídia no Brasil, o MOM traz uma plataforma acessível não só a quem faz o debate acadêmico, mas também à sociedade em geral. “É uma plataforma que reuniu vários dados com explicações sobre o que eles representam e que deve continuar sendo atualizada”, explica.
Olivía Bandeira, do Intervozes e integrante da equipe de pesquisa, apresentou alguns dos dados coletados. “A gente pode olhar no quadro dos proprietários a lista extensa de 50 veículos pesquisados, mas estes são de propriedade de 26 grupos de comunicação ou de empresas que não chegam a se constituir como um grupo. Fica muito patente também nos gráficos que esses grupos não só estão dentro do negócio de mídia, como estão em uma série de outros negócios. Nós destacamos pelo menos três dessas relações que fazem da mídia brasileira uma mídia nada democrática: os interesses políticos, religiosos e econômicos”.

O trabalho também aponta que, embora a Constituição Federal proíba que políticos controlem empresas de mídia, 32 deputados federais e oito senadores controlam meios de comunicação, em alguns casos colocando familiares como proprietários formais, tentando mascarar suas relações.

Martín Becerra, professor na Escola de Comunicação da Universidad Nacional de Quilmes e da Universidade de Buenos Aires, afirmou que as empresas de comunicação na América Latina reclamam e pedem transparência de todos os setores sociais, porém são completamente alheias à transparência de próprios dados. “Em parte, isso é devido à ausência de regulamento que historicamente acontece na América Latina com relação às propriedades dos meios e à concentração. Muitos de nós acreditamos de maneira cândida que isso seria resolvido através de uma promessa de transparência, mas depois da internet, com as redes digitais, o que se mostra é que cada vez mais a massificação da internet e o domínio global dos intermediários como Google e Facebook tem contribuído para deixar ainda mais opaca essa transparência” .

Ele destaca que na América Latina o interesse público é sempre secundário diante dos interesses por parte dos grupos concentrados, que influem inclusive na formação das pautas consideradas “relevantes”. “ A atividade dos meios de comunicação não é a atividade mais importante do grupo de comunicação, ela é só uma plataforma para realizar outras atividades econômicas e que se potencializa quanto mais concentrados estão os meios”. Para Becerra, essa concentração tem outros sintomas, como a concentração geográfica com cada vez menos polos urbanos fornecendo conteúdos e uma maior autocensura dos trabalhadores, num ambiente cada vez mais precário para o exercício do jornalismo e para liberdade de expressão.

Para a presidenta da Organização Interamericana de Defensoras e Defensores das Audiências (OID), Cynthia Ottavianona, a transparência é fundamental e é necessário inverter a lógica dos “apropriadores” da mídia. “Os dados pertencem a todos e a informação é um direito humano, não é uma mercadoria. Por isso, precisamos saber quem são aqueles que estão administrando os meios. Essa pergunta é importante para o direito das audiências, para uma cidadania comunicacional. É necessário reconhecer e indagar sobre os direitos das audiências na regulação audiovisual. Isso significa reconhecer a existência de um contrato social, e podemos dizer que isso está baseado na necessidade de aprofundar a democracia.”

Ela destaca que, para aprofundar a democracia no campo da comunicação, é preciso garantir quatro eixos: a proteção dos grupos historicamente vulneráveis – crianças, adolescentes, mulheres, negros, coletivos LGBTT, grupos de imigrantes, pessoas com deficiência; os direitos pessoais, ou seja, os direitos de intimidade, da dignidade, à privacidade; a promoção do acesso à informação plural e diversa; e a criação de defensorias de audiência como ferramentas necessárias para corrigir assimetrias das desigualdades. “Esses quatro eixos são importantes, pois ninguém defende um direito que não conhece. Precisamos fazer conhecer, ensinar, difundir, divulgar, socializar esses direitos”.

Franklin Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom/PR) entre 2007 e 2010, analisou que, desde a Constituição de 1988, o momento atual é o de maior retrocesso e de perdas de mais direitos individuais. “O Brasil nunca enfrentou junto à sociedade a questão da regulação da comunicação. Com muita dificuldade o debate estava amadurecendo dentro de algumas instâncias, mas faltou liderança e mais amadurecimento. Cada vez mais o oligopólio foi naturalizado no Brasil. E, quando se fala em regulação, contra-atacam dizendo que estão querendo acabar com a liberdade de imprensa.”

Ele destaca que a regulação da mídia existe em todos os países democráticos, inclusive nos Estados Unidos, onde não se permite a propriedade cruzada. Ou seja, um dono de rádio não pode ter um canal de TV num determinado local, de forma a concentrar a informação. Já no Brasil, não existe nada na legislação que impeça o mesmo grupo de controlar emissoras de rádio, televisão, jornais e portais na internet, o que torna a informação concentrada e favorece a concentração de propriedade cruzada.

Segundo Franklin, em toda a América Latina, só quem tem voz é o dono da empresa. “Como se a sociedade não tivesse o direito de opinar. A gente pode até entender isso num jornal/revista, onde é o dono quem põe o dinheiro, porém, na radiodifusão, isso é inadmissível. Ela é uma concessão pública e deve sim prestar contas ao Estado e à sociedade. É preciso regular, sim!”.

Media Ownership Monitor/MOM

O Monitoramento da Propriedade da Mídia (Media Ownership Monitor/MOM) é uma iniciativa global de pesquisa e incidência política para criar transparência a respeito de quem são os donos da mídia e, por meio da contextualização e análise de informações, responder à pergunta: “quem controla a mídia?”. A pesquisa pretende fornecer ao público uma fonte acessível e continuamente atualizada sobre os interesses por trás das notícias que assistimos, lemos, ouvimos.

O Brasil é o décimo-primeiro país onde a pesquisa está sendo realizada. No site Media Ownership Monitor, estão disponíveis seus resultados do levantamento em países como Peru, Ghana, Turquia, Filipinas, Ucrânia e Camboja. Neste momento, a pesquisa está em andamento também no Marrocos e no Paquistão e, no início de 2018, começa a ser realizada no México.

MOM Brasil

No Brasil, foram analisadas as redes de TV aberta Globo, SBT, Record, Band, RedeTV!, RecordNews, TV Brasil, Rede Vida e Gospel, e os veículos de televisão por assinatura Globo News e Band News. Também foram analisadas as redes de rádio Jovem Pan, Gaúcha Sat, Bandeirantes, Band FM, BandNews, Globo AM/FM, CBN, Transamérica, Mix FM, Rede Católica de Rádio, Rede Aleluia e Novo Tempo; os portais Globo.com, UOL, Abril, IG, ClicRBS, Estadão, R7, Revista Fórum, O Antagonista e BBC; as revistas Veja, Época e IstoÉ e os jornais Folha de S. Paulo, O Globo, Super Notícia, O Estado de S. Paulo, Zero Hora, Extra, Diário Gaúcho, Agora São Paulo, O Estado de Minas, Valor Econômico, Correio Braziliense, O Tempo, Correio do Povo e Daqui.

Além da equipe de pesquisadores, o projeto contou ainda com um Conselho de Especialistas, voluntário e de caráter consultivo, acionado ao longo do desenvolvimento da pesquisa para contribuir com avaliações e propor soluções a eventuais desafios durante o levantamento e a análise dos dados. Participaram 15 conselheiros de diferentes áreas do setor da comunicação, como pesquisadores, professores e jornalistas. A composição levou em conta, ainda, a diversidade étnico-racial e de gênero e a distribuição regional dos convidados.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

A comunicação pública brasileira: resistência e sobrevivência

Texto: Gésio Passos *

A comunicação pública brasileira volta a buscar sua sobrevivência no momento de reascensão da pauta neoliberal em meio à crise econômica. Frente a governos descompromissados com a missão pública das instituições e incapazes de dialogar com a sociedade, as mídias públicas sofrem com a falta de seu reconhecimento para a garantia da pluralidade da sociedade, cumprindo sua missão de dar voz à população frente a um sistema de mídia altamente concentrado.

ebc fica

O presidente Michel Temer (PMDB), com sua intervenção na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), deu um exemplo de sua forma de governar: mudanças autoritárias, sufocamento financeiro e nenhuma abertura à participação social. A EBC, que administra duas emissoras de TV, sete de rádio e duas agências de notícias, criada há 10 anos para inaugurar uma nova fase na comunicação brasileira, foi o primeiro alvo de desmantelamento da gestão Temer. Por todo país, as experiências de comunicação pública buscam formas de sobreviver com autonomia financeira, independência editorial e participação da sociedade.

EBC: mudanças trazem riscos

Com a posse do presidente Michel Temer, em 2016, um dos seus primeiros alvos foram justamente as mudanças na comunicação pública federal. Temer trocou o comando da EBC exonerando o então presidente Ricardo Melo e nomeando Laerte Rímoli como novo mandatário. A empresa pública foi criada em 2008 com a unificação das emissoras federais, a partir de uma nova legislação que reorganizava e normatizava a comunicação pública no país.

A mudança dos presidentes não era amparada pela legislação, que previa um mandato de quatro anos para Melo, exatamente para garantir a independência da Empresa. Ricardo Melo havia sido empossado por Dilma Rousseff (PT) ainda em 2016. Com a nomeação de Rímoli, uma série de mudanças nos postos de comando da empresa se sucedeu. Mas um novo golpe aconteceu quando Temer editou a Medida Provisória 744/2016.

A mudança alterou a legislação, acabando com o mandato de quatro anos para presidente da EBC, possibilitando ao governo trocar o mandatário da empresa a qualquer momento. Também extinguiu o Conselho Curador, principal meio de participação da sociedade civil e que dava o caráter público da empresa. Dessa forma, o governo acabou com os mecanismos de independência da comunicação pública, retomando um modelo de comunicação estatal a serviço do governo federal, reinante até a criação da EBC.

O Congresso Nacional ainda tentou remediar o golpe instalado. O substitutivo do senador Lasier Martins (PSD-RS) foi aprovado em fevereiro de 2017, modificando a Medida Provisória, criando um novo Comitê Editorial e de Programação que pudesse ter alguma ingerência na empresa, além de permitir que o Senado pudesse sabatinar o presidente indicado para a estatal. Mas todas essas propostas foram solenemente ignoradas por Temer, que vetou as principais alterações que o Congresso realizou, alegando que elas contrariariam a motivação central da MP de conferir maior flexibilidade e eficiência à empresa pública. A decisão do governo acabou não sendo questionada no Congresso e o veto não foi derrubado em agosto de 2017, após toda a articulação do governo para impedir que a primeira denúncia por corrupção de um presidente no exercício fosse investigada no Supremo Tribunal Federal (STF).

A sociedade civil organizada buscou reagir contra as mudanças da Lei 11.652, que criou a EBC. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) no STF para reverter os ataques do governo à comunicação pública. A coordenadora geral do Fórum, Renata Mielli, afirmou à época que “essa MP é inconstitucional do ponto de vista formal e material, impõe censura às emissoras tuteladas pela EBC e não resolve os problemas da empresa – pelo contrário, agravando-os”.

Para o FNDC não há justificativa na urgência da Medida Provisória, que restringiu a autonomia da empresa e o cumprimento dos princípios da comunicação pública. O Fórum ressalta que as mudanças resultam em censura aos profissionais da empresa, subordinando-a ao governo federal. O fim do Conselho Curador tornaria mais graves os problemas de independência da EBC, restringindo a participação e controle social sobre a empresa pública.

O Ministério Público Federal, a partir da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), também se posicionou. Em setembro de 2017, a PFDC solicitou à nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, representação ao STF pedindo a inconstitucionalidade das mudanças na lei da EBC. Os procuradores afirmam que as alterações resultarão em grave retrocesso social em matéria de direitos fundamentais – tanto na liberdade de expressão e de imprensa quanto no caráter democrático que deve existir no sistema público de comunicação social.

O impacto nas redações da EBC

As mudanças orquestradas pelo governo Temer na EBC reverberaram de imediato dentro da empresa pública. Sob o comando de Laerte Rímoli, toda a diretoria e parte dos gestores da EBC foram substituídos e iniciou-se uma mudança editorial sem precedentes na história da empresa. Até o Comitê Editorial de Jornalismo, órgão interno previsto no Manual de Jornalismo da EBC e composto por jornalistas eleitos por redação, foi paralisado pela diretoria. A última reunião do Comitê foi no final de 2016. Após críticas dos empregados à cobertura vigente, ele nunca mais foi convocado pela Diretoria de Jornalismo. Esse Comitê Editorial de Jornalismo não deve ser confundido com o Comitê Editorial e de Programação, instituído pela Medida Provisória proposta por Temer e que sequer chegou a ser empossado.

As mudanças para uma linha editorial pró-governo geraram reflexos diretos no trabalho dos jornalistas da empresa pública. As entidades representativas dos trabalhadores começaram a se manifestar constantemente sobre as mudanças na EBC. Nos dias anteriores ao carnaval de 2017, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal denunciou a orientação da direção da EBC para que, durante a festa, os jornalistas não cobrissem temas políticos, não fazendo imagens de faixas e cartazes críticos a políticos e governos. Era instalada a proibição do “Fora Temer” na empresa pública. A intervenção editorial mudou até a programação da Rádio Nacional, com a veiculação de programas do governo federal em defesa da reforma da previdência social. O Sindicato de Brasília ainda denunciou as trocas de repórteres setoristas nas áreas de política e social, com anos de experiência, na Agência Brasil e na Rádio Nacional, como forma de tolher o livre exercício da profissão e aprofundar as práticas de censura.

Brasília- DF 02-09-2016  Reunião prototesto dos membros do conselho curador da EBC. Foto Lula Marques/Agência PT
Foto Lula Marques/Agência PT

Em março de 2017, os trabalhadores da EBC, em assembleia, aprovaram uma moção em repúdio à ação da diretoria da empresa. A nota diz: “temos enfrentado, de forma cotidiana e generalizada, ingerência no trabalho jornalístico. Um exemplo simbólico aconteceu no dia 15 de março, Dia Nacional de Paralisações contra a reforma da previdência e trabalhista, no qual, diferente da tradição estabelecida na EBC, os jornalistas receberam a ordem de focar sua cobertura nas consequências sobre o trânsito. É a linha adotada na cobertura de outras manifestações dos movimentos sociais, o que limita o direito à informação do cidadão brasileiro”.

As práticas ultrapassaram a censura e ampliaram a cultura de assédio moral dentro das redações da EBC. Em agosto de 2017, após denúncia coletiva de assédio do gerente da Agência Brasil a um correspondente do veículo, assinada por mais de 90 jornalistas da empresa, a EBC anunciou o fim do programa de correspondentes da Agência, que contava com cinco jornalistas em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Ceará, com a justificativa de necessidade de redução de custos. Até o Ministério Público do Trabalho apresentou uma proposta de Termo de Ajustamento de Conduta para que a empresa adotasse medidas efetivas no combate ao assédio moral organizacional. A EBC se negou a assinar o acordo com o Ministério Público, abriu investigação contra o repórter assediado e nada fez sobre o gerente.

A própria ouvidoria da EBC, órgão que ficou resguardado aos ataques do governo com a mudança na lei, apresentou em seus relatórios os reflexos dessa mudança editorial. A ouvidora Joseti Marques, a única que ainda mantém estabilidade legal pelo cargo dentro da empresa pública, continuou desempenhando seu papel de ombudsman com autonomia. A ouvidoria cita diversos casos de parcialidade e insuficiência na cobertura de temas como as greves gerais, reforma da previdência e trabalhista, fazendo proselitismo em favor do governo federal. Além do contínuo tom oficialista nas matérias produzidas pelos veículos da empresa e a implementação do temor dentro da redação, um governismo até então nunca visto desde a fundação da empresa, com perseguição e censura aos jornalistas.

Estrangulamento da comunicação pública

Toda a mudança da linha editorial da EBC foi acompanhada por um início de enxugamento da empresa pública. Contratos de programação foram extintos, a manutenção das sedes foram revistas, diárias e viagens para produção de conteúdo minguaram. Tudo acompanhado do corte brutal do orçamento da EBC, que asfixia a empresa pública.

Levantamento no Portal da Transparência mostra o contingenciamento dos recursos aportados na EBC. Até setembro de 2017, os recursos da empresa pública chegaram a apenas 52% do orçamento previsto para o ano. Grande parte dos recursos foi destinada ao pagamento da folha de pessoal, chegando a R$ 206,1 milhões dos R$ 324,5 milhões disponíveis. Sobrando cerca de R$ 120 milhões para o custeio, com pagamento de fornecedores, aquisição de programas, infraestrutura e investimentos.

Quando a EBC foi criada, foi aprovada a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, a partir de taxação de serviços de telecomunicações. Os recursos garantiriam a autonomia financeira da empresa. Mas, desde sua criação, grande parte desse fundo continua judicializado pelas empresas de telecomunicações, o que soma mais de R$ 2 bilhões. Outro R$ 1,4 bilhão disponível da Contribuição também continua contingenciado pelo governo federal, recursos que poderiam garantir as necessidades orçamentárias da empresa pública. Os dados são de Edvaldo Cuaio, representante dos trabalhadores da EBC no Conselho de Administração da empresa.

Além dos ataques editoriais, o estrangulamento financeiro vem a cada dia impedindo que a empresa cumpra sua missão. Desde março de 2017, a Rádio Nacional da Amazônia está silenciada. O centro de transmissores de Brasília acabou não resistindo a um incêndio que atingiu a subestação de energia onde se localizavam os transmissores da Rádio Nacional da Amazônia Ondas Curtas e parte dos transmissores da Rádio Nacional de Brasília AM. Com isso, a rádio da Amazônia saiu do ar e a de Brasília perdeu sua amplitude de potência.

A Rádio Nacional da Amazônia, que em 2017 completou 40 anos, é uma das poucas fontes de informação e cultura para milhões de brasileiros na região de mais difícil acesso do país. Precariamente, com um pequeno gerador, a rádio voltou ao ar em pequena potência, não atingindo 5% de sua capacidade de alcance. Em setembro, a EBC prometeu uma resolução do problema, com o deslocamento de um gerador de emergência da sede da empresa para o parque de transmissão. A solução arranjada não resolverá o problema, sendo que a capacidade ainda será reduzida para um gerador que só tem autonomia de 8 horas de funcionamento por dia.

O corte de recursos também é utilizado pela diretoria da EBC como justificativa para seguidos cortes editoriais em programas que compunham a grade da TV Brasil. Dois programas históricos de crítica de mídia, o Observatório da Imprensa e o VerTV, foram sacados da programação da emissora. Outros, como Arte do Artista, do teatrólogo Aderbal Freire Filho, sucessor do programa Arte com Sérgio Britto, também teve sua continuidade interrompida. Eles fizeram companhia a outros programas extintos em 2016, como Brasilianas e Espaço Público. Mas as mesmas justificativas não foram dadas para a contratação de jornalistas com longa passagem pela mídia privada, que levaram ao ar novos programas “jornalísticos” com linha editorial identificada profundamente com os interesses do governo federal, como Corredores do Poder ancorado por Roseann Kennedy, ex-CBN, e Cenário Econômico, comandado por Adalberto Piotto, ex-CBN e Jovem Pan.

As tradicionais rádios Nacional de Brasília AM e Nacional do Rio de Janeiro AM tiveram sua programação unificada sem qualquer diálogo com as equipes das emissoras e com os ouvintes. O discurso de criação de uma rádio all news, que teria seu foco em notícias, no momento em que a empresa sofre com falta de recursos, serviu para limitar o caráter local da programação das emissoras. Outros jornalistas com tradição nas emissoras privadas e de alinhamento ao governo também passaram a atuar à frente do microfone da rádio, como Anchieta Filho, ex-Jovem Pan.

O processo de cortes na empresa atingiu também a programação esportiva da TV Brasil, que nos últimos anos vinha conquistando audiência com a exibição do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol da Série C e Série D e do Campeonato Brasileiro Feminino de Futebol.

Mas o maior retrocesso na gestão da EBC se deu na manutenção da Rede Pública de Televisão. Com apenas quatro geradoras em Brasília, São Luiz, Rio de Janeiro e São Paulo, essa última em um canal marginal no espectro, a TV Brasil depende das emissoras afiliadas para que o seu sinal chegue em todo país. A previsão de repasse financeiro para as emissoras públicas/estatais que compõe cessaram há alguns anos. Algumas emissoras públicas deixaram a rede da TV Brasil, como a TV Educativa de Alagoas, rumo à rede da TV Cultura de São Paulo. A falta de liderança da EBC na construção da rede pública levou até as emissoras estaduais a criar um espaço de articulação, o Fórum das TVs Públicas Estaduais, abandonando a tradicional Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, que historicamente articulava as emissoras do setor público. Enquanto isso, somente em 2017, a EBC desligou ao menos seis retransmissoras do sinal da televisão pelo país. Em um processo final de desligamento do sinal analógico da televisão nas capitais brasileiras, pode levar a própria TV Brasil a um apagão, já que as próprias emissoras estaduais vivem dificuldades nesse processo.

A Comunicação Pública pelo Brasil

A comunicação pública brasileira não se resume somente à EBC e aos seus veículos. Desde o início do rádio no Brasil, espalharam iniciativas locais de emissoras por iniciativa dos estados, muitas ainda em operação pelo país. Com o começo das transmissões de televisão, iniciativas educativas por universidades e pelo poder público alavancaram o início de uma comunicação não comercial. Após a Constituição de 1988, foram essas iniciativas que ousaram se mover em direção ao novo conceito de comunicação pública, mesmo pecando pela falta de participação da sociedade em sua estrutura, as dificuldades de se tornarem independentes editorialmente de seus mantenedores e a falta de autonomia financeira. A crise econômica dos últimos anos também trouxe ainda mais ameaças para essa vasta rede que busca compor a comunicação pública brasileira. Para exemplificar essa situação, será avaliado o atual quadro de três estados emblemáticos em 2017: Rio Grande do Sul, Pernambuco e Minas Gerais.

Rio Grande do Sul: o fim da Fundação Piratini

Os ataques à experiência gaúcha de comunicação pública seguem como o maior retrocesso no setor no último período. A Fundação Piratini, responsável pela TVE-RS e pela Rádio Cultura FM, é um dos alvos do governo de José Ivo Sartori (PMDB) na tentativa de desmontar as estruturas do estado, alavancado pelo ideal neoliberal privatista.

Em dezembro de 2016, Sartori aprovou na Assembleia Legislativa um projeto que permitia a extinção da Fundação Piratini em conjunto com outras sete fundações públicas, com argumento de necessidade de enxugamento do Estado frente à crise econômica. Mesmo sob protesto de milhares de servidores, o governo conseguiu a aprovação do que – dizia – poderia dar um fôlego financeiro ao estado.

A TVE gaúcha foi criada em 1974 dentro da política de utilizar as ferramentas de comunicação para expansão da educação, que foi o fruto da criação da maior parte das emissoras estaduais brasileiras. A rádio Cultura FM só surgiu após a criação da Fundação Piratini, ainda nos anos 1980. As emissoras que tinham forte inserção na cultura gaúcha passaram de uma hora para outra para o estágio de total indefinição com a ação do governo de Sartori.

A reação dos trabalhadores da Fundação Piratini foi imediata, deflagrando greve, em protesto. A direção da Fundação respondeu proibindo a entrada dos funcionários na instituição e anunciou a demissão em massa de seus empregados. Por ser uma fundação pública de direito privado, os trabalhadores são empregados públicos, regidos pela CLT, e não servidores estatutários com garantia de estabilidade plena. Em ato de resistência, o Sindicato dos Jornalistas e o Sindicato dos Radialistas do Rio Grande do Sul conseguiram evitar a demissão em massa na Justiça do Trabalho, em processo ainda em curso. Uma resistência que tende a ser rompida em breve, pois o governo do estado buscou o STF para sustar a negociação das demissões. Outra trincheira de batalha contra a extinção da Fundação ocorre no Tribunal de Contas do RS. O Ministério Público de Contas questiona as motivações das extinções das fundações sem nenhum estudo técnico.

Iniciou-se o movimento “Salve, Salve TVE e FM Cultura”, angariando apoio de funcionários, diversos grupos artísticos e intelectuais, para a realização de várias atividades em defesa da Fundação Piratini, mostrando a relevância da comunicação pública gaúcha. O Conselho Deliberativo da Fundação Piratini, espaço de participação social na instituição, também reagiu, deixando de aprovar as indicações do governo para presidência e diretorias da fundação. O governo estadual ainda se retirou da rede da TV Brasil, da EBC, filiando-se à TV Cultura de São Paulo, e buscou interferir cada vez mais na programação da emissora.

Fundação Piratini

Com o fim da Piratini, o governo do estado afirma que as emissoras de TV e de rádio serão incorporadas pela Secretaria de Comunicação, que criará um novo modelo de gestão, terceirizando via alguma organização social ou pela iniciativa privada. Mas há rumores de que o governo poderá até extinguir os veículos.

“O discurso de modernização do estado esconde o que tem mais arcaico na comunicação pública no país. Busca transformar duas emissoras com inserção pública, com identidade com os gaúchos, em veículos governamentais, alinhados com o projeto de comunicação estatal que está vigente”, afirma Cristina Charão, empregada da Fundação.

Mesmo se continuar viva durante o governo Sartori, a TVE terá dificuldades para chegar aos gaúchos. Antes do desligamento do sinal analógico em Porto Alegre, previsto para janeiro de 2018, a TVE já havia desligado seu sinal analógico, restringindo sua cobertura, com a justificativa de economia de recursos. Até as retransmissoras do sinal da TV no interior sofrem com os cortes.

Pernambuco: o abandono da vanguarda

Em 2013, Pernambuco avançou na regulamentação da comunicação pública do estado. A criação da Empresa Pernambucana de Comunicação (EPC), inspirada até no nome na EBC, para gerir a TV Pernambuco (TVPE), representou uma novidade no fortalecimento do sistema público pelo país. Com um processo amplo de mobilização e participação, a empresa seria administrada conjuntamente por indicados pelo governo e pela sociedade, através do Conselho de Administração, composto por seis representantes eleitos da sociedade, seis indicados pelas secretarias do estado e um da Associação Municipalista de Pernambuco.

A TV Pernambuco, que iniciou suas operações como TV Tropical, teve início ainda na década de 1980, vinculada ao Departamento de Telecomunicações de Pernambuco (Detelpe), responsável pela instalação de retransmissoras de TV pelo interior do estado para atender as emissoras comerciais. A TVPE, durante um longo tempo, foi filiada às redes nacionais privadas, como o SBT e a Bandeirantes, tendo inclusive sua grade de programação arrendada para terceiros.

Mas o tempo passou e a esperança de fortalecimento da TVPE reproduziu os antigos erros do sistema público brasileiro. Com a crise econômica atingindo todos os estados, o governo de Pernambuco mais uma vez abandonou a comunicação pública estadual. Com a sede da geradora da TV em Caruaru, mas retransmissão em Recife e em 28 regiões do estado, a empresa continuou sem estrutura para produção, funcionando a partir de poucos empregados comissionados. A gestão compartilhada não foi capaz de garantir recursos para a empresa se fortalecer.

O cúmulo do abandono chegou em julho de 2017, com a migração digital das emissoras de TV de Recife. A nova empresa pública não se preparou para a transição e, sem recursos, quase ficou fora do ar na capital do estado. Sem aporte e planejamento, a solução imediata foi a transmissão do sinal pela TV da Assembleia de Pernambuco, que cedeu um subcanal para que a emissora não saísse do ar. De emergência, o legislativo local conseguiu aprovar R$ 4,2 milhões necessários para que a EPC criasse o parque de transmissão digital na capital.

A falta de compromisso do governo local reverbera na administração da empresa. O mandato dos membros da sociedade civil no Conselho de Administração da EPC venceu em 2016. Houve um processo de eleição para os novos indicados, mas até setembro de 2017 os eleitos não haviam sido empossados. Enquanto o orçamento da empresa em 2016 foi de apenas R$ 2,7 milhões, o governo do estado gastou mais de R$ 70 milhões com publicidade nos veículos comerciais.

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Em paralelo à construção da EPC, entidades da sociedade civil vem lutando para a concretização da rádio Frei Caneca FM. Depois de 56 anos de sua aprovação por lei, a rádio, vinculada à Prefeitura do Recife, iniciou sua operação de forma experimental em junho de 2016. Mas, desde então, a rádio opera apenas como uma “playlist”, tocando música 24 horas por dia. A rádio ganhou o ar, mas ainda sem nenhuma estrutura, orçamento, funcionários e, principalmente, a participação da sociedade.

Em Pernambuco, opera ainda a TVU em Recife, sendo a primeira TV Educativa do país, inaugurada em 1968, e as Rádios Universitárias FM e AM, operadas pela Universidade Federal de Pernambuco. A TV conseguiu sua migração para o digital dentro do prazo, mas o conjunto de veículos ainda carece de uma abertura à participação social na emissora. Em 2015, foi finalizada uma proposta de Conselho Curador para as emissoras da Universidade, o que, até o momento, não se concretizou.

Renato Feitosa, do Centro de Cultura Luiz Freire, eleito para o Conselho da EPC, afirma que os movimentos sociais têm uma década de acúmulo sobre as emissoras públicas da Empresa, com propostas e demandas construídas. “Mas o que não estamos conseguindo é pressionar os governos para que as coisas andem. O que se gasta em publicidade oficial poderia financiar as emissoras”, conclui.

Minas Gerais: mudanças afobadas

Minas Gerais também passou por transformações em suas emissoras públicas no último período. Em setembro de 2016, o governo do estado aprovou a criação da Empresa Mineira de Comunicação (EMC), mais uma inspirada na experiência da EBC. A nova empresa aglutinaria a Rádio Inconfidência, surgida em 1936, que era operada como empresa pública, e a Rede Minas de TV, criada em 1984, que era mantida pela Fundação TV Minas – Cultural e Educativa, que seria extinta.

A ideia da empresa pública surgiu na Assembleia Legislativa ainda em 2013, mas se viabilizou a partir da posse do governador Fernando Pimentel (PT), que aprovou no legislativo estadual um novo projeto. O resultado da nova legislação garantiu a criação de um Conselho Curador na empresa, mesmo sem determinar seu papel e como ele seria composto. A proposta sequer tocou em um tema tão necessário para emissoras públicas brasileiras, que são os instrumentos efetivos para garantir a autonomia financeira. O Comitê Mineiro do FNDC, durante o processo de aprovação da lei, questionou a falta de discussão sobre a nova empresa, sendo que o texto não contemplava pontos prioritários para o movimento, “como compromisso em fortalecer a autonomia da mídia pública, valorização da diversidade da produção regional e garantia de condições ótimas de trabalho”.

Dentro do projeto aprovado pelos deputados mineiros para a EMC, o movimento de comunicação conseguiu uma mudança importante para a construção de políticas de comunicação no estado, com uma nova normatização do Conselho Estadual de Comunicação, previsto na Constituição de Minas Gerais. O Conselho, que não funcionou em décadas, manteria sua composição original, com participação de representantes do governo, da EMC, da Assembleia, de sindicatos patronais e de trabalhadores e também de três cidadãos de ilibada reputação, mas agora com o objetivo de aprovar um Plano Estadual de Comunicação Social.

Passado o processo da criação da EMC, a extinção da Fundação TV Minas ainda não foi realizada. A pendência maior reside na concessão de TV educativa da emissora, que não se enquadraria dentro do escopo de uma empresa pública. Os servidores da fundação vivem um momento de indefinições, já que a legislação prevê a remoção dos mesmos para a Secretaria de Cultura e sua provável cessão para a EMC. Isso após anos de luta para que a fundação realizasse concurso público: a operação da TV Minas era feita de forma terceirizada por uma OSCIP.

Já a Rádio Inconfidência acabou fortalecida pela nova empresa, pois não havia nenhum instrumento de participação na rádio e o número de empregados já era muito reduzido. Romina Farcae, diretora da Associação dos Servidores Públicos da Rede Minas, reclama da falta de diálogo no processo de criação da nova empresa, não respeitando as distinções históricas entre as duas emissoras. “Houve uma luta de anos para a realização de concurso que desse autonomia para os servidores da TV e que foi ignorada. Não se pensou nos preceitos da fundação, que gere uma emissora educativa, enquanto a Rádio Inconfidência opera como uma emissora comercial, inclusive vendendo comercial. Essas singularidades foram desprezadas”, afirma.

Mas grande parte das promessas, um ano após a criação da nova EMC, não se concretizou. O destaque se deu para a inauguração da nova sede da Rádio Inconfidência e Rede Minas de TV, que passou a ocupar um espaço compartilhado também com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, com estrutura ampla e renovada. Mas até setembro de 2017, o Conselho da nova empresa pública não teve nenhum sinal de sair do papel. A falta de recurso continuou uma constante nos dois veículos. Com o impasse sobre a outorga educativa da TV, a solução para a extinção da Fundação caminha a passos lentos. O Conselho de Comunicação também seguiu sendo apenas um texto em uma lei aprovada, que após um ano continuou sem ser instalado.

Durante esse processo, ainda no final de 2016, a troca do comando da emissora gerou apreensão dos próprios movimentos sociais, temendo um redirecionamento editorial a uma linha mais próxima dos interesses do governo do estado. Em junho de 2017, o FNDC-MG criticou, em carta, a postura do governador Fernando Pimentel de não priorizar a emissora, alegando que os recursos para os veículos públicos foram de R$ 35 milhões, enquanto a despesa publicitária do governo chegou a quase R$ 100 milhões; além de cobrar a instalação do Conselho da EMC e do Conselho Estadual de Comunicação e a convocação de uma nova Conferência Estadual de Comunicação.

Em outubro de 2017, os trabalhadores da Rádio Inconfidência e da Rede Minas entraram conjuntamente em greve contra os baixos salários, os cortes de benefícios já concedidos e pela regularização das jornadas de jornalistas e radialistas. O movimento ainda criticou a falta de diálogo na implementação da EMC, além de apresentarem vários problemas nas instalações do edifício inaugurado para as emissoras, que, mesmo que novo, não garante ainda as condições de trabalho e funcionamento dos veículos.

A busca por um sistema público

O movimento iniciado de fortalecimento e expansão de uma comunicação pública autônoma, que privilegiasse a participação da sociedade e a independência dos governos e do mercado, encontra-se hoje em uma encruzilhada. Com a crise econômica e uma nova ascensão do neoliberalismo, as diversas iniciativas de comunicação pública sofrem diretamente o dilema político brasileiro.

A falta de uma regulamentação completa do artigo 223 da Constituição Federal, que delimitasse cada um dos três sistemas previstos – privado, estatal e público –, dificulta um reconhecimento objetivo da sociedade sobre as diferenças e as finalidades de cada um dos sistemas previstos. Impede, principalmente, a distinção do sistema público frente aos demais e sua interseção com o sistema estatal e o sistema privado associativo sem fins lucrativos – como rádios e TVs comunitárias. O momento de dificuldades da economia e o avanço de grupos conservadores neoliberais coloca em risco as experiências públicas de comunicação dos últimos 40 anos.

A situação de fragilidade em que a Empresa Brasil de Comunicação se encontra, com ataques contínuos à sua autonomia editorial, financeira e participativa, representa um retrocesso na construção de um sistema público robusto e relevante. Governos estaduais descompromissados também comprometem o projeto de comunicação pública, com garantia de independência editorial, autonomia financeira e uma real participação da sociedade na sua construção.

Em todo país, a distância dos recursos repassados em publicidade para os veículos privados e o investimento nas mídias públicas/estatais, mostram a dificuldade de avançar no fortalecimento de um sistema público. Ainda mais desregulamentado, principalmente após os ataques à legislação da EBC, as diversas experiências pelo país sofrem com a falta de autonomia que garanta sua relevância social, além da falta de compromisso com a participação direta da sociedade na própria gestão desse sistema.

*Gésio Passos é mestre em comunicação pela Universidade de Brasília, jornalista do quadro efetivo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), coordenador geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e associado ao Intervozes. Pesquisa temas ligados à comunicação pública, políticas de comunicação e história da mídia brasileira.

Modelo brasileiro de classificação indicativa de obras audiovisuais não funciona para artes plásticas, dizem entidades

Uma polêmica iniciada no começo de setembro com a exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira”, exibida em Porto Alegre, vem trazendo para o debate público um assunto muito delicado: alguns setores conservadores querem implementar um sistema de classificação indicativa para museus e exposições.

A mostra reunia obras de 85 artistas, incluindo os mundialmente conhecidos Alfredo Volpi e Cândido Portinari, mas acabou cancelada um mês antes da previsão pelo Santander Cultural após críticas de movimentos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), que acusavam a exposição de fazer apologia à pedofilia e zoofilia. Após essa reação, vários grupos começaram a aparecer em diversos municípios brasileiros questionando outras exposições realizadas.

Desta forma, setores começaram a cobrar dos gestores ações imediatas em relação às exposições, sem debate algum com os demais segmentos da sociedade. E claro, reações automáticas tomadas no calor do debate acabam prejudicando a democracia, ao invés de fortalecê-la. Um exemplo é o grande número de projetos de lei apresentados em diversos estados – até o momento são 13 – que visam limitar e até mesmo censurar a liberdade de expressão em eventos artísticos.

O Espírito Santo, por exemplo, aprovou na segunda-feira, dia 23, um projeto que proíbe a nudez e a representação de ato sexual em exposições de museus e equipamentos públicos do estado. A proposta foi votada em regime de urgência e ganhou o apoio de quase todos os deputados da casa.

De acordo com o autor, deputado estadual Euclério Sampaio (PDT), o projeto quer “promover o bem-estar das famílias”. A proibição abrangerá expressões artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes e vídeos que exponham o ato sexual e a nudez humana, exceto quando a exposição tiver fins “estritamente pedagógicos”. O projeto ainda vai a sanção do governador do estado. Caso sancionada a lei, o descumprimento acarretará em multa. Projetos semelhantes já tramitam no Rio de Janeiro, São Paulo e na Câmara dos Deputados, em Brasília.

Como é lá fora

Muitos países já passaram por uma situação parecida, mas nenhum adotou uma política onde o Estado se sobreponha a uma decisão dos pais, tomada a partir das orientações colocadas pelas instituições artísticas. É o que afirma Isabella Henriques, diretora de advocacy do Instituto Alana. Para ela, os responsáveis pelos espaços de artes devem prestar informações suficientes para a proteção da criança, adotando medidas complementares em auxílio às famílias para que elas tomem suas próprias decisões.

“O museu do Holocausto, em Washington DC, por exemplo, além de advertir o tempo todo os pais, mães e responsáveis sobre o impacto das imagens, coloca os vídeos com imagens do extermínio de judeus por fuzilamento atrás de uma mureta de altura superior à média de altura das crianças, fazendo com que os pais vejam antes e, se julgarem adequado, tenham de levantar seus filhos para que assistam”, destaca Isabella.

Na maior parte da Europa, fica a critério dos museus e galerias indicar uma idade apropriada para a visitação ou colocar avisos de conteúdo inadequado para menores. A regra, no geral, é de que haja a sinalização em trabalhos que possam ser entendidos como de cunho sexual ou com conteúdo chocante. Para performances com nudez, essa informação é dada antes que os visitantes comprem seus ingressos.

O ministro da cultura, Sérgio Sá Leitão, ao ser procurado por alguns representantes de igrejas para tratar do assunto, defendeu que exposições de arte tivessem uma classificação indicativa, a exemplo do que já acontece nos cinemas e em programas de televisão.

Vários especialistas em direitos das crianças e organizações de defesa da liberdade de expressão, entretanto, afirmam que a política de Classificação Indicativa em vigor no Brasil para o cinema, a televisão e jogos eletrônicos não é o melhor instrumento para tratar dessa questão. De acordo com a Portaria nº 368/2014, do Ministério da Justiça, exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público, tais como as circenses, teatrais e shows musicais, não são classificados. Idem para os museus.

Na avaliação de Veet Vivarta, consultor de mídia e direitos humanos, que participou do processo de elaboração e implementação da política de Classificação Indicativa no Brasil, reconhecida mundialmente por organismos internacionais, os critérios usados para definir se um conteúdo audiovisual é recomedado ou não para determinada faixa etária não se aplicariam de forma adequada às artes plásticas. Tampouco caberia ao Estado fiscalizar definir a classificação de museus

A mesma opinião é compartilhada por Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes e que representa a entidade no Comitê de Acompanhamento da Sociedade Civil (CASC) da política de Classificação Indicativa, órgão ligado ao Ministério da Justiça. “Os critérios previstos no manual da Classificação são voltados para obras baseadas em uma narrativa, no desenvolvimento de uma “história”. Não faz sentido aplicá-los diretamente a um quadro ou escultura. Se isso fosse feito, uma exposição de Michelangelo, por exemplo, poderia ser classificada apenas para maiores de 16 anos. Os parâmetros, portanto, precisam ser outros”, acredita.

“Vários dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive, já trazem salvaguardas para esta questão, entre eles o que coloca que, para entrar em espetáculos recomendados para certa idade, uma criança deve estar acompanhada de um adulto ou responsável”, lembra Iara Moura, representante do Intervozes no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH).

Em busca da autorregulação

Reportagem publicada no portal UOL nesta quinta-feira, dia 26, conta que um grupo independente de 18 advogados, composto por penalistas, constitucionalistas e representantes de galerias, está se mobilizando para propor um novo sistema em que os próprios museus e exposições definirão em conjunto critérios para uma indicação etária de suas mostras de artes visuais.

Os entrevistados foram unânimes em defender que, no que se refere aos museus, galerias e instituições culturais, é preciso um amplo debate entre os agentes culturais e a sociedade para que sejam criadas regras mais claras e de fato aplicáveis às artes plásticas, sem que se comprometa a livre expressão cultural nem a liberdade de expressão.
Na avaliação do conjunto dos especialistas ouvidos pelo Observatório do Direito à Comunicação, não cabe ao Estado regular o acesso a este tipo de espaço, tampouco é recomendável aos museus e centros de exposição que apliquem de maneira automatizada os parâmetros da Classificação Indicativa desenvolvidos para o audiovisual. Ações de autorregulação do setor, entretanto, são bem vindas.

“Neste momento, é imprescindível que haja uma movimentação e mobilização por parte dos responsáveis pelos espaços de arte para responder às demandas que surgem por mais informação em relação aos conteúdos que serão expostos. É importante que se atentem a melhorar a apresentação das mostras, para que pais e responsáveis estejam cientes e aptos para decidir se seus filhos devem ser expostos ou não a tais conteúdos”, conclui Veet Vivarta.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação