Pesquisa avalia nível de transparência na comunicação brasileira

Parceria entre Intervozes, e a organização internacional Repórteres Sem Fronteiras mapeou 50 empresas para analisar concentração de propriedade e relações políticas e econômicas mantidas pelos grupos de mídia no país

O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e a organização internacional Repórteres Sem fronteiras lançaram ontem, dia 31, em São Paulo, o Monitoramento da Propriedade da Mídia (Media Ownership Monitor – MOM) versão Brasil, uma iniciativa global de pesquisa e incidência política para avaliar a transparência nos meios de comunicação e identificar quais são efetivamente seus proprietários, de modo a responder à pergunta: “Quem controla a mídia?”. A pesquisa mapeou os 50 veículos de maior audiência/circulação, sendo 11 deles redes de TV (aberta e por assinatura), 12 redes de rádio e 17 veículos de mídia impressa (jornais de circulação diária e revistas de circulação semanal), além de 10 veículos online (portais de notícias), reunindo informações sobre os grupos econômicos a que pertencem, seus controladores, os outros negócios mantidos por estes e suas relações políticas, entre outras. Os resultados estão disponibilizados em forma de indicadores, banco de dados e temas em destaque.

Os 50 veículos mapeados na pesquisa pertencem a 26 grupos ou empresas de comunicação, os quais, pelos seus níveis de audiência, têm potencial para influenciar a opinião pública brasileira. A diferença entre as quantidades de veículos nas quatro mídias se deve à maior ou menor concentração de audiência e ao alcance geográfico dos mesmos. O levantamento demonstrou que 16 destes grupos possuem também outros negócios no setor de mídia, como produção cinematográfica, edição de livros, agência de publicidade, programação de TV a cabo, entre outros. Também demonstrou que 21 dos grupos ou seus acionistas possuem atividades em outros setores econômicos, entre os quais educação, financeiro, imobiliário, agropecuário, energia, transportes, construção civil e saúde. Além disso, há vários proprietários que são políticos ou lideranças religiosas.

Os resultados da pesquisa apontaram alerta vermelho para quase todos os indicadores de riscos ao pluralismo e à independência da mídia, principalmente no que diz respeito à elevadíssima concentração de audiência e à propriedade cruzada de meios de comunicação. A mídia brasileira mostra alta concentração de audiência e de propriedade, alta concentração geográfica, falta de transparência quanto ao controle acionário e receitas, além de possíveis interferências econômicas, políticas e religiosas sobre a informação veiculada nos meios. Não é possível que se tenha uma democracia efetiva sem pluralidade e diversidade de vozes em circulação. A mídia independente seria um fator de garantia importante para este pluralismo. Outro indicador avaliado é o da transparência: os riscos se tornam ainda maiores quando não está claro para a audiência quem tem controle sobre os veículos, que outros negócios seus controladores mantêm e que interesses podem impactar sobre a produção das notícias.

Apesar de toda a diversidade regional existente no país e das dimensões continentais de seu território, as quatro principais redes nacionais de televisão aberta, ainda o meio de comunicação mais consumido no país – Globo, SBT, Record e Bandeirantes –, concentram uma audiência que ultrapassa os 70%. Também a concentração geográfica é alarmante: 19 dos 26 grupos analisados (73%) têm suas sedes na Região Metropolitana de São Paulo, a grande maioria na cidade de São Paulo. A localização da sede dos 50 veículos ou redes analisados obedece lógica similar: 62% estão na cidade de São Paulo, enquanto outros 12% estão no Rio de Janeiro – onde fica a matriz do maior conglomerado de mídia da América Latina, o Grupo Globo. A chamada “região concentrada”, que neste caso corresponde às regiões Sudeste e Sul, abriga 80% dos escritórios de comando dos grupos controladores dos 50 veículos de mídia analisados.

“A concentração da mídia realmente produz um paradoxo, e a internet, que deveria significar uma quantidade ilimitada de conteúdo e de variedade, reproduz essa mesma lógica de concentração da informação. Essa concentração vem crescendo em nível global, com o Facebook e o Google, por exemplo, criando bolhas de informação”, avalia Olaf Steenfadt, coordenador global do MOM no Repórteres Sem Fronteiras e especialista no assunto. Conforme ele, a luta a ser travada é a luta pelos Direitos Humanos, e que o está sendo atacado é o direito à comunicação. “Nesse panorama, é quase impossível defender a independência do jornalismo. É difícil garantí-la, sem a transparência do ‘quem é quem?’, de ‘o que está por trás da mídia?’ ”, ressalta Olaf, para quem o Brasil é dos países com maior concentração da mídia, inclusive em termos de modelo de negócios, pois é dos poucos países em que os donos da mídia ainda obtém muito lucro.

Olaf Steenfadt relata que falar sobre a mídia no Brasil é um tabu, e explica: “Nós fizemos hoje uma conferência de imprensa, fizemos isso em 11 países até agora, em todos nós estivemos nas primeiras páginas dos jornais, na televisão, etc. Isso só não aconteceu na Turquia, que talvez não seja uma boa comparação quando o assunto é mídia, e no Brasil. Então a minha sensação é de que não há uma censura oficial (do sistema político), mas sim uma censura feita pelos próprios canais. Ou seja, os veículos são parte do problema”, lamenta.

André Pasti, coordenador da pesquisa pelo Intervozes, relata que o levantamento será fundamental na colaboração com outras pesquisas sobre concentração na mídia, servindo também como subsídio para a ação política. “O MOM traz dados que iram facilitar na hora de pensar a formulação de políticas públicas de comunicação, ainda que numa conjuntura bastante difícil. Com tantos retrocessos, quando estamos tendo que defender um direito básico que é a liberdade de expressão, até pode parecer um pouco deslocado fazer um levantamento como esse, já que não seria a primeira prioridade, mas, na realidade, a gente não consegue avançar nesse debate sem conhecer de fato o que acontece na mídia brasileira”, enfatiza.

Pasti avalia que a pesquisa é um grande passo para que se avance em uma série de decisões. Apesar de não ser a primeira pesquisa de mídia no Brasil, o MOM traz uma plataforma acessível não só a quem faz o debate acadêmico, mas também à sociedade em geral. “É uma plataforma que reuniu vários dados com explicações sobre o que eles representam e que deve continuar sendo atualizada”, explica.
Olivía Bandeira, do Intervozes e integrante da equipe de pesquisa, apresentou alguns dos dados coletados. “A gente pode olhar no quadro dos proprietários a lista extensa de 50 veículos pesquisados, mas estes são de propriedade de 26 grupos de comunicação ou de empresas que não chegam a se constituir como um grupo. Fica muito patente também nos gráficos que esses grupos não só estão dentro do negócio de mídia, como estão em uma série de outros negócios. Nós destacamos pelo menos três dessas relações que fazem da mídia brasileira uma mídia nada democrática: os interesses políticos, religiosos e econômicos”.

O trabalho também aponta que, embora a Constituição Federal proíba que políticos controlem empresas de mídia, 32 deputados federais e oito senadores controlam meios de comunicação, em alguns casos colocando familiares como proprietários formais, tentando mascarar suas relações.

Martín Becerra, professor na Escola de Comunicação da Universidad Nacional de Quilmes e da Universidade de Buenos Aires, afirmou que as empresas de comunicação na América Latina reclamam e pedem transparência de todos os setores sociais, porém são completamente alheias à transparência de próprios dados. “Em parte, isso é devido à ausência de regulamento que historicamente acontece na América Latina com relação às propriedades dos meios e à concentração. Muitos de nós acreditamos de maneira cândida que isso seria resolvido através de uma promessa de transparência, mas depois da internet, com as redes digitais, o que se mostra é que cada vez mais a massificação da internet e o domínio global dos intermediários como Google e Facebook tem contribuído para deixar ainda mais opaca essa transparência” .

Ele destaca que na América Latina o interesse público é sempre secundário diante dos interesses por parte dos grupos concentrados, que influem inclusive na formação das pautas consideradas “relevantes”. “ A atividade dos meios de comunicação não é a atividade mais importante do grupo de comunicação, ela é só uma plataforma para realizar outras atividades econômicas e que se potencializa quanto mais concentrados estão os meios”. Para Becerra, essa concentração tem outros sintomas, como a concentração geográfica com cada vez menos polos urbanos fornecendo conteúdos e uma maior autocensura dos trabalhadores, num ambiente cada vez mais precário para o exercício do jornalismo e para liberdade de expressão.

Para a presidenta da Organização Interamericana de Defensoras e Defensores das Audiências (OID), Cynthia Ottavianona, a transparência é fundamental e é necessário inverter a lógica dos “apropriadores” da mídia. “Os dados pertencem a todos e a informação é um direito humano, não é uma mercadoria. Por isso, precisamos saber quem são aqueles que estão administrando os meios. Essa pergunta é importante para o direito das audiências, para uma cidadania comunicacional. É necessário reconhecer e indagar sobre os direitos das audiências na regulação audiovisual. Isso significa reconhecer a existência de um contrato social, e podemos dizer que isso está baseado na necessidade de aprofundar a democracia.”

Ela destaca que, para aprofundar a democracia no campo da comunicação, é preciso garantir quatro eixos: a proteção dos grupos historicamente vulneráveis – crianças, adolescentes, mulheres, negros, coletivos LGBTT, grupos de imigrantes, pessoas com deficiência; os direitos pessoais, ou seja, os direitos de intimidade, da dignidade, à privacidade; a promoção do acesso à informação plural e diversa; e a criação de defensorias de audiência como ferramentas necessárias para corrigir assimetrias das desigualdades. “Esses quatro eixos são importantes, pois ninguém defende um direito que não conhece. Precisamos fazer conhecer, ensinar, difundir, divulgar, socializar esses direitos”.

Franklin Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom/PR) entre 2007 e 2010, analisou que, desde a Constituição de 1988, o momento atual é o de maior retrocesso e de perdas de mais direitos individuais. “O Brasil nunca enfrentou junto à sociedade a questão da regulação da comunicação. Com muita dificuldade o debate estava amadurecendo dentro de algumas instâncias, mas faltou liderança e mais amadurecimento. Cada vez mais o oligopólio foi naturalizado no Brasil. E, quando se fala em regulação, contra-atacam dizendo que estão querendo acabar com a liberdade de imprensa.”

Ele destaca que a regulação da mídia existe em todos os países democráticos, inclusive nos Estados Unidos, onde não se permite a propriedade cruzada. Ou seja, um dono de rádio não pode ter um canal de TV num determinado local, de forma a concentrar a informação. Já no Brasil, não existe nada na legislação que impeça o mesmo grupo de controlar emissoras de rádio, televisão, jornais e portais na internet, o que torna a informação concentrada e favorece a concentração de propriedade cruzada.

Segundo Franklin, em toda a América Latina, só quem tem voz é o dono da empresa. “Como se a sociedade não tivesse o direito de opinar. A gente pode até entender isso num jornal/revista, onde é o dono quem põe o dinheiro, porém, na radiodifusão, isso é inadmissível. Ela é uma concessão pública e deve sim prestar contas ao Estado e à sociedade. É preciso regular, sim!”.

Media Ownership Monitor/MOM

O Monitoramento da Propriedade da Mídia (Media Ownership Monitor/MOM) é uma iniciativa global de pesquisa e incidência política para criar transparência a respeito de quem são os donos da mídia e, por meio da contextualização e análise de informações, responder à pergunta: “quem controla a mídia?”. A pesquisa pretende fornecer ao público uma fonte acessível e continuamente atualizada sobre os interesses por trás das notícias que assistimos, lemos, ouvimos.

O Brasil é o décimo-primeiro país onde a pesquisa está sendo realizada. No site Media Ownership Monitor, estão disponíveis seus resultados do levantamento em países como Peru, Ghana, Turquia, Filipinas, Ucrânia e Camboja. Neste momento, a pesquisa está em andamento também no Marrocos e no Paquistão e, no início de 2018, começa a ser realizada no México.

MOM Brasil

No Brasil, foram analisadas as redes de TV aberta Globo, SBT, Record, Band, RedeTV!, RecordNews, TV Brasil, Rede Vida e Gospel, e os veículos de televisão por assinatura Globo News e Band News. Também foram analisadas as redes de rádio Jovem Pan, Gaúcha Sat, Bandeirantes, Band FM, BandNews, Globo AM/FM, CBN, Transamérica, Mix FM, Rede Católica de Rádio, Rede Aleluia e Novo Tempo; os portais Globo.com, UOL, Abril, IG, ClicRBS, Estadão, R7, Revista Fórum, O Antagonista e BBC; as revistas Veja, Época e IstoÉ e os jornais Folha de S. Paulo, O Globo, Super Notícia, O Estado de S. Paulo, Zero Hora, Extra, Diário Gaúcho, Agora São Paulo, O Estado de Minas, Valor Econômico, Correio Braziliense, O Tempo, Correio do Povo e Daqui.

Além da equipe de pesquisadores, o projeto contou ainda com um Conselho de Especialistas, voluntário e de caráter consultivo, acionado ao longo do desenvolvimento da pesquisa para contribuir com avaliações e propor soluções a eventuais desafios durante o levantamento e a análise dos dados. Participaram 15 conselheiros de diferentes áreas do setor da comunicação, como pesquisadores, professores e jornalistas. A composição levou em conta, ainda, a diversidade étnico-racial e de gênero e a distribuição regional dos convidados.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

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