Sem Conselho Curador, não há comunicação efetivamente pública

Conclusão norteia manifestações de participantes em audiência pública sobre a MP 744/2016. Segmentos da sociedade se mostram preocupados com a falta de entendimento do atual governo sobre as diferenças entre uma empresa pública e uma empresa estatal

Representantes de organizações da sociedade, especialistas e funcionários da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) participaram nesta terça-feira, dia 29, de uma audiência pública destinada a debater a Medida Provisória (MP) 744/2016, que reestrutura a empresa, diminui sua autonomia e descaracteriza seu caráter público, alterando dessa forma a Lei 11.652/2008, de criação da EBC.

A MP 744 estabelece o fim do Conselho Curador e a vinculação da EBC à Casa Civil, e não mais à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Também muda a configuração da diretoria-executiva, que passa a ser composta por um diretor-presidente, um diretor-geral e quatro diretores, todos nomeados pelo presidente da República, que poderá exonerá-los a qualquer momento sem nenhuma mediação. O que evidentemente diminui a autonomia da empresa e a deixa refém dos interesses do governo de turno. Antes da medida, o diretor-presidente da EBC tinha mandato de quatro anos e podia ser reconduzido ao cargo.

Gilberto Rios, coordenador-executivo da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), enfatizou na audiência que qualquer intenção de reestruturação da EBC não pode ignorar todo o debate prévio realizado para a construção de uma empresa pública de comunicação no Brasil. “Esse debate iniciou num Fórum de Comunicação Pública e continuou por muito tempo, até chegar a um projeto que desse conta dos anseios de um conjunto de organizações”, afirmou.

A representante dos funcionários da EBC, Akemi Nitahara, repudiou a atitude do atual diretor-presidente da empresa, Laerte Rímoli, que, na primeira audiência sobre o tema, realizada na quinta-feira, 24, acusou alguns funcionários e conselheiros de serem insubordinados e ligados a partidos políticos. “Somos concursados, não entramos [na empresa] por cota de partidos. Conhecemos muito bem a lei que criou a EBC e é ela que nós defendemos. Defendemos seu caráter público e a manutenção de sua autonomia sem ingerências no trabalho que é realizado”, reforçou.

Questionada pelo relator da MP 744, o senador Lasier Martins, sobre a importância de cada veículo da empresa, Nitahara destacou que não existe hierarquia de importância nos veículos da EBC. “Todos os veículos têm importância em sua área de atuação, enquanto veículos públicos, e desenvolvem um importante papel na democratização da informação”, respondeu ela.

Sem justificativa para edição da medida

Presidente do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional (CCS), o advogado Miguel Ângelo Cançado lembrou na audiência que as MPs só devem ser utilizadas em caso de relevância e urgência, como previsto no artigo 62 da Constituição Federal. “A CCS acredita que esse [a reestruturação da EBC] não seja um caso urgente quanto ao mérito. Não acreditamos que a extinção do Conselho Curador seja a solução, não se pode falar em eficiência sem o controle social. Essas medidas vão contra o artigo 223 da Constituição e promovem uma distorção da comunicação pública”, avaliou ele, ressalvando que deveria ser uma preocupação do Poder Executivo assegurar o princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de comunicação, conforme previsto na Constituição.

Renata Mielli, coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), ponderou que organismos internacionais defendem a existência de uma comunicação pública com referência para a construção de uma sociedade democrática. “Os sistemas estatal e privado não são suficientes para garantir pluralidade na comunicação. Essa MP [744/2016] descaracteriza o caráter público. A EBC não é de nenhum partido, de nenhuma organização. Ela é da sociedade”, argumentou.

Mielli lembrou que o Conselho Curador “é justamente o espaço de participação e debates público” da sociedade na EBC, e questionou a obstinação de setores que questionam a existência da empresa usando como argumento dados de verificação de audiência. “Não é esse o papel da comunicação pública. A sua função é atender a pluralidade e diversidade, e não corresponder a expectativas mercadológicas”.

Para Teresa Cruvinel, jornalista e ex-presidente da EBC, a alteração por medida provisória de uma lei [Lei 11.652/2008] criada e aprovada no Congresso Nacional é inconstitucional. Cruvinel reforça que a comunicação pública deve ser independente do mercado e do Estado e deve também contar com a participação da sociedade, o que é possível por meio, justamente, do trabalho do Conselho Curador. “Essa MP é ambígua, pois a empresa deixará de ser de fato pública e se tornará uma empresa governamental. Ou o governo assume que está se apropriando da EBC ou os senhores [parlamentares] rejeitem essa MP“, enfatizou Cruvinel, citando exemplos internacionais da ação de conselhos semelhantes cuja atuação deliberativa é tão mais expressiva quanto têm sua “voz respeitada nas empresas”.

MP diminui autonomia em relação ao governo

Afastada do Conselho Curador desde a edição da MP 744, a jornalista e ex-presidente do Conselho Curador da EBC Rita Freire relatou o trabalho executado e sua independência em relação a partidos políticos. “Nos preocupamos em dar à EBC um caráter plural e estamos lutando pelo direito de ter uma comunicação pública verdadeira. Não estamos defendendo cargos, o que queremos é garantir a autonomia da empresa e o seu compromisso com a sociedade, não com governos”.

Venício Lima, jornalista, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e ex-membro do Conselho Curador da EBC, também enfatizou que a MP 744 transforma a experiência de comunicação pública em comunicação estatal. Para ele, o que está em jogo é a disputa pela formação da opinião pública no Brasil.

O professor questionou o desrespeito aos artigos 220 e 223 da Constituição Federal. O primeiro proíbe monopólios formados por meios de comunicação; o segundo estabelece a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal. “Quando não regulamentamos esses princípios, o Estado brasileiro prossegue delegando à iniciativa privada a responsabilidade pela comunicação”, apontou. Ele lembrou que existe desde 2010 no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, ajuizada pelo jurista Fábio Konder Comparato, que requer à Corte que determine ao Congresso Nacional a regulamentação de matérias existentes em três artigos da Constituição Federal (220, 221 e 223), relativos à comunicação social.

Presente na audiência, o deputado Jean Wylys (Psol-RJ), coordenador da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular, respondendo a um questionamento do senador Lasier Martins, citou trabalhos realizados pelo Conselho Curador da EBC, entre eles a criação de faixa de transmissão para programas de diversidade religiosa. “A demonização da EBC mistura mentira com preconceitos políticos arraigados”, declarou Wylys.

Nesta quinta, 1º/12, às 9h30, será realizada mais uma audiência pública no âmbito da Comissão Mista que analisa a MP 744/2016, desta vez com o ministro Eliseu Padilha. As audiências estão sendo transmitidas ao vivo pela TV Senado. Todas as pessoas que se manifestaram na audiência desta terça acreditam que é possível melhorar o projeto de comunicação pública colocado em prática pela EBC, mas todas são unânimes também em afirmar que a MP 744 acaba com o caráter público da empresa, a transformando em uma empresa de assessoria ao atual governo.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Prefeitura de SP sanciona lei de incentivo a rádios comunitárias

Prefeito Haddad propõe que parte do orçamento de publicidade seja destinado às emissoras com o intuito de democratizar a comunicação

Com a sanção da Lei 16.572/2016 e sua respectiva publicação no Diário Oficial, em 19 de novembro, a cidade de São Paulo instituiu a primeira lei brasileira de política de incentivo às rádios comunitárias. Nesta quinta-feira, 24, o prefeito Fernando Haddad esteve reunido com representantes de diversas emissoras comunitárias para anunciar a novidade.

Ainda em julho passado, o prefeito esteve com representantes do setor para declarar sua intenção de criar uma lei em benefício à comunicação comunitária. Na ocasião, o prefeito destacou que a ideia era destinar parte do orçamento de publicidade às rádios comunitárias da cidade. A prefeitura possui um orçamento de R$ 100 milhões destinado à publicidade. “Temos que criar um plano pró-diversidade e liberdade da comunicação. Até mesmo o liberalismo é contra o oligopólio (midiático)”, afirmou ele na ocasião.

O plano foi elaborado em conjunto com o movimento de rádios comunitárias. O projeto foi apresentado pelo então vereador José Américo em 2011 e atualizado este ano, com apoio do vereador Antônio Donato, ambos do Partido dos Trabalhadores. A política municipal de fomento ao serviço de radiodifusão comunitária prevê a destinação de um orçamento mínimo de R$ 10 milhões aos projetos do setor (10% do valor total). São Paulo possui hoje mais de 30 veículos comunitários, localizados em diversas regiões da cidade.

A Lei 16.572/2016 representa um marco na comunicação comunitária. Haddad acredita que a iniciativa de São Paulo possa estimular outros agentes públicos a tomar iniciativas semelhantes. O prefeito considera que a política de incentivo às rádios comunitárias vai tornar a comunicação da cidade mais plural.

Para Marilene Araújo, advogada do Movimento das Rádios Comunitárias, a inciativa “vem fortalecer e reconhecer o papel das emissoras comunitárias”. Também os comunicadores comunitários receberam a lei como uma “grande vitória” do setor, pois viabiliza a pluralidade de informação no município. “Há um bloqueio midiático gigante. O fortalecimento da comunicação comunitária e alternativa amplia as possibilidades de acesso ao contraditório”, aponta Ana Flávia Marx, do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Sobre o projeto

No programa de fomento a rádios comunitárias instituído pela Lei 16.572/2016, as rádios poderão apresentar projetos para financiamento de atividades de produção de conteúdo local e ações culturais. O texto legal busca reconhecer o papel desses serviços nas comunidades e procura garantir a sustentabilidade da programação de tais emissoras.

Todos os anos serão escolhidos até 40 projetos entre os inscritos. Cada rádio poderá inscrever até dois pedidos de financiamento, que poderão contemplar recursos humanos, material de consumo, equipamentos, locação, manutenção e administração de espaço, obras, reformas, produção da programação da rádio comunitária, transportes, material gráfico e publicações, divulgação, fotos, gravações e outros suportes de divulgação, pesquisa e documentação.

Os planos de trabalho deverão ter duração de no máximo um ano e orçamento de até R$ 250 mil. Os candidatos ao fomento serão selecionados por uma comissão julgadora formada por quatro representantes da Secretaria Municipal de Cultura e três representantes das rádios, que serão escolhidos por votação. Serão valorizados planos de ação continuada que não se restrinjam a um evento ou uma obra, além do interesse cultural das propostas.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

CADERNO LEGISLATIVO SOBRE PUBLICIDADE INFANTIL É LANÇADO NO CONGRESSO NACIONAL

Publicação do Projeto Criança e Consumo reúne projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal sobre o assunto

O caderno legislativo “Publicidade Infantil” foi lançado na quinta-feira (24), no Salão Nobre da Câmara dos Deputados. O caderno é uma realização do Instituto Alana, por meio do Projeto Criança e Consumo – que completou 10 anos em 2016. O evento teve o apoio da Frente Parlamentar de Promoção e Defesa da Criança e do Adolescente e da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e pelo Direito à Comunicação com Participação Popular (Frentecom).

A criança precisa ser protegida da publicidade infantil. Até 8 anos de idade, a criança não consegue distinguir o que é publicidade do que é o conteúdo, seja na TV ou na internet. Por volta dos 8 aos 12 anos, ela não entende o caráter persuasivo da publicidade”, destacou Isabela Henriques, advocacy do projeto Criança e Consumo.

Isabela Henriques reconhece que é impossível levar à Justiça todos os casos de desrespeito aos direitos das crianças envolvendo publicidade infantil. Ainda assim, ela enfatiza a importância de que o Legislativo aprove uma lei sobre essa temática, já que a mesma simplesmente não está regulamentada no Brasil hoje.

O caderno legislativo apresenta os projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional que tratam sobre o tema. Noções de processo legislativo, contextualização do problema da publicidade na infância e a relação de entidades brasileiras e organismos internacionais que atuam pela regulação da publicidade e por uma infância livre do consumismo também compõem o conteúdo do caderno. Nas páginas finais, é possível ainda encontrar mitos e verdades sobre a regulação da publicidade infantil.

A produção desse caderno foi motivada por um desejo nosso de dar ainda mais transparência ao nosso trabalho de dez anos de atuação no Congresso Nacional e também difundir o nosso posicionamento sobre o tema da publicidade destinada à criança”, afirmou Renato Godoy, assessor de questões governamentais do Instituto Alana.

Coordenadora da Frente Parlamentar de Promoção e Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, a deputada federal Maria do Rosário (PT/RS) reiterou a responsabilidade que cada um e cada uma tem na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. “Nós sabemos que tudo que nós somos também depende da criança que nós vivenciamos. É preciso ter o direito de ser criança enquanto se é criança. E é preciso não ter sobre si a imposição das medidas apelativas da sociedade sobre as nossas vidas enquanto somos crianças. Ser criança é viver a infância”, ressaltou Rosário.

Para o deputado Luís Carlos Hauly (PSDB/SP), autor do Projeto de Lei 5921/2001, que proíbe a publicidade infantil e tramita há 15 anos no Congresso, “a televisão passou a ter um efeito devastador sobre a formação das nossas crianças, que são os adultos de hoje e serão os adultos de amanhã”.

O que os publicitários pensam e acham da formação educacional de um povo é um negócio, é um interesse comercial? O que os donos de televisão acham e pensam?”, questionou Hauly.

A deputada Benedita da Silva (PT/RJ) destacou a importância do trabalho conjunto de parlamentares de diversos partidos e de as entidades que atuam em defesa das crianças e dos adolescentes estarem sempre em contato com o parlamento. “Esse caderno legislativo nos traz a esperança de podermos nos comprometer cada dia mais em fazer avançar essa pluralidade partidária nesta Casa”, declarou a deputada.

Representante do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) na atividade, Lucimara Cavalcanti lembrou que o existe uma resolução do órgão, a de número 163, de 13/03/2014, que dispõe sobre a abusividade de direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente. Lucimara reiterou que o caderno legislativo deve ser usado em rodas de conversas com adolescentes, pelo seu modelo explicativo e de fácil entendimento.

Marcos Urupá, do conselho diretor do coletivo Intervozes, propôs reflexões sobre os impactos na vida das crianças submetidas à publicidade cotidianamente. “Hoje nós estamos vivendo em uma sociedade de consumo. As crianças passam seu tempo de distração em frente à televisão e agora também em frente aos tablets, porque as crianças já nascem conectadas nos tempos de hoje. É necessário ter um olhar muito atento sobre isso. É necessário acima de tudo olhar que adulto nós teremos daqui a 15, 20 anos, se não tivermos uma publicidade, uma propaganda mais responsáveis”, afirmou.

Urupá lembrou ainda que as televisões educativas e as públicas têm regulamento próprio sobre publicidade, bem como as rádios comunitárias. E finalizou com uma reflexão: “porque as concessões públicas [dadas a empresas privadas] não podem respeitar esses mesmos princípios? Porque deixar [a tarefa] para a autorregulação do mercado publicitário?”

Também estiveram presentes no evento outros representantes de entidades da sociedade civil, entre eles o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da ANDI – Comunicação e Direitos e da Fundação ABRINQ, além de outros parlamentares.

Por Júlia Lanz Monteiro – especial para o Observatório do Direito á Comunicação

A inconstitucionalidade da MP 744 e o desmantelamento da EBC

Congresso começa a debater medida provisória de Temer que desmonta empresa pública de comunicação e dá marcha à ré em princípios constitucionais

Por Pietro de Jesús Lora Alarcón e Tatiana Stroppa*

Nesta quinta-feira 24 começou formalmente o processo de debates na Comissão Mista encarregada de analisar a Medida Provisória 744/2016, que trata da reestruturação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Participaram da primeira audiência pública o presidente atual da empresa, Laerte Rímoli, e o ex-presidente, Ricardo Melo, demitido pelo presidente Michel Temer após a edição da MP.

Publicada em 2 de setembro, a medida provisória alterou substancialmente a Lei nº 11.652 de 2008, consolidando um verdadeiro esvaziamento do caráter público da empresa.

Fez isso ao:

a) extinguir o Conselho Curador da EBC, então composto por 22 membros, entre os quais 15 representantes da sociedade civil, eliminando assim o principal instrumento de constituição do caráter público e democrático da Empresa;

b) extinguir a garantia de mandato de quatro anos para o diretor-presidente, que agora passa a ser livremente nomeado e exonerado pelo presidente da República;

c) mudar a composição do Conselho de Administração da EBC, que passa a ser composto por seis indicados do governo e um dos empregados (antes, eram quatro do governo e um dos funcionários da Empresa).

A exposição de motivos da MP, que deveria trazer as razões que justificariam sua edição, traz apenas a seguinte assertiva, assinada pelo ministro Eliseu Padilha:

“A relevância e a urgência que justificam a edição da Medida Provisória proposta a Vossa Excelência derivam da urgente necessidade de se garantir maior eficiência à gestão da EBC”.

A frase não poderia ser mais insuficiente. Claramente não satisfaz as exigências constitucionais. Isso porque, pelo caráter da MP, utilizada em casos emergenciais, a análise dos pressupostos impõe que se verifique com clareza os limites que o Chefe do Executivo tem para editá-la. Relevância e urgência são requisitos fundamentais para a constitucionalidade da medida.

Diga-se com clareza: o fato de a EBC vir a ter ou ter de fato eventuais problemas de gestão ou de eficiência – como superficialmente mencionado na exposição de motivos e abordado por Laerte Rímoli na audiência desta quinta-feira – não justifica a aniquilação de instrumentos legalmente criados e que lhe permitiam sua independência perante o Governo.

Em outras palavras: a possível relevância e urgência para uma adequação da situação econômica da EBC jamais poderia ser instrumentalizada contra a própria Constituição Federal para justificar, na realidade, interferências do Governo na administração de uma emissora pública nacional, sobretudo na definição de sua linha editorial.

Como pode, então, haver aderência constitucional numa medida provisória que contraria os princípios que norteiam a comunicação pública brasileira e que contribuem para a formação de uma opinião pública livre?

Fim da autonomia

Ao contrário da relevância alegada, o que existe na MP 744 é uma restrição da participação dos cidadãos no debate público e uma violação à tentativa de democratização da comunicação no país, pois, ao invés de fortalecer o sistema público, ela o fragiliza, aproximando-o do sistema estatal. É uma verdadeira “marcha à ré” na busca do redesenho imposto pela Constituição.

Isso porque a MP fere o princípio da complementaridade trazido no Art. 223 da CF/88, que determina a existência dos sistemas privado, público e estatal na prestação de serviços públicos de radiodifusão.

O ato do Executivo simplesmente liquida os instrumentos trazidos na Lei 11.652/2008 que buscam assegurar a independência da EBC perante o poder estatal e, neste passo, torna vulnerável o sistema público de comunicação – que não tem condições de sobreviver sem que haja a independência e autonomia perante qualquer interferência política.

Veja que as referidas alterações maculam justamente a independência que é imprescindível para o sistema público de comunicação. A escolha feita pela Lei 11.652/2008 de atribuição ao Diretor-Presidente de um mandato fixo, não coincidente com o mandato de presidente da república, visava assegurar a independência da EBC perante o governo, garantindo, ao cabo de contas, a independência editorial necessária para a pluralidade qualitativa na informação.

No mesmo sentido, a ampliação da participação do governo na composição do Conselho de Administração da EBC fere a autonomia necessária em relação ao Governo Federal para a definição da produção, da programação e da distribuição de conteúdo, antes submetidas ao crivo do Conselho Curador.

A extinção do Conselho Curador viola também o pluralismo. A construção de um ambiente plural passa necessariamente pela democratização da comunicação, visto que o oligopólio irrestrito dos meios de comunicação de massa no Brasil não fornece condições reais para a formação de uma opinião pública livre e autônoma no país.

Por fim, a extinção do Conselho Curador viola também a participação democrática, justamente por ser o Conselho um espaço responsável por abrigar representantes de diversos setores da sociedade, do Congresso, do governo e de funcionários da EBC, com a missão de assegurar a diversidade e a pluralidade na programação da empresa, servindo também como instância para preservar a autonomia desta em relação ao governo e ao mercado.

Ao aproximar a EBC de uma simples TV estatal, a MP 744 traz um enorme prejuízo à própria sociedade brasileira, tratada, em regra, como mera consumidora da informação produzida pela mídia privada. Para serem efetivamente públicas, as emissoras precisam ter instrumentos garantidores de sua independência, e é justamente contra tais instrumentos que a MP 744/16  está direcionada.

Alternativas econômicas

Como frequentemente acontece, o governo federal pode aduzir problemas orçamentários para a gestão da Empresa que deveriam ser resolvidos de forma premente.  Sem embargo, outros elementos, neste caso, poderiam ser levados em conta.

Se a EBC passa efetivamente por problemas orçamentários, por que o governo não libera o valor disponível da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), paga pelas empresas de telecomunicações?

Ou ainda, se a forma de financiamento não é adequada, por que não há, então, a elaboração e a apresentação de um projeto de lei transparente e que permita a participação da sociedade para fortalecer a EBC?

Logicamente, a edição da MP 744 tem provocado reações das diversas instituições e grupos da sociedade civil que se posicionam em defesa dos postulados constitucionais para a democratização da comunicação.

A Associação Brasileira de Emissoras Públicas Educativas e Culturais (Abepec), o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e  organizações como a Artigo 19 e o Intervozes tem feito moções de repúdio.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, também emitiu nota técnica na qual afirma a inconstitucionalidade da MP.

E o Conselho de Comunicação Social, órgão de assessoramento do Congresso Nacional, publicou parecer recomendando modificações na MP 744 que garantam o pronto restabelecimento do Conselho Curador.

Até os relatores para a Liberdade de Expressão da ONU e a OEA divulgaram uma manifestação de preocupação sobre as interferências na Empresa Brasil de Comunicação. O caso será tratado em uma audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no início de dezembro, no Panamá.

Por isso é preciso acompanhar os rumos dos debates na Comissão Especial da MP 744. Novas audiências públicas estão agendadas para os dias 29 e 30 de novembro.

E perceber o quanto as mudanças impostas pelo governo à EBC afetarão a própria consolidação da democracia, já fragilizada pela ausência de democratização do acesso aos meios de comunicação.

* Pietro de Jesús Lora Alarcón é mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, professor de Direito da PUC/SP e da ITE de Bauru/SP; Tatiana Stroppa é mestre em Direito Constitucional, professora e pesquisadora da ITE de Bauru/SP.

Comunicação pública do Rio Grande do Sul sofre desmonte

Na avalanche de completo desrespeito às instituições democráticas, a comunicação pública tem sofrido ataques que vão além da esfera federal

Por Mônica Mourão*

No início desta semana, a comunicação pública brasileira sofreu mais um golpe com o anúncio da extinção da Fundação Piratini, que faz a gestão das duas emissoras públicas do Estado do Rio Grande do Sul – a TVE e a FM Cultura. A intenção foi apresentada na segunda-feira 21 pelo governador do Estado, Ivo Sartori (PMDB). Além da Piratini, outras oito fundações ligadas ao governo deixarão de existir. A justificativa seriam os altos custos com essa estrutura: 28 milhões de reais ao ano, segundo o governo.

Caso aprovada pela Assembleia Legislativa estadual, a medida resultará na demissão em massa de centenas de trabalhadores ligados à fundação, conforme já denunciou o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) – mais de 1,2 mil quando somados os servidores de todas as fundações que se pretende extinguir. Ainda de acordo com o FNDC, a TVE tem um público de mais de 6,5 milhões de pessoas e, com os investimentos que estavam previstos, deveria alcançar um total de 8 milhões de habitantes nos próximos anos.

Com décadas de atuação – a TVE foi inaugurada em 1974 e a FM Cultura em 1989 –, o futuro das emissoras ligadas à Fundação Piratini ainda é incerto. Após a repercussão negativa desta decisão, no entanto, o governo do Rio Grande do Sul reformulou o discurso, afirmando que as emissoras não serão extintas e sim terão suas estruturas “readequadas”, processo que será feito pela Secretaria de Comunicação daquele Estado.

O fato de ser uma Secretaria de Estado a se tornar responsável pela gestão da comunicação pública é elemento determinante para se prever que esta comunicação deixará de ser pública e se tornará governamental. Assim, é bem provável que o Rio Grande do Sul perca duas emissoras públicas e ganhe duas emissoras de governo, atentas exclusivamente à veiculação de conteúdos de interesse do Palácio Piratini.

A principal justificativa para o desmonte é o argumento técnico da “calamidade financeira”. É preciso questionar, afinal, por que a comunicação pública é sempre tida como o alvo fácil de “readequações” que, no fim das contas, esvaziam seu sentido público, transformando-as em correia de transmissão de ações de governos?

Este esvaziamento ficou evidente com a Medida Provisória 744/2016, produzida na esfera federal, que extinguiu o Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). O órgão, formado por diferentes atores indicados pela sociedade civil, visava garantir, embora nem sempre conseguisse, um dos pilares da comunicação pública, que é a gestão democrática com participação social.

Antes disso, o governo de Michel Temer (PMDB), ainda quando interino, já havia demonstrando seu total desprezo pela comunicação pública e pelas instituições democráticas, ao exonerar, em maio, o então diretor-presidente da EBC, Ricardo Pereira de Melo, cujo mandado deveria seguir até 2020 e só poderia ser interrompido por decisão do Conselho Curador. A ação, embora embargada naquele momento político, foi concretizada com a efetivação do governo golpista e com a MP 744/2016.

E mais, funcionários concursados perderam cargos de chefia e nomeados foram também exonerados. A desculpa que circulava nos bastidores era de que a EBC estava a serviço do Partido dos Trabalhadores (PT) e do governo Dilma. Uma gafe cometida recentemente pelo atual presidente no fim da entrevista que concedeu ao programa Roda Viva, ao agradecer pela “propaganda” da empresa, revela, afinal, de quem é a intenção de promover o aparelhamento da Empresa Brasil de Comunicação.

O ano de 2016 nos mostrou de forma muito contundente o quanto a mídia ainda tem poder para construir e destruir reputações e governos. A concentração dos meios de comunicação no País, somada às inúmeras violações ao direito à liberdade de expressão da população que são consequência desta concentração, enfatizam a necessidade de se mobilizar recursos e ações políticas para fortalecer a comunicação pública, implementando aquilo que prevê o artigo 223 da Constituição federal, que é a complementaridade do sistema de comunicação (público, estatal e privado).

Ora, as medidas em curso, tanto em âmbito federal quanto nas esferas estaduais apontam justamente na direção contrária, ao solaparem as poucas iniciativas concretas de comunicação pública desenvolvidas no País. Estes atos nos fazem retroceder décadas no debate sobre a importância deste tipo de comunicação, inclusive sob a perspectiva do carregamento do conteúdo independente produzido nas diversas regiões do Brasil.

Além da caça às bruxas feita na EBC, a ofensiva para minar o caráter público da empresa já se faz sentir na programação, que vem perdendo em pluralidade e diversidade. No caso do Rio Grande do Sul, vale perguntar, um órgão de propaganda governamental, será esse o futuro que se desenha para a TVE e a FM Cultura? Esperamos que não.

*Mônica Mourão é jornalista e integra a Coordenação Executiva do Coletivo Intervozes