Sem Conselho Curador, não há comunicação efetivamente pública

Conclusão norteia manifestações de participantes em audiência pública sobre a MP 744/2016. Segmentos da sociedade se mostram preocupados com a falta de entendimento do atual governo sobre as diferenças entre uma empresa pública e uma empresa estatal

Representantes de organizações da sociedade, especialistas e funcionários da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) participaram nesta terça-feira, dia 29, de uma audiência pública destinada a debater a Medida Provisória (MP) 744/2016, que reestrutura a empresa, diminui sua autonomia e descaracteriza seu caráter público, alterando dessa forma a Lei 11.652/2008, de criação da EBC.

A MP 744 estabelece o fim do Conselho Curador e a vinculação da EBC à Casa Civil, e não mais à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Também muda a configuração da diretoria-executiva, que passa a ser composta por um diretor-presidente, um diretor-geral e quatro diretores, todos nomeados pelo presidente da República, que poderá exonerá-los a qualquer momento sem nenhuma mediação. O que evidentemente diminui a autonomia da empresa e a deixa refém dos interesses do governo de turno. Antes da medida, o diretor-presidente da EBC tinha mandato de quatro anos e podia ser reconduzido ao cargo.

Gilberto Rios, coordenador-executivo da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), enfatizou na audiência que qualquer intenção de reestruturação da EBC não pode ignorar todo o debate prévio realizado para a construção de uma empresa pública de comunicação no Brasil. “Esse debate iniciou num Fórum de Comunicação Pública e continuou por muito tempo, até chegar a um projeto que desse conta dos anseios de um conjunto de organizações”, afirmou.

A representante dos funcionários da EBC, Akemi Nitahara, repudiou a atitude do atual diretor-presidente da empresa, Laerte Rímoli, que, na primeira audiência sobre o tema, realizada na quinta-feira, 24, acusou alguns funcionários e conselheiros de serem insubordinados e ligados a partidos políticos. “Somos concursados, não entramos [na empresa] por cota de partidos. Conhecemos muito bem a lei que criou a EBC e é ela que nós defendemos. Defendemos seu caráter público e a manutenção de sua autonomia sem ingerências no trabalho que é realizado”, reforçou.

Questionada pelo relator da MP 744, o senador Lasier Martins, sobre a importância de cada veículo da empresa, Nitahara destacou que não existe hierarquia de importância nos veículos da EBC. “Todos os veículos têm importância em sua área de atuação, enquanto veículos públicos, e desenvolvem um importante papel na democratização da informação”, respondeu ela.

Sem justificativa para edição da medida

Presidente do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional (CCS), o advogado Miguel Ângelo Cançado lembrou na audiência que as MPs só devem ser utilizadas em caso de relevância e urgência, como previsto no artigo 62 da Constituição Federal. “A CCS acredita que esse [a reestruturação da EBC] não seja um caso urgente quanto ao mérito. Não acreditamos que a extinção do Conselho Curador seja a solução, não se pode falar em eficiência sem o controle social. Essas medidas vão contra o artigo 223 da Constituição e promovem uma distorção da comunicação pública”, avaliou ele, ressalvando que deveria ser uma preocupação do Poder Executivo assegurar o princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de comunicação, conforme previsto na Constituição.

Renata Mielli, coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), ponderou que organismos internacionais defendem a existência de uma comunicação pública com referência para a construção de uma sociedade democrática. “Os sistemas estatal e privado não são suficientes para garantir pluralidade na comunicação. Essa MP [744/2016] descaracteriza o caráter público. A EBC não é de nenhum partido, de nenhuma organização. Ela é da sociedade”, argumentou.

Mielli lembrou que o Conselho Curador “é justamente o espaço de participação e debates público” da sociedade na EBC, e questionou a obstinação de setores que questionam a existência da empresa usando como argumento dados de verificação de audiência. “Não é esse o papel da comunicação pública. A sua função é atender a pluralidade e diversidade, e não corresponder a expectativas mercadológicas”.

Para Teresa Cruvinel, jornalista e ex-presidente da EBC, a alteração por medida provisória de uma lei [Lei 11.652/2008] criada e aprovada no Congresso Nacional é inconstitucional. Cruvinel reforça que a comunicação pública deve ser independente do mercado e do Estado e deve também contar com a participação da sociedade, o que é possível por meio, justamente, do trabalho do Conselho Curador. “Essa MP é ambígua, pois a empresa deixará de ser de fato pública e se tornará uma empresa governamental. Ou o governo assume que está se apropriando da EBC ou os senhores [parlamentares] rejeitem essa MP“, enfatizou Cruvinel, citando exemplos internacionais da ação de conselhos semelhantes cuja atuação deliberativa é tão mais expressiva quanto têm sua “voz respeitada nas empresas”.

MP diminui autonomia em relação ao governo

Afastada do Conselho Curador desde a edição da MP 744, a jornalista e ex-presidente do Conselho Curador da EBC Rita Freire relatou o trabalho executado e sua independência em relação a partidos políticos. “Nos preocupamos em dar à EBC um caráter plural e estamos lutando pelo direito de ter uma comunicação pública verdadeira. Não estamos defendendo cargos, o que queremos é garantir a autonomia da empresa e o seu compromisso com a sociedade, não com governos”.

Venício Lima, jornalista, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e ex-membro do Conselho Curador da EBC, também enfatizou que a MP 744 transforma a experiência de comunicação pública em comunicação estatal. Para ele, o que está em jogo é a disputa pela formação da opinião pública no Brasil.

O professor questionou o desrespeito aos artigos 220 e 223 da Constituição Federal. O primeiro proíbe monopólios formados por meios de comunicação; o segundo estabelece a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal. “Quando não regulamentamos esses princípios, o Estado brasileiro prossegue delegando à iniciativa privada a responsabilidade pela comunicação”, apontou. Ele lembrou que existe desde 2010 no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, ajuizada pelo jurista Fábio Konder Comparato, que requer à Corte que determine ao Congresso Nacional a regulamentação de matérias existentes em três artigos da Constituição Federal (220, 221 e 223), relativos à comunicação social.

Presente na audiência, o deputado Jean Wylys (Psol-RJ), coordenador da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular, respondendo a um questionamento do senador Lasier Martins, citou trabalhos realizados pelo Conselho Curador da EBC, entre eles a criação de faixa de transmissão para programas de diversidade religiosa. “A demonização da EBC mistura mentira com preconceitos políticos arraigados”, declarou Wylys.

Nesta quinta, 1º/12, às 9h30, será realizada mais uma audiência pública no âmbito da Comissão Mista que analisa a MP 744/2016, desta vez com o ministro Eliseu Padilha. As audiências estão sendo transmitidas ao vivo pela TV Senado. Todas as pessoas que se manifestaram na audiência desta terça acreditam que é possível melhorar o projeto de comunicação pública colocado em prática pela EBC, mas todas são unânimes também em afirmar que a MP 744 acaba com o caráter público da empresa, a transformando em uma empresa de assessoria ao atual governo.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

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