*Ana Claudia Mielke
Há cerca de um ano a imagem do pequeno Matias Melquíades, fotografado pelos pais feliz da vida ao lado de um boneco do Finn, personagem de Star Wars, ganhava as redes sociais. A foto não apenas viralizou nas redes brasileiras, como chegou a John Boyega, ator norte-americano que interpretou o herói no filme O despertar da Força.
Essa historinha consolida o que os negros já vêm há muito tempo dizendo: representatividade importa, sim! Não apenas na televisão e no cinema, como também na publicidade, na literatura e na própria produção dos brinquedos. Afinal, Matias, de apenas 4 anos, quis comprar o boneco porque “se parecia com ele”.
A questão da representatividade do negro na mídia brasileira é algo que vira e mexe recebe holofotes em pesquisas e debates. Não é para menos, a indústria cultural midiática ainda é pouco permeável à ideia de ter o negro em papel protagonista e segue reproduzindo estereótipos, colocando o negro em papéis que configuram, quase sempre, subalternidade.
Os velhos papéis se repetem. Do lado negativo, o escravo, a “mulata” lasciva, a empregada doméstica, o preto bobo ou ignorante que faz a gente rir e o bandido. Do lado positivo, o jogador de futebol, o sambista ou aquele personagem que interpreta a exceção: o moço de família humilde que lutou muito e “venceu na vida”. Figuras que não são exclusividade dos produtos de ficção, visto que são assim também apresentados em programas de auditório e em quadros do jornalismo.
Até três anos atrás, a TV Globo veiculava nas noites de sábado, em seu programa humorístico Zorra Total, a personagem Adelaide, uma negra, pobre e desdentada, retratada como alguém sem higiene, que dividia a casa com uma ratazana e pedia dinheiro nos vagões do metrô, embora carregasse consigo aparelhos celulares de última geração – uma definição de seu caráter. E por que não mencionar a polêmica charge do Jaguar publicada na edição 111 deste Le Monde Diplomatique Brasil? Polêmica que, aliás, rendeu debates e provocou a produção deste especial sobre negros e mídia, que ocupará as páginas do jornal ao longo de 2017.
A eleição de certos atributos dos negros como metonímia para definir e consolidar determinado olhar negativo sobre a negritude vem sendo há muito tempo uma das mais contundentes estratégias para fixar sentidos e inviabilizar a diferença racial. O indiano Homi Bhabha (2007) identificou essa estratégia ao estudar o discurso do colonialismo. Segundo ele, a diferença é reconhecida como parte da cultura, mas ao mesmo tempo é repudiada em nome da construção de uma identidade unificadora e idealizada. Dessa forma, mantém-se o controle sobre determinadas raças e culturas por meio do alijamento de suas próprias identidades.
No Brasil, o “espetáculo das raças”1 orientou a construção do mito da democracia racial, que por sua vez elaborou a ideia de miscigenação e convivência racial pacífica para forjar o sujeito social mestiço denominado “brasileiro”. Enquanto isso, violentamente produzia o apagamento sistemático e sistêmico da cultura e identidade negras, o que ocorreu pari passu a uma política de exclusão dos negros (do trabalho e dos centros urbanos) no Brasil pós-abolição.
O problema é que esses apagamentos e exclusões seguiram sendo reproduzidos – antes como política e violência, agora como discurso. E em uma sociedade midiatizada são as mídias de massa as principais responsáveis por isso. É como se algo estivesse sempre no mesmo lugar e, ao mesmo tempo, tivesse de ser exaustivamente repetido em uma relação ambivalente entre manutenção e repetição. E os estereótipos são, segundo Bhabha, exatamente isso, um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório.
A característica da ambivalência é que dá ao estereótipo a garantia de “repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes” (Bhabha, 2007, p.106) e faz muitos estereótipos continuarem sendo reproduzidos no cinema e na TV, e que estes sejam, por sua vez, temas provocadores de debates acalorados.
Ao mapear a evolução da presença negra na teledramaturgia e no cinema brasileiros, Joel Zito Araújo (2008) concluiu que a telenovela não dava visibilidade à verdadeira composição racial do país e reproduzia a ideologia da branquitude como padrão ideal de beleza. Segundo ele, compactuando “conservadoramente com o uso da mestiçagem como escudo para evitar o reconhecimento da importância da população negra na história e na vida cultural brasileira” (p.982).
A análise é precisa, basta lembrar que a primeira protagonista negra numa telenovela da TV Globo foi vivida pela atriz Taís Araújo em Da cor do pecado, no recentíssimo ano de 2004 – a mesma atriz havia interpretado Xica da Silva numa novela de época na extinta TV Manchete, nos idos de 1996, e voltou ao protagonismo a representar Helena na novela Viver a vida, em 2009. E a primeira protagonista negra de Malhação é de 2016.
A ausência de negros é, ao lado da reprodução de estereótipos, uma forma também de inviabilizar a diferença, apagá-la. Há o “trabalho do silêncio” (Orlandi, 1997), que se produz pela não presença de negros nas produções audiovisuais. Ausência essa que é, em alguma medida, deliberada, visto que seguimos vivendo no regime da normatividade branca, da branquitude2 como padrão. Então, o negro é ausentado, já que sua cor marca uma presença que produz estranhamentos dentro dessa normatividade branca.
O audiovisual é onde os silenciamentos são mais sentidos, visto que lidam com imagem. Para não ficar apenas nos exemplos das telenovelas, vale jogar luz sobre o que acontece no campo das séries de TV. No Estados Unidos, a presença de sitcons e seriados protagonizados por negros é uma realidade desde os anos 1970.3 No Brasil, por outro lado, as tentativas de produzir séries com protagonistas negros são muito recentes, datam da última década: na TV Globo, Antônia (2006), Suburbia (2012), Sexo e as negas (2014) e Mister Brau (2015).
Os exemplos mostram que existem avanços, impulsionados em sua maioria pelas ações históricas do movimento negro e pelo empoderamento dos jovens negros da periferia nos últimos quinze anos (graças ao hip hop ou a movimentos mais ligados à arte urbana e à estética). A adoção de cotas nas universidades, as organizações de cursinhos populares negros nas periferias e a produção de políticas de inclusão em âmbito federal corroboram neste cenário.
Mas estes avanços ainda são pequenos do ponto de vista da qualidade – é preciso garantir maior representatividade positiva do negro nos meios de comunicação – e também do ponto de vista da quantidade, visto que esta representatividade ainda está bem distante da proporção numérica da presença do negro na sociedade brasileira.
Saindo da esfera da ficção, é possível perceber que os silenciamentos operam também nos produtos jornalísticos. São raros os casos de especialistas negros entrevistados em matérias de economia e política. A lógica dos comentaristas segue sendo a da meritocracia: escreve sobre um tema ou responde sobre determinadas questões apenas aqueles que alçaram um nível de elevada qualidade “técnica” ou “intelectual” – nada mais conveniente para uma sociedade que sempre alijou seus negros do acesso a essa suposta qualificação.
Nas matérias de cotidiano, que pautam família, educação, transporte, saúde, moradia etc., quase nunca os negros são personagens das situações ordinárias. Contraditoriamente, estão sempre estampando os cadernos policiais e as imagens deletérias dos programas policialescos que promovem autoritarismo na TV, associando violência, pobreza e negritude.
Mantém-se, assim, tudo exatamente como está: naquela “repetição demoníaca” dos estereótipos descrita por Bhabha. E assim a repetição do estereótipo vai negando a articulação da ideia de raça como elemento cultural, histórico, identitário, permitindo que esta apareça tão somente em sua fixidez como racismo, conforme destaca o filósofo.
O frisson causado pela presença da jornalista Maria Júlia Coutinho no quadro fixo do Jornal Nacional é um bom exemplo da negação da diferença e da produção do racismo. Parte da sociedade não assume enxergar a diferença dela, a sua negritude. Mas bastou ela ocupar um lugar ao qual não era historicamente “destinada” para enxergarem a sua pretidão.
Na publicidade não é diferente. Conforme pesquisa de Carlos A. M. Martins (2010), em 1995 apenas 7% dos anúncios veiculados tinham a presença de modelos negros, número que subiu para 10% em 2000 e para 13% em 2005. Além disso, embora seja visível o aumento progressivo de negros escritores, ainda há limitações e barreiras inexplicáveis à entrada destes no mercado editorial tradicional ou, como afirmou certa vez Fernanda Felisberto, “a literatura negra é rotulada como fundo de catálogo”.4
Evitar a repetibilidade dos estereótipos e dos apagamentos da diferença produzidos na mídia é algo que requer política pública. Nesse sentido, a regulação dos meios, especialmente das mídias eletrônicas de massa (rádio e TV), que no país são objeto de concessão pública, é essencial para garantir a diversidade racial e a participação efetiva dos negros. Não se trata apenas de um debate sobre o consumo, mas do entendimento de que a não representatividade produz consequências devastadoras para a construção da identidade de um povo.
Na ausência de identificações positivas com negros na TV, nas revistas, nos livros, nos brinquedos, “a criança negra afasta-se de si própria, de sua raça, em sua total identificação com a positividade da brancura que é ao mesmo tempo cor e ausência de cor” (Bhabha, 2007, p.118). E são muitas as gerações que passaram por isso no Brasil (eu mesma tive dificuldade outro dia em me lembrar dos personagens negros que marcaram minha infância e adolescência).
A regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal seria um primeiro passo na promoção da diversidade, visto que trata, entre outras coisas, da necessidade de garantir a regionalização da produção. Esta, por sua vez, possibilitaria que identidades e culturas regionais (dentre elas a negra, a quilombola) fossem mais bem representadas. Além disso, parece ser necessário retomar o debate sobre as políticas de ações afirmativas nos meios comerciais de comunicação, como inicialmente se previa com a elaboração do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010) ou como se pretendia com o PL n. 4.370/1998.5
Por fim, se as mudanças são poucas diante da amplitude do problema, podemos dizer que elas seguem persistentes, à revelia daqueles que não aceitam a diferença e não querem promover a inclusão. Felicidade seria ver, daqui para frente, outras crianças podendo se identificar com personagens negros no cinema e na TV, tal como Matias.
1 Referência ao livro de Lilia Moritz Schwarcz que conta a história de como a intelectualidade branca brasileira (e estrangeira que vinha para cá) elaborou os processos ideológicos (científicos) de branqueamento da sociedade no início do século XX.
2 A branquitude “é um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo” (Frankenberg, 1995, p.43).
3 Dentre as chamadas black sitcoms nos EUA estão com That’s My Mama, Good Times, Sanford and Son, What’s Happening?, nos anos 70; The Cosby Show, A Different World e Frank’s Place, nos anos 80; The Fresh Prince of Bel-air (Um maluco no pedaço), nos anos 90; e recentemente, Everybody Hates Chris (Todo mundo odeia o Chris).
4 Mais sobre esse assunto pode ser encontrado nas pesquisas de Fernanda Felisberto ou no mapeamento da Fundação Palmares, que resultou na publicação Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014).
5 De autoria de Paulo Paim (PT-RS), o projeto previa o estabelecimento de cotas mínimas de partição de negros, sendo 25% atores e figurantes dos programas de televisão – extensiva aos elencos de peças de teatro – e de 40% nas peças publicitárias apresentadas nas TVs e nos cinemas. O projeto foi arquivado em 2006.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Joel Zito. O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.16, n.3, p. 970-985, set./dez. 2008.
BHABHA, Homi K. A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
FRANKENBERG, Ruth. The Social Construction of Whiteness: White Women, Race Matters [A construção social da branquitude: mulheres brancas, raça importa]. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995.
MARTINS, Carlos A. M. Racismo anunciado: o negro e a publicidade no Brasil, 2010.
ORLANDI, Eni. As formas dos silêncios: no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 1997.
Ana Claudia Mielke, coordenadora executiva do coletivo Intervozes, jornalista e mestre em ciências da comunicação pela USP
Publicado originalmente na revista Le Monde Diplomatique