NEGROS E MÍDIA: INVISIBILIDADES

*Ana Claudia Mielke

Há cerca de um ano a imagem do pequeno Matias Melquíades, fotografado pelos pais feliz da vida ao lado de um boneco do Finn, personagem de Star Wars, ganhava as redes sociais. A foto não apenas viralizou nas redes brasileiras, como chegou a John Boyega, ator norte-americano que interpretou o herói no filme O despertar da Força.
Essa historinha consolida o que os negros já vêm há muito tempo dizendo: representatividade importa, sim! Não apenas na televisão e no cinema, como também na publicidade, na literatura e na própria produção dos brinquedos. Afinal, Matias, de apenas 4 anos, quis comprar o boneco porque “se parecia com ele”.
A questão da representatividade do negro na mídia brasileira é algo que vira e mexe recebe holofotes em pesquisas e debates. Não é para menos, a indústria cultural midiática ainda é pouco permeável à ideia de ter o negro em papel protagonista e segue reproduzindo estereótipos, colocando o negro em papéis que configuram, quase sempre, subalternidade.
Os velhos papéis se repetem. Do lado negativo, o escravo, a “mulata” lasciva, a empregada doméstica, o preto bobo ou ignorante que faz a gente rir e o bandido. Do lado positivo, o jogador de futebol, o sambista ou aquele personagem que interpreta a exceção: o moço de família humilde que lutou muito e “venceu na vida”. Figuras que não são exclusividade dos produtos de ficção, visto que são assim também apresentados em programas de auditório e em quadros do jornalismo.
Até três anos atrás, a TV Globo veiculava nas noites de sábado, em seu programa humorístico Zorra Total, a personagem Adelaide, uma negra, pobre e desdentada, retratada como alguém sem higiene, que dividia a casa com uma ratazana e pedia dinheiro nos vagões do metrô, embora carregasse consigo aparelhos celulares de última geração – uma definição de seu caráter. E por que não mencionar a polêmica charge do Jaguar publicada na edição 111 deste Le Monde Diplomatique Brasil? Polêmica que, aliás, rendeu debates e provocou a produção deste especial sobre negros e mídia, que ocupará as páginas do jornal ao longo de 2017.
A eleição de certos atributos dos negros como metonímia para definir e consolidar determinado olhar negativo sobre a negritude vem sendo há muito tempo uma das mais contundentes estratégias para fixar sentidos e inviabilizar a diferença racial. O  indiano Homi Bhabha (2007) identificou essa estratégia ao estudar o discurso do colonialismo. Segundo ele, a diferença é reconhecida como parte da cultura, mas ao mesmo tempo é repudiada em nome da construção de uma identidade unificadora e idealizada. Dessa forma, mantém-se o controle sobre determinadas raças e culturas por meio do alijamento de suas próprias identidades.
No Brasil, o “espetáculo das raças”1 orientou a construção do mito da democracia racial, que por sua vez elaborou a ideia de miscigenação e convivência racial pacífica para forjar o sujeito social mestiço denominado “brasileiro”. Enquanto isso, violentamente produzia o apagamento sistemático e sistêmico da cultura e identidade negras, o que ocorreu pari passu a uma política de exclusão dos negros (do trabalho e dos centros urbanos) no Brasil pós-abolição.
O problema é que esses apagamentos e exclusões seguiram sendo reproduzidos – antes como política e violência, agora como discurso. E em uma sociedade midiatizada são as mídias de massa as principais responsáveis por isso. É como se algo estivesse sempre no mesmo lugar e, ao mesmo tempo, tivesse de ser exaustivamente repetido em uma relação ambivalente entre manutenção e repetição. E os estereótipos são, segundo Bhabha, exatamente isso, um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório.
A característica da ambivalência é que dá ao estereótipo a garantia de “repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes” (Bhabha, 2007, p.106) e faz muitos estereótipos continuarem sendo reproduzidos no cinema e na TV, e que estes sejam, por sua vez, temas provocadores de debates acalorados.
Ao mapear a evolução da presença negra na teledramaturgia e no cinema brasileiros, Joel Zito Araújo (2008) concluiu que a telenovela não dava visibilidade à verdadeira composição racial do país e reproduzia a ideologia da branquitude como padrão ideal de beleza. Segundo ele, compactuando “conservadoramente com o uso da mestiçagem como escudo para evitar o reconhecimento da importância da população negra na história e na vida cultural brasileira” (p.982).
A análise é precisa, basta lembrar que a primeira protagonista negra numa telenovela da TV Globo foi vivida pela atriz Taís Araújo em Da cor do pecado, no recentíssimo ano de 2004 – a mesma atriz havia interpretado Xica da Silva numa novela de época na extinta TV Manchete, nos idos de 1996, e voltou ao protagonismo a representar Helena na novela Viver a vida, em 2009. E a primeira protagonista negra de Malhação é de 2016.
A ausência de negros é, ao lado da reprodução de estereótipos, uma forma também de inviabilizar a diferença, apagá-la. Há o “trabalho do silêncio” (Orlandi, 1997), que se produz pela não presença de negros nas produções audiovisuais. Ausência essa que é, em alguma medida, deliberada, visto que seguimos vivendo no regime da normatividade branca, da branquitude2 como padrão. Então, o negro é ausentado, já que sua cor marca uma presença que produz estranhamentos dentro dessa normatividade branca.
O audiovisual é onde os silenciamentos são mais sentidos, visto que lidam com imagem. Para não ficar apenas nos exemplos das telenovelas, vale jogar luz sobre o que acontece no campo das séries de TV. No Estados Unidos, a presença de sitcons e seriados protagonizados por negros é uma realidade desde os anos 1970.3 No Brasil, por outro lado, as tentativas de produzir séries com protagonistas negros são muito recentes, datam da última década: na TV Globo, Antônia (2006), Suburbia (2012), Sexo e as negas (2014) e Mister Brau (2015).
Os exemplos mostram que existem avanços, impulsionados em sua maioria pelas ações históricas do movimento negro e pelo empoderamento dos jovens negros da periferia nos últimos quinze anos (graças ao hip hop ou a movimentos mais ligados à arte urbana e à estética). A adoção de cotas nas universidades, as organizações de cursinhos populares negros nas periferias e a produção de políticas de inclusão em âmbito federal corroboram neste cenário.
Mas estes avanços ainda são pequenos do ponto de vista da qualidade – é preciso garantir maior representatividade positiva do negro nos meios de comunicação – e também do ponto de vista da quantidade, visto que esta representatividade ainda está bem distante da proporção numérica da presença do negro na sociedade brasileira.
Saindo da esfera da ficção, é possível perceber que os silenciamentos operam também nos produtos jornalísticos. São raros os casos de especialistas negros entrevistados em matérias de economia e política. A lógica dos comentaristas segue sendo a da meritocracia: escreve sobre um tema ou responde sobre determinadas questões apenas aqueles que alçaram um nível de elevada qualidade “técnica” ou “intelectual” – nada mais conveniente para uma sociedade que sempre alijou seus negros do acesso a essa suposta qualificação.
Nas matérias de cotidiano, que pautam família, educação, transporte, saúde, moradia etc., quase nunca os negros são personagens das situações ordinárias. Contraditoriamente, estão sempre estampando os cadernos policiais e as imagens deletérias dos programas policialescos que promovem autoritarismo na TV, associando violência, pobreza e negritude.
Mantém-se, assim, tudo exatamente como está: naquela “repetição demoníaca” dos estereótipos descrita por Bhabha. E assim a repetição do estereótipo vai negando a articulação da ideia de raça como elemento cultural, histórico, identitário, permitindo que esta apareça tão somente em sua fixidez como racismo, conforme destaca o filósofo.
O frisson causado pela presença da jornalista Maria Júlia Coutinho no quadro fixo do Jornal Nacional é um bom exemplo da negação da diferença e da produção do racismo. Parte da sociedade não assume enxergar a diferença dela, a sua negritude. Mas bastou ela ocupar um lugar ao qual não era historicamente “destinada” para enxergarem a sua pretidão.
Na publicidade não é diferente. Conforme pesquisa de Carlos A. M. Martins (2010), em 1995 apenas 7% dos anúncios veiculados tinham a presença de modelos negros, número que subiu para 10% em 2000 e para 13% em 2005. Além disso, embora seja visível o aumento progressivo de negros escritores, ainda há limitações e barreiras inexplicáveis à entrada destes no mercado editorial tradicional ou, como afirmou certa vez Fernanda Felisberto, “a literatura negra é rotulada como fundo de catálogo”.4
Evitar a repetibilidade dos estereótipos e dos apagamentos da diferença produzidos na mídia é algo que requer política pública. Nesse sentido, a regulação dos meios, especialmente das mídias eletrônicas de massa (rádio e TV), que no país são objeto de concessão pública, é essencial para garantir a diversidade racial e a participação efetiva dos negros. Não se trata apenas de um debate sobre o consumo, mas do entendimento de que a não representatividade produz consequências devastadoras para a construção da identidade de um povo.
Na ausência de identificações positivas com negros na TV, nas revistas, nos livros, nos brinquedos, “a criança negra afasta-se de si própria, de sua raça, em sua total identificação com a positividade da brancura que é ao mesmo tempo cor e ausência de cor” (Bhabha, 2007, p.118). E são muitas as gerações que passaram por isso no Brasil (eu mesma tive dificuldade outro dia em me lembrar dos personagens negros que marcaram minha infância e adolescência).
A regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal seria um primeiro passo na promoção da diversidade, visto que trata, entre outras coisas, da necessidade de garantir a regionalização da produção. Esta, por sua vez, possibilitaria que identidades e culturas regionais (dentre elas a negra, a quilombola) fossem mais bem representadas. Além disso, parece ser necessário retomar o debate sobre as políticas de ações afirmativas nos meios comerciais de comunicação, como inicialmente se previa com a elaboração do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010) ou como se pretendia com o PL n. 4.370/1998.5
Por fim, se as mudanças são poucas diante da amplitude do problema, podemos dizer que elas seguem persistentes, à revelia daqueles que não aceitam a diferença e não querem promover a inclusão. Felicidade seria ver, daqui para frente, outras crianças podendo se identificar com personagens negros no cinema e na TV, tal como Matias.

 


1    Referência ao livro de Lilia Moritz Schwarcz que conta a história de como a  intelectualidade branca brasileira (e estrangeira que vinha para cá) elaborou os processos ideológicos (científicos) de branqueamento da sociedade no início do século XX.
2    A branquitude “é um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo” (Frankenberg, 1995, p.43).
3    Dentre as chamadas black sitcoms nos EUA estão com That’s My Mama, Good Times, Sanford and Son, What’s Happening?, nos anos 70; The Cosby Show, A Different World e Frank’s Place, nos anos 80; The Fresh Prince of Bel-air (Um maluco no pedaço), nos anos 90; e recentemente, Everybody Hates Chris (Todo mundo odeia o Chris).
4    Mais sobre esse assunto pode ser encontrado nas pesquisas de Fernanda Felisberto ou no mapeamento da Fundação Palmares, que resultou na publicação Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014).
5    De autoria de Paulo Paim (PT-RS), o projeto previa o estabelecimento de cotas mínimas de partição de negros, sendo 25% atores e figurantes dos programas de televisão – extensiva aos elencos de peças de teatro – e de 40% nas peças publicitárias apresentadas nas TVs e nos cinemas. O projeto foi arquivado em 2006.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Joel Zito. O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.16, n.3, p. 970-985, set./dez. 2008.
BHABHA, Homi K. A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
FRANKENBERG, Ruth. The Social Construction of Whiteness: White Women, Race Matters [A construção social da branquitude: mulheres brancas, raça importa]. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995.
MARTINS, Carlos A. M. Racismo anunciado: o negro e a publicidade no Brasil, 2010.
ORLANDI, Eni. As formas dos silêncios: no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 1997.

Ana Claudia Mielke, coordenadora executiva do coletivo Intervozes, jornalista e mestre em ciências da comunicação pela USP

Publicado originalmente na revista Le Monde Diplomatique

Fundação Piratini retoma trabalhos na TVE e FM Cultura com mudanças na programação

Após a decisão judicial que determinou que a Fundação Cultural Pircom os respectivos sindicatos seja concluída, conforme divulgou a Justiça do Trabalho na quinta-feira da semana passada, a direção da Fundação anunciou que TVE e FM Cultura retornariam à programação local.

Os funcionários das emissoras estavam afastados desde o dia 26 de dezembro, após a aprovação da extinção da Fundação Piratini pela Assembleia Legislativa. Durante esse período a grade estava sendo ocupada pela reprodução de programas de arquivo e retransmissão das redes TV Brasil e TV Cultura.

Logo no retorno da programação local da FM Cultura, na terça-feira, dia 03, ao meio-dia, a locutora do programa “Cultura na Mesa”, Lena Kurtz, leu uma nota explicando os motivos pelos quais a programação própria estava fora do ar e que os funcionários da Fundação voltaram ao trabalho em razão de liminar obtida na Justiça. “Os trabalhadores da comunicação pública do Rio Grande do Sul agradecem o apoio de ouvintes e telespectadores durante todo o processo de discussão e votação do projeto no Parlamento e contam com a continuidade da mobilização para preservação das emissoras”, diz a nota lida no ar.

Na quarta, 04, foi a vez da TVE retomar a sua produção. Porém, ao invés de 30 minutos, o jornal passou a ter só 15 minutos, como foi anunciado pela direção da Fundação que gere tanto a FM Cultura quanto a TVE.

O segundo jornal local da TVE, que roda à noite, também terá a mesma redução. O horário do Segunda Edição será das 19h às 19h15min. Os funcionários, assim como da FM Cultura, voltaram ao trabalho ontem. Mas, como a televisão demanda mais tempo para a produção de conteúdo, retornou um dia depois.

De acordo com a jornalista Marta Kroth, não haverá mais operações de jornalistas no turno da noite ou em plantões de fim de semana. Ela classifica o clima geral como otimista durante esta “volta de resistência” do jornalistas, garantindo que há confiança na justiça em defesa das instituições. “Nossa luta não é pela manutenção do emprego; ele é uma consequência da não extinção dos canais de comunicação”, afirmou em entrevista para o jornal SUL21.

Nesse momento, os principais prejudicados serão os programas apresentados por profissionais com contratos encerrados no dia 31 de dezembro de 2016, como o Radar, que não serão mais transmitidos ou passarão por um remanejo de profissionais. Outra grande mudança é a diminuição da duração dos telejornais, que passarão a ter apenas 15 minutos em cada uma de suas edições – garantindo apenas a cota de programação local exigida pelo Ministério das Comunicações.

A Fundação Piratini teve extinção aprovada pela Assembleia Legislativa gaúcha no último dia 21, a pedido do governador José Ivo Sartori, que ainda precisa sancionar a medida para ter validade. Cinco dias após a extinção, a Justiça do Trabalho determinou que a Fundação Piratini suspenda qualquer demissão antes de abrir negociações coletivas junto a trabalhadores da TVE e da FM Cultura. A decisão foi referendada pelo Tribunal Regional do Trabalho. A legislação aprovada na Assembleia sobre a extinção das fundações permite que o governo demita todos os servidores da Piratini que não tenham estabilidade. A ação promovida pelo Sindicatos dos Radialistas e dos Jornalistas do Estado do Rio Grande do Sul (Sindjors) garantiu uma esperança de dialogo para tentar garantir o futuro da comunicação pública. Caso a ordem não seja cumprida, a organização é penalizada com multa diária de R$ 10 mil por servidor dispensado.

Na terça, 03, o procurador-geral do Estado, Euzébio Ruschel, em entrevista à Rádio Gaúcha, afirmou que o Estado não pretende recorrer da decisão e que grupos de trabalho devem ser criados, a partir da sanção da lei, para tratar do tema das demissões dos servidores das fundações.

Proposta fere a Constituição Federal

A proposta de extinção da empresa pública fere a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 223, que diz: “Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”. A extinção da fundação cria um desequilíbrio aos sistemas de comunicação e deixa um vazio para as manifestações culturais no estado, que estavam fortemente representadas nos espaços oferecidos pela TVE e FM Cultura.

Os defensores da radiodifusão pública admitem que o papel que essas emissoras cumprem, em complementariedade aos sistemas privados e estatais, conforme estabelece a Constituição, ainda não são muito claros para a sociedade em geral. O jornalista Luciano Alfonso, funcionário da TVE há 28 anos, ressalta que a comunicação pública tem um ”papel voltado para a sociedade e que abraça causas que a TV privada não abraça, pois não é feita pra ganhar lucro”.

Governo fala em crise mais gasta muito com publicidade

Alexandre Leboutte, funcionário da TVE, contesta a suposta economia gerada. Ele apresenta dados do Portal da Transparência para mostrar que, até novembro, a Fundação Piratini havia gasto R$ 23,5 milhões, de um orçamento anual previsto de R$ 34,1 milhões. Leboutte afirma que, se o governo diminuísse o número de cargos de confiança (CCs) e o investimento em publicidade, já garantiria a manutenção dos funcionários de carreira das fundações. Citando editais de publicidade para 2016, o servidor chama atenção para o volume de recursos disponibilizados pelo Poder Executivo em propaganda, que chegam a R$ 80,6 milhões.

Destes recursos, R$ 3,5 milhões foram aplicados pelo governo em uma campanha publicitária somente para informar sobre a tal crise financeira do estado. Boa parte deste dinheiro foi para emissoras de rádio e TV privadas. Enquanto o governo repassava mais de R$ 80 milhões para publicidade a qualificação dos sinais de cobertura da TVE e da FM Cultura recebeu apenas R$ 156.760,92, enquanto a qualificação dos recursos humanos na administração contou com R$ 10.350,52.

Ainda segundo o portal Transparência, somadas as áreas de qualificação de assentamentos, dos sinais de cobertura da TVE e FM Cultura e de recursos humanos, elas receberam juntas R$ 539.911,00, menos do que o jornal Zero Hora que recebeu R$ 583.185,21 entre janeiro e novembro de 2016, enquanto o Correio do Povo ficou com R$ 222.655,28 no mesmo período.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Os presentes de Temer para os radiodifusores e operadoras de telecom

Governo força aprovação de PL que entrega R$100 bi em infraestrutura para teles, reduz sanções a canais de TV e defende políticos donos de emissoras

Por Bia Barbosa*

Há mais de seis meses, este blog vem denunciando uma série de medidas que a gestão Temer tem implementado no campo das comunicações, com impactos profundos para o acesso à informação e a liberdade de expressão dos brasileiros e brasileiras. Longe, obviamente, dos holofotes da imprensa tradicional, mudanças significativas tem sido feitas nas políticas públicas e normas que regulam tanto o setor de telecomunicações quanto o de radiodifusão. Trata-se da “agenda paralela do golpe”, que avança a passos largos, sem que sequer a população tome conhecimento dos direitos que está perdendo. Esta semana, às vésperas do final do ano, três novos ataques foram deflagrados.

Nesta segunda (19), a Mesa Diretora do Senado Federal que rejeitou o recurso que pedia votação em plenário do Projeto de Lei 79/2016, que transforma as concessões de telecomunicações em autorizações e transfere uma infraestrutura estratégica da União, avaliada em R$ 100 bilhões, para o patrimônio privado das operadoras. Em tempos de fazer descer goela abaixo da população a PEC do teto dos gastos públicos, presentear as operadoras nesta quantia é mais do que criminoso.

A medida, articulada com o Planalto – que já estava literalmente com a festa pronta para confraternizar com as teles esta semana –, foi implementada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB/AL) e os vice-presidentes Jorge Viana (PT/AC) e Romero Jucá (PMDB-RR). Ela resultará no fim da universalização dos serviços de telecomunicações, pode elevar preços de conexão e deixar regiões interioranas desconectadas.

A alegação oficial é a de que o recurso, assinado por dez senadores, foi protocolado fora do prazo. Mas as instruções sobre o horário haviam sido dadas, no mesmo dia, pela própria Secretaria Geral da Mesa. A Coalizão Direitos na Rede – integrada por dezenas de organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes –, já havia denunciado manobra regimental similar quando o projeto de lei tramitou na Câmara dos Deputados. No Senado, o PLC 79/2016 foi aprovado em sete dias corridos, sem qualquer debate com os usuários dos serviços de telecomunicações ou entidades de defesa do consumidor.

O Ministério Público Federal e também o Tribunal de Contas da União são contrário à iniciativa, que agora pode virar lei. Em nota pública divulgada nesta quarta (21), a Coalizão Direitos na Rede pede que o Supremo Tribunal Federal acate, agora, os argumentos apresentados por senadores no mandado de segurança impetrado junto ao STF, para que o Senado não envie o PLC 79/2016 à sanção presidencial sem que antes seja apreciado pelo Plenário.

Radiodifusores felizes

Na outra ponta dos serviços de comunicação no país, as emissoras de rádio e televisão também ganharam seu presente de Natal. Nesta terça-feira, foi publicada no Diário Oficial da União a portaria do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações que modifica o Regulamento de Sanções Administrativas previstas para os canais que descumprirem a legislação em vigor no Brasil.

A partir de agora, ficará bem mais difícil suspender ou cassar uma emissora de radiodifusão. Antes da portaria desta semana, somente emissoras de rádio e retransmissoras de TV tinham a possibilidade de ter a pena de cassação de sua licença convertida em multa. Agora, todos os canais de rádio e TV comerciais contarão com a boquinha. Pra facilitar a vida, a decisão também não depende mais do Ministro da pasta. O Secretário de Radiodifusão poderá dar a canetada amiga por conta própria.

Anteriormente, um canal de rádio ou uma retransmissora de TV perderia esse benefício da conversão da pena de cassação em multa se tivesse totalizado 20 pontos no rol de infrações praticadas. Agora, precisam alcançar 80. Ou seja, o limite foi multiplicado por quatro, de forma que um canal de rádio e TV precisa cometer muito mais infrações, de maneira recorrente, para perder o direito de explorar o serviço de radiodifusão.

Políticos donos da mídia mais felizes ainda

Mas, para uma pasta que ignora a própria Constituição Federal para agradar aliados radiodifusores, a alteração no Regulamento de Sanções Administrativas pode parecer pouco. Também na última semana, o governo Temer e a Advocacia Geral da União entraram com um agravo contra a decisão da ministra Rosa Weber, do STF, que se recusou a suspender as ações estaduais que tem resultado na cassação de outorgas de radiodifusão de empresas controladas por políticos. A ministra decidiu que o fato de o Supremo ainda não ter se debruçado sobre o tema não é um impedimento para que a Justiça siga atuando nos estados de origem de tais parlamentares, onde ações contra o coronelismo eletrônico tem sido movidas pelo Ministério Público Federal.

Em novembro, Temer foi ao STF pedindo, liminarmente, a suspensão de todas as ações civis públicas que tenham esse tema como objeto e, no mérito, a declaração de constitucionalidade da prática do controle de emissoras por políticos. O caso foi parar com Rosa Weber, que negou a liminar. Agora, no agravo, o governo pede que o plenário do STF também se pronuncie sobre a liminar e que a ação, no mérito, seja redistribuída ao ministro Gilmar Mendes – que já está cuidando de uma ação do PSOL que vai exatamente no sentido contrário da de Temer. A pedido do Presidente da República, o Ministro Gilberto Kassab já deu o parecer favorável aos políticos radiodifusores. Para o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, a prática não é inconstitucional.

Como visto, a retribuição pelo apoio recebido das emissoras de radiodifusão e de sua base de políticos radiodifusores no processo de impeachmente contra a Presidenta Dilma está sendo muito bem paga por Michel Temer.

Em tempo

A Assembleia do Rio Grande do Sul aprovou, por 30 votos a favor e 23 contrários o projeto do governador Ivo Sartori (PMDB) que extingue a TV Educativa e a FM Cultura, principais canais de comunicação pública do estado. Lá no sul, como em Brasília, a grande mídia comercial, em detrimento da população e de seu direito à comunicação, seguem sendo os grandes beneficiados dos pacotes de ajuste fiscal.

* Bia Barbosa é jornalista, mestre em políticas públicas (FGV), coordenadora do Intervozes e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). 

Governo do Rio Grande do Sul fere a Constituição e extingue a Fundação Cultural Piratini

A base do governador do Rio Grande do Sul, Ivo Sartori, na Assembleia Legislativa aprovou na madrugada de hoje, 21, o Projeto de Lei 246/2016, que propõe a extinção de seis fundações públicas, entre elas a Fundação Piratini (TVE/FM Cultura), após quase 12 horas de discussão. A aprovação ocorreu por 30 votos a favor e 23 contrários.

A Assembleia Legislativa foi cercada por policiais, que restringiram a entrada e impediram que os servidores acompanhassem de perto a votação de medidas que afetam diretamente suas vidas. O dia foi marcado pela tensão dentro e fora do prédio, localizado em frente à Praça da Matriz. Ali, houve confrontos entre a Brigada Militar e os trabalhadores. O Movimento dos Servidores da TVE e FM Cultura recebeu apoio de ouvintes, telespectadores, acadêmicos, jornalistas e da classe artística.

A proposta de extinção da empresa pública fere a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 223, que diz: “Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”. A extinção da fundação cria um desequilíbrio aos sistemas de comunicação e deixa um vazio para as manifestações culturais no estado, que estavam fortemente representadas nos espaços oferecidos pela TVE e FM Cultura.

Os defensores da radiodifusão pública admitem que o papel que essas emissoras cumprem, em complementariedade aos sistemas privados e estatais, conforme estabelece a Constituição, ainda não são muito claros para a sociedade em geral. O jornalista Luciano Alfonso, funcionário da TVE há 28 anos, ressalta que a comunicação pública tem um ”papel voltado para a sociedade e que abraça causas que a TV privada não abraça, pois não é feita pra ganhar lucro”.

Trabalhadores da Fundação Piratini mantiveram-se mobilizados em defesa da manutenção da comunicação pública no estado. Desde a semana passada, decidiram por fazer uma greve e acordaram com a direção da fundação a manutenção de uma escala mínima do setor de operações para manter o sinal das emissoras de televisão e rádio no ar.

Segundo informações de funcionários, um acordo entre a presidente da Fundação Piratini, Isara Marques, e os delegados sindicais indicou que os programas de jornalismo nas emissoras seriam suspensos e que na rádio se manteriam no ar apenas os programas que não dependem de funcionários concursados, pois são apresentados por funcionários terceirizados. Na TV, o acordo previa a entrada direto do sinal da TV Assembleia durante as sessões de votação do pacote do governo do estado.

Esse acordo vigorou té o final da tarde desta terça, dia 20, quando os cargos comissionados que estavam dentro da fundação pediram a todos os funcionários terceirizados que deixassem a fundação. Na mesma noite, os delegados sindicais foram atê a sede da fundação e souberam pelo pessoal da segurança que a ordem era não deixar ninguém entrar. Desde a nova orientação por parte da direção da fundação, formada pelos ocupantes de cargos comissionados, a TVE está retransmitindo a programação da TV Cultura e da TV Brasil, enquanto a FM Cultura está tocando listas musicais pré-programadas.

Falsa Economia

Eleito sem apresentar propostas durante a campanha e com a manutenção do slogan (apartidário) ”meu partido é o Rio Grande”, o governador Sartori está propondo um desmonte do estado em áreas como pesquisa, cultura, comunicação, tecnologia e meio ambiente. Em um pronunciamento em novembro, quando anunciou o pacote encaminhado agora à Assembleia, ele justificou que o estado estava em crise financeira e não tinha recursos para investir em saúde, educação e segurança. A solução encontrada pelo governo está na demissão de cerca de 1.200 funcionários de fundações e autarquias e no desmantelamento da estrutura dos órgãos. O pacote ainda prevê a privatização de companhias como as de energia elétrica, mineração e gás, entre outras medidas.

Alexandre Leboutte, funcionário da TVE, contesta a suposta economia gerada. Ele apresenta dados do Portal da Transparência para mostrar que, até novembro, a Fundação Piratini havia gasto R$ 23,5 milhões, de um orçamento anual previsto de R$ 34,1 milhões. Leboutte afirma que, se o governo diminuísse o número de cargos de confiança (CCs) e o investimento em publicidade, já garantiria a manutenção dos funcionários de carreira das fundações. Citando editais de publicidade para 2016, o servidor chama atenção para o volume de recursos disponibilizados pelo Poder Executivo em propaganda, que chegam a R$ 80,6 milhões.

Destes recursos, R$ 3,5 milhões foram aplicados pelo governo em uma campanha publicitária somente para informar sobre a tal crise financeira do estado. Boa parte deste dinheiro foi para emissoras de rádio e TV privadas. Estes dados fazem parte de um dossiê elaborado pelo movimento de preservação das fundações, e que foi usado como argumento numa tentativa de diálogo com os deputados que iriam votar o pacote. Infelizmente, não produziu os efeitos esperados.

Enquanto o governo repassava mais de R$ 80 milhões para publicidade, políticas públicas como a qualificação de assentamentos agrários recebiam apenas R$ 372.801,60 dos cofres públicos em 2016. Já a qualificação dos sinais de cobertura da TVE e da FM Cultura recebeu modestos R$ 156.760,92, enquanto a qualificação dos recursos humanos na administração contou com míseros R$ 10.350,52.

Ainda segundo o portal Transparência, somadas as áreas de qualificação de assentamentos, dos sinais de cobertura da TVE e FM Cultura e de recursos humanos, elas receberam juntas R$ 539.911,00, menos do que o jornal Zero Hora abocanhou dos cofres públicos. O jornal ZH recebeu R$ 583.185,21 entre janeiro e novembro de 2016, enquanto o Correio do Povo ficou com R$ 222.655,28 no mesmo período.

Apoio à comunicação pública

Desde a divulgação do projeto de extinção da Fundação Piratini, vários atores culturais e agentes da comunicação criticaram a proposta e se manifestaram em defesa da comunicação pública gaúcha. “A extinção da TVE e da FM Cultura deixará um vazio na cultura do Rio Grande do Sul”, disse a jornalista e professora universitária Christa Berger. Para ela, ao incluir a Fundação Piratini entre as fundações que não são prioridade para o governo, o governador Sartori explicita uma visão de mundo mercantilista e avessa à cultura. Para Christa, interromper uma programação já consolidada “silencia as vozes de várias pessoas que não têm espaço nas emissoras comerciais”.

A jornalista da TVE Angélica Coronel, agraciada com o segundo lugar e a menção honrosa na categoria Telejornalismo Reportagem Geral na 58ª edição do Prêmio ARI/Banrisul de Jornalismo, no último dia 19, criticou a atuação de parte da imprensa gaúcha que não exerceu sua função social ao ignorar os argumentos dos funcionários da empresa. “Enquanto estamos aqui, o futuro da fundação está sendo decidido do outro lado da praça. Nós temos que lembrar as aulas que tivemos ainda no primeiro semestre de Jornalismo, ‘ouçam os dois lados da história’. Foram poucos os veículos que sequer ouviram o nosso lado”, reforçou ela. Angélica chamou a atitude do governo de vergonhosa, por não reconhecer a importância da comunicação pública. “A comunicação pública tem que coexistir com a privada e a estatal. Isso é a Constituição que diz. Não nos dê preço, nos dê valor”, afirmou.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Rádio e Televisão do Rio Grande do Sul protocolaram uma representação no Ministério Público do Trabalho (MPT) na segunda-feira, 19, contra as demissões dos servidores da Fundação Piratini. O documento ressalta que os funcionários foram admitidos em concurso e as contratações estão submetidas aos princípios da administração pública, embora a Secretaria de Comunicação do Estado (Secom-RS) confirme que, mesmo concursados, os servidores foram contratados com regime de CLT e, caso a extinção da entidade seja aprovada, mais de 200 pessoas deixarão seus cargos.

O texto pontua que as demissões foram decididas e anunciadas de forma unilateral, sem negociação coletiva. “Não há como se admitir tal conduta. Há, claramente, um procedimento soberbo, violador da cidadania, da dignidade humana, da proteção ao emprego e do papel social da propriedade. Em verdade, a postura viola gravemente os princípios e direitos fundamentais inscritos na Constituição da República”, destaca a representação.

O Sindicato defende, ainda, que, ao não representar medida administrativa que tenha potencial para resolver os problemas financeiros do Estado, a extinção da fundação fere o princípio da razoabilidade da Carta Magna. “A extinção de um órgão de comunicação social de natureza claramente pública imporá enormes restrições, rejeitadas por nossa ordem constitucional, à liberdade de manifestação e à integridade cultural da comunidade do Estado”. Por meio da representação, as entidades solicitam que sejam tomadas providências e seja feita audiência entre os sindicatos requerentes e o governo do Estado.

Outra entidade que se posicionou contrária à extinção da fundação foi Associação Riograndense de Imprensa – ARI que divulgou a nota: Em defesa da TVE e da FM Cultura

assinada por ex-presidentes da Fundação Piratini, que presidiram em situações conjunturais diversas. Somadas, suas gestões abarcam cerca de 18 anos, no período compreendido entre 1973 e 2014.

A jornalista e funcionária da TVE, Cristina Charão, reforça que o governo deu sinais truncados sobre qual será o destino dado a TVE e FM Cultura.  “O secretário de comunicação Clóvis Bevenhu dava declarações que as duas emissoras seguiriam sobre gestão da secretaria de comunicação funcionando, mas não explicava como, nem porquê. Já que a concessão pública é da fundação e não do governo do estado”, questiona.

Ela ainda ressalta a entrevista dada pelo vice-governador, que é apontado como o articulador das propostas de desmonte do estado com os setores empresariais,  afirmando que “não é função do Estado manter TV e rádio”. Charão ainda relembra que o processo de digitalização do sinal das emissoras foi interrompido no primeiro dia do governo Sartori. “A gente não tem transmissão ainda em sinal digital porque as únicas coisas que faltavam era um transmissor de Porto Alegre funcionando plenamente e as retransmissoras do interior que custa muito pouco para o governo, mas eles não quiseram dar seguimento”.

Para ela o governo nunca teve nenhum plano para comunicação pública e nem mesmo para comunicação estatal, essa posição dificultou a construção de diálogo.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Brasil: na contramão da Internet livre

Entidades denunciam ameaças à rede no Brasil. Governo brasileiro reagiu, negou problemas e disse que há pleno diálogo dentro do País

Por Jonas Valente*

Mais de 40 entidades do mundo todo divulgaram, na última semana, um documento apontando grandes preocupações com retrocessos nas políticas de Internet no Brasil e declarando apoio ao enfrentamento que vem sendo feito pela sociedade civil brasileira, dentro de casa, contra tais medidas.

O “Manifesto de Guadalajara” foi lançado durante o Fórum de Governança da Internet (IGF), principal evento global sobre o tema, que ocorreu na cidade mexicana que dá nome ao texto, entre 5 e 9 de dezembro.

O encontro reuniu mais de dois mil representantes de governos, organizações da sociedade civil, pesquisadores e empresas da área de tecnologia da informação e da comunicação.

O documento destaca o fato de que o Brasil está caminhando da posição de marco internacional positivo nas iniciativas de regulação da rede para tornar-se um exemplo de medidas contrárias à promoção de uma Internet livre e acessível.

Na última década, o país assumiu a condição de referência global neste campo em função da atuação do Comitê Gestor da Internet (CGI), da aprovação do Marco Civil da Internet e por ter recebido em casa eventos internacionais como o NetMundial e o próprio IGF, em duas ocasiões.

No entanto, medidas adotadas recentemente pelo governo de Michel Temer e diversos projetos de lei que tramitam de maneira acelerada no Congresso Nacional jogam o país em outra direção.

Na área de acesso à web, a aprovação do projeto de lei 79 pelo Senado, na última semana, é um retrocesso grave. O texto modifica a Lei Geral de Telecomunicações e acaba com as obrigações de universalização dos serviços que poderiam ser aplicadas à Internet.

O projeto também entrega um patrimônio público no valor de mais de R$ 100 bilhões (em infraestrutura operacional e de rede) às operadoras de telecomunicação, sem contrapartidas concretas que viabilizem a conexão dos mais de 100 milhões de brasileiros que hoje estão excluídos digitalmente.

A oposição, em articulação com a Coalizão Direitos na Rede, que reúde entidades da sociedade civil brasileira que defendem os direitos dos usuários na internet, deve garantir, nesta sexta 16 um recurso para que o texto seja ao menos debatido pelo plenário do Senado.

A sanha do governo federal, entretanto, em se desobrigar de universalizar o acesso à internet no país é grande.

O governo Temer já anunciou que quer deixar este importante esforço apenas nas mãos do mercado, abandonando a perspectiva de planos de banda larga para garantir o acesso à rede, como tem ocorrido em boa parte dos países.

Mudanças no Marco Civil e ataques ao CGI

Outra preocupação ressaltada pelo Manifesto de Guadalajara é o conjunto de iniciativas em curso para alterar e minar o Marco Civil da Internet (Lei 12.695/2014).

Atualmente, há mais de 200 projetos de lei neste sentido tramitando no Congresso. Entre os retrocessos pretendidos está o fim ou a flexibilização do princípio da neutralidade de rede (que proíbe a discriminação no tráfego de dados), a possibilidade de acesso a dados pessoais sem autorização judicial, e a remoção de conteúdos publicados online mediante simples mecanismos de notificação.

As medidas atacam preceitos fundamentais reafirmados no Marco Civil da Internet, como privacidade e liberdade de expressão, que fizeram a lei brasileira se tornar referência internacional nestes temas, e várias delas já foram debatidas aqui no blog.

As entidades internacionais também alertaram para os riscos das recorrentes suspensões de aplicativos como o Whatsapp no Brasil.

O intuito de acessar mensagens desses aplicativos para fins de investigações policiais tem motivado diversas decisões judiciais desproporcionais, que resultam na interrupção do acesso de todos os usuários a esses serviços.

A prática gerou reações tanto no Parlamento – que deve votar em breve o PL 5130/2016, que proíbe o bloqueio de aplicativos – quanto no Supremo Tribunal Federal, que julgará em 2017 uma ação de inconstitucionalidade contra os bloqueios.

Até mesmo o Comitê Gestor da Internet no Brasil, exemplo internacional de órgão de governança multissetorial da internet, está sob ameaça. Criado há mais de 20 anos por meio de um decreto presidencial, o CGI tem sofrido ingerências do governo Temer nos últimos meses.

O processo de eleição da próxima gestão de conselheiros, por exemplo, teve a composição de sua comissão eleitoral original alterada para a inclusão de mais membros do Executivo.

E o governo já declarou que tem a intenção de reduzir o papel da sociedade civil (uma das partes representadas, ao lado das empresas, da academia e da comunidade técnica) no espaço.

A disposição de limitar vozes que representam os interesses dos usuários na gestão da internet no país é mais um viés autoritário da administração Temer, denunciado internacionalmente no IGF.

Reação do Itamaraty

Apresentado na sessão de encerramento do IGF por representantes da Coalizão Direitos na Rede e mencionado nos discursos finais tanto do representante da comunidade técnica quanto da sociedade civil, o Manifesto de Guadalajara provocou a reação do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que lá representava o governo federal.

Benedito Fonseca Filho pediu a palavra para questionar a manifestação das entidades. Disse “estranhar” a posição da sociedade civil brasileira em levar um assunto como este para um fórum internacional, considerando que o país vive uma “plena democracia” e que há espaço para diálogo com as entidades.

A reação do Itamaraty revela o desconforto da gestão Temer com mais uma denúncia internacional e a feição autoritária contra críticas da sociedade civil.

Os desafios do IGF

A 11a edição do Internet Governance Forum promoveu importantes debates sobre o futuro da governança da internet.

Não foram poucas as atividades que colocaram preocupações, por exemplo, com as violações aos direitos humanos na rede, o que envolve desde a proteção à privacidade dos cidadãos até a liberdade de expressão e os direitos de crianças e adolescentes no mundo virtual.

No entanto, enquanto nações afirmam reiteradamente que estão preocupadas em alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – que incluem a garantia do acesso à rede pela população mundial – ainda há poucas iniciativas para enfrentar efetivamente, em escala global, o desafio de conectar os 3,9 bilhões de cidadãos que ainda estão fora da rede e para garantir os direitos dos demais que já estão na web, especialmente em questões como privacidade e liberdade de expressão.

Para pautar estes desafios, entidades da sociedade civil debateram no IGF a realização de um evento específicos deste segmento. A iniciativa, chamada de “Fórum Social da Internet”, em referência ao Fórum Social Mundial, deve ocorrer na Índia no segundo semestre do ano que vem.

Diversas redes e entidades da sociedade civil estão envolvidas nesta construção, incluindo as brasileiras. Em 2017, o IGF volta a se reunir em dezembro, desta vez em Genebra, na Suíça.

* Jonas Valente é jornalista, mestre em Comunicação e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. Integra o Conselho Diretor do Intervozes e foi um dos representantes do coletivo em Guadalajara.