Massacre nos presídios e o reforço da mídia à cultura da violência

Violência e medo são valores-notícia do jornalismo brasileiro e a economia criminal absorve estes elementos para desenvolver sua indústria

Por Tamara Terso*

“Foi mídia no mundo todo, arrancamos várias cabeças”.

Esta frase, que circulou nas redes sociais nas últimas semanas, faz parte de um funk supostamente composto pela facção criminosa Família do Norte (FDN).

O grupo é acusado, juntamente com o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), de ser responsável pelos massacres nos presídios de Amazonas e Roraima (a agora Rio Grande do Norte).

Ele é chave para entender que o fenômeno da violência tem um circuito maior do que a carnificina presenciada nos primeiros dias de 2017, ponta do iceberg da crise vivida na política de segurança pública brasileira.

Desde que os conflitos nos presídios do Norte foram iniciados, a nacionalização da violência midiática compôs a paisagem de violação dos direitos humanos dos presidiários e familiares envolvidos ou não nos episódios de massacre.

As violações, que na maioria dos casos começam com prisões arbitrárias e provisórias, falta de acesso à Justiça, estrutura desumanizada nas detenções, invariavelmente também são encontradas nas coberturas realizadas em TVs e jornais.

Na cobertura dos acontecimentos recentes sites e jornais impressos expuseram corpos sem vida. Foram cabeças, pernas e braços por todos os lados “dando mídia” na primeira página, galerias de fotos e vídeos sem cortes.

A prática de exibir muito sangue e identificar testemunhas se tornou padrão na cobertura das chacinas pelo jornalismo de referência, como o do Estado de S.Paulo, e até mesmo da ala mais ou menos progressista como Folha de S.Paulo e El País Brasil.

Parece que na ânsia de noticiar em primeira mão os acontecimentos, os jornais esqueceram-se das normas que orientam as práticas jornalísticas (Código de Ética dos Jornalistas), o direito à privacidade e à imagem, garantidos pela Constituição, e mesmo alguns marcos internacionais sobre a preservação da dignidade humana.

A Carta Magna brasileira diz em seu art. 5º, inciso X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Ainda em seu art. 5º, inciso III, a Constituição assegura ao preso o respeito à integridade física e moral e certifica que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

O direito de informar à sociedade, constitucionalmente garantido aos veículos de imprensa, não pode, portanto, confrontar o direito à privacidade. Há que se promover o equilíbrio entre ambos.

Este equilíbrio, no entanto, tem estado longe dos veículos de mídia brasileiros. Há alguns anos temos denunciado, por exemplo, a veiculação indevida em programas de televisão de pessoas que estão sob a tutela do Estado e a incitação à violência.

Algo que ocorre principalmente nos programas policialescos, que entram nas delegacias com o aval das secretarias de segurança pública, expõem indevidamente vítimas e agressores e desrespeitam a presunção de inocência dos acusados.

Se levarmos em conta que 40% dos detidos hoje no sistema penitenciário brasileiro sequer foram julgados pelos crimes dos quais estão sendo acusados (Relatório Uso da Prisão Provisória nas Américas CIDH/OEA, 2014), implica dizer que parte significativa dos que estão sendo expostos nos veículos de mídia são suspeitos e não criminosos.

Esta tem sido uma prática institucionalizada pelas redações brasileiras, sejam de jornais impressos ou programas de TV.

Para além dos direitos individuais da pessoa humana, há algo nestas coberturas que deve ser levado em conta, e que se expressa pela frase que abre este texto.

Até que ponto noticiar intensamente a ação de facções criminosas, dando visibilidade aos atos de violência extrema, contribui para uma discussão aprofundada sobre o sistema carcerário brasileiro?

Será que a espetacularização da notícia não serve apenas para reforçar uma cultura de violência, dando ao crime organizado, inclusive, maior poder de barganha junto aos poderes institucionalizados?

Infelizmente, violência e medo se consolidaram como valores-notícia do jornalismo brasileiro e a economia criminal absorve estes elementos para desenvolver sua indústria, que cresce a passos largos e tem tentáculos no sistema político, econômico, judiciário e também nos meios de comunicação (ou não é comum políticos eleitos serem apresentadores de programas policialescos que violam os diretos humanos ao mesmo tempo em que são financiados por empresas administradoras de presídios, que por sua vez convivem harmoniosamente com o crime organizado?).

Está ligação perigosa é um prato cheio para o reforço da política de guerra às drogas e encarceramento em massa, rentável para poucos e à custa de vidas pobres, jovens e negras.

O discurso da violência é um fator determinante para que esta economia se mantenha em pleno desenvolvimento e reforce a afirmação genocida de que “bandido bom é bandido morto”.

Não é à toa que vários estados com grandes índices de violência, encarceramento e mortes – São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Distrito Federal – são os que têm os programas que mais violam direitos humanos, com recorde de denúncias na plataforma “Mídia sem Violação de Direitos”, organizada pelo Intervozes, em parceria com a ANDI Comunicação e Direitos e apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.

Daí, chegamos à conclusão que a aderência de 57% dos entrevistados à frase “bandido bom é bandido morto” (pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2016), não vem apenas da violência concreta vivida por homens e mulheres das grandes e pequenas cidades, mas do reforço cotidiano narrativo-simbólico de sangue, cabeças e corpos dando mídia nas TVs, PCs e rádios país afora.

Para estancar o sangue nos presídios, o governo de Michel Temer anunciou a construção de cinco novas prisões federais e um conjunto de outras medidas de cunho estritamente punitivista e bélico.

Parece que as ações, um tanto quanto (des)governadas, continuarão, contudo, apostando em tapa-buracos que não levam em consideração a macro-organização da violência, no qual a mídia tem um papel fundamental no reforço ou desconstrução.

*É jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Brasil x Colômbia: pelo fim do monopólio nas transmissões do futebol

Domínio da Globo na transmissão dos jogos da Seleção e dos clubes nacionais favorece times grandes e impede acesso de torcedores ao esporte

Por André Pasti*

Quem zapeou na televisão na noite desta quarta-feira (25) percebeu que o jogo amistoso entre Brasil e Colômbia foi transmitido por mais de uma dezena de canais da TV aberta e da TV fechada.

Para além da solidariedade com a tragédia da Chapecoense — e da excessiva exploração do tema pelos meios de comunicação —, a transmissão do jogo chamou a atenção de quem está acostumado com o monopólio da Rede Globo na veiculação dos jogos da seleção, do Campeonato Brasileiro e das disputas regionais. A novidade na televisão brasileira é uma excelente oportunidade de retomar uma pauta ofuscada no país: a necessidade de democratizar as transmissões de futebol.

Vale lembrar, entretanto, que a visibilidade ampliada da partida não foi resultado dessa preocupação, mas sim fruto da negociação conflituosa dos direitos de transmissão entre a Globo e a CBF.

Enquanto negociava com a Globo a exclusividade dos próximos amistosos, a CBF pediu uma grande bolada – fala-se em R$ 2 milhões – pela transmissão da partida contra a Colômbia, que não estava inclusa no contrato vigente. O Grupo Globo não aceitou pagar e a CBF então abriu o jogo a todas as emissoras — antecipando um futuro “leilão” que a confederação promete fazer para os próximos amistosos, como forma de pressionar a emissora a pagar mais.

Apesar das intenções nada nobres, a transmissão ampliada nos lembra que o televisionamento desse esporte, um patrimônio da cultura nacional, pode ser diferente e democrático, e mostra o quanto perdemos com o monopólio hoje em prática.

Quem perde com o monopólio das transmissões

A exclusividade nas transmissões do futebol no Brasil traz inúmeros danos aos torcedores, jogadores e ao esporte como um todo. Em primeiro lugar, o dinheiro pago pela Globo pelo monopólio na transmissão das partidas é, para a maioria dos clubes da elite do futebol nacional, a principal fonte de receita. E isso causa muitas distorções.

A concentração dos repasses financeiros aos clubes com maior torcida e audiência televisiva fortalece desproporcionalmente as agremiações maiores e aprofunda a crise dos clubes menores, do futebol regional e do interior.

Como no futebol de rua, a Rede Globo também atua como uma péssima “dona da bola”: decide o horário das partidas a partir de sua grade de programação e quais jogos, clubes e regiões do país terão ou não visibilidade.

Assim, boa parte do futebol nacional fica invisível pela decisão de uma única empresa. A “dona do bola” — nesse caso, da transmissão — decidiu, no ano passado, por exemplo, passar jogos do campeonato carioca em quatro estados da região nordeste. Os torcedores dos clubes locais foram impedidos de assistir ao campeonato de seus times.

Jogo da amizade
O amistoso é uma excelente oportunidade de retomar a pauta da democratização das transmissões (Foto: Reprodução)

O monopólio tem grande responsabilidade também na crise de esvaziamento dos estádios brasileiros. Além de prejudicar a competitividade dos clubes menores, a decisão de marcar jogos para às 22h em dias de semana inviabiliza o retorno pra casa de grande parte dos torcedores trabalhadores, além de ser um péssimo horário para os atletas jogarem.

No caso da seleção nacional, já há uma confusão entre Globo e CBF. Até recentemente, o site da Confederação aparecia como o de uma subsidiária da emissora e a relação entre elas é alvo de investigações. Vale lembrar, ainda, que a corrupção na venda de direitos de transmissão do futebol faz parte dos escândalos envolvendo cartolas da FIFA.

Enfrentar o monopólio é possível

A experiência de um país vizinho prova que é possível ter uma transmissão democrática dos jogos. Na Argentina, até 2009, o Grupo Clarín (a “Globo” local), sócio da empresa TyC, monopolizava as transmissões de futebol, restringindo o acesso à maioria das partidas aos assinantes de pacotes da televisão paga.

Em meio à discussão da necessidade de democratizar a mídia no país, o governo de Cristina Kirchner lançou o programa “Futebol para Todos”. A iniciativa, em acordo com a Associação do Futebol Argentino, AFA (“CBF argentina”), nacionalizou as transmissões futebolísticas, reconhecendo a importância do esporte para a cultura do país. A ideia era que o futebol televisionado chegasse à população gratuitamente pela televisão aberta.

Com o Futebol para Todos, diversos jogos passaram a ser transmitidos na televisão pública e em outros canais, aumentando a diversidade e a visibilidade dos clubes, democratizando o acesso aos jogos e às receitas. As partidas eram, ainda, transmitidas ao vivo com qualidade HD na internet, para quem quisesse assistir, e houve uma redução do abismo de receitas entre os clubes maiores e menores. Times como Arsenal Sarandí e Banfield passaram, por exemplo, a ser competitivos e a vencer campeonatos.

O governo argentino utilizou essa situação da transmissão futebolística como forma de sensibilizar a população sobre os danos da concentração da mídia e as vantagens da democratização da comunicação. No mesmo ano, a chamada Lei de Meios foi aprovada com ampla maioria no parlamento.

Infelizmente, neste momento de retrocessos no mundo e na América Latina, o programa Futebol para Todos também está ameaçado. O novo governo neoliberal de Maurício Macri anunciou que deseja reprivatizar as transmissões e acabar com o projeto. O processo já está em curso e o fim do programa pode acontecer ainda nesta semana — não sem a resistência de quem aprendeu que é possível assistir futebol ampla e gratuitamente.

No Brasil, diversos grupos têm travado o debate em torno da democratização do futebol e das transmissões. O coletivo Futebol, Mídia e Democracia lançou recentemente a campanha “Jogo 10 da noite, não!”, para denunciar os prejuízos do horário.

A democratização do esporte é tema, também, do recém lançado Movimento AGIR — Arquibancada Ampla, Geral e Irrestrita, formado por diversos coletivos, como Democracia Corinthiana, PorComunas, Movimento Punk Santista, Resistência Azul Popular, Dá Bola Pra Elas, Dibradoras, Ludopédio, Rede Paulista de Futebol de Rua, Inter Antifascista, Palmeiras Livre e Futebol, Mídia e Democracia.

Tamanha mobilização reforça a percepção de que é impossível discutir os problemas do futebol brasileiro sem considerar o papel da concentração dos meios de comunicação no Brasil. Trata-se de um tema que deve ser debatido seriamente pela sociedade e por aqueles que defendem o futebol, em toda sua diversidade regional, como patrimônio cultural brasileiro, acessível a todos e transmitido democraticamente em todo o território.

O fim do monopólio das transmissões é bom para os torcedores, para os jogadores e para o futebol brasileiro em geral. Se a Globo age como a “dona da bola”, que quer mandar no jogo, é hora de reagir.

* André Pasti é são-paulino e integrante do Intervozes.

valorizar quem constrói a rede no país internet como agenda nacional

Pesquisa revela que 55% dos brasileiros não percebem vida online fora da plataforma criada por Mark Zuckerberg

Por Jonas Valente*

A Fundação Mozilla publicou neste mês uma versão preliminar de um relatório anual sobre a “Saúde da Internet” (Internet Health, no termo empregado pela entidade). O conceito abarcaria a plena realização do potencial da rede, incluindo a “criatividade coletiva, a invenção e livre expressão”. Essa condição inclui cinco eixos: (1) o grau de abertura (capacidade de produzir e difundir sem barreiras ou impedimentos); (2) o quão a rede é acessível para todos; (3) quem controla e o quão centralizada é a rede; (4) o nível de segurança e privacidade; e (5) a apropriação e o empoderamento dos internautas para lidar com as tecnologias e usar os recursos disponibilizados pela web.

O estudo traz um dado alarmante: 55% dos brasileiros consideraram que o Facebook é a Internet. Ou seja, mais da metade dos entrevistados afirmou não perceber vida online fora da plataforma. O País perde apenas para Índia, Indonésia e Nigéria nesta visão, que tiveram índices de resposta maiores. Já nos Estados Unidos, apenas 5% dos entrevistados igualaram a web ao Facebook. O levantamento foi divulgado originalmente pelo site Quartz, especializado em economia digital.

Embora o fenômeno não seja exclusividade tupiniquim, o alerta trazido pelo dado é potencializado pelo crescente avanço do Facebook no Brasil. O país é o terceiro em número de usuários da plataforma (90 milhões), atrás apenas dos EUA (191 milhões) e da Índia (195 milhões).

Se considerada a proporção entre o total da população, o Brasil sobe para a segunda colocação com 45%, apenas atrás dos EUA (59%), os dois muito acima da Índia (14%). Considerando a diferença entre a conectividade entre os dois – maior lá (75%) do que aqui (59%) – e o fato de que a questão teve baixíssimo índice de endosso na terra de Trump, o Brasil assume posição de destaque neste assustador ranking: oito em cada 10 brasileiros conectados estão na plataforma.

A estatística, contudo, não é uma percepção desviante de internautas com baixa apropriação tecnológica, mas reflete um objetivo almejado pela plataforma: ser A Internet ou, na impossibilidade disso, a principal porta de entrada para ela. A primeira estratégia, e mais ousada para isso, é o projeto Free Basics, em que a empresa busca parceria com governos e operadoras para ofertar acesso à “Internet” a pessoas de baixa renda (não à toa o projeto era chamado originalmente de Internet.org). No entanto, não se trata de Internet, mas de um pacote que envolve o acesso ao Facebook e a determinados aplicativos e sites escolhidos por ele. Neste caso, a web seria literalmente o Facebook para bilhões de pessoas, se confirmadas as intenções de Zuckerberg. O projeto foi alvo de críticas por entidades de todo o mundo.

WebA Fundação Mozilla alerta para o perigo da concentração de propriedade na Internet

Império econômico
A segunda estratégia é no âmbito do mercado. Se por um lado a companhia não está, ainda, avançando verticalmente (seja na produção de conteúdo audiovisual próprio, como faz a Amazon, ou entrada no mercado de fabricantes de dispositivos, como fez a Microsoft e o Google), por outro, ela constituiu uma hegemonia no mundo das plataformas digitais. Atualmente são 1,79 bilhão de usuários únicos, sendo mais de 1 bilhão com uso frequente. Além disso, a empresa controla o segundo e o terceiro aplicativos mais usados do mundo, o Whatsapp e o Facebook Messenger, ambos na casa de 1 bilhão de usuários.

Ela ainda adquiriu outro app na lista dos maiores do mundo: o Instagram, com 600 milhões de usuários, sendo 100 milhões somente no segundo semestre de 2016. A exceção e o obstáculo ao império de Zuckerberg estão na China, onde o aplicativo WeChat é adotado por 90% dos internautas, segundo o relatório. Para além das mensagens instantâneas, ele é usado para outros serviços como transações bancárias, agendamento de taxis e compras.

O relatório da Fundação Mozilla alerta para o perigo da concentração de propriedade na Internet e apresenta uma defesa enfática de um ambiente mais descentralizado. “Descentralização é a chave para garantir que a Internet continue um recurso público que é saudável e disponível para todos nós e que não é controlado por poucos governos ou conglomerados. Se conseguimos fazer isso, é possível que a Internet permaneça a força para a liberdade e a criatividade humanas. Se não, o futuro deverá ser mais distópico”.

Filtros, algoritmos e “efeito bolha”
A terceira estratégia do Facebook está no controle da circulação de informação. Ela passa pela definição da dinâmica de funcionamento do feed de notícias (denominado na empresa de NewsFeed), o mecanismo que seleciona os posts disponibilizados a cada usuário na sua timeline. Ele se baseia em um algoritmo no qual o Facebook define quem e o que deve ter mais peso. O domínio deste fluxo não é trivial. Segundo o relatório 2016 de Notícias Digitais do Instituto Reuters, 72% dos brasileiros entrevistados afirmaram usar as redes sociais como fontes de informação.

Uma primeira questão a ser levantada diz respeito à organização das timelines por meio de algoritmos. Esses sistemas de processamento e decisão automatizada em si são alvo de diversos questionamentos (como nessa entrevista dos integrantes do Intervozes, Marina Pita e André Pasti). No caso específico do Facebook, o uso do NewsFeed também tem gerado fortes polêmicas. Uma delas são as críticas ao chamado “efeito bolha”, segundo o qual a pessoa visualiza apenas o conteúdo relacionado à sua ideologia, em um claro prejuízo ao debate democrático e à diversidade de opiniões.

Outra polêmica são os casos de censura de determinados conteúdos, como a exposição de seios ou outras partes do corpo de mulheres. O Ministério da Cultura chegou a processar a plataforma por este motivo. A empresa adotou em determinado momento uma “curadoria de conteúdos” com jornalistas como forma de mediação para a filtragem do NewsFeed e dos Trending Topics (assuntos mais comentados), mas a experiência também foi alvo de críticas. Em seguida, a companhia decidiu deixar o algoritmo funcionando sem esta supervisão, mas se viu novamente envolta em forte questionamento após ele favorecer notícias falsas.

O levantamento do relatório da Fundação Mozilla mostra como há uma parcela representativa de brasileiros totalmente refém dos filtros estabelecidos pelo Facebook. O controle das notícias dá à plataforma a condição de decidir quem vai ter visibilidade e quem não terá. Seja na escolha de um critério ou em um veto deliberadamente político, o Facebook tem o poder de “porteiro” (gatekeeper, termo usado para designar o comando das mídias tradicionais que definem o que é publicado) junto a mais de 90 milhões de brasileiros.

Notícias falsas e parcerias
Outra questão é a potencialização das notícias falsas como consequência do “efeito bolha”.  Levantamento do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação da USP revelou que na semana do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, três das cinco notícias mais compartilhadas eram falsas. Também nos EUA o Facebook foi questionado pela sua influência nas eleições presidenciais de 2016. No Brasil, esse efeito bolha potencializa a radicalização política e a ofensiva de criminalização da esquerda e dos direitos sociais em curso. As notícias falsas cumprem papel importante neste processo, sem um contraponto em outros tipos de mídia.

Mas a profusão dessas informações sem lastro na realidade também gerou questionamentos e levou o Facebook a abrir outra frente para tentar realizar o controle do fluxo de informações. A direção da empresa anunciou no fim de 2016 a criação de um mecanismo de classificação de notícias como falsas ou verdadeiras. Então, além do controle da circulação, a plataforma terá o poder de atestar o que é verdade e o que não é, podendo elevar a hegemonia da mesma de forma preocupante.

Além disso, lançou neste ano o “Projeto Jornalismo”, em que vai firmar parcerias com organizações de mídia. A medida é uma jogada para tentar se posicionar próximo às organizações que dispõem de alguma imagem de credibilidade. Mas é também o aprofundamento de outra tática de ambiente de circulação de notícias: o Instant Articles.

Pelo projeto, empresas de mídia podem fechar parcerias para que suas matérias apareçam diretamente na plataforma, sem ter que direcionar o leitor para o site do veículo. Segundo o Facebook, o recurso acelera em 10 vezes a velocidade de carregamento de um texto, aumenta em 20% a leitura e diminui em 70% a chance de abandono antes do fim. Em 2016, o serviço passou a ser usado por veículos brasileiros como Estadão, Exame e outros. Ou seja, o usuário passará a consumir notícias sem sair da plataforma. Esta medida reforça a percepção registrada no levantamento da Fundação Mozilla e pode contribuir para que o quadro de concentração na Internet não só não se altere como se aprofunde.

“Efeito antolho”
Esse mundo confinado do Facebook consiste, em última instância, em um fenômeno apelidado aqui de “efeito antolho” (viseira colocada nos cavalos para que olhem somente para frente). Para além do controle e enviezamento interno da plataforma já abordados, esse efeito tem implicações ainda mais graves quando usuários ignoram todo o mundo de possibilidades presente na Internet com fontes de informação, serviços e aplicativos e resume sua experiência ao Facebook.

Isso diminui em muito o potencial da web para os mais diversos campos. Estudantes, acadêmicos ou todo tipo de interessado em uma temática podem estar deixando de usar a Rede para pesquisar um mundo de fontes (a “biblioteca online” Wikipedia, por exemplo, tem 16 bilhões de acessos mensais). Artistas e criadores podem estar deixando de produzir imagens, vídeos e áudios em distintos repositórios e dentro de inúmeros circuitos de troca. Cidadãos podem estar deixando de acompanhar as ações e os gastos de governos e políticos por meio de espaços como o Portal da Transparência, prática que deveria ser cotidiana em uma conjuntura em que se fala tanto de combate à corrupção.

Tal cenário sinaliza um retrocesso preocupante. Nos debates sobre inclusão digital, ganhou força a preocupação com o que ficou conhecido como “alfabetização digital”: não bastava garantir acesso, era necessário fazer com que os internautas se apropriassem das tecnologias e dos recursos para a plena participação no mundo online. A percepção evidenciada na pesquisa dá um passo atrás nesse movimento, levantando a questão de que não se trata apenas de aprender a lidar com os recursos tecnológicos, mas de conhecimento do que é a Internet e da criação de uma cultura de fruição deste meio que vá além da timeline do Facebook.

A afirmação pode parecer trivial para o leitor deste texto que dispõe desta consciência, mas se justifica pela força do dado indicado pelo levantamento e deve ser tratada como um dado alarmante. Além disso, ela deve ser percebida no contexto das estratégias listadas componentes de um perigoso movimento do Facebook para de fato fazer com que a percepção limitada se torne realidade de fato com a tentativa de “cercar” a Internet e fazer da navegação uma experiência limitada à plataforma. Em um momento em que se discutem os riscos reais à democracia no Brasil, e por que não dizer do mundo, colocar o debate sobre a relevância do Facebook e desses impactos é fundamental.

Outros dados do relatório:

– Há hoje 1,1 bilhão de sites na web;
– Há 1 bilhão de obras com licenças Creative Commons, que permitem a reprodução, alteração e reuso;
– 27% dos sites são feitos na plataforma wordpress, baseada em tecnologia de código aberto;
– Há um avanço de medidas de proteção de copyright que ameaça a inovação e é anacrônica em relação à vida digital atual;
– Em 2016, ocorreram 51 derrubadas da Internet em 18 países;
– 3,3 bilhões de pessoas possuem acesso à Internet, 50% da população;
– 58% da população mundial não tem dinheiro para pagar por um serviço de banda larga;
– A China é o país com o segundo maior número de internautas, mas somente 2% do conteúdo circulante na web é em mandarim;
– 52% dos sites são em inglês, embora somente 25% da população mundial compreenda o idioma;
– A estimativa é que somente 16% da população dos países mais pobres esteja conectada em 2020;
– O ranking existente sobre liberdade na rede ainda lista 65 países classificados nos quais a web não é livre ou é parcialmente livre;
– Os 10 países mais ricos embolsam 95% da renda obtida com aplicativos. Economias emergentes ficam apenas com 1% desse valor;
– 94% das buscas em smartphones são feitas no Google;
– Somente 50% dos estadunidenses se preocupam com a quantidade de dados sobre eles disponível na web;
– Somente um vazamento de dados, relatado pelo Yahoo, atingiu 1 bilhão de pessoas.

*Jonas Valente é jornalista, doutorando em Sociologia da Tecnologia na UnB e membro do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Comunicação apresenta agenda de lutas na Assembleia dos Povos em Resistência

No terceiro dia do Fórum Social das Resistências aconteceu a tradicional Assembleia dos Povos em Resistência, realizada no auditório Araújo Vianna em Porto Alegre, quinta-feira dia 19. A atividade apresentou o resultado de treze plenárias que aconteceram pela manhã e abrangeram os temas: de Comunicação e Cultura Urbana, Direito Humanos, Defesa dos Serviços e Servidores Públicos, Saúde e Defesa do SUS, Tribunal dos Povos e Matriz Africana, Mulheres em Resistência, Juventude, Democracia, Reforma no Sistema Político e Cidades Sustentáveis, Educação – Escola sem Mordaça e os velhos e novos sistemas de resistências econômicas. O objetivo da assembleia é apresentar as reflexões feitas nas plenárias, que foram orientadas por três perguntas: contra o que e contra quem nós resistimos; quais os valores que nossa luta/causa oferecem para um outro mundo possível e; qual a agenda que propomos para para 2017.

As pautas da comunicação foram apresentadas na assembleia por Bia Barbosa, secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e por Cristina Charão, jornalista da TVE – emissora pública vinculada a Fundação Cultural Piratini e que passa por um processo de desmonte promovido pelo governo do estado do Rio Grande do Sul.

Charão convocou as entidades representadas no evento a se somarem a luta em defesa da Empresa Brasil de Comunicação e das emissoras públicas nos estados. “Precisamos que a comunicação pública seja percebida pela sociedade como um direito e manter um compromisso com aprofundamento desse modelo de comunicação, que é um projeto em construção, e que começou a engatinhar nos últimos anos e vem sofrendo ataque nos últimos meses. Comunicação pública não é apenas um tema, é um fundamento”, reforçou.

Bia Barbosa, que tem acompanhado a pauta nacional, informou que uma agenda conservadora tem sido aprovada a “toque de caixa” no Congresso Nacional. “Essa agenda é o preço do golpe que está sendo pago pela população aos grandes meios de comunicação e de telecomunicações do país que ajudaram a consolidar o impeachment”, afirmou.
Barbosa destaca dois temas principais nessa linha: O projeto de lei que altera a lei geral das telecomunicações (LGT), que entrega cerca de 100 bilhões em infra-estrutura pública para as operadoras de telecom sem contrapartida das empresas. E a possível limitação do acesso à internet fixa, anunciada pelo ministro das comunicações, Gilberto Kassab, na semana passada. “Sabemos o impacto que essas duas medidas podem ter, no caso da limitação de dados ela amplia a exclusão digital, isso quando sabemos que metade da população ainda não tem acesso. A medida também limitar o acesso de quem usa a internet como ferramenta de mobilização e organização política no nosso país”, frisou.

Outra questão levantada por ela são as violações de direitos e principalmente de liberdade de expressão que vem acontecendo no Brasil nos últimos meses. Bia apresentou a Campanha “Calar Jamais!” e convidou as entidades a se somarem e fortalecer a campanha que visa denunciar as violações de direitos à liberdade de expressão no país.

Conheça a Campanha “Calar Jamais!”

A liberdade de expressão é um direito fundamental, base de toda sociedade democrática. Não à toa, em tempos de avanço do conservadorismo e de ruptura democrática em nosso país, as violações à liberdade de expressão têm se intensificado. Da repressão aos protestos de rua à censura privada ou judicial a conteúdo nas redes sociais, passando pela violência contra comunicadores, pelo desmonte da comunicação pública e pelo cerceamento de vozes dissonantes dentro das redações, nossa diversidade de ideias, opiniões e pensamentos tem sido sistematicamente calada.

Para chamar a atenção da sociedade para a seriedade de tais violações, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, em parceria com diversas organizações da sociedade civil, lança a campanha “Calar jamais!”. A plataforma recebe denúncias de violações que ocorrem em todo o país.

3º Encontro Nacional de Comunicação

O FNDC está organizando o 3º Encontro Nacional de Direito à Comunicação que deve acontecer entre os dias 5 a 7 de Maio em Brasília. “Será o momento de mobilização de exercício do direito à liberdade de expressão, quando iremos estruturar uma agenda de luta mais aprofundada em torno da comunicação”, destacou convidando a todos para o evento.

A plenária de comunicação ainda solicitou que o conselho internacional do Fórum Social Mundial entenda a comunicação como uma agenda estratégica dos movimentos e garanta infraestrutura para que esse espaços funcione. “Para que mídia livristas, comunicadores, ativistas e militantes da comunicação que venham participar do FSM tenham como fazer o seu trabalho e que o que é produzido saia daqui para o mundo. Nós falamos sobre isso há 15 anos que é importante construir uma rede internacional de comunicação contra-hegemônica e entendemos que o espaço do Fórum Social Mundial pode ser o embrião para o nascimento dessa rede”, desabafou Barbosa.

Os pontos levantados pela plenária de comunicação serão discutidos junto com os outros temas e será elaborado um relatório das causas e a agenda de lutas propostas pelo Fórum das Resistências, que será apresentado no dia 21, no encerramento do evento.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Franquia de dados na banda larga fixa afronta direitos dos usuários

Kassab declara que internet ilimitada termina no próximo semestre. Impactos para informação, educação, cultura e para democracia podem ser brutais

Por Marcos Urupá*

O ano de 2017 já não começa bem para os usuários da internet no Brasil. Além da ameaça de desmonte do marco regulatório das telecomunicações, por meio de um projeto de lei aprovado a toque de caixa no Senado, agora a polêmica da franquia de dados na banda larga fixa volta à tona.

Em entrevista publicada na quinta-feira(12, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, deixou claro que, a partir do segundo semestre deste ano, as operadoras poderão implementar modelos de pacotes com franquia, extinguindo assim os planos ilimitados na banda larga fixa.

O presidente da Agência Nacional de Telecomunicações, Juarez Quadros, desmentiu o ministro nesta sexta-feira 13. Disse que a Anatel não pretende retirar a medida cautelar do órgão, em vigor, que impede as alterações nos planos ilimitados – enquanto não toma uma decisão definitiva sobre o caso. Porém, na entrevista, Kassab deixa claro o governo atuará neste sentido.

Parece mesmo que o ministro e sua equipe não ouviram os milhões de usuários da internet que, no primeiro semestre de 2016, se manifestaram fortemente contra tal mudança depois de surpreendidos pelo anúncio de algumas operadoras de que, a partir de fevereiro de 2017, haveria regras de franquia de dados para a banda larga fixa.

Além dos internautas, diversas organizações de defesa do consumidor e entidades que lutam pela liberdade de expressão na internet – entre elas o Intervozes – promoveram uma petição online pedindo que tal prática comercial não fosse implementada.

A medida afeta de maneira substancial a forma como entendemos e usamos a internet hoje: desde práticas simples, como mandar um email com uma foto anexada, até realizar uma formação à distância ou acompanhar uma audiência pública transmitida ao vivo pelos sites do Senado ou da Câmara dos Deputados.

O número de envios e downloads de arquivos como vídeos, imagens, textos ilustrativos e áudios passaria, por exemplo, a ser controlado pelo usuário e sua família. Empreendedores autônomos que utilizam a internet como trabalho e pequenas escolas e projetos sociais que se conectam através de redes domésticas também seriam limitados.

Estabelecimentos comerciais ou públicos, como uma biblioteca municipal, deixariam de abrir suas redes wi-fi para a conexão de visitantes. Quem não tem acesso à rede hoje por limitações econômicas seria ainda mais excluído digitalmente.

Ou seja, não apenas os impactos na educação, na participação na vida política do País e no acesso à informação e à cultura, garantidos pela Constituição Federal, seriam desastrosos. A medida afetaria decisivamente nossa relação com a internet como a conhecemos hoje.

Em um contexto em que a rede se tornou espaço e mecanismo para o exercício de direitos, aprendizado e entretenimento, impor limites à franquia de dados na internet fixa traria consequências opostas às declarações de Kassab, para quem a medida “está de acordo com os interesses do usuários” e “tenta dar prioridade à melhoria dos serviços e ao que é melhor para o consumidor”. Engana-se o ministro e sua equipe. É justamente o contrário.

A quem interessa a franquia de dados

Impor uma franquia de dados na internet fixa é um modelo de negócio conhecido, que existe em vários países, e há tempos vem sendo reivindicado pelas operadoras no Brasil. Mas não é possível ignorar as diferentes realidades – aqui e lá fora – no momento de discutir tal proposta.

Para além do fato de a internet fixa custar muito caro no Brasil e ser um privilégio de apenas metade da nossa população, outras premissas devem ser levadas em conta.

Em primeiro lugar, mais do que uma relação comercial, o acesso à rede tem se consolidado como um serviço essencial para a sociedade, conforme estabelecido no Marco Civil da Internet. Em segundo lugar, a forma como usamos a rede está intimamente ligada com o seu crescimento.

Ou seja: o alto tráfego de informações, de serviços de e-gov, de cursos à distância – usado hoje como justificativa pelas operadoras para não mais oferecer serviços ilimitados – são consequências da maneira aberta e abrangente de usar a rede mundial de computadores. Liberdade, inclusive, é uma palavra intrinsecamente associada à internet.

O argumento das empresas e, ao que parece, também defendido pelo ministro Gilberto Kassab, é de que hoje a infraestrutura disponível é usada de forma desigual. “Alguns assistem a dezenas de filmes por mês (ou por dia), em streaming. Outros, só aos fins de semana. Por esse raciocínio, não faria sentido cobrar mensalidades iguais de todos os usuários”, disse Kassab.

Ora, mas a diferença entre os usuários (e o que eles pagam pelo acesso) já não está estabelecida na contratação de pacotes de velocidades diferentes? É essa forma desigual de uso da rede que permite às empresas, por exemplo, realizarem uma melhor gestão do tráfego de dados. Agora, pretendem mudar esta lógica.

Será a restrição no volume de dados que permitirá às operadoras alterar o preço dos planos comercializados – muito provavelmente ocasionando um aumento do valor ofertado, que já é alto. O resultado não será outro que não a ampliação da desigualdade digital que já existe no País, com aqueles que podem pagar mais tendo acesso a todas as potencialidades da rede e, os mais pobres, a seus recursos “básicos”, mesmo assim limitados.

Decisões como essa, com data já marcada (no caso, o segundo semestre), não podem ser tomadas sem um amplo debate com a população. Uma discussão, inclusive, que considere, tanto pela Anatel quanto pelo governo federal, a qualidade do acesso à internet hoje no Brasil. Qualquer decisão que atropele essa discussão e ignore a posição dos usuários – como parece fazer o ministro Kassab – será tão ilegítima quanto o governo que a anuncia.

 * Marcos Urupá é membro do Conselho Diretor do Intervozes. É pesquisador do LapCom e Doutorando em Políticas Públicas de Comunicação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.