Pesquisa revela que 55% dos brasileiros não percebem vida online fora da plataforma criada por Mark Zuckerberg
Por Jonas Valente*
A Fundação Mozilla publicou neste mês uma versão preliminar de um relatório anual sobre a “Saúde da Internet” (Internet Health, no termo empregado pela entidade). O conceito abarcaria a plena realização do potencial da rede, incluindo a “criatividade coletiva, a invenção e livre expressão”. Essa condição inclui cinco eixos: (1) o grau de abertura (capacidade de produzir e difundir sem barreiras ou impedimentos); (2) o quão a rede é acessível para todos; (3) quem controla e o quão centralizada é a rede; (4) o nível de segurança e privacidade; e (5) a apropriação e o empoderamento dos internautas para lidar com as tecnologias e usar os recursos disponibilizados pela web.
O estudo traz um dado alarmante: 55% dos brasileiros consideraram que o Facebook é a Internet. Ou seja, mais da metade dos entrevistados afirmou não perceber vida online fora da plataforma. O País perde apenas para Índia, Indonésia e Nigéria nesta visão, que tiveram índices de resposta maiores. Já nos Estados Unidos, apenas 5% dos entrevistados igualaram a web ao Facebook. O levantamento foi divulgado originalmente pelo site Quartz, especializado em economia digital.
Embora o fenômeno não seja exclusividade tupiniquim, o alerta trazido pelo dado é potencializado pelo crescente avanço do Facebook no Brasil. O país é o terceiro em número de usuários da plataforma (90 milhões), atrás apenas dos EUA (191 milhões) e da Índia (195 milhões).
Se considerada a proporção entre o total da população, o Brasil sobe para a segunda colocação com 45%, apenas atrás dos EUA (59%), os dois muito acima da Índia (14%). Considerando a diferença entre a conectividade entre os dois – maior lá (75%) do que aqui (59%) – e o fato de que a questão teve baixíssimo índice de endosso na terra de Trump, o Brasil assume posição de destaque neste assustador ranking: oito em cada 10 brasileiros conectados estão na plataforma.
A estatística, contudo, não é uma percepção desviante de internautas com baixa apropriação tecnológica, mas reflete um objetivo almejado pela plataforma: ser A Internet ou, na impossibilidade disso, a principal porta de entrada para ela. A primeira estratégia, e mais ousada para isso, é o projeto Free Basics, em que a empresa busca parceria com governos e operadoras para ofertar acesso à “Internet” a pessoas de baixa renda (não à toa o projeto era chamado originalmente de Internet.org). No entanto, não se trata de Internet, mas de um pacote que envolve o acesso ao Facebook e a determinados aplicativos e sites escolhidos por ele. Neste caso, a web seria literalmente o Facebook para bilhões de pessoas, se confirmadas as intenções de Zuckerberg. O projeto foi alvo de críticas por entidades de todo o mundo.
A Fundação Mozilla alerta para o perigo da concentração de propriedade na Internet
Império econômico
A segunda estratégia é no âmbito do mercado. Se por um lado a companhia não está, ainda, avançando verticalmente (seja na produção de conteúdo audiovisual próprio, como faz a Amazon, ou entrada no mercado de fabricantes de dispositivos, como fez a Microsoft e o Google), por outro, ela constituiu uma hegemonia no mundo das plataformas digitais. Atualmente são 1,79 bilhão de usuários únicos, sendo mais de 1 bilhão com uso frequente. Além disso, a empresa controla o segundo e o terceiro aplicativos mais usados do mundo, o Whatsapp e o Facebook Messenger, ambos na casa de 1 bilhão de usuários.
Ela ainda adquiriu outro app na lista dos maiores do mundo: o Instagram, com 600 milhões de usuários, sendo 100 milhões somente no segundo semestre de 2016. A exceção e o obstáculo ao império de Zuckerberg estão na China, onde o aplicativo WeChat é adotado por 90% dos internautas, segundo o relatório. Para além das mensagens instantâneas, ele é usado para outros serviços como transações bancárias, agendamento de taxis e compras.
O relatório da Fundação Mozilla alerta para o perigo da concentração de propriedade na Internet e apresenta uma defesa enfática de um ambiente mais descentralizado. “Descentralização é a chave para garantir que a Internet continue um recurso público que é saudável e disponível para todos nós e que não é controlado por poucos governos ou conglomerados. Se conseguimos fazer isso, é possível que a Internet permaneça a força para a liberdade e a criatividade humanas. Se não, o futuro deverá ser mais distópico”.
Filtros, algoritmos e “efeito bolha”
A terceira estratégia do Facebook está no controle da circulação de informação. Ela passa pela definição da dinâmica de funcionamento do feed de notícias (denominado na empresa de NewsFeed), o mecanismo que seleciona os posts disponibilizados a cada usuário na sua timeline. Ele se baseia em um algoritmo no qual o Facebook define quem e o que deve ter mais peso. O domínio deste fluxo não é trivial. Segundo o relatório 2016 de Notícias Digitais do Instituto Reuters, 72% dos brasileiros entrevistados afirmaram usar as redes sociais como fontes de informação.
Uma primeira questão a ser levantada diz respeito à organização das timelines por meio de algoritmos. Esses sistemas de processamento e decisão automatizada em si são alvo de diversos questionamentos (como nessa entrevista dos integrantes do Intervozes, Marina Pita e André Pasti). No caso específico do Facebook, o uso do NewsFeed também tem gerado fortes polêmicas. Uma delas são as críticas ao chamado “efeito bolha”, segundo o qual a pessoa visualiza apenas o conteúdo relacionado à sua ideologia, em um claro prejuízo ao debate democrático e à diversidade de opiniões.
Outra polêmica são os casos de censura de determinados conteúdos, como a exposição de seios ou outras partes do corpo de mulheres. O Ministério da Cultura chegou a processar a plataforma por este motivo. A empresa adotou em determinado momento uma “curadoria de conteúdos” com jornalistas como forma de mediação para a filtragem do NewsFeed e dos Trending Topics (assuntos mais comentados), mas a experiência também foi alvo de críticas. Em seguida, a companhia decidiu deixar o algoritmo funcionando sem esta supervisão, mas se viu novamente envolta em forte questionamento após ele favorecer notícias falsas.
O levantamento do relatório da Fundação Mozilla mostra como há uma parcela representativa de brasileiros totalmente refém dos filtros estabelecidos pelo Facebook. O controle das notícias dá à plataforma a condição de decidir quem vai ter visibilidade e quem não terá. Seja na escolha de um critério ou em um veto deliberadamente político, o Facebook tem o poder de “porteiro” (gatekeeper, termo usado para designar o comando das mídias tradicionais que definem o que é publicado) junto a mais de 90 milhões de brasileiros.
Notícias falsas e parcerias
Outra questão é a potencialização das notícias falsas como consequência do “efeito bolha”. Levantamento do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação da USP revelou que na semana do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, três das cinco notícias mais compartilhadas eram falsas. Também nos EUA o Facebook foi questionado pela sua influência nas eleições presidenciais de 2016. No Brasil, esse efeito bolha potencializa a radicalização política e a ofensiva de criminalização da esquerda e dos direitos sociais em curso. As notícias falsas cumprem papel importante neste processo, sem um contraponto em outros tipos de mídia.
Mas a profusão dessas informações sem lastro na realidade também gerou questionamentos e levou o Facebook a abrir outra frente para tentar realizar o controle do fluxo de informações. A direção da empresa anunciou no fim de 2016 a criação de um mecanismo de classificação de notícias como falsas ou verdadeiras. Então, além do controle da circulação, a plataforma terá o poder de atestar o que é verdade e o que não é, podendo elevar a hegemonia da mesma de forma preocupante.
Além disso, lançou neste ano o “Projeto Jornalismo”, em que vai firmar parcerias com organizações de mídia. A medida é uma jogada para tentar se posicionar próximo às organizações que dispõem de alguma imagem de credibilidade. Mas é também o aprofundamento de outra tática de ambiente de circulação de notícias: o Instant Articles.
Pelo projeto, empresas de mídia podem fechar parcerias para que suas matérias apareçam diretamente na plataforma, sem ter que direcionar o leitor para o site do veículo. Segundo o Facebook, o recurso acelera em 10 vezes a velocidade de carregamento de um texto, aumenta em 20% a leitura e diminui em 70% a chance de abandono antes do fim. Em 2016, o serviço passou a ser usado por veículos brasileiros como Estadão, Exame e outros. Ou seja, o usuário passará a consumir notícias sem sair da plataforma. Esta medida reforça a percepção registrada no levantamento da Fundação Mozilla e pode contribuir para que o quadro de concentração na Internet não só não se altere como se aprofunde.
“Efeito antolho”
Esse mundo confinado do Facebook consiste, em última instância, em um fenômeno apelidado aqui de “efeito antolho” (viseira colocada nos cavalos para que olhem somente para frente). Para além do controle e enviezamento interno da plataforma já abordados, esse efeito tem implicações ainda mais graves quando usuários ignoram todo o mundo de possibilidades presente na Internet com fontes de informação, serviços e aplicativos e resume sua experiência ao Facebook.
Isso diminui em muito o potencial da web para os mais diversos campos. Estudantes, acadêmicos ou todo tipo de interessado em uma temática podem estar deixando de usar a Rede para pesquisar um mundo de fontes (a “biblioteca online” Wikipedia, por exemplo, tem 16 bilhões de acessos mensais). Artistas e criadores podem estar deixando de produzir imagens, vídeos e áudios em distintos repositórios e dentro de inúmeros circuitos de troca. Cidadãos podem estar deixando de acompanhar as ações e os gastos de governos e políticos por meio de espaços como o Portal da Transparência, prática que deveria ser cotidiana em uma conjuntura em que se fala tanto de combate à corrupção.
Tal cenário sinaliza um retrocesso preocupante. Nos debates sobre inclusão digital, ganhou força a preocupação com o que ficou conhecido como “alfabetização digital”: não bastava garantir acesso, era necessário fazer com que os internautas se apropriassem das tecnologias e dos recursos para a plena participação no mundo online. A percepção evidenciada na pesquisa dá um passo atrás nesse movimento, levantando a questão de que não se trata apenas de aprender a lidar com os recursos tecnológicos, mas de conhecimento do que é a Internet e da criação de uma cultura de fruição deste meio que vá além da timeline do Facebook.
A afirmação pode parecer trivial para o leitor deste texto que dispõe desta consciência, mas se justifica pela força do dado indicado pelo levantamento e deve ser tratada como um dado alarmante. Além disso, ela deve ser percebida no contexto das estratégias listadas componentes de um perigoso movimento do Facebook para de fato fazer com que a percepção limitada se torne realidade de fato com a tentativa de “cercar” a Internet e fazer da navegação uma experiência limitada à plataforma. Em um momento em que se discutem os riscos reais à democracia no Brasil, e por que não dizer do mundo, colocar o debate sobre a relevância do Facebook e desses impactos é fundamental.
Outros dados do relatório:
– Há hoje 1,1 bilhão de sites na web;
– Há 1 bilhão de obras com licenças Creative Commons, que permitem a reprodução, alteração e reuso;
– 27% dos sites são feitos na plataforma wordpress, baseada em tecnologia de código aberto;
– Há um avanço de medidas de proteção de copyright que ameaça a inovação e é anacrônica em relação à vida digital atual;
– Em 2016, ocorreram 51 derrubadas da Internet em 18 países;
– 3,3 bilhões de pessoas possuem acesso à Internet, 50% da população;
– 58% da população mundial não tem dinheiro para pagar por um serviço de banda larga;
– A China é o país com o segundo maior número de internautas, mas somente 2% do conteúdo circulante na web é em mandarim;
– 52% dos sites são em inglês, embora somente 25% da população mundial compreenda o idioma;
– A estimativa é que somente 16% da população dos países mais pobres esteja conectada em 2020;
– O ranking existente sobre liberdade na rede ainda lista 65 países classificados nos quais a web não é livre ou é parcialmente livre;
– Os 10 países mais ricos embolsam 95% da renda obtida com aplicativos. Economias emergentes ficam apenas com 1% desse valor;
– 94% das buscas em smartphones são feitas no Google;
– Somente 50% dos estadunidenses se preocupam com a quantidade de dados sobre eles disponível na web;
– Somente um vazamento de dados, relatado pelo Yahoo, atingiu 1 bilhão de pessoas.
*Jonas Valente é jornalista, doutorando em Sociologia da Tecnologia na UnB e membro do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social