Governo do Rio Grande do Sul fere a Constituição e extingue a Fundação Cultural Piratini

A base do governador do Rio Grande do Sul, Ivo Sartori, na Assembleia Legislativa aprovou na madrugada de hoje, 21, o Projeto de Lei 246/2016, que propõe a extinção de seis fundações públicas, entre elas a Fundação Piratini (TVE/FM Cultura), após quase 12 horas de discussão. A aprovação ocorreu por 30 votos a favor e 23 contrários.

A Assembleia Legislativa foi cercada por policiais, que restringiram a entrada e impediram que os servidores acompanhassem de perto a votação de medidas que afetam diretamente suas vidas. O dia foi marcado pela tensão dentro e fora do prédio, localizado em frente à Praça da Matriz. Ali, houve confrontos entre a Brigada Militar e os trabalhadores. O Movimento dos Servidores da TVE e FM Cultura recebeu apoio de ouvintes, telespectadores, acadêmicos, jornalistas e da classe artística.

A proposta de extinção da empresa pública fere a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 223, que diz: “Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”. A extinção da fundação cria um desequilíbrio aos sistemas de comunicação e deixa um vazio para as manifestações culturais no estado, que estavam fortemente representadas nos espaços oferecidos pela TVE e FM Cultura.

Os defensores da radiodifusão pública admitem que o papel que essas emissoras cumprem, em complementariedade aos sistemas privados e estatais, conforme estabelece a Constituição, ainda não são muito claros para a sociedade em geral. O jornalista Luciano Alfonso, funcionário da TVE há 28 anos, ressalta que a comunicação pública tem um ”papel voltado para a sociedade e que abraça causas que a TV privada não abraça, pois não é feita pra ganhar lucro”.

Trabalhadores da Fundação Piratini mantiveram-se mobilizados em defesa da manutenção da comunicação pública no estado. Desde a semana passada, decidiram por fazer uma greve e acordaram com a direção da fundação a manutenção de uma escala mínima do setor de operações para manter o sinal das emissoras de televisão e rádio no ar.

Segundo informações de funcionários, um acordo entre a presidente da Fundação Piratini, Isara Marques, e os delegados sindicais indicou que os programas de jornalismo nas emissoras seriam suspensos e que na rádio se manteriam no ar apenas os programas que não dependem de funcionários concursados, pois são apresentados por funcionários terceirizados. Na TV, o acordo previa a entrada direto do sinal da TV Assembleia durante as sessões de votação do pacote do governo do estado.

Esse acordo vigorou té o final da tarde desta terça, dia 20, quando os cargos comissionados que estavam dentro da fundação pediram a todos os funcionários terceirizados que deixassem a fundação. Na mesma noite, os delegados sindicais foram atê a sede da fundação e souberam pelo pessoal da segurança que a ordem era não deixar ninguém entrar. Desde a nova orientação por parte da direção da fundação, formada pelos ocupantes de cargos comissionados, a TVE está retransmitindo a programação da TV Cultura e da TV Brasil, enquanto a FM Cultura está tocando listas musicais pré-programadas.

Falsa Economia

Eleito sem apresentar propostas durante a campanha e com a manutenção do slogan (apartidário) ”meu partido é o Rio Grande”, o governador Sartori está propondo um desmonte do estado em áreas como pesquisa, cultura, comunicação, tecnologia e meio ambiente. Em um pronunciamento em novembro, quando anunciou o pacote encaminhado agora à Assembleia, ele justificou que o estado estava em crise financeira e não tinha recursos para investir em saúde, educação e segurança. A solução encontrada pelo governo está na demissão de cerca de 1.200 funcionários de fundações e autarquias e no desmantelamento da estrutura dos órgãos. O pacote ainda prevê a privatização de companhias como as de energia elétrica, mineração e gás, entre outras medidas.

Alexandre Leboutte, funcionário da TVE, contesta a suposta economia gerada. Ele apresenta dados do Portal da Transparência para mostrar que, até novembro, a Fundação Piratini havia gasto R$ 23,5 milhões, de um orçamento anual previsto de R$ 34,1 milhões. Leboutte afirma que, se o governo diminuísse o número de cargos de confiança (CCs) e o investimento em publicidade, já garantiria a manutenção dos funcionários de carreira das fundações. Citando editais de publicidade para 2016, o servidor chama atenção para o volume de recursos disponibilizados pelo Poder Executivo em propaganda, que chegam a R$ 80,6 milhões.

Destes recursos, R$ 3,5 milhões foram aplicados pelo governo em uma campanha publicitária somente para informar sobre a tal crise financeira do estado. Boa parte deste dinheiro foi para emissoras de rádio e TV privadas. Estes dados fazem parte de um dossiê elaborado pelo movimento de preservação das fundações, e que foi usado como argumento numa tentativa de diálogo com os deputados que iriam votar o pacote. Infelizmente, não produziu os efeitos esperados.

Enquanto o governo repassava mais de R$ 80 milhões para publicidade, políticas públicas como a qualificação de assentamentos agrários recebiam apenas R$ 372.801,60 dos cofres públicos em 2016. Já a qualificação dos sinais de cobertura da TVE e da FM Cultura recebeu modestos R$ 156.760,92, enquanto a qualificação dos recursos humanos na administração contou com míseros R$ 10.350,52.

Ainda segundo o portal Transparência, somadas as áreas de qualificação de assentamentos, dos sinais de cobertura da TVE e FM Cultura e de recursos humanos, elas receberam juntas R$ 539.911,00, menos do que o jornal Zero Hora abocanhou dos cofres públicos. O jornal ZH recebeu R$ 583.185,21 entre janeiro e novembro de 2016, enquanto o Correio do Povo ficou com R$ 222.655,28 no mesmo período.

Apoio à comunicação pública

Desde a divulgação do projeto de extinção da Fundação Piratini, vários atores culturais e agentes da comunicação criticaram a proposta e se manifestaram em defesa da comunicação pública gaúcha. “A extinção da TVE e da FM Cultura deixará um vazio na cultura do Rio Grande do Sul”, disse a jornalista e professora universitária Christa Berger. Para ela, ao incluir a Fundação Piratini entre as fundações que não são prioridade para o governo, o governador Sartori explicita uma visão de mundo mercantilista e avessa à cultura. Para Christa, interromper uma programação já consolidada “silencia as vozes de várias pessoas que não têm espaço nas emissoras comerciais”.

A jornalista da TVE Angélica Coronel, agraciada com o segundo lugar e a menção honrosa na categoria Telejornalismo Reportagem Geral na 58ª edição do Prêmio ARI/Banrisul de Jornalismo, no último dia 19, criticou a atuação de parte da imprensa gaúcha que não exerceu sua função social ao ignorar os argumentos dos funcionários da empresa. “Enquanto estamos aqui, o futuro da fundação está sendo decidido do outro lado da praça. Nós temos que lembrar as aulas que tivemos ainda no primeiro semestre de Jornalismo, ‘ouçam os dois lados da história’. Foram poucos os veículos que sequer ouviram o nosso lado”, reforçou ela. Angélica chamou a atitude do governo de vergonhosa, por não reconhecer a importância da comunicação pública. “A comunicação pública tem que coexistir com a privada e a estatal. Isso é a Constituição que diz. Não nos dê preço, nos dê valor”, afirmou.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Rádio e Televisão do Rio Grande do Sul protocolaram uma representação no Ministério Público do Trabalho (MPT) na segunda-feira, 19, contra as demissões dos servidores da Fundação Piratini. O documento ressalta que os funcionários foram admitidos em concurso e as contratações estão submetidas aos princípios da administração pública, embora a Secretaria de Comunicação do Estado (Secom-RS) confirme que, mesmo concursados, os servidores foram contratados com regime de CLT e, caso a extinção da entidade seja aprovada, mais de 200 pessoas deixarão seus cargos.

O texto pontua que as demissões foram decididas e anunciadas de forma unilateral, sem negociação coletiva. “Não há como se admitir tal conduta. Há, claramente, um procedimento soberbo, violador da cidadania, da dignidade humana, da proteção ao emprego e do papel social da propriedade. Em verdade, a postura viola gravemente os princípios e direitos fundamentais inscritos na Constituição da República”, destaca a representação.

O Sindicato defende, ainda, que, ao não representar medida administrativa que tenha potencial para resolver os problemas financeiros do Estado, a extinção da fundação fere o princípio da razoabilidade da Carta Magna. “A extinção de um órgão de comunicação social de natureza claramente pública imporá enormes restrições, rejeitadas por nossa ordem constitucional, à liberdade de manifestação e à integridade cultural da comunidade do Estado”. Por meio da representação, as entidades solicitam que sejam tomadas providências e seja feita audiência entre os sindicatos requerentes e o governo do Estado.

Outra entidade que se posicionou contrária à extinção da fundação foi Associação Riograndense de Imprensa – ARI que divulgou a nota: Em defesa da TVE e da FM Cultura

assinada por ex-presidentes da Fundação Piratini, que presidiram em situações conjunturais diversas. Somadas, suas gestões abarcam cerca de 18 anos, no período compreendido entre 1973 e 2014.

A jornalista e funcionária da TVE, Cristina Charão, reforça que o governo deu sinais truncados sobre qual será o destino dado a TVE e FM Cultura.  “O secretário de comunicação Clóvis Bevenhu dava declarações que as duas emissoras seguiriam sobre gestão da secretaria de comunicação funcionando, mas não explicava como, nem porquê. Já que a concessão pública é da fundação e não do governo do estado”, questiona.

Ela ainda ressalta a entrevista dada pelo vice-governador, que é apontado como o articulador das propostas de desmonte do estado com os setores empresariais,  afirmando que “não é função do Estado manter TV e rádio”. Charão ainda relembra que o processo de digitalização do sinal das emissoras foi interrompido no primeiro dia do governo Sartori. “A gente não tem transmissão ainda em sinal digital porque as únicas coisas que faltavam era um transmissor de Porto Alegre funcionando plenamente e as retransmissoras do interior que custa muito pouco para o governo, mas eles não quiseram dar seguimento”.

Para ela o governo nunca teve nenhum plano para comunicação pública e nem mesmo para comunicação estatal, essa posição dificultou a construção de diálogo.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

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