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Apresentadores e donos de rádio e TV novamente se dão bem nas eleições

Beneficiados pela exposição e cobertura favorável na mídia, candidatos ganham vantagem na disputa eleitoral. Quem perde é o povo e o jogo democrático

Por Ramênia Vieira*

O impacto da mídia sobre a agenda contemporânea, pautando temas que merecem – ou não – destaque na sociedade e influenciando a opinião pública é pra lá de conhecido. Nas eleições municipais de 2016, não foi nada diferente.

Da cobertura favorável a alguns candidatos à invisibilização de outros, os meios de comunicação foram decisivos para o resultado em muitas cidades. Mas isso não é novidade. O que, sim, vem se confirmando nos últimos processos e ficou explícito em 2016 é que candidatos comunicadores ou empresários ligados à comunicação tem conseguido uma ampla vantagem entre seus concorrentes, e alcançado postos de poder político em função de sua presença na mídia.

A maior cidade do país exemplifica bem essa influência. Em São Paulo, o prefeito eleito no primeiro turno, João Dória Júnior (PSDB), ganhou muitos pontos do eleitorado por sua facilidade em se comunicar com a população. Formado em jornalismo e publicidade, o empresário ficou conhecido nos últimos anos por apresentar um talk show em um canal de TV.

Nos últimos meses, antes da campanha, era figura carimbada em propagandas institucionais e promocionais da TV por assinatura Sky. Seu adversário, Celso Russomano (PRB), saiu na frente na disputa graças à exposição que tem, há bastante tempo, como “repórter” de programas de entretenimento e sobre defesa do consumidor.

Em Salvador, o prefeito Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM), reeleito no primeiro turno com expressiva votação, é o herdeiro político e midiático de uma família de controla dezenas de veículos de comunicação, entre eles o Correio da Bahia, a Globo FM local, e a TV Bahia, afiliada da Rede Globo em Salvador e região.

Em Maceió, os dois candidatos que foram para o segundo turno na disputa pela prefeitura da capital de Alagoas fizeram uso dos meios de comunicação em benefício próprio. Enquanto Rui Palmeira (PSDB) é sobrinho de um dos donos da TV Pajuçara, afiliada da Record, o radialista Cicero Almeida (PMDB) foi operador de áudio, locutor e repórter policial, até chegar a apresentador de um programa policialesco.

Outro apresentador deste mesmo tipo de programa de viés sensacionalista, Amaro Neto (SD), também chegou ao segundo turno e disputa a Prefeitura de Vitória (ES).

Aliás, o “boom” de candidatos ligados aos policialescos chamou a atenção nas eleições deste ano. Mais do que os candidatos majores e coronéis da PM, que geralmente ganham destaque nessas programações, apresentadores e repórteres também chegaram a Prefeituras e Câmaras Municipais.

Jorge Kajuru (PRP), que iniciou sua carreira em programas esportivos e depois migrou para os noticiários baseados na narrativa policial, é outro exemplo. No pleito deste ano, ele conquistou a maior votação da história para a Câmara de Vereadores de Goiânia, com quase quatro vezes mais votos que a segunda colocada.

Interesses midiáticos

A forte presença de comunicadores de emissoras privadas entre políticos com mandato nos faz questionar a que interesses efetivos servem esses candidatos. A RBS, emissora afiliada à Rede Globo no Rio Grande do Sul, há muito tempo vem fornecendo de seu quadro de funcionários e colaboradores candidatos a vários cargos políticos.

São jornalistas, radialistas ou comentaristas de televisão que deixaram a carreira na mídia para se lançar a uma vaga, desde a Câmara de Vereadores até o Senado Federal. Dos três senadores que representam o Rio Grande do Sul hoje no Congresso Nacional, dois são ex-funcionários da RBS: Amélia Lemos (PP) e Lasier Martins (PDT).

A vinculação de apresentadores de rádio e TV com partidos políticos e o uso dos meios de comunicação de massa para fins eleitoreiros é mais uma lacuna da regulação do setor no Brasil. Além do controle direto de canais por deputados federais e senadores – prática proibida pela Constituição Federal de 1988 mas explicitamente em voga no País, contra a qual o Ministério Público Federal tem atuado –, a participação, no jogo político, daqueles que detêm o privilégio de entrar em nossas casas, é outra séria distorção da política brasileira.

A história mostra que, em uma disputa eleitoral, a visibilidade midiática é uma questão importante para o resultado das urnas. Assim, obviamente, aqueles que entram na briga pelo voto trazendo consigo uma trajetória de exposição na TV e rádio saem na frente. Os exemplos dessas eleições municipais comprovam que a falta de uma regulação democrática do setor beneficia aqueles que fazem uso desta exposição em benefício próprio. Daí a urgência de um processo de democratização das comunicações, que impeça o uso político de um espaço que é público.

Agenda secundarizada

Infelizmente, esta é uma pauta que segue fora das prioridades dos próprios partidos e candidatos prejudicados por adversários donos da mídia. Atualmente, poucas legendas – como o PSOL, PCdoB e PT – trazem a democratização das comunicações como eixo em seus programas partidários. E nem todos desses partidos abraçam a causa.

Vereador eleito em Recife pelo PSOL, Ivan Moraes, jornalista e militante dos direitos humanos, é um dos raros candidatos que defendeu o tema como um dos pilares de sua campanha.

No segundo turno no Rio de Janeiro, Marcelo Freixo também não fugiu do assunto. Seu programa de governo propõe, por exemplo, a capacitação de agentes de comunicação enquanto impulsionadores de processos de desenvolvimento local e o estabelecimento de mecanismos democráticos e transparentes de investimento em publicidade oficial na mídia, de forma a ampliar o financiamento de pequenas empresas de comunicação.

Freixo também assume o compromisso de, se eleito, implantar na cidade o Canal da Cidadania. Previsto no decreto que regulamentou o sistema de TV digital no Brasil, o Canal tem quatro faixas de programação, destinadas à prefeitura, ao governo estadual e a associações de comunicação comunitária. Cada canal deve possuir, obrigatoriamente, um conselho local e um ouvidor.

São poucos, entretanto, os políticos que atuam em defesa de mudanças no sistema midiático e que saíram vitoriosos dessas eleições. Candidatas como Luiza Erundina (PSOL-SP) e Luciana Santos (PCdoB-PE) não avançaram nas urnas em suas cidades. O que comprova que segue sendo muito mais vantajoso eleitoralmente usar a mídia a seu favor do que trabalhar para que a mídia seja plural, de todos e todas.

*Ramênia Vieira é jornalista, integrante do Intervozes e repórter do Observatório do Direito à Comunicação.

Mídia, política e religião: mistura que ameaça a democracia

Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emissoras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da democracia brasileira e do conservadorismo político

Texto: Mônica Mourão | Colaboraram: Bráulio Araújo, Elizângela Araújo, Iara Moura e Ramênia Vieira

FIGURA 4.2 PROGRAMAÇÃO.

“Abri uma igreja em Lusaka (capital da Zâmbia) e os pastores haviam sido expulsos de lá. Com a carta do presidente Lula, não só os pastores puderam voltar, como o presidente Rupiah Banda (2008-2011) deu a eles uma concessão de rádio e televisão para que pudessem pregar o evangelho”. A frase acima foi uma das descobertas da mídia durante a reta final do segundo turno das eleições no Rio de Janeiro, quando a população da cidade vai escolher entre Marcelo Freixo (Psol) e Marcelo Crivella (PRB). O trecho foi retirado de um vídeo disponível no Youtube em que Crivella conta que entrou para a política forçado pela Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) e comenta a temporada em que viveu na áfrica. O senador, bispo da Iurd e sobrinho do fundador dessa igreja, Edir Macedo, dono da rede Record, associa diretamente missão evangelizadora, política e mídia. O caso é emblemático de um cenário que está longe de se resumir à disputa eleitoral do Rio de Janeiro.

Políticos evangélicos donos da mídia

Em novembro do ano passado, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, autorizou procuradores de São Paulo a receberem uma representação, assinada por diversas entidades da sociedade civil, pedindo o cancelamento das outorgas de radiodifusão dadas a pessoas jurídicas que tenham entre seus sócios políticos em exercício do mandato. No total, 32 deputados federais e oito senadores são denunciados. Dos 32 deputados federais, nove fazem parte da bancada evangélica, o que corresponde a quase 30% do total. Desses nove, quase a metade faz parte também da bancada ruralista. Um deles, Beto Mansur (PRB-SP), é ficha suja, condenado por exploração de trabalho escravo. A bancada evangélica – ou bancada da bíblia – é conhecida por seu caráter conservador. Mas se engana quem generaliza esse posicionamento para todos os evangélicos.

A professora Magali Cunha, da Universidade Metodista de São Paulo, explica que o senso comum associa evangélicos a conservadorismo por serem os grupos com esse perfil os que têm mais visibilidade na mídia e na política. Segundo Magali, na radiodifusão, “não existem evangélicos progressistas ou de posição mais aberta em relação à teologia, à prática pastoral e à participação política. Esta é uma característica dos grupos mais conservadores e que os coloca em vantagem no tocante à visibilidade buscaram uma presença intensa nas mídias rádio e tevê, mais ainda no rádio. Os grupos mais abertos ou progressistas estão presentes em mídias alternativas e na internet, e não há uma denominação específica: são grupos os mais variados, vários deles articulados em experiências ecumênicas”, explica.

A imbricação política, mídia e religião fica bem evidente em alguns casos: o deputado Antônio Bulhões (PRB- -SP), além de concessionário de três emissoras de rádio, foi apresentador do programa “Fala que eu te escuto”, da Rede Record, e do “Retrato de Família”, na Record News, durante nove anos. Atualmente está em seu terceiro mandato como parlamentar. Ele é um Exemplo do quanto a visibilidade midiática aumenta as  chances de eleição, mas também da relação entre o crescimento de concessões para grupos evangélicos ou espaços “arrendados” para eles na televisão, crescimento da bancada da bíblia e avanço das agendas conservadoras no Congresso Nacional. “Este avanço começou a se configurar com o surgimento da bancada evangélica tal como a conhecemos em 1986, com a eleição do Congresso Constituinte. Naquela ocasião, houve um farto oferecimento de concessões ao chamado ‘centrão’, onde se localizou a maior parte da bancada. Foi dali que surgiram alguns dos empresários de mídia evangélica e a força de igrejas como a Iurd.

Para estes grupos, estar nas mídias é parte de uma estratégia de ocupação de espaços na esfera pública”, conta a professora Magali Cunha. Atualmente, segundo levantamento de grupo de pesquisa coordenado pelo professor Jorge Miklos, da Universidade Paulista, a bancada evangélica é formada por 199 deputados federais e quatro senadores. O cruzamento dos dados da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e de concessionários de radiodifusão é uma tarefa difícil pela falta de transparência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A Agência não disponibiliza um documento único com todas as rádios e tevês e os sócios e diretores.

Existem dois sistemas separados: Sistema de Controle de Radiodifusão (SCR) e Sistema de Acompanhamento de Controle Acionário (Siacco). O SRD não fornece o quadro societário das emissoras, que precisa ser buscado no Siacco. “Esse programa, entretanto, só poderá revelar o capital investido nessa empresa, as nomeações que compõem o quadro societário, quanto cada sócio investiu e o cargo que ele assume, em consultas individuais, dificultando a investigação”, explica Jorge Miklos. O professor coordenou a pesquisa de uma média de 4.500 rádios para cruzar os nomes dos deputados, senadores e seus familiares com as rádios e televisões brasileiras. Porém, houve uma diferença no resultado dos dados. “Por exemplo, o nome do deputado federal cassado Eduardo Cunha encontra-se no anexo do Ministério das Comunicações, mas não no da Anatel”, relata Miklos.

Eduardo Cunha, evangélico da Assembleia de Deus, teve uma representação protocolada contra ele na Procuradoria da República do Rio de Janeiro em dezembro de 2016. Naquele mês, a revista Época divulgou que Cunha consta nos registros do Ministério das Comunicações como sócio da Rádio Satélite. O deputado cassado afirmou para a revista que, apesar de ainda estar na lista de acionistas do Siacco, vendeu suas cotas em 2007, e as transações de compra e venda constaram de suas declarações de renda à Receita Federal. Mesmo que a informação dada pelo ex-deputado esteja correta, trata-se de uma ilegalidade: a definição de que empresa terá direito de explorar o serviço de radiodifusão depende da sua participação em uma licitação, seguida de aprovação pelo Congresso Nacional. Assim, Cunha não poderia simplesmente ter vendido sua outorga.

Bancada religiosa e direitos humanos

FIGURA 4.1.QueméQuem

O aumento da bancada da bíblia é patente: na legislatura de 2003-2006, era formada por 58 congressistas, um crescimento de 25% em relação à legislatura anterior. No Senado, passou de nenhum representante para três mandatos. “A maior parte dos congressistas evangélicos eram pastores vinculados à Assembleia de Deus e à Igreja Universal do Reino de Deus”, segundo Jorge Miklos.

O professor explica: “A Frente Parlamentar Evangélica expressa os interesses das igrejas evangélicas em geral, embora seja principalmente constituída de deputados pertencentes a igrejas pentecostais, que por sua típica agressividade em evangelizar, formam a maior parte da população evangélica brasileira”. Contudo, ele vê diferença nos posicionamentos dos deputados e senadores da FPE: “Os parlamentares evangélicos nem sempre votam em bloco, pois representam correntes distintas no campo religioso e no econômico. Só falam a mesma língua em questões de conteúdo moral. Sua relação com a bancada católica é marcada tanto pela união na defesa de interesses comuns como pela oposição às eventuais tentativas de suprematismo católico”.

Apesar de não formarem um bloco totalmente coeso, uma série de retrocessos nos direitos humanos está associada à bancada da bíblia, especialmente durante o período em que o pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) foi presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara.

Para ficar apenas com casos mais recentes, atualmente, são deputados ligados às igrejas católica e evangélica que estão no comando dos trabalhos da comissão especial que analisa a proposta conhecida como “Escola sem Partido”. O deputado Marcos Rogério (DEM-RO) ocupa a presidência e Flavinho (PSB-SP) é o relator. Ambos defendem o PL 5069/2013, que tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo. Marcos Rogério foi repórter de televisão e radialista, atuando na Comunicação Social por mais de 12 anos. Como deputado, foi relator da cassação de Eduardo Cunha, apesar de, como ele, pertencer à Frente Parlamentar Evangélica.

Flavinho já foi ligado à comunidade católica Canção Nova e apoiou uma proposta para revogar a permissão do uso do nome social de travestis e transexuais em órgãos da administração pública. Ao se colocar contra a criação da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara, Flavinho disse que, em vez de empoderamento, as mulheres querem ser “cuidadas” e que as parlamentares feministas não sabem o que é ser “amadas”. Para o professor Jorge Miklos, “não é inconstitucional ou ilegal a presença da bancada evangélica no congresso nacional. Todos lá dentro foram eleitos democraticamente. O que é inconstitucional? Pautas que ferem a dignidade da pessoa humana, como prevê o Artigo 1º da Constituição Federal, e a pluralidade do povo brasileiro”.

Missas e cultos eletrônicos

Os grupos evangélicos conservadores não se contentam “apenas” com a concessão de emissoras de rádio e televisão. Também ocupam os espaços de outras emissoras, numa prática chamada de “arrendamento”. Ou seja, como se um horário da programação fosse um terreno, o “dono” (concessionário) o cede para que outra pessoa faça uso dele, mediante pagamento. A prática, contudo, é ilegal. “Isso ou é uma subconcessão, o que é vedado, já que a concessão de qualquer serviço (como de estradas) é sempre dada para aquela pessoa jurídica, e não para nenhuma outra, ou é publicidade. Se for publicidade, tem o limite de 25% da programação da tevê”, explicou o Procurador da República Sergio Suiama. Ele é responsável por um inquérito que investiga os casos de arrendamento praticados por Band, Record, Rede TV! e TV Gazeta, a partir de um estudo da programação feito pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).

FIGURA 4.3. PROGRAMAÇÃO DA TV

De acordo com o levantamento, em 2016, 21% do total de programação veiculada pela tevê aberta brasileira foram de programas religiosos. Esse é o gênero número 1 ao se considerar o espaço total das emissoras pesquisadas pela Ancine, representando 1/5 da programação. Dentro da grade de cada uma, o percentual do gênero religioso é o seguinte: Band (16,4%), CNT (89,85%), Globo (0,58%), Record (21,75%), Rede TV! (43,41%), SBT (0%), TV Brasil (1,66%), TV Cultura (0,69%) e TV Gazeta (15,80%).

Curioso notar que a Record, única do grupo cujo concessionário é um bispo da Igreja Universal, não é a que mais veicula conteúdo religioso. Esse dado pode mostrar que, para as demais emissoras, o arrendamento é um negócio como qualquer outro, e não interessa o conteúdo veiculado. Vale ressaltar também duas importantes exceções: dois canais com as maiores audiências, Globo e SBT (numa disputa já longa com a Record pelo segundo lugar), não exercem essa prática: a primeira veicula, por conta própria, a missa católica aos domingos; a segunda é a única emissora que não transmite nenhum programa religioso. “A TV Globo, ao que consta, não recebe pagamento para veicular a Santa Missa. No caso dessas outras emissoras, a gente vê que uma boa parte da programação diária é paga pelas igrejas. Então é diferente a situação. Essas emissoras estão usando as igrejas como fonte de financiamento”, avalia Suiama.

A Ancine contabilizou também o percentual de publicidade veiculada em cada uma das emissoras: Band (3,20%), CNT (0,10%), Globo (0,10%), Record (0,10%), Rede TV! (5,29%), SBT (0,25%), TV Brasil (0,10%), TV Cultura (0,10%), TV Gazeta (43,61%). Quase todas, com a marcante exceção da TV Gazeta, cumprem o teto de 25% de tempo de publicidade comercial estabelecido pelo artigo 28 do Decreto 52.795/63, que determina o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. Contudo, se o arrendamento para igrejas for considerado venda de espaço publicitário, CNT e Rede TV! Estariam infringindo o Regulamento. O caso visivelmente ilegal do Grupo CNT, que vende quase a totalidade do seu espaço, é alvo de ação ajuizada pelo Ministério Público Federal de São Paulo. Outra ação do MPF pelo mesmo motivo foi aberta contra a Rede 21 Comunicações S/A, ambas em 2014. As emissoras venderam 22 horas diárias de toda a sua grade à Igreja Universal. Segundo o MPF, os contratos firmados entre a Universal e as duas emissoras podem envolver R$ 900 milhões.

O Ministério Público solicita, nas ações, que as outorgas sejam invalidadas e que o Grupo CNT, a Rede 21 e a Iurd sejam condenados ao pagamento de indenização, em valor determinado pela Justiça, por danos materiais à União e por danos morais difusos. Além disso, o MPF pede que a Presidência da República e o Ministério das Comunicações sejam condenados a se abster de conceder futuras outorgas de radiodifusão aos dois grupos empresariais e à Universal.

Segundo a assessoria do Ministério Público de São Paulo, as duas ações seguem tramitando na Justiça Federal. A invalidação das outorgas do serviço de radiodifusão pode acontecer, mas depende ainda da decisão da Justiça. O caso das demais emissoras, cujo inquérito foi aberto pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em maio deste ano, ainda está num estágio inicial. A partir da abertura do inquérito, foram solicitadas informações das emissoras e, agora, o MPF aguarda resposta do Ministério das Comunicações.

Segunda colocada no ranking dos programas religiosos, a Rede TV! foi a única que respondeu nossa reportagem. Através de sua assessoria, a emissora afirmou ser “laica em sua programação, transmitindo programas de diversas igrejas evangélicas, a missa da Catedral da Sé da Igreja católica, entre outras. Seus programas discutem abertamente temas de todas as religiões, do espiritismo, do candomblé e de qualquer outra motivação religiosa. Entende que como agente de comunicação não tem o direito, nem a vontade, de cercear ou discriminar qualquer manifestação religiosa, garantindo a mais ampla liberdade de expressão”. Ainda de acordo com a Rede TV!, a programação religiosa não prejudica a democracia: “Programas religiosos existem em todos os países democráticos, sendo vistos por milhões de telespectadores. No Brasil, as coproduções, religiosas ou não, são agentes fundamentais na garantia da pluralidade das comunicações. A RedeTV! respeita integralmente toda a legislação do setor”.

Laicidade, política e comunicação pública

Mesmo sendo uma televisão pública, a TV Brasil veicula programas religiosos da igreja católica e da evangélica. Em 2016, um deles, o evangélico Reencontro, além de fazer proselitismo religioso, serviu também de palanque político. A reclamação foi feita por telespectadores. Segundo o Boletim da Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o programa entrevistou a candidata a vereadora e ex-deputada federal Liliam Sá (PROS- -RJ), no dia 21 de maio, para falar sobre o Rio de Janeiro. Ela já havia sido entrevistada no mês anterior, assim como um pré-candidato a prefeito de São Gonçalo (RJ) e um pastor que mencionou que a esposa seria candidata a vereadora. Liliam é ex-deputada federal. O apresentador abriu o microfone para a candidata apresentar suas propostas para a cidade: “a senhora voltando como vereadora para o Rio de Janeiro, para ajudar esse município, um dos mais importantes do Brasil, quais são os planos que a senhora tem em mente?”. O caso demonstra a desigualdade de possibilidades dos candidatos se comunicarem com o eleitorado, como publicamos em matéria especial do Observatório do Direito à Comunicação sobre políticos donos da mídia.

“O espaço de uma televisão não é propriamente igual ao de uma praça pública. Na praça pública, qualquer pessoa pode chegar e fazer uma pregação, o Estado não pode impedir um pastor, um pai de santo ou um padre de fazer uma pregação no meio da praça. Mas, no caso da televisão, não é um espaço público acessível a qualquer pessoa. O Estado tem que assegurar essa igualdade? A religião que não tem dinheiro para pagar também deveria ter espaço? Se o Estado fosse fazer isso, como ele iria fazer? Iria financiar todas as religiões? Qual seria o critério de financiamento?”. Os questionamentos do procurador Sergio Suiama dizem respeito a um dilema vivido atualmente pela comunicação pública no Brasil. Em 2011, a partir de reclamações de ouvintes e telespectadores à Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o Conselho Curador aprovou uma resolução que solicitava a suspensão dos programas religiosos nos veículos da EBC. Com a decisão, A Santa Missa e Palavras de Vida, produzidos pela Igreja Católica, e o evangélico Reencontro deveriam ter saído do ar. Contudo, a Justiça Federal de Brasília concedeu liminar mantendo a exibição dos programas.

Integrante do Conselho Curador da EBC cassado pelo governo ilegítimo de Michel Temer, a professora da UFPE Ana Veloso relembra o processo: “Nós recebemos várias manifestações, via Ouvidoria, de telespectadores e ouvintes que não estavam satisfeitos porque a EBC transmitia a missa”. A ação está no Supremo Tribunal Federal e ainda aguarda uma decisão de Justiça. “O Estado brasileiro é laico e a comunicação pública deve permitir a liberdade de expressão das diversas religiões e crenças. Então, além de a gente sugerir que esse tipo de programa fosse retirado do ar, e nossa fundamentação está na lei da EBC e na Constituição Federal, também sugerimos que a Empresa viabilizasse a produção de programas que primassem pela diversidade religiosa”, contou Ana Veloso. Os contratos de permissão dos programas religiosos são anteriores à constituição da EBC, em 2007.

O argumento da Arquidiocese do Rio de Janeiro e da Primeira Igreja Batista na Ilha da Conceição, de Niterói, que entraram na Justiça para manter a exibição dos programas, foi de que “a pluralidade máxima consegue-se com a ampliação dos programas religiosos, não com a supressão dos existentes”. Tentamos ouvir o arcebispo católico Dom Orani Tempesta, que defende a continuação das transmissões da Santa Missa, mas não obtivemos retorno da Arquidiocese do Rio de Janeiro até o fechamento desta reportagem. Dom Orani Tempesta foi o presidente do Conselho Nacional de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional, durante o período de 2012 a 2014.

Apesar de não ter conseguido, até o momento, a retirada do ar dos programas que veiculam cerimônias religiosas, o Conselho Curador obteve uma vitória neste processo:a EBC publicou, em 2014, o resultado final de um pitching (espécie de concurso) para contratação de produtoras responsáveis por dois programas sobre diferentes religiões e crenças: Entre o Céu e a Terra e Retratos de Fé. O primeiro foi produzido pela Realejo Filmes e custou R$ 1,3 milhão e, o segundo, pela Aldeia Produções, no valor de R$ 910 mil. “A gente respeita a religião de todas as pessoas, mas a gente defende o Estado laico. Não podemos, numa emissora pública, privilegiar uma religião em detrimento de outra, porque isso se chama manutenção de privilégios”, reforçou Ana Veloso.

Intolerância religiosa

“Na minha vida dei um chute na heresia / Houve tanta gritaria de quem ama a idolatria / Eu lhe respeito meu irmão, não quero briga / Se ela é Deus, ela mesmo me castiga”. Os versos acima, compostos pelo bispo Marcelo Crivella, fazem parte da canção “Um chute na heresia”, lançada em CD do atual senador e postulante à prefeitura do Rio de Janeiro em 1998. Divulgados na última semana pela imprensa, os versos relembram um marcante episódio de intolerância religiosa. No dia 12 de outubro, quando católicos celebram o Dia de Nossa Senhora Aparecida, o bispo da Igreja Universal Sérgio von Helder chutou uma imagem da santa no programa O Despertar da Fé, transmitido pela Rede Record. O episódio aconteceu em 1995 quando, por coincidência, a Igreja Católica passou a ter seu próprio canal de televisão, a Rede Vida.

O bispo foi condenado por intolerância religiosa e vilipêndio a imagem. O Ministério das Comunicações chegou a se comprometer a investigar se o pastor infringiu leis do setor e foi considerado parcialmente responsável pelo episódio pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio de Araújo Sales.

Mas, na “guerra santa” midiática, os que não professam nenhuma crença também já foram alvo de discurso de ódio. Em caso mais recente, a Band teve que assinar um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público Federal comprometendo-se a exibir 72 vezes um vídeo produzido pelo MPF cujo objetivo é conscientizar a população sobre a laicidade do Estado brasileiro. A assinatura do TAC, feita em 2016, é resultado de um processo aberto pelos procuradores contra a emissora após declarações preconceituosas do apresentador José Luiz Datena no programa Brasil Urgente contra cidadãos ateus, no dia 27 de junho de 2010. O apresentador teria associado práticas criminosas à “ausência de Deus”: “Porque o sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites, é por isso que a gente vê esses crimes aí”.

Para Daniel Sottomaior, presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), a veiculação desse tipo de conteúdo estimula o preconceito. José Luiz Datena, o repórter Maurício Campos e a Rede Bandeirantes foram condenados a pagar R$ 135.600,00 à Associação. Outro caso que acabou parando na Justiça diz respeito a uma ação foi movida, em 2004, pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) de São Paulo e o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro Brasileira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert). Naquela ocasião, a Justiça entendeu que a Rede Record e a Rede Mulher descumpriram o artigo 215 da Constituição de 1988, uma vez que deixaram de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e não protegeram as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras. As duas emissoras haviam produzido e veiculado conteúdos ofensivos contra as religiões de matriz africana.

Para a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Stela Guedes Caputo, apenas quando é cometida alguma violência contra um terreiro ou uma pessoa de religião de matriz africana é possível conseguir alguma abordagem positiva da mídia. No entanto, Stela considera a inclusão dos terreiros fundamental para se compreender o Rio de Janeiro e o Brasil: “Qualquer mídia e discussão política que exclua os terreiros não é democrática. Se uma criança de candomblé não pode andar na rua sem medo, não vivemos numa democracia”.

Que religião se vê na TV?

Apesar do crescimento do número de evangélicos, que aumentou mais de 61,45% nos últimos dez anos, o Brasil ainda é majoritariamente um país católico. De acordo com dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do país se divide entre 123.280.172 católicos; 42.275.440 evangélicos; 3.848.876 espíritas; 588.797 umbandistas, candomblecistas e pessoas de outras religiões afro-brasileiras; 5.185.065 cidadãs e cidadãos de outras religiões e 15.335.510 sem religião. Para a professora Magali Cunha, “os grupos religiosos são segmentos sociais como outros e podem participar do espaço público, inclusive da política. Isto é saudável numa democracia. A concessão de radiodifusão para grupos religiosos deveria obedecer aos mesmos processos de concessão para outros segmentos sociais, com as mesmas exigências de comprometimento”.

No entanto, como o interesse político e econômico influencia fortemente a aprovação de concessões de rádio e tevê, essa distribuição acontece de forma desigual. Segundo Stela Guedes, as religiões afrodescendentes são tratadas de forma negativa tanto pela mídia corporativa quanto pela mídia da Igreja Universal. “Lutar contra isso é muito difícil, porque os terreiros são unidades independentes e muito pobres, sem condições de ter meios de comunicação próprios como as igrejas católica e evangélica”, afirmou Stela, que é candomblecista e faz parte do grupo de pesquisa Kererê (“miúdo”, em iorubá).

Assim, enquanto milhares de pessoas de outras religiões não têm espaço na mídia, a Igreja Universal tem um verdadeiro conglomerado. De acordo com informações dos próprios veículos da Iurd, a Folha Universal é a publicação impressa de maior distribuição do Brasil, com tiragem semanal média de 1,6 milhão e circulação em todo o país. Dados de 2014 encontrados no site da Universal apontam que a Rede Aleluia, composta por emissoras de rádio e televisão, atinge 75% do território nacional. É formada por 64 emissoras, espalhadas por 22 estados. O missionário da Assembleia de Deus Cosme Felippsen acredita que o problema não é o fato de grupos religiosos serem detentores de outorgas de radiodifusão, mas o conteúdo que transmitem em suas pregações. “O pessoal demoniza as religiões de matriz africana, e isso é uma das faces do racismo. As igrejas cantam contra orixás e outras entidades”, conta. Felippsen critica sua igreja, considerada por ele uma das mais “machistas, homofóbicas e racistas”, porém ainda se identifica com ela por ser o espaço que frequenta desde os três anos de idade, quando sua mãe se converteu. Porém, lembra que é um erro associar todos os evangélicos ao conservadorismo: “Existe um grupo forte de comunidades de fé que se reúnem no Ato Aula Pública Evangelho e Desobediência Civil. São evangélicos de esquerda que se encontram para discutir política. É a contracorrente dentro do movimento”. Cosme Felippsen deixa o recado contra a intolerância: “O problema é que, às vezes, a gente generaliza tudo”.

Para a professora Magali Cunha, o que ocorre hoje é que os grupos religiosos tiram vantagem das concessões e dos arrendamentos da mesma forma que outros segmentos o fazem, uma vez que não há regulação. Segundo ela, “o mesmo ocorre com ‘abusos’ da presença religiosa em outras frentes do espaço público, na política partidária, em que não há regulação e freios para que estes grupos não ultrapassem o sentido democrático de sua participação”.

*A reportagem procurou a Igreja Universal do Reino de Deus através da única forma de comunicação que disponibiliza em seu site, um formulário para envio de email. Não obteve resposta até o fechamento da matéria.

Google é processado por publicidade infantil ilegal no youtube

O Ministério Público Federal (MPF) ingressou na semana passada com uma ação civil pública contra a empresa Google Brasil Internet Ltda pela exposição demasiada de crianças na plataforma Youtube. A justificativa do MPF é de que o Youtube tem diversos vídeos postados por particulares que são protagonizados por crianças de até 12 anos de idade, o que coloca em risco os direitos de crianças e adolescentes.

Em nota, o MPF explanou que, “quando atingem grande número de visualizações, os youtubers mirins tornam-se pequenas celebridades. Em decorrência dessa exposição, acabam atraindo a atenção do mercado, que os faz atuar como promotores de vendas, protagonizando anúncios comerciais de produtos dirigidos ao público infantil”.

Mesmo não havendo uma lei específica sobre publicidade infantil no Brasil, a ação se baseia em dispositivos legais presentes na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Assim, ao se aproveitarem de crianças para promover produtos, os responsáveis pelos vídeos estariam desrespeitando a lei. Pois, conforme a nota, a publicidade na forma de merchandising protagonizada por crianças ou a elas destinada é proibida no Brasil por ser considerada potencialmente abusiva, já que atinge um público altamente suscetível a apelos emotivos e subliminares. “As crianças não têm maturidade suficiente para discernir entre fantasia e realidade ou para resistir a impulsos consumistas”, afirma a nota

O artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) destaca como abusiva a publicidade que “se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança” e, no artigo 39, proíbe que o fornecedor de produtos ou serviços se prevaleça da “fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade”.

Fundamentado por esses dispositivos, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) editou em 2014 uma resolução considerando abusiva a publicidade direcionada ao público infantil com a intenção de incentivá-lo ao consumo.

A ação indica que o Google seja obrigado a disponibilizar um aviso na página inicial da plataforma Youtube ou em todos os vídeos postados sobre a proibição de se veicular merchandising ou propaganda de produtos ou serviços protagonizados por crianças ou a elas destinados.

Também foi pedido à Justiça que determine a inclusão de uma ferramenta que permita aos usuários denunciar como impróprio os vídeos com propaganda de produtos destinados ao público infantil.

O Google informou em nota que o YouTube é uma plataforma aberta e destinada a adultos, conforme descrito nos termos de serviço. “Seu uso por crianças deve sempre ser feito num contexto familiar e em companhia de um adulto responsável”, afirma o texto.

A empresa expõe que usuários e anunciantes precisam observar as diretrizes da plataforma e a legislação brasileira e que tanto os vídeos compartilhados como a publicidade veiculada no Youtube podem ser denunciados por qualquer pessoa, sendo excluídos se constatadas irregularidades.

ONU pede regulamentação da publicidade infantil

Os efeitos da publicidade infantil vêm sendo debatidos em todo o mundo há muitos anos. Em alguns países existem amparos legais justamente a fim de proteger as crianças de abusos na publicidade veiculada.

No dia 09 de agosto deste ano, especialistas em direitos humanos das Nações Unidas alertaram sobre o impacto da publicidade comercial dirigida a crianças, já que a mesma induz em uma idade precoce a cultura do consumo e do endividamento.

Juan Pablo Bohoslavsky, especialista da ONU Independente sobre a dívida externa e direitos humanos, e o relator especial da ONU sobre o direito à saúde, Dainius Puras, pediram que governos em todo o mundo regulamentem a publicidade dirigida às crianças.

Confira trechos do documento:

“Tais mensagens comerciais têm o potencial para moldar consumidor a longo prazo das e moldar o comportamento financeiro das crianças… Anúncios dirigidos para crianças podem causar o comportamento insalubre do consumidor e se tornar enraizada em uma idade precoce, condicionando as crianças a responder mais tarde a estímulos comerciais através da compra de produtos desnecessários sem levar em conta as consequências financeiras de longo prazo.

Muitas propagandas dirigidas à criança promovem o consumo de alimentos não saudáveis com alto teor de açúcar e pouco valor nutritivo. O que pode ter consequências graves para a saúde susceptíveis de persistir na idade adulta. A regulação da publicidade dirigida às crianças para os produtos alimentares, poderia melhorar substancialmente a saúde e reduzir o peso das despesas de cuidados de saúde.

Além disso, depois de ter sido exposto a um grande número de anúncios dirigidos a crianças, elas podem pressionar seus pais para comprar itens que não são nem orçados nem pedagogicamente necessários, muitas vezes em detrimento de outras necessidades domésticas importantes.

Chamamos os Estados a proibir a publicidade, promoção e patrocínio por parte dos fabricantes de álcool, tabaco e alimentos não saudáveis nas escolas e no contexto de eventos desportivos infantis e outros eventos que podem ser frequentadas por crianças. Além disso, os Estados devem criar diretrizes que quer restringir ou minimizar o impacto da comercialização de alimentos não saudáveis, álcool e tabaco em geral.

Mais amplamente, estamos unidos para regulamentar a publicidade dirigida às crianças, em conformidade com o dever dos Estados de proteger as crianças de prejuízo material a seu bem-estar”.

O Projeto de Lei 5921/2001

O Projeto de Lei 5921/2001, de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), pretende criar regras claras para a publicidade dirigida ao público de até 12 anos de idade. Entretanto, sua tramitação na Câmara dos Deputados já completa 15 anos. Dois textos substitutivos foram aprovados – um na Comissão de Defesa do Consumidor, em 2008, e outro na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC), em 2009. Esse último também foi aprovado na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), em 2013.

Entretanto, o texto aprovado na CCTCI, de autoria do deputado Osório Adriano (DEM-DF), muda muito pouco o que já temos hoje na legislação: inclui apenas duas frases no artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, considerando abusiva “a publicidade que seja capaz de induzir a criança a desrespeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família e que estimule o consumo excessivo”.

Segundo o Instituto Alan, o texto aprovado pela Comissão de Defesa do Consumidor em 2008, de autoria da então deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG), é o que melhor protege a criança brasileira. Esse texto é bastante detalhado e define por comunicação mercadológica toda atividade de comunicação comercial para divulgação de produtos e serviços em qualquer suporte (comerciais televisivos, banners e sites na internet, embalagens, promoções, merchandising, etc).

O Projeto de Lei 5921/2001 encontra-se pronto para ser votado pelo plenário.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Greve na RTV Cultura de SP é resistência ao sucateamento da emissora

O desmonte promovido pelo governo de São Paulo é o mesmo pretendido por Temer na EBC

Por Ana Claudia Mielke*

A Constituição de 1988 é clara ao estabelecer a necessidade de se garantir a complementaridade do sistema de comunicação no Brasil, que deve ser composto por mídias comerciais, públicas e estatais. Mas o artigo 223 sequer chegou a ser regulamentado, e as poucas experiências de comunicação pública existentes estão em vias de serem desmontadas.

Em São Paulo, uma greve de seis dias jogou luz ao desmonte da RTV Cultura. Entre os dias 8 e 14 de setembro, radialistas e jornalistas da emissora, juntos, promoveram uma greve geral. A reivindicação de emergência? Reajuste dos salários. Afinal estes não foram reajustados conforme acordo coletivo firmado entre as duas categorias – representadas por seus sindicatos – e as empresas de mídia privada.

As perdas, segundo os próprios sindicatos, chegam a 25% no caso dos jornalistas, que tiveram o último reajuste salarial em dezembro de 2013, e a 20% no caso dos radialistas, que tiveram o último reajuste de salário em maio de 2014.

O pano de fundo desta greve – como não poderia deixar de ser – é, no entanto, a resistência para que a comunicação pública não seja totalmente esfacelada. Não se trata de um problema novo. Há pelo menos dez anos, radialistas, jornalistas, entidades de classe e organizações da sociedade civil têm denunciado o sucateamento que vem sendo imposto à RTV Cultura de São Paulo. Estes grupos estão, desde 2015, organizados na campanha “Eu quero a RTV Cultura Viva!

A falta de investimentos em recursos humanos, a consequente a diminuição no número de funcionários e a não realização dos reajustes conforme convenção coletiva das categorias são apenas a ponta do iceberg de um verdadeiro desmonte da comunicação pública que segue em curso no Estado de São Paulo.

A RTV Cultura é gerida pela Fundação Padre Anchieta. Em seus mais de 40 anos de produção e difusão de programação (ela foi criada em 1960 e reinaugurada em 1969), foi inúmeras vezes considerada a melhor emissora do País em qualidade da programação e já figurou entre os melhores canais do mundo em programação educativa.

É também considerada um patrimônio dos paulistas (e dos brasileiros), que cresceram assistindo – até então – sua distinta programação infantil. E, durante um bom tempo, a emissora chegou a se tornar cabeça de rede de outras emissoras estaduais, fornecendo uma vasta programação a estas emissoras, sobretudo, programação infantil.

Hoje, basta sintonizar o canal para perceber que muita coisa mudou. E para pior. Muitos programas originais realizados dentro da própria emissora já não existem mais (o programa Viola Minha Viola causou comoção ao ser cancelado em 2015) e a programação tem sido substituída por enlatados, muitos destes voltados às crianças – caso de Paw Patrol (Patrulha Canina), Shimmer e Shine e Winx Club – este último com forte apelo de produtos voltados ao consumo infantil.

O número de funcionários da TV Cultura caiu pela metade nos últimos dez anos. Além disso, o interesse público que deveria orientar a grade, aos poucos, vem sendo substituído pela busca implacável por audiência.

Mesmo com a greve, a direção da Fundação Padre Anchieta sequer apresentou proposta concreta para negociar um acordo coletivo específico com os trabalhadores, demonstrando total descaso com os funcionários e com a própria continuidade do serviço de radiodifusão – houve cancelamento do Jornal da Cultura do horário do meio dia no dia 12 de setembro.

Apesar disso, na primeira audiência de conciliação, realizada no último dia 13, no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP), os trabalhadores obtiveram uma importante vitória, já que o caso será levado a julgamento pela Justiça do Trabalho. Os trabalhadores também não terão desconto dos dias parados e terão estabilidade de emprego garantida até o julgamento do dissídio.

Desmonte da EBC

No início de setembro, o governo Michel Temer editou a Medida Provisória 744, acertando em cheio o coração da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), ao extinguir o princípio que afirma a autonomia em relação ao Governo federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão (previsto no parágrafo VIII do art. 2 da Lei nº 11.652/2008). A MP também pôs fim no Conselho Curador da empresa, órgão responsável por garantir a participação social na definição dos princípios que devem reger as emissoras que compõem o sistema.

A ideia da gestão autônoma de governos com participação da sociedade via Conselho Curador era, até então, dois dos principais pilares do projeto de comunicação pública, criado em 2009, para atender ao preceito constitucional da complementaridade. Além destes, outro pilar fundamental era a busca por consolidar um sistema público em rede, que fosse capaz de promover a cultura nacional e ao mesmo tempo estimular a produção regional e independente.

Para isso, foi criada a Rede de Comunicação Pública, em 2009, que fomentou a distribuição de conteúdos entre as várias emissoras estaduais e a EBC. Uma experiência embrionária de um sistema público de comunicação em nível nacional, cujos rumos neste momento são imprevisíveis.

Embora o sucateamento da RTV Cultura não seja recente, é possível fazer um paralelo entre ele o desmonte pretendido na EBC. Isso porque, ainda que o desmonte da EBC possa parecer um fato isolado na conturbada conjuntura pela qual passa o país, ao que parece, possui, assim como no caso paulista, o mesmo embasamento político: corte de gastos.

Na base deste argumento está a visão de que o Estado não deve ser o garantidor do direito à comunicação, logo, não deve prover o financiamento das emissoras públicas.

Financiamento

O “enxugamento da máquina” está no cerne do argumento utilizado pelos tucanos em São Paulo para dissolver, aos poucos, a RTV Cultura e agora vem sendo utilizado também pelo presidente Michel Temer (PMDB) para desidratar a EBC (desde quando assumiu o posto de interino, em maio passado, Temer já se mostrou inclinado a enfraquecer a comunicação pública do país com uma proposta de enxugamento da empresa).

Diria ainda, que nem mesmo os governos petistas, embora responsáveis pela criação da empresa, em 2009, souberam dar à comunicação pública sua real relevância – em especial num país em que o sistema comercial é bastante concentrado –, limitando ou contingenciando recursos orçamentários para a empresa e, principalmente, promovendo uma nada inocente confusão entre comunicação pública e comunicação de governo.

Em outras palavras, o sucateamento de emissoras públicas é parte de uma agenda política de retrocessos, que se pretende implementada por grupos políticos que não apostam no direito à comunicação como instrumento promotor da participação cidadã e da democracia. Para estes grupos, a comunicação pública é apenas um instrumento utilitário de informação governamental e, ainda, uma fonte inesgotável de desperdício de recursos públicos.

Porém, nem os governos tucanos de São Paulo nem as gestões do governo federal foram capazes de abrir um diálogo com a sociedade para discutir propostas concretas de financiamento da comunicação pública, como aquela que prevê a criação de um Fundo Nacional de Comunicação Pública.

Este fundo, se criado, poderia ser composto por: a) 25% da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública prevista na Lei nº 11.652; b) verbas do orçamento público em âmbitos federal e estaduais; c) recursos advindos de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), de 3% sobre a receita obtida com publicidade veiculada nas emissoras privadas; d) pagamento pelas outorgas por parte das emissoras privadas; e) doações de pessoas físicas e jurídicas; e f) outras receitas, conforme prevê a proposta de novo marco regulatório para o setor (Projeto de Lei da Mídia Democrática).

Ora, se não avançamos no debate sobre a importância do sistema público de comunicação e sobre a necessidade de prevermos para ele formas concretas e viáveis de financiamento, no frigir dos ovos, o que temos é resistência. Desta forma, fundamental foi a greve dos radialistas e jornalistas da RTV Cultura em São Paulo, que pautaram a importância da comunicação pública para além do reajuste salarial e da garantia de emprego – o que já seria bastante legítimo.

A paralisação, que ganhou amplo apoio também dos funcionários da EBC, terminou no dia 14 de setembro, após audiência de conciliação realizada um dia antes. Mas o estado de greve permanece, assim como continua a luta em defesa da comunicação pública!

*É jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Lançada Plataforma que registra violações de direitos humanos pela mídia

A Plataforma Mídia sem Violações de Direitos, idealizada pelo coletivo Intervozes em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e com apoio da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular (Frentecom), foi lançada nesta quarta-feira, dia 14, na Câmara dos Deputados, em Brasília.

A ferramenta permite que todo cidadão e cidadã faça reclamações sobre abusos cometidos por emissoras de televisão. As denúncias serão analisadas por um grupo de monitoramento, gerando o Ranking Nacional de Violações de Direitos Humanos na TV aberta.

Na abertura do evento, o deputado federal Jean Wyllys, coordenador da Frentecom, criticou o desrespeito à legislação brasileira por parte dos grupos midiáticos, os quais exploram e instigam a violência na televisão. O parlamentar destacou a importância da iniciativa para que se consiga combater de alguma forma as violações ocorridas. “Essa é uma plataforma fundamental. É uma batalha antiga de todos os ativistas dos direitos humanos que lutam há muitos anos contra os conglomerados de comunicação para que a mídia seja mais democrática e respeite os interesses sociais definidos pela Constituição”, afirmou.
Wyllys também comentou sobre o papel influenciador da mídia para a criminalização de segmentos da sociedade. “Alguns programas tratam de mostrar a violência de uma forma como se fosse a característica de um local e de uma determinada classe social, em especial dos negros, não abrindo o espaço para o debate social sobre o que acontece naquela comunidade”, destacou.

Para Helena Martins, representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e coordenadora da Plataforma Mídia sem Violações de Direitos, o lançamento da ferramenta na Câmara foi bastante simbólico, dado a conjuntura atual na Casa. “Nós temos bancadas que representam pautas altamente regressivas no campo dos direitos humanos e que encontram nesses lugares [os grandes conglomerados de mídia] espaços de visibilidade e vocalização de suas bandeiras. Não é à toa que temos vários deputados que são apresentadores de programas policialescos. Por isso, é fundamental fazer essa crítica e exigir que eles tenham uma outra conduta, passando a respeitar a concessão pública”, desabafa.

A representante da ANDI – Comunicação e Direitos, Miriam Pragita, apresentou as publicações resultantes do projeto Violações de Direitos na Mídia Brasileira, realizado ANDI em parceria com a Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos (PFDC), o Intervozes e Artigo 19 – e que deu base para a proposta da Plataforma Mídia sem Violações de Direitos. Segundo Miriam, uma das etapas do projeto consistiu no monitoramento por 30 dias de 28 programas policialescos veiculados pela televisão ou pelo rádio em dez capitais brasileiras. O estudo revelou a ocorrência de 4,5 mil violações de direitos e 15.761 infrações a leis brasileiras e a acordos multilaterais ratificados pelo Brasil.

“A nossa legislação foi várias vezes desrespeitada, e vários tratados internacionais do qual o Brasil é signatário também. A lei é ignorada pelas emissoras de TV e por quem deveria proteger a legislação. O pior é ver que muitas empresas fazem anúncios nesses programas”, lamentou.

Campeão de violações

A partir dos dados coletados pela Andi entre os dias 2 e 31 de março do ano passado, foi produzido o primeiro Ranking Nacional, que aponta o programa Cidade Alerta, da Record, como o que mais violou direitos no país. O Cidade Alerta é exibido todos os dias, de segunda a sábado, e tem alcance nacional, já que é retransmitido via satélite para todas as unidades da Federação. Segundo estudo da Andi, considerando-se apenas a exibição da versão nacional do programa na Grande São Paulo e um de seus picos de audiência, de 11.4 pontos no IBOPE, a mensagem veiculada atinge simultaneamente nada menos que 2,3 milhões de pessoas.

Helena Martins apresentou a plataforma e pontuou que vários modelos foram estudados para se chegar nesse resultado. “É uma ferramenta simples. Só é necessário registrar um e-mail para utilizar. Esperamos que, com a visibilidade ao tema e chamando a atenção da sociedade, das empresas e dos órgãos públicos, possamos ampliar o acesso à informação e contribuir para a redução progressiva das violações de direitos humanos”, afirmou.

Outra observação feita por Helena Martins é de que os programas muitas vezes excluem seus conteúdos para evitar penalizações. “Eles sabem que violam direitos e, por isso, muitas vezes é difícil recuperar o material. Queremos estimular que as pessoas gravem essas violações para ficar mais fácil na hora de comprovar a violação”.

Domingos Dresch, procurador regional da República e coordenador do grupo de trabalho Comunicação Social do Ministério Público Federal, reprovou a prática dos meios de comunicação ao não cumprirem a Constituição, ainda mais por operarem mediante concessão pública. “Há uma luta de resistência inconstitucional, ilegal, de se utilizar as concessões não para afirmar os valores constitucionais, mas para propagar o ódio de todas as formas e banalizar os direitos”, observou.

Dresch lembrou que a luta contra a violação dos direitos humanos na mídia vem de muitos anos, mas que, mesmo com as poucas vitórias obtidas, os ativistas têm se mantido na luta. “Lutamos por um marco regulatório e não conseguimos. Hoje se paga caro por isso. Lutar em defesa da Constituição Federal se tornou um ato subversivo”, lamentou.

Participaram ainda do lançamento da plataforma a presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Ivana Farina, e o presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), Fábio Paes.
O mote da ferramenta
Os programas “policialescos” aumentam o ódio e a falta de empatia na sociedade. Desumanizam e objetificam pessoas que, não coincidentemente, são pobres, negras e jovens. Julgam, esquecendo que toda pessoa é inocente até que se prove o contrário. Expõem menores de idade, deixando de lado o Estatuto da Criança e do Adolescente. Expõem famílias, desrespeitando o direito à privacidade. Gritam “Atira, meu filho!”, num arroubo de desprezo pelo estado democrático de direito e pelo ordenamento jurídico do país. Esse tipo de programa e a naturalidade cada vez maior que concedemos às mais diversas violações de direitos nos transformam em uma sociedade pior, cruel e desumana.

A plataforma apresentada é de fácil acesso e mantém a relação sigilosa no processo de denúncias. É só entrar no link:http://midiasemviolacoes.com.br. Há seis categorias de violações que podem ser denunciadas.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação