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A fala de Dilma, a votação do impeachment e o mundo paralelo da mídia

Os últimos dias do julgamento da Presidenta no Senado foram marcados, novamente, por um discurso legitimador da derrubada de Dilma pelos grandes meios

Por Bia Barbosa*

O impeachment foi aprovado e a presidenta Dilma Rousseff foi definitivamente afastada. Ao longo dos últimos meses, analisamos por diversas vezes o papel que os maiores meios de comunicação desempenharam na legitimação deste impedimento, na desconstrução e negação dos argumentos da defesa de Dilma e na formação de uma parcela da opinião pública contra o governo legitimamente eleito nas urnas.

Nas últimas 48 horas, tal postura não se alterou, consolidando uma linha editorial que já rendeu livros e certamente será objeto de muitas pesquisas no futuro. Uma vez mais na história brasileira, a urgência da democratização dos meios, de diversidade e pluralidade midiática se confirmou, sem as quais nossa democracia seguirá em permanente risco. Explicamos por quê.

A censura ao depoimento de Dilma

Diferentemente do que ocorreu quando da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados, a reta final da votação no Senado, incluindo o depoimento inicial da presidenta, não foi transmitida ao vivo pela TV aberta. Não se suspendeu a transmissão de novelas, cultos nem mesmo de programas de entretenimento.

Enquanto Dilma fazia seu discurso, a principal emissora do país considerou mais relevante ensinar dotes culinários à população. A transparência ao debate exporia as fragilidades da acusação, explicitaria e confirmaria a essencialidade do julgamento político, “pelo conjunto da obra” – e não jurídico – pelos senadores.

Assim, a imensa maioria do povo brasileiro, que não tem acesso à TV por assinatura, não teve seu direito de acesso à informação garantido para que pudesse, livremente, formar sua opinião sobre o interrogatório de Dilma. Teve que se contentar com a seleção discricionária e com a narrativa editada pelos meios daquilo que havia ocorrido ao longo de 14 horas no dia 29 de agosto.

Nem mesmo a TV Brasil, emissora pública de comunicação, retransmitiu a íntegra das discussões. O princípio constitucional que rege o funcionamento das concessões públicas de rádio e TV foi, assim, também uma vez mais, violado.

A edição da reta final dos debates no Senado

O depoimento de Dilma foi considerado firme e consistente por dezenas de juristas, advogados, jornalistas. Nos corredores do Congresso, cresceu o receio por parte da oposição de que a fala da presidenta aumentasse as chances da defesa conseguir votos contra o impedimento. Coube então, à imprensa, reforçar a tese dos opositores de Dilma de que ela não havia “respondido aos questionamentos” da acusação.

No Jornal Nacional da noite do dia 29, os trechos escolhidos para “resumir” o dia foram os pouquíssimos em que a depoente foi menos clara e objetiva em suas respostas. A jornalista Zileide Silva, ao vivo do plenário, reforçou que a presidente não havia acrescentado nada de novo nem respondido às perguntas.

Na GloboNews, Renata LoPrete chegou a afirmar que “os senadores perguntam maçã e ela responde banana”, “martelando a tese do golpe”. Chegou-se a comparar a presidenta Dilma com Rolando Lero, personagem humorístico que inventava respostas quando questionado por um professor. O escárnio não teve limites.

A capa do jornal O Estado de S.Paulo, do dia 30, mostra uma presidenta derrotada sob a manchete “Juízo final”, quando a imagem que todos os que acompanharam as 14 horas de depoimento foram de uma presidente convicta de sua posição e de seus atos. As imagens se repetiram em O Globo.

Capa Estadao
Jornal O Estado de S.Paulo, 30/08/16: foto contradiz depoimento de Dilma e reforça derrota da Presidenta.

Inúmeros comentaristas preferiram destacar que “o discurso de Dilma foi apenas um registro histórico para o documentário” sobre o impeachment que está sendo gravado, desqualificando os argumentos da defesa e a importância das respostas da presidenta para o julgamento ainda em curso.

O jogo do fato consumado

A maior parte da imprensa não apenas comprou o discurso da acusação e de partidos como o PSDB de que a Constituição foi desrespeitada nos atos do governo Dilma. Num contexto em que um número de senadores ainda suficiente para evitar o impeachment não havia declarado sua posição final, os comentaristas dos canais por assinatura seguiram jogando água num dos lados do moinho, afirmando que o impedimento estava definido e chegando a fazer chacota da busca, pela defesa, da mudança de voto de alguns parlamentares.

“Este já ganhou um cargo, não tem mais perigo de mudar de lado”, afirmou um apresentador da mesma GloboNews. Na emissora, Gerson Camarotti ressaltou que o processo não teria reversão. Num contexto em que muitos senadores, independentemente do mérito, querem votar com o lado “vencedor” da disputa, o discurso midiático de que o jogo está definido contribui, sim, para a própria definição desses votos.

A agenda econômica no meio do julgamento

A utilização da crise e dos indicadores econômicos atuais na sustentação dos argumentos dos senadores pró-impeachment foi constante, mesmo que tais questões não sejam provas para comprovar a acusação de crime de responsabilidade por parte da presidenta Dilma. No Parlamento, a retórica cabe. Mas a imprensa também ajudou para isso.

Ao longo dos últimos dias, toda a cobertura do julgamento foi permeada por matérias e comentários de jornalistas que, por um lado, destacaram os problemas econômicos do país desde 2014 e as perspectivas de melhora na economia numa gestão Michel Temer.

No canal por assinatura do principal grupo de comunicação, a expressão “mundo paralelo” foi usada à exaustão para caracterizar as respostas de Dilma aos questionamentos dos senadores. “A percepção dela sobre causas e consequências é invertida em relação à maioria dos analistas”, afirmou Dony De Nuccio. “Dilma não fez o dever de casa. Todos os economistas já alertavam e acabou levando a isso. É uma realidade paralela”, completou Camarotti.

No Bom Dia Brasil, Alexandre Garcia chegou a repetir os argumentos de Janaína Paschoal e afirmar que é a elite econômica que está defendendo o governo Dilma, citando a senadora Katia Abreu e o presidente da CNI. Nenhum analista econômico com visão diversa foi convidado a opinar sobre o tema.

A criminalização permanente

Como não foi possível invisibilizar os inúmeros protestos e atos em defesa da democracia que seguiram ocupando as ruas nos últimos dois dias – ao contrário das manifestações pró-impeachment, que desapareceram –, os principais canais de TV optaram por mostrar os atos que resultaram em “confronto” com as forças de segurança.

O destaque foi para as manifestações em São Paulo, fortemente reprimidas pela Polícia Militar do governo Alckmin e que geraram imagens “de violência” nas ruas. As dezenas de outros atos pelo país receberam flashes quase instantâneos, pois teriam sido “bem menores que as anteriores”.

O noticiário, assim, ratificou sua tese criminalizadora dos movimentos sociais, tratados sempre com “baderneiros e arruaceiros”, como definiu o senador Aloysio Nunes em seu discurso no dia 30.

A cereja criminalizadora veio com o encadeamento, sempre presente, da notícia sobre a suspensão da isenção de imposto do Instituto Lula pela Receita Federal, reforçando o clima de indignação contra o Partido dos Trabalhadores e a tese do impeachment como mecanismo de combate à corrupção. “É um crime continuado”, sentenciou Merval Pereira.

Nenhuma referência às investigações contra Eduardo Cunha, iniciador do processo de impeachment, e contra Michel Temer, seu direto beneficiário, foram constatadas.

Lá fora, outro jornalismo

Esta semana, os editoriais do Le Monde (França) e The Guardian (Inglaterra) foram explícitos ao denunciar a farsa vivenciada no Brasil. No El País (Espanha), foram diversos os artigos explicando o por que da acusação de golpe. Nesta quarta, o The New York Times (Estados Unidos) cravou: “O impeachment mudará o governo e não a política”.

A imprensa internacional, como fez ao longo dos últimos meses, seguiu mostrando fatos e opiniões diferentes, silenciadas na mídia brasileira. Nenhum mérito nisso. Trata-se de ética jornalística, algo que passou longe da cobertura do impeachment.

Chegamos ao final deste processo histórico com inúmeras consequências e danos à nossa democracia. Os retrocessos serão muitos, inclusive no campo das comunicações, para a continuidade de um sistema público de mídia, para a existência dos meios populares e comunitários, para a gestão com base no interesse público dos serviços de telecomunicações, internet e radiodifusão.

Na parte que nos cabe deste debate, seguiremos defendendo mais diversidade e pluralidade, mais liberdade de expressão. Enquanto ela não for para todos, novos e tristes episódios como este poderão se repetir, com o apoio também daqueles – incluindo a grande mídia – que, definitivamente, escolheram um lado para estar.

* Bia Barbosa é jornalista, integrante da coordenação do Intervozes e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Colaboraram Ramênia Vieira, Raquel Dantas, Ana Cláudia Mieke, Mônica Mourão e Eduardo Amorim, todos jornalistas e integrantes do Intervozes.

Exclusão dos debates eleitorais impõe restrições à democracia

Na semana em que candidatos expressivos das duas maiores cidades do país ficam fora dos debates, vemos que este espaço está longe de ser democrático

Por Ana Claudia Mielke*

Em 2015, um dos temas sobre o que mais se falou neste país foi a tal da “reforma politica”. Feita às pressas – para atender aos interesses imediatos do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e seus cúmplices –, e em fatias – limitando-se a alterar questões pontuais da legislação até então em vigor –, a reforma não alterou questões centrais no modo de fazer campanha no país e ainda impôs restrições importantes ao debate democrático.

Uma das alterações diz respeito aos debates promovidos pelas emissoras abertas de rádio e TV. De acordo com a legislação em vigor, os debates são facultativos, ou seja, não existe obrigatoriedade em realizá-los.

Até 2014, ao optar por realizar debate entre os concorrentes, as emissoras estariam obrigadas a convidar todos que estivessem disputando a eleição, desde que o partido do candidato possuísse representação na Câmara dos Deputados. E isto valia tanto para debates relacionados aos cargos majoritários (executivos municipal, estadual, federal e senadores) quanto para cargos proporcionais (vereadores, deputados estaduais e federais).

Com a aprovação da Lei nº 13.165/2015, que dá nova redação a lei anterior, as emissoras passaram a ser obrigadas a convidar apenas os candidatos cujos partidos tenham representação na Câmara superior a nove deputados federais.

Aos demais, o convite ao debate é facultativo e, mesmo que seja feito tal convite, a participação dos demais candidatos depende de acordo prévio realizado entre a emissora/entidade e o conjunto dos concorrentes naquela eleição específica, com aprovação de 2/3.

O parágrafo 5º do art. 46 da nova lei, cuja redação diz “[…] para os debates que se realizarem no primeiro turno das eleições, serão consideradas aprovadas as regras, inclusive as que definam o número de participantes, que obtiverem a concordância de pelo menos 2/3 (dois terços) dos candidatos aptos, no caso de eleição majoritária, e de pelo menos 2/3 (dois terços) dos partidos ou coligações com candidatos aptos, no caso de eleição proporcional”.

Este detalhe, bastante específico, cria um ambiente inóspito às negociações que são feitas para viabilizar a participação de todos nos debates, uma vez que põe nas mãos dos concorrentes a decisão final por manter ou retirar um candidato do debate.

É o que já aconteceu nesta semana, em São Paulo, com a exclusão da candidata Luiza Erundina, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), do debate promovido pela Band, na segunda-feira (22) e acontecerá hoje no Rio de Janeiro, com a exclusão de Marcelo Freixo (PSOL) também de debate realizado pela Band. Erundina está em terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto e Marcelo Freixo, em segundo.

No caso paulista, a emissora não tardou em jogar a responsabilidade pela exclusão no colo de Marta Suplicy (PMDB), João Doria (PSDB) e Major Olímpio (Solidariedade), que não assinaram o documento proposto pela emissora que previa a participação de todos os candidatos no debate. Na disputa pela prefeitura carioca, a participação de Freixo foi barrada pelos votos dos candidatos Flávio Bolsonaro (PSC), Pedro Paulo Carvalho (PMDB) e Indio da Costa (PSD).

Luiza Erundina
A candidata à prefeitura de São Paulo pelo PSOL, Luiza Erundina, excluída do primeiro debate

Em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, o candidato a prefeito Eliseu Amarilho (PSDC) ameaçou retirar sua candidatura ao descobrir que não teria a oportunidade de participar do debate eleitoral que será realizado dia 29 de setembro pela TV Morena, afiliada da Globo no estado. Com ele, são 8 dentre os 15 candidatos oficializados que devem ficar de fora do debate eleitoral na capital sul mato-grossense.

A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) se pronunciou na terça-feira (23), dizendo que “não procedem as notícias recentemente veiculadas de que 2/3 dos candidatos aptos poderiam determinar a exclusão de candidatos de pequenos partidos (não aptos), à revelia das emissoras”. Sim, é verdade. Os candidatos não podem decidir isso sozinhos, precisam da anuência da rádio, TV ou entidade jurídica que pretende realizar o debate. Acontece que, tradicionalmente, as maiores interessadas em excluir candidatos dos debates políticos sempre foram a emissoras.

A regra que permite o impedimento da participação dos candidatos está em votação no Supremo Tribunal Federal (STF) e é contestada por partidos como Partido Humanista da Solidariedade (PHS), Partido Trabalhista Cristão (PTC) e Partido da República (PR), além do já citado PSOL. Neste processo, o advogado da Abert Gustavo Binenbojm tem usado como argumentos que a limitação do número de candidatos corrige uma anomalia do próprio sistema partidário, marcado pela fragmentação de siglas, e permite que os debates sejam mais profícuos e informativos. A liberdade de escolha deve ser, para a Abert, das emissoras.

Em ano eleitoral, as grandes emissoras comercias – Globo, Band e Record – realizam inúmeras reuniões prévias de negociação dos debates das quais participam diretores das rádios e TVs, assessores dos “grandes” candidatos e representantes dos candidatos “menores”. Além das regras do próprio debate (sorteio de ordem e de perguntas, tempo de resposta, possibilidades de réplica e tréplica, etc), estas reuniões sempre tiveram um objetivo claro: diminuir o número de candidatos participantes.

O motivo para limitar o número de candidatos nos debates é, quase sempre, estético, afinal, “não fica bonito mais do que quatro candidatos debatendo na TV” – como ouvi, em 2008, de um dos diretores da TV Globo, responsável por conduzir as negociações. Já naquele ano, a oferta que se fazia era: “Damos a vocês, que aceitarem ficar fora do debate, um tempo a mais em cobertura diária das ações de campanha e uma entrevista de 3 minutos no jornal do meio dia”.

Muitos candidatos acabavam aceitando a proposta, abrindo mão de participar do confronto direto. Os que mantinham a determinação de participar quase sempre eram incluídos na última hora – depois de finalizadas todas as tentativas de assédio, digo, negociação por parte das emissoras. Naquele ano de 2008, a TV Globo SP decidiu não fazer o debate entre os candidatos à prefeitura no primeiro turno porque o então candidato pelo PSOL, deputado Ivan Valente, apesar da pressão, não aceitou fazer o acordo.

A legislação, por seu lado, garantia aos partidos menores o direito a esta participação, pois não a condicionava a um número de representantes na Câmara Federal – o PSOL naquele ano tinha três representantes – nem tampouco submetia a decisão final aos concorrentes. É óbvio, portanto, que numa situação em que a emissora queira diminuir o número de participantes – por questões técnicas e estéticas, como se costuma justificar – ela jogará aos concorrentes a responsabilidade por tomar este tipo de decisão – não poderia ser mais cômodo para Globo, Band, Record e, obviamente, para a Abert.

Direito à participação

Um dos pilares da democracia é o direito à participação. Este direito, por sua vez, está condicionado a outros também necessários e fundamentais, como a liberdade de expressão. Não existe democracia de fato sem participação, e não existe participação sem que sejam construídas condições que permitam a livre expressão das ideias e opiniões políticas, com isonomia entre os pretensos participantes. No Brasil, por outro lado, dois fenômenos em curso desvirtuam o direito à participação.

O primeiro ocorre quando se condiciona liberdade de expressão exclusivamente à liberdade de imprensa, como se tal direito fosse apenas das empresas comerciais de comunicação de dizer o que querem sem intervenção estatal, e não um direito de todos os cidadãos e cidadãs de serem bem informados quando abordados, em suas casas, por estas mesmas empresas de mídia.

O segundo, aparentemente, revela uma tentativa de privilegiar os que detêm maior poder de barganha política – isso inclui tempo no horário eleitoral “gratuito” na TV e no rádio – e soterrar aqueles que, limitados pelo tempo de existência ou pelo número de zeros na conta corrente, dependem de maior visibilidade para ter suas ideias e ideais conhecidos pelo grande público.

Se a concentração midiática brasileira é causa e consequência do primeiro fenômeno, seria razoável dizer que uma tradição oligárquica na política estaria na base do segundo. A nova lei eleitoral, portanto, aprovada por um congresso liderado por Eduardo Cunha, é apenas a expressão disto, posto que não garante a isonomia necessária para a participação de todos ao tratar com benefícios os maiores e retirar direito dos partidos ditos menores.

Embora os exemplos trazidos no texto sejam em sua maioria do PSOL, que atualmente tem seis deputados federais atuando na Câmara, na prática, partidos como PHS, com sete deputados, Partido Popular Socialista (PPS), que possui oito deputados, Partido Republicano da Ordem Social (PROS), com sete deputados, Partido Verde (PV), que tem seis deputados, Rede Sustentabilidade (REDE), com quatro deputados, Partido da Mulher Brasileira (PMB), com dois deputados, Partido Republicano Progressista (PRP) e Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), ambos com apenas um deputado também sofrerão as consequências desta política de exclusão.

“Gratuito” entre aspas

Tem gente que não gosta, acha chato, banal ou mesmo engraçado, mas o horário eleitoral gratuito nas emissoras de rádio e TV ainda é um meio de alcançar uma ampla parcela da população. Num país com as dimensões do Brasil, trata-se de um instrumento de alcance importante, sem o qual uma parcela da população, talvez, sequer soubesse das eleições.

É justamente visando a este alcance informativo sobre o processo eleitoral que a Lei nº 9504/1997 instituiu este instrumento, sendo um programa em bloco, que vai ao ar duas vezes por dia (manhã e meio dia no rádio; meio dia e noite na TV), e inserções ao longo da programação.

O problema é que de gratuito este horário não tem nada, uma vez que o Estado brasileiro ressarce as emissoras abertas pela veiculação da propaganda partidária. Segundo o site Contas Abertas, o governo federal deverá ressarcir às emissoras, por meio de dedução tributária direta, cerca de R$ 576 milhões no ano de 2016. O valor ressarcido é equivalente a 80% do que as emissoras ganhariam vendendo publicidade naquele mesmo período da grade da programação – cálculo que se dá pelo horário nobre, diga-se de passagem.

Levando em conta que as emissoras em questão são concessões públicas – possuem o direito de uso do espectro radioelétrico pertencente à União por um tempo determinado para a transmissão de programação e aferição e lucro sobre isso – a dedução do imposto de renda pela exibição do horário eleitoral é, na verdade, um engodo jurídico, pois quem está pagando pelo horário é o cidadão, que abre mão do valor citado para que as empresas possam veicular o horário. As emissoras, embora reclamem, não querem abrir mão disso, afinal, é um dinheiro que entra (ou deixa de sair) independente da variação da audiência.

Neste ano, o tempo do programa em bloco no rádio e na TV foi diminuído, de 45 para 35 dias (começando nesta sexta-feira, 26, e indo até o dia 29 de setembro), assim como diminuiu de 30 para 10 minutos o tempo do bloco para os cargos de prefeitos. Já para os cargos proporcionais, valem apenas as inserções ao longo da programação, cujo tempo aumentou de 30 para 70 minutos por dia.

Aos grandes partidos, segue o vale tudo das coligações pragmáticas, que visam a aumentar o tempo de aparição na TV. Afinal, 90% dos programas em bloco são distribuídos proporcionalmente aos partidos com maior número de representantes na Câmara e os demais 10% são distribuídos igualitariamente entre todos.

Já aos chamados “pequenos partidos”, segue valendo a militância, o ciberativismo, o corpo-a-corpo nas ruas e alguma criatividade para dar visibilidade às propostas. Como vimos, ainda vivemos num país em que informação, liberdade de expressão e direito à participação seguem sendo privilégios de poucos.

* Ana Claudia Mielke é jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e coordenadora executiva do Coletivo Intervozes

As Olimpíadas, o zika e a farsa na imprensa nacional

Enquanto sobram promessas e repelentes na Vila Olímpica no Rio, as mulheres pobres de Pernambuco seguem sem proteção. A mídia silencia uma vez mais

Por Marina Pita*

A epidemia do zika já contabiliza 1.638 casos confirmados de bebês com microcefalia como provável resultado da infecção pelo vírus e mais 3.061 bebês sob investigação. Foram confirmados 87 óbitos fetais ou neonatais por microcefalia e/ou alteração no sistema nervoso central em função do zika e 184 casos seguem sob investigação.

O ministro da Saúde interino foi à TV dizer que estava preparando uma ação para proteger os cidadãos brasileiros e estrangeiros de uma infecção pelo vírus. Sob os holofotes das Olimpíadas 2016 e para acalmar os estrangeiros, Ricardo Barros se reuniu com os embaixadores de todos os países que contariam com delegações de atletas no Rio.

Em junho, Barros anunciou o investimento de R$ 64 milhões para combater o zika durante as Olimpíadas. Contou aos correspondentes estrangeiros que pretendia comprar testes rápidos que pudessem ser feitos durante os Jogos e repelentes para as delegações – para as grávidas de baixa renda brasileiras também, acrescentou.

A promessa de distribuir insumos básicos para proteção das grávidas mais pobres é, entretanto, antiga, indo dos anticoncepcionais e camisinhas para não-engravidar ou não contrair a infecção do companheiro aos tão falados repelentes. Em dezembro de 2015, o governo já havia declarado que negociava a produção de repelentes com o exército brasileiro. Em janeiro deste ano, a imprensa também repercutiu o anúncio de que o governo negociava com a indústria de higiene e limpeza a compra dos tais repelentes para as beneficiárias do Bolsa Família.

Em abril, Dilma Rousseff assinou um decreto que instituiu o programa de prevenção e proteção individual de gestantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica contra o Aedes aegypti. Em julho, o Senado aprovou uma Medida Provisória que liberou R$ 420 milhões para ações de combate à microcefalia. Desse total, R$ 300 milhões seriam direcionados à compra de repelentes para grávidas do Bolsa Família.

Acontece que, já em novembro, a alteração do padrão de ocorrências de microcefalias no País levou o Brasil a decretar Emergência em Saúde Pública de Situação Nacional. Tal estado, segundo a Lei 8.666/1993, dá ao governo autorização para comprar insumos que assegurem a saúde dos cidadãos sem licitação. A mesma medida foi utilizada, por exemplo, para contratar serviços e comprar equipamentos sem licitação à época da Copa do Mundo de 2014.

Mas ninguém da imprensa lembrou do ocorrido e pensou em questionar o governo brasileiro sobre a não necessidade de uma medida provisória ou um decreto para que a compra de repelentes para as mulheres carentes deixasse de ser um discurso e se efetivasse na prática, rapidamente. Ficaram, todos os veículos, na repercussão das declarações de boas intenções das fontes oficiais.

Repelentes nas Olimpíadas

Chegamos a agosto – portanto, dez meses após instaurado o estado de emergência em saúde pública – e a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde de Pernambuco (um dos estados mais afetados pela tríplice epidemia de zika, dengue e chikungunya), questionada por esta jornalista, informa que não há recursos adicionais para a compra de repelentes.

Enquanto isso, preservativos e os mesmos repelentes são distribuídos em pontos de circulação de turistas no Rio de Janeiro. A informação é a de que sobram repelentes distribuídos gratuitamente na Vila Olímpica. E a imprensa brasileira com isso? Se limita a repercutir releases e a replicar novas promessas.

Um exemplo ocorreu com a divulgação, pelo governo de São Paulo, de que o teste de zika seria oferecido para grávidas no estado. O próprio governador Geraldo Alckmin foi à TV dizer que São Paulo seria o primeiro a ter o exame disponível para no sistema de saúde público. Mas em maio esta jornalista questionou pessoalmente o chefe da Coordenadoria de Controle e Doenças do Estado de São Paulo, Marcos Boulos, que alegou que o teste sorológico para o zika, que seria eficiente em grávidas, ainda não estaria à disposição por apresentar reações cruzadas com a dengue.

A imprensa seguiu sem questionar Alckmin e ignorando o fato de que a Anvisa tem pelo menos quatro testes sorológicos para a infecção por zika aprovados, todos eles à disposição do Ministério da Saúde.

Quando a Agência Nacional de Saúde (ANS) obrigou as operadoras de saúde a incluírem em seus planos dois exames de diagnóstico do zika, nenhum jornal lembrou de dizer que apenas 30% dos brasileiros têm planos de saúde. Tampouco lembraram os gestores públicos, que seguem fingindo que não é obrigação do Estado garantir o exame sorológico para as mulheres de baixa renda.

A própria Empresa Brasil de Comunicação (EBC) teve de rever sua cobertura sobre a epidemia e ir além das fontes oficiais, após ser cobrada por meio de seus canais de interlocução com o público. Hoje, a empresa pública de comunicação produz spots de rádio educativos sobre o tema, para distribuição gratuita em todas as emissoras do País.

Dedetização
Técnicos fazem dedetização em Brasília (Andre Borges/Agência Brasília)

Mas praticamente nada se problematiza sobre o direito ao aborto. Pelo contrário, a mídia se esforça em mostrar casos de adultos com microcefalia que vivem próximos à “normalidade”, ignorando que os problemas que se desenvolvem num bebê que nasce com a Síndrome Congênita do zika são muito diversos.

A Folha de S. Paulo fez uma pesquisa questionando o direito ao aborto no caso da grávida ser infectada pelo zika. O título da reportagem informou que a maioria dos brasileiros ainda não é favorável ao abortamento nesses casos. O jornal, porém, não destacou que 10% a mais da população defendem o direito da mulher a interromper a gravidez por conta da epidemia de zika.

O sujeito da epidemia

Tanto a ausência de políticas públicas de prevenção minimamente adequadas quanto a cobertura superficial e enviesada dos meios de comunicação tem a ver com o sujeito desta epidemia de zika: mulheres pobres, em sua maioria negras e nordestinas

São elas que não têm acesso a métodos contraceptivos via SUS, mas que ouvem declarações de gestores públicos e profissionais de saúde à imprensa dizendo que elas não deveriam engravidar.

São elas que não podem pagar por repelentes e não têm acesso a eles por meio do sistema público de saúde. São elas que estão sem saber se a gravidez pode gerar crianças com a Síndrome Congênita porque não há exames adequados; que não têm acesso ao aborto em caso de má formação; que após terem bebês notificados com microcefalia esperam meses por uma resposta sobre o diagnóstico.

São elas que podem ter suas vidas transformadas em cuidadoras em um país sem estrutura, em meio uma doença cujos desdobramentos ainda são desconhecidos.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Patricia Galvão revelou que as mulheres grávidas sabem que epidemias causadas por mosquitos não se resolvem com a simples retirada da água acumulada nos vasos das plantas. Os especialistas em epidemiologia também o sabem.

No Brasil, falta coleta de lixo universal e regular e saneamento básico com água encanada para todos, para que não seja necessário estocar esta água. Cerca de 76% das mulheres pesquisadas acreditam que o governo põe a culpa na população pela dificuldade em combater o zika, mesmo onde não há coleta de lixo e água encanada.

Mesmo assim, a comunicação oficial continua gastando recursos com foco nos sujeitos, no vasinho de planta, na limpeza da caixa d’água. É quase dinheiro jogado fora.

A mesma pesquisa do Patrícia Galvão aponta que 90% das mulheres gostariam de fazer um exame para saber se tiveram infecção por zika. Mas a imprensa segue ignorando a falta de testes na rede pública. A realidade enfrentada pelas brasileiras que utilizam o sistema público não aparece.

A verdade é que momentos de epidemia como este evidenciam problemas estruturais e estruturantes do País. Para além das deficiências do SUS, do machismo e do racismo institucional por trás da não priorização a essas mulheres, o zika vírus joga na nossa cara a ausência de uma mídia que cumpra o seu papel de cobrar do poder público a garantia de direitos a todos os cidadãos e cidadãs.

A (não) cobertura do problema do zika coloca assim, em evidência, a urgência da democratização dos meios de comunicação e a construção de uma imprensa de fato plural e diversa em nosso país.

*Marina Pita é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

As duas caras do Netflix

por Marco Konopacki*

O recente acordo para embarcar o Netflix nos setup boxes xfinity(X1)[1] da Comcast mostra que o original engajamento do Netflix na defesa da neutralidade de rede, demonstrado através de posts em seu blog corporativo[2], pode ser flexibilizado quando a empresa tem a oportunidade de ganhar uma grande vantagem na distribuição do seu serviço. Com essa postura, o Netflix está mostrando ter duas caras quando o assunto tratado é neutralidade da rede.

 

O Netflix se tornou referência numa árdua batalha pela garantia à neutralidade de rede nos Estados Unidos. Durante janeiro de 2013 e janeiro de 2014 o serviço de streaming de vídeos sob demanda teve sua velocidade de entrega gradualmente reduzida para usuários da Comcast, numa clara manipulação do tráfego de rede daquela operadora para prejudicar o Netflix (https://is.gd/W29qCC). Porém, no momento que o Netflix fez um acordo comercial com a operadora de telecom, os valores na velocidade de entrega subiram exponencialmente, demonstrando o poder que as operadoras tem para manipular o tráfego de rede e o quanto isso pode ser usado para fins comerciais na exploração de “novos negócios”.

 

O tema ganhou tanta notoriedade nos Estados Unidos que a FCC (Federal Communications Commission), a Anatel estadunidense, promoveu uma consulta pública para discutir a neutralidade de rede, a qual recebeu mais de 1 milhão de contribuições[3] em favor (com um empurrãozinho de John Oliver, é verdade). No Brasil, a neutralidade é um valor defendido e consolidado com o Marco Civil da Internet, reforçado pelo seu decreto de regulamentação que, no Art. 9, proíbe qualquer acordo que limite “o caráter amplo e irrestrito” da internet.

 

Recentemente, a Comcast passou a aplicar os famigerados limites de dados para banda larga. Muito diferente do que se queria fazer aqui pelo Brasil, com miseráveis 10Gb para planos pequenos, lá o limite médio está entre 700Gb e 1Tb. Ainda assim, com a demanda crescente por acesso a dados pesados, como o streaming de vídeos, talvez essa franquia em breve fique pequena, até para essa quantidade de dados. Por isso, algumas empresas de conteúdo estão fazendo acordo com as telcos para que seus serviços tenham bandeira livre para trafegar, sem descontar o valor da franquia contratada. Essa prática é conhecida como tarifação reversa ou, também, zero-rated services. Muitas pessoas vem defendendo que a prática de zero-rating fere a neutralidade da rede, pois cria guetos de acesso, o que vai de encontro ao espírito original da internet: a integração de redes para o compartilhamento amplo e irrestrito de conteúdos. As telcos se defendem com o argumento que isso faz parte da liberdade de modelo de negócio e que limitar essa prática feriria princípios básicos da livre iniciativa. No Brasil, a regulamentação do Marco Civil da internet vedou esse tipo de prática por ferir o caráter “universal e irrestrito da internet”.

 

Este ano a Comcast lançou o seu setup box X1, uma espécie de AppleTV ou Chromecast, em que ela disponibiliza alguns aplicativos de conteúdo que rodam usando a internet, seus e de parceiros. A Comcast anunciou que os aplicativos que usarem o seu X1 não terão os dados trafegados contados, ou seja, todo aplicativo no X1 será zero-rated e isso retomou a discussão se seria quebra de neutralidade ou não. Algumas pessoas defendem que o X1 é, na verdade, um serviço de IPTV, que usa a internet para um fim específico, numa rede específica, mas não é internet e, por isso, não feriria a neutralidade. No caso do Brasil, um serviço como esse seria vedado, uma vez que fere o inciso III do Art. 9, que limita a oferta de vantagem para aplicativos ofertados pela própria telco. Mas se fosse considerado um aparelho de IPTV, essa interpretação já mudaria, pois seria usado para um fim específico (televisão), ofertado a um grupo específico (Art. 2 inciso II alínea b) e, por isso, não feriria nenhuma regra. A verdade é que, com a convergência digital, a fronteira do que é entendido como internet ou não está cada vez mais turva. O que vem a ser a internet no momento em que praticamente tudo está conectado a internet de pessoas a objetos? Existe uma tendência a tudo convergir para internet, afinal esse foi o meio mais eficiente e barato pra transmitirmos todo tipo de conteúdo, desde um e-mail a um vídeo em 4K.

 

Zero-rating ferir ou não a neutralidade está ligado à capacidade de concentração do poder econômico na oferta de alguns serviços. Algumas empresas poderiam criar acordos capazes de formar bolhas de acesso, induzindo alguns usuários, em especial aqueles em fragilidade econômica, a acessarem serviços que lhes forem “mais vantajosos” e não de fato “o que se quer ou pode acessar”. Acabaria que a liberdade de acessar qualquer coisa na internet passaria a ser orientada por uma decisão econômica, induzida por acordo comerciais entre grandes operadores da rede. Isso é uma ameaça a ideia igualitária e distribuída com a qual a internet foi criada, criando ao contrário, “guetos internéticos” e determinando qual internet os pobres terão acesso e qualquer internet para os ricos. Os operadores de redes tem um poder desproporcional nesse jogo. Imagine um país com estradas por toda parte que permite o trânsito livre de pessoas para todo lado. Agora imagine a internet como sendo essa rede de estradas e que essas estradas são controladas por 4 ou 5 empresas. Agora imagine que essas empresas se organizam para determinar o preço dos pedágios das estradas e limitar quantos veículos podem trafegar nessas estradas. Pior, imagine que pessoas com muito dinheiro poderiam trafegar na pista do BRT e sem pagar pedágio. Isso com certeza geraria diferenças abissais com relação ao acesso aos recursos do mundo, e quem tem mais recursos já largaria quilômetros a frente.

 

Quando se fala que o Netflix está mostrando ter duas caras nesse jogo é porque a empresa que sofreu muito pelo controle de tráfego ao seu conteúdo agora está fechando um acordo para ser um dos aplicativos embarcados no X1 da Comcast. Parece que o Netflix vê a quebra da neutralidade no caso na manipulação da velocidade do tráfego, mas não vê problema em se beneficiar do tráfego não tarifado da Comcast. Mas imagine a concorrência desleal que isso representa para startups de conteúdo, com um modelo de negócio parecido com o do Netflix, que tentarem oferecer seu produto no mercado e que encontrarem uma série de barreiras comerciais porque estas empresas não tem dinheiro para oferecer seu serviço na modalidade zero-rated. Numa decisão puramente racional econômica, seria muito mais vantajoso qualquer consumidor optar por um produto que não aumenta minha conta de internet. O Netflix quer chutar a escada que o tornou num dos maiores serviços de streaming do mundo.

 

Mais uma vez, tentando contextualizar com a realidade brasileira, nós temos um sistema de radiodifusão mais concentrados do mundo. Apenas 7 famílias dominam toda a cadeia de conteúdo, desde a produção, passando pelo empacotamento até a distribuição. Além dessa concentração vertical, existe a concentração horizontal, em que os mesmos grupos econômicos dominam rádios e jornais. A internet surgiu como uma grande ferramenta para romper esse oligopólio, mas será que num cenário zero-rated isso seria assim? Imagine que a NET Serviços de Internet é parte do grupo econômico de uma dessas 7 famílias e imagine a imposição da limitação de franquia de dados para banda larga fixa se tornando realidade. Agora imagine que essa operadora comece a não tarifar quando você acessa conteúdos do grupo Globo de comunicação. Qual dos conteúdos vocês acham que terão mais chance de ser acessados? Bingo, a lógica oligopolista do conteúdo se reforça e pode ser que daqui alguns anos estejamos nos lamentando que a internet foi dominada por 7 famílias. Será a tragédia se repetindo, agora como farsa.

[1] http://www.techhive.com/article/3091722/streaming-services/netflix-will-land-on-comcasts-x1-platform-later-this-year.html

[2] http://www.huffingtonpost.com/2014/03/20/netflix-net-neutrality_n_5002935.html

[3] http://www.savetheinternet.com/press-release/105672/more-1-million-people-call-fcc-save-net-neutrality

*Pesquisador de internet e democracia. Mestre em Ciência Política UFPR. Doutorando em Ciência Política UFMG

Por que precisamos já de uma lei de proteção de dados pessoais

Num contexto de massificação de coleta e tratamento de dados na internet, é fundamental garantir a aprovação do PL 5276/16, em tramitação na Câmara.

Por Marina Pita*

Sabe aquele clique que você dá nos “termos de uso” de uma aplicação na internet sem ler o que está escrito ali? Saiba que, ao fazer isso, você pode estar liberando seus dados pessoais para usos que você nem imagina.

Em tempos de conservadorismo e criminalização de condutas, a garantia dodireito à privacidade nas redes se mostra cada vez mais fundamental. Sem ela, nossa liberdade de expressão, de livre manifestação de pensamento e de organização política ficam seriamente comprometidas. Mais do que isso, num contexto de massificação de coleta e tratamento de dados na internet, informações como características de saúde, identidade sexual ou opção religiosa também podem estar sendo usadas sem a sua autorização.

Até hoje, o Brasil não dispõe de uma lei para regular a coleta, armazenamento, processamento e divulgação de dados pessoais. Regular essa prática não significa impedir que dados sejam coletados e pesquisados para trazer benefícios sociais – como, por exemplo, quando informações da população são usadas para analisar uma epidemia de saúde ou desenvolver políticas públicas para atender a uma parcela específica da população.

Mas é preciso estabelecer princípios e critérios para que isso aconteça e, assim, garantir que nossos dados não sejam usados para atender a interesses comerciais, contra a nossa vontade, ultrapassando limites éticos e legalmente aceitos.

Respondendo a essa preocupação e atendendo a um pleito da sociedade civil, o Ministério da Justiça, em diálogo também com o setor empresarial, elaborou um Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais. O processo contou com a contribuição de milhares de brasileiros, por meio de duas consultas públicas, e levou cerca de seis anos para ficar pronto.

Finalmente, o PL 5276/2016 chegou à Câmara dos Deputados, onde tramita com pedido de urgência constitucional – ou seja, tem prazo para ser votado, senão tranca a pauta da Casa legislativa. Mas tem muitos lobistas já trabalhando no Congresso para que o texto seja engavetado.

O projeto defende a privacidade das pessoas tanto em relação ao poder público, cuja atuação pode violar garantias individuais, quanto contra as práticas de entes privados que queiram lucrar com nossos dados. Impede, por exemplo, que empresas coletem, comprem ou vendam dados dos cidadãos sem seu consentimento livre e informado.

A proposta também define que o titular dos dados deve ter acesso facilitado às informações sobre o tratamento pelo qual eles passam. Essas informações – a finalidade específica do tratamento, forma e duração do tratamento e identificação do responsável – deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva.

E, uma vez que muitos dos locais de armazenamento de dados ficam fora do país, o projeto de lei vale para todos os bancos de dados formados a partir de coletas realizadas no Brasil, pela internet ou fora dela (por exemplo, pelo seu plano de saúde ou a empresa do seu cartão de crédito), e impede a transferência internacional de dados para países com leis de proteção menos rigorosas do que a nossa.

Para garantir o cumprimento da norma, o projeto de lei prevê sanções administrativas e possibilidade de ressarcimentos por danos pela utilização ilegal das informações, e determinada que um órgão competente fique responsável pela fiscalização da lei, junto com o Conselho Nacional de Proteção de Dados e da Privacidade. Essa autoridade será responsável inclusive pela adequação progressiva dos bancos de dados já existentes no país antes da entrada em vigor da lei.

Como a violação da sua privacidade impacta sua vida?

O perfil de uma pessoa, do que ela gosta, o que compra, quais suas necessidades, hábitos e dificuldades nunca valeu tanto para o mercado. Ao mesmo tempo, entretanto, o valor de nossos dados pessoais nunca foi tão subestimado por nós. Se os Correios estivessem abrindo suas cartas, lendo e, com as informações ali obtidas, direcionando empresas ao seu encalço, você não concordaria, certo? Mas no mundo online pouca gente parece se preocupar.

Muita gente não sabe – ou acha aceitável – que seus dados, com o maior número de detalhes possível, estejam sendo armazenados e analisados por corporações e governos. É normal ouvir a afirmação: “Se não tenho nada a esconder, podem me vigiar”. Mas aí é que as pessoas se enganam. Não fazer nada de “errado” ou ilegal não quer dizer que a proteção da sua privacidade e o seu controle sobre as informações que lhe dizem respeito sejam fundamentais.

Mesmo a pessoa mais correta do mundo tem algo a manter privado se não quiser ser explorada comercialmente mais do que as outras ou se não quiser ser discriminada ou tratada de maneira diferente.

Veja o caso da discriminação comercial, a que todos estamos sujeitos. Já se sabe que lojas online tem alterado o preço dos produtos ofertados com base no endereço ou perfil do usuário que acessa a página. Há notícias de sites, por exemplo, que vendem mais caro para bairros a depender da nacionalidade predominante dos internautas que ali navegam.

A privacidade também é essencial para o acesso indiscriminado à saúde. Todas as pessoas adoecem, é um fato. Mas, sem a preservação dos seus dados, aquelas com histórico de problemas de saúde ou de doenças crônicas na família passarão a ser discriminadas não só pela empresa do plano de saúde, mas também por futuros empregadores ou empresas de crédito.

Hoje, empresas de gestão de dados de saúde têm cada vez mais acesso aos hábitos das pessoas colhendo dados em aplicativos de celulares. A empresa SulAmerica Saúde, por exemplo, mantém um aplicativo para dispositivos móveis que colhe dados de localização dos usuários o tempo todo.

Para que ela usa esses dados? Não está claro. Mas saber quais lugares uma pessoa frequenta e em que horários, quantas horas trabalha, se faz horas extra, por exemplo, pode ser definidor de quanto cobrar em um seguro saúde. Ou até para definir um candidato numa vaga de emprego.

Em um mundo com enorme capacidade de captura – e os smartphones são a joia da coroa neste aspecto –, armazenamento, processamento e análise dos dados como o que vivemos hoje, todas as pessoas estão sujeitas a algum tipo de discriminação, sejam estes dados corretos ou incorretos, garantidores da igualdade de oportunidades ou excludentes. E quanto maior a disponibilidade de dados e liberdade para o seu processamento, maior a chance de algo dar errado.

Não podemos nos enganar: essas máquinas, os algoritmos, erram e é preciso nos proteger dos erros. Uma jornalista feminista, por exemplo, que faz buscas por notícias sobre feminicídios e formas de assassinato de mulheres, já foi avisada pelo Google que suas buscas estavam estranhas. Daí para ela ela ser apontada por uma autoridade policial, que teve acesso não autorizado a esses dados, como uma pessoa perigosa em potencial é um pulo!

Por todos estes fatores, é fundamental que o PL 5276/16 tramite com celeridade na Câmara dos Deputados e seja aprovado rapidamente pelo Congresso. Enquanto isso, tenha certeza de que seus dados estão sendo coletados sem que você saiba. E os riscos são todos seus.

Clique aqui para ler a carta assinada por dezenas de organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes, em apoio ao Projeto de Proteção de Dados Pessoais.

*Marina Pita é jornalista e membro do Conselho Diretor do Intervozes.