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Mídia, política e religião: mistura que ameaça a democracia

Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emissoras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da democracia brasileira e do conservadorismo político

Texto: Mônica Mourão | Colaboraram: Bráulio Araújo, Elizângela Araújo, Iara Moura e Ramênia Vieira

FIGURA 4.2 PROGRAMAÇÃO.

“Abri uma igreja em Lusaka (capital da Zâmbia) e os pastores haviam sido expulsos de lá. Com a carta do presidente Lula, não só os pastores puderam voltar, como o presidente Rupiah Banda (2008-2011) deu a eles uma concessão de rádio e televisão para que pudessem pregar o evangelho”. A frase acima foi uma das descobertas da mídia durante a reta final do segundo turno das eleições no Rio de Janeiro, quando a população da cidade vai escolher entre Marcelo Freixo (Psol) e Marcelo Crivella (PRB). O trecho foi retirado de um vídeo disponível no Youtube em que Crivella conta que entrou para a política forçado pela Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) e comenta a temporada em que viveu na áfrica. O senador, bispo da Iurd e sobrinho do fundador dessa igreja, Edir Macedo, dono da rede Record, associa diretamente missão evangelizadora, política e mídia. O caso é emblemático de um cenário que está longe de se resumir à disputa eleitoral do Rio de Janeiro.

Políticos evangélicos donos da mídia

Em novembro do ano passado, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, autorizou procuradores de São Paulo a receberem uma representação, assinada por diversas entidades da sociedade civil, pedindo o cancelamento das outorgas de radiodifusão dadas a pessoas jurídicas que tenham entre seus sócios políticos em exercício do mandato. No total, 32 deputados federais e oito senadores são denunciados. Dos 32 deputados federais, nove fazem parte da bancada evangélica, o que corresponde a quase 30% do total. Desses nove, quase a metade faz parte também da bancada ruralista. Um deles, Beto Mansur (PRB-SP), é ficha suja, condenado por exploração de trabalho escravo. A bancada evangélica – ou bancada da bíblia – é conhecida por seu caráter conservador. Mas se engana quem generaliza esse posicionamento para todos os evangélicos.

A professora Magali Cunha, da Universidade Metodista de São Paulo, explica que o senso comum associa evangélicos a conservadorismo por serem os grupos com esse perfil os que têm mais visibilidade na mídia e na política. Segundo Magali, na radiodifusão, “não existem evangélicos progressistas ou de posição mais aberta em relação à teologia, à prática pastoral e à participação política. Esta é uma característica dos grupos mais conservadores e que os coloca em vantagem no tocante à visibilidade buscaram uma presença intensa nas mídias rádio e tevê, mais ainda no rádio. Os grupos mais abertos ou progressistas estão presentes em mídias alternativas e na internet, e não há uma denominação específica: são grupos os mais variados, vários deles articulados em experiências ecumênicas”, explica.

A imbricação política, mídia e religião fica bem evidente em alguns casos: o deputado Antônio Bulhões (PRB- -SP), além de concessionário de três emissoras de rádio, foi apresentador do programa “Fala que eu te escuto”, da Rede Record, e do “Retrato de Família”, na Record News, durante nove anos. Atualmente está em seu terceiro mandato como parlamentar. Ele é um Exemplo do quanto a visibilidade midiática aumenta as  chances de eleição, mas também da relação entre o crescimento de concessões para grupos evangélicos ou espaços “arrendados” para eles na televisão, crescimento da bancada da bíblia e avanço das agendas conservadoras no Congresso Nacional. “Este avanço começou a se configurar com o surgimento da bancada evangélica tal como a conhecemos em 1986, com a eleição do Congresso Constituinte. Naquela ocasião, houve um farto oferecimento de concessões ao chamado ‘centrão’, onde se localizou a maior parte da bancada. Foi dali que surgiram alguns dos empresários de mídia evangélica e a força de igrejas como a Iurd.

Para estes grupos, estar nas mídias é parte de uma estratégia de ocupação de espaços na esfera pública”, conta a professora Magali Cunha. Atualmente, segundo levantamento de grupo de pesquisa coordenado pelo professor Jorge Miklos, da Universidade Paulista, a bancada evangélica é formada por 199 deputados federais e quatro senadores. O cruzamento dos dados da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e de concessionários de radiodifusão é uma tarefa difícil pela falta de transparência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A Agência não disponibiliza um documento único com todas as rádios e tevês e os sócios e diretores.

Existem dois sistemas separados: Sistema de Controle de Radiodifusão (SCR) e Sistema de Acompanhamento de Controle Acionário (Siacco). O SRD não fornece o quadro societário das emissoras, que precisa ser buscado no Siacco. “Esse programa, entretanto, só poderá revelar o capital investido nessa empresa, as nomeações que compõem o quadro societário, quanto cada sócio investiu e o cargo que ele assume, em consultas individuais, dificultando a investigação”, explica Jorge Miklos. O professor coordenou a pesquisa de uma média de 4.500 rádios para cruzar os nomes dos deputados, senadores e seus familiares com as rádios e televisões brasileiras. Porém, houve uma diferença no resultado dos dados. “Por exemplo, o nome do deputado federal cassado Eduardo Cunha encontra-se no anexo do Ministério das Comunicações, mas não no da Anatel”, relata Miklos.

Eduardo Cunha, evangélico da Assembleia de Deus, teve uma representação protocolada contra ele na Procuradoria da República do Rio de Janeiro em dezembro de 2016. Naquele mês, a revista Época divulgou que Cunha consta nos registros do Ministério das Comunicações como sócio da Rádio Satélite. O deputado cassado afirmou para a revista que, apesar de ainda estar na lista de acionistas do Siacco, vendeu suas cotas em 2007, e as transações de compra e venda constaram de suas declarações de renda à Receita Federal. Mesmo que a informação dada pelo ex-deputado esteja correta, trata-se de uma ilegalidade: a definição de que empresa terá direito de explorar o serviço de radiodifusão depende da sua participação em uma licitação, seguida de aprovação pelo Congresso Nacional. Assim, Cunha não poderia simplesmente ter vendido sua outorga.

Bancada religiosa e direitos humanos

FIGURA 4.1.QueméQuem

O aumento da bancada da bíblia é patente: na legislatura de 2003-2006, era formada por 58 congressistas, um crescimento de 25% em relação à legislatura anterior. No Senado, passou de nenhum representante para três mandatos. “A maior parte dos congressistas evangélicos eram pastores vinculados à Assembleia de Deus e à Igreja Universal do Reino de Deus”, segundo Jorge Miklos.

O professor explica: “A Frente Parlamentar Evangélica expressa os interesses das igrejas evangélicas em geral, embora seja principalmente constituída de deputados pertencentes a igrejas pentecostais, que por sua típica agressividade em evangelizar, formam a maior parte da população evangélica brasileira”. Contudo, ele vê diferença nos posicionamentos dos deputados e senadores da FPE: “Os parlamentares evangélicos nem sempre votam em bloco, pois representam correntes distintas no campo religioso e no econômico. Só falam a mesma língua em questões de conteúdo moral. Sua relação com a bancada católica é marcada tanto pela união na defesa de interesses comuns como pela oposição às eventuais tentativas de suprematismo católico”.

Apesar de não formarem um bloco totalmente coeso, uma série de retrocessos nos direitos humanos está associada à bancada da bíblia, especialmente durante o período em que o pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) foi presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara.

Para ficar apenas com casos mais recentes, atualmente, são deputados ligados às igrejas católica e evangélica que estão no comando dos trabalhos da comissão especial que analisa a proposta conhecida como “Escola sem Partido”. O deputado Marcos Rogério (DEM-RO) ocupa a presidência e Flavinho (PSB-SP) é o relator. Ambos defendem o PL 5069/2013, que tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo. Marcos Rogério foi repórter de televisão e radialista, atuando na Comunicação Social por mais de 12 anos. Como deputado, foi relator da cassação de Eduardo Cunha, apesar de, como ele, pertencer à Frente Parlamentar Evangélica.

Flavinho já foi ligado à comunidade católica Canção Nova e apoiou uma proposta para revogar a permissão do uso do nome social de travestis e transexuais em órgãos da administração pública. Ao se colocar contra a criação da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara, Flavinho disse que, em vez de empoderamento, as mulheres querem ser “cuidadas” e que as parlamentares feministas não sabem o que é ser “amadas”. Para o professor Jorge Miklos, “não é inconstitucional ou ilegal a presença da bancada evangélica no congresso nacional. Todos lá dentro foram eleitos democraticamente. O que é inconstitucional? Pautas que ferem a dignidade da pessoa humana, como prevê o Artigo 1º da Constituição Federal, e a pluralidade do povo brasileiro”.

Missas e cultos eletrônicos

Os grupos evangélicos conservadores não se contentam “apenas” com a concessão de emissoras de rádio e televisão. Também ocupam os espaços de outras emissoras, numa prática chamada de “arrendamento”. Ou seja, como se um horário da programação fosse um terreno, o “dono” (concessionário) o cede para que outra pessoa faça uso dele, mediante pagamento. A prática, contudo, é ilegal. “Isso ou é uma subconcessão, o que é vedado, já que a concessão de qualquer serviço (como de estradas) é sempre dada para aquela pessoa jurídica, e não para nenhuma outra, ou é publicidade. Se for publicidade, tem o limite de 25% da programação da tevê”, explicou o Procurador da República Sergio Suiama. Ele é responsável por um inquérito que investiga os casos de arrendamento praticados por Band, Record, Rede TV! e TV Gazeta, a partir de um estudo da programação feito pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).

FIGURA 4.3. PROGRAMAÇÃO DA TV

De acordo com o levantamento, em 2016, 21% do total de programação veiculada pela tevê aberta brasileira foram de programas religiosos. Esse é o gênero número 1 ao se considerar o espaço total das emissoras pesquisadas pela Ancine, representando 1/5 da programação. Dentro da grade de cada uma, o percentual do gênero religioso é o seguinte: Band (16,4%), CNT (89,85%), Globo (0,58%), Record (21,75%), Rede TV! (43,41%), SBT (0%), TV Brasil (1,66%), TV Cultura (0,69%) e TV Gazeta (15,80%).

Curioso notar que a Record, única do grupo cujo concessionário é um bispo da Igreja Universal, não é a que mais veicula conteúdo religioso. Esse dado pode mostrar que, para as demais emissoras, o arrendamento é um negócio como qualquer outro, e não interessa o conteúdo veiculado. Vale ressaltar também duas importantes exceções: dois canais com as maiores audiências, Globo e SBT (numa disputa já longa com a Record pelo segundo lugar), não exercem essa prática: a primeira veicula, por conta própria, a missa católica aos domingos; a segunda é a única emissora que não transmite nenhum programa religioso. “A TV Globo, ao que consta, não recebe pagamento para veicular a Santa Missa. No caso dessas outras emissoras, a gente vê que uma boa parte da programação diária é paga pelas igrejas. Então é diferente a situação. Essas emissoras estão usando as igrejas como fonte de financiamento”, avalia Suiama.

A Ancine contabilizou também o percentual de publicidade veiculada em cada uma das emissoras: Band (3,20%), CNT (0,10%), Globo (0,10%), Record (0,10%), Rede TV! (5,29%), SBT (0,25%), TV Brasil (0,10%), TV Cultura (0,10%), TV Gazeta (43,61%). Quase todas, com a marcante exceção da TV Gazeta, cumprem o teto de 25% de tempo de publicidade comercial estabelecido pelo artigo 28 do Decreto 52.795/63, que determina o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. Contudo, se o arrendamento para igrejas for considerado venda de espaço publicitário, CNT e Rede TV! Estariam infringindo o Regulamento. O caso visivelmente ilegal do Grupo CNT, que vende quase a totalidade do seu espaço, é alvo de ação ajuizada pelo Ministério Público Federal de São Paulo. Outra ação do MPF pelo mesmo motivo foi aberta contra a Rede 21 Comunicações S/A, ambas em 2014. As emissoras venderam 22 horas diárias de toda a sua grade à Igreja Universal. Segundo o MPF, os contratos firmados entre a Universal e as duas emissoras podem envolver R$ 900 milhões.

O Ministério Público solicita, nas ações, que as outorgas sejam invalidadas e que o Grupo CNT, a Rede 21 e a Iurd sejam condenados ao pagamento de indenização, em valor determinado pela Justiça, por danos materiais à União e por danos morais difusos. Além disso, o MPF pede que a Presidência da República e o Ministério das Comunicações sejam condenados a se abster de conceder futuras outorgas de radiodifusão aos dois grupos empresariais e à Universal.

Segundo a assessoria do Ministério Público de São Paulo, as duas ações seguem tramitando na Justiça Federal. A invalidação das outorgas do serviço de radiodifusão pode acontecer, mas depende ainda da decisão da Justiça. O caso das demais emissoras, cujo inquérito foi aberto pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em maio deste ano, ainda está num estágio inicial. A partir da abertura do inquérito, foram solicitadas informações das emissoras e, agora, o MPF aguarda resposta do Ministério das Comunicações.

Segunda colocada no ranking dos programas religiosos, a Rede TV! foi a única que respondeu nossa reportagem. Através de sua assessoria, a emissora afirmou ser “laica em sua programação, transmitindo programas de diversas igrejas evangélicas, a missa da Catedral da Sé da Igreja católica, entre outras. Seus programas discutem abertamente temas de todas as religiões, do espiritismo, do candomblé e de qualquer outra motivação religiosa. Entende que como agente de comunicação não tem o direito, nem a vontade, de cercear ou discriminar qualquer manifestação religiosa, garantindo a mais ampla liberdade de expressão”. Ainda de acordo com a Rede TV!, a programação religiosa não prejudica a democracia: “Programas religiosos existem em todos os países democráticos, sendo vistos por milhões de telespectadores. No Brasil, as coproduções, religiosas ou não, são agentes fundamentais na garantia da pluralidade das comunicações. A RedeTV! respeita integralmente toda a legislação do setor”.

Laicidade, política e comunicação pública

Mesmo sendo uma televisão pública, a TV Brasil veicula programas religiosos da igreja católica e da evangélica. Em 2016, um deles, o evangélico Reencontro, além de fazer proselitismo religioso, serviu também de palanque político. A reclamação foi feita por telespectadores. Segundo o Boletim da Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o programa entrevistou a candidata a vereadora e ex-deputada federal Liliam Sá (PROS- -RJ), no dia 21 de maio, para falar sobre o Rio de Janeiro. Ela já havia sido entrevistada no mês anterior, assim como um pré-candidato a prefeito de São Gonçalo (RJ) e um pastor que mencionou que a esposa seria candidata a vereadora. Liliam é ex-deputada federal. O apresentador abriu o microfone para a candidata apresentar suas propostas para a cidade: “a senhora voltando como vereadora para o Rio de Janeiro, para ajudar esse município, um dos mais importantes do Brasil, quais são os planos que a senhora tem em mente?”. O caso demonstra a desigualdade de possibilidades dos candidatos se comunicarem com o eleitorado, como publicamos em matéria especial do Observatório do Direito à Comunicação sobre políticos donos da mídia.

“O espaço de uma televisão não é propriamente igual ao de uma praça pública. Na praça pública, qualquer pessoa pode chegar e fazer uma pregação, o Estado não pode impedir um pastor, um pai de santo ou um padre de fazer uma pregação no meio da praça. Mas, no caso da televisão, não é um espaço público acessível a qualquer pessoa. O Estado tem que assegurar essa igualdade? A religião que não tem dinheiro para pagar também deveria ter espaço? Se o Estado fosse fazer isso, como ele iria fazer? Iria financiar todas as religiões? Qual seria o critério de financiamento?”. Os questionamentos do procurador Sergio Suiama dizem respeito a um dilema vivido atualmente pela comunicação pública no Brasil. Em 2011, a partir de reclamações de ouvintes e telespectadores à Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o Conselho Curador aprovou uma resolução que solicitava a suspensão dos programas religiosos nos veículos da EBC. Com a decisão, A Santa Missa e Palavras de Vida, produzidos pela Igreja Católica, e o evangélico Reencontro deveriam ter saído do ar. Contudo, a Justiça Federal de Brasília concedeu liminar mantendo a exibição dos programas.

Integrante do Conselho Curador da EBC cassado pelo governo ilegítimo de Michel Temer, a professora da UFPE Ana Veloso relembra o processo: “Nós recebemos várias manifestações, via Ouvidoria, de telespectadores e ouvintes que não estavam satisfeitos porque a EBC transmitia a missa”. A ação está no Supremo Tribunal Federal e ainda aguarda uma decisão de Justiça. “O Estado brasileiro é laico e a comunicação pública deve permitir a liberdade de expressão das diversas religiões e crenças. Então, além de a gente sugerir que esse tipo de programa fosse retirado do ar, e nossa fundamentação está na lei da EBC e na Constituição Federal, também sugerimos que a Empresa viabilizasse a produção de programas que primassem pela diversidade religiosa”, contou Ana Veloso. Os contratos de permissão dos programas religiosos são anteriores à constituição da EBC, em 2007.

O argumento da Arquidiocese do Rio de Janeiro e da Primeira Igreja Batista na Ilha da Conceição, de Niterói, que entraram na Justiça para manter a exibição dos programas, foi de que “a pluralidade máxima consegue-se com a ampliação dos programas religiosos, não com a supressão dos existentes”. Tentamos ouvir o arcebispo católico Dom Orani Tempesta, que defende a continuação das transmissões da Santa Missa, mas não obtivemos retorno da Arquidiocese do Rio de Janeiro até o fechamento desta reportagem. Dom Orani Tempesta foi o presidente do Conselho Nacional de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional, durante o período de 2012 a 2014.

Apesar de não ter conseguido, até o momento, a retirada do ar dos programas que veiculam cerimônias religiosas, o Conselho Curador obteve uma vitória neste processo:a EBC publicou, em 2014, o resultado final de um pitching (espécie de concurso) para contratação de produtoras responsáveis por dois programas sobre diferentes religiões e crenças: Entre o Céu e a Terra e Retratos de Fé. O primeiro foi produzido pela Realejo Filmes e custou R$ 1,3 milhão e, o segundo, pela Aldeia Produções, no valor de R$ 910 mil. “A gente respeita a religião de todas as pessoas, mas a gente defende o Estado laico. Não podemos, numa emissora pública, privilegiar uma religião em detrimento de outra, porque isso se chama manutenção de privilégios”, reforçou Ana Veloso.

Intolerância religiosa

“Na minha vida dei um chute na heresia / Houve tanta gritaria de quem ama a idolatria / Eu lhe respeito meu irmão, não quero briga / Se ela é Deus, ela mesmo me castiga”. Os versos acima, compostos pelo bispo Marcelo Crivella, fazem parte da canção “Um chute na heresia”, lançada em CD do atual senador e postulante à prefeitura do Rio de Janeiro em 1998. Divulgados na última semana pela imprensa, os versos relembram um marcante episódio de intolerância religiosa. No dia 12 de outubro, quando católicos celebram o Dia de Nossa Senhora Aparecida, o bispo da Igreja Universal Sérgio von Helder chutou uma imagem da santa no programa O Despertar da Fé, transmitido pela Rede Record. O episódio aconteceu em 1995 quando, por coincidência, a Igreja Católica passou a ter seu próprio canal de televisão, a Rede Vida.

O bispo foi condenado por intolerância religiosa e vilipêndio a imagem. O Ministério das Comunicações chegou a se comprometer a investigar se o pastor infringiu leis do setor e foi considerado parcialmente responsável pelo episódio pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio de Araújo Sales.

Mas, na “guerra santa” midiática, os que não professam nenhuma crença também já foram alvo de discurso de ódio. Em caso mais recente, a Band teve que assinar um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público Federal comprometendo-se a exibir 72 vezes um vídeo produzido pelo MPF cujo objetivo é conscientizar a população sobre a laicidade do Estado brasileiro. A assinatura do TAC, feita em 2016, é resultado de um processo aberto pelos procuradores contra a emissora após declarações preconceituosas do apresentador José Luiz Datena no programa Brasil Urgente contra cidadãos ateus, no dia 27 de junho de 2010. O apresentador teria associado práticas criminosas à “ausência de Deus”: “Porque o sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites, é por isso que a gente vê esses crimes aí”.

Para Daniel Sottomaior, presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), a veiculação desse tipo de conteúdo estimula o preconceito. José Luiz Datena, o repórter Maurício Campos e a Rede Bandeirantes foram condenados a pagar R$ 135.600,00 à Associação. Outro caso que acabou parando na Justiça diz respeito a uma ação foi movida, em 2004, pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) de São Paulo e o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro Brasileira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert). Naquela ocasião, a Justiça entendeu que a Rede Record e a Rede Mulher descumpriram o artigo 215 da Constituição de 1988, uma vez que deixaram de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e não protegeram as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras. As duas emissoras haviam produzido e veiculado conteúdos ofensivos contra as religiões de matriz africana.

Para a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Stela Guedes Caputo, apenas quando é cometida alguma violência contra um terreiro ou uma pessoa de religião de matriz africana é possível conseguir alguma abordagem positiva da mídia. No entanto, Stela considera a inclusão dos terreiros fundamental para se compreender o Rio de Janeiro e o Brasil: “Qualquer mídia e discussão política que exclua os terreiros não é democrática. Se uma criança de candomblé não pode andar na rua sem medo, não vivemos numa democracia”.

Que religião se vê na TV?

Apesar do crescimento do número de evangélicos, que aumentou mais de 61,45% nos últimos dez anos, o Brasil ainda é majoritariamente um país católico. De acordo com dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do país se divide entre 123.280.172 católicos; 42.275.440 evangélicos; 3.848.876 espíritas; 588.797 umbandistas, candomblecistas e pessoas de outras religiões afro-brasileiras; 5.185.065 cidadãs e cidadãos de outras religiões e 15.335.510 sem religião. Para a professora Magali Cunha, “os grupos religiosos são segmentos sociais como outros e podem participar do espaço público, inclusive da política. Isto é saudável numa democracia. A concessão de radiodifusão para grupos religiosos deveria obedecer aos mesmos processos de concessão para outros segmentos sociais, com as mesmas exigências de comprometimento”.

No entanto, como o interesse político e econômico influencia fortemente a aprovação de concessões de rádio e tevê, essa distribuição acontece de forma desigual. Segundo Stela Guedes, as religiões afrodescendentes são tratadas de forma negativa tanto pela mídia corporativa quanto pela mídia da Igreja Universal. “Lutar contra isso é muito difícil, porque os terreiros são unidades independentes e muito pobres, sem condições de ter meios de comunicação próprios como as igrejas católica e evangélica”, afirmou Stela, que é candomblecista e faz parte do grupo de pesquisa Kererê (“miúdo”, em iorubá).

Assim, enquanto milhares de pessoas de outras religiões não têm espaço na mídia, a Igreja Universal tem um verdadeiro conglomerado. De acordo com informações dos próprios veículos da Iurd, a Folha Universal é a publicação impressa de maior distribuição do Brasil, com tiragem semanal média de 1,6 milhão e circulação em todo o país. Dados de 2014 encontrados no site da Universal apontam que a Rede Aleluia, composta por emissoras de rádio e televisão, atinge 75% do território nacional. É formada por 64 emissoras, espalhadas por 22 estados. O missionário da Assembleia de Deus Cosme Felippsen acredita que o problema não é o fato de grupos religiosos serem detentores de outorgas de radiodifusão, mas o conteúdo que transmitem em suas pregações. “O pessoal demoniza as religiões de matriz africana, e isso é uma das faces do racismo. As igrejas cantam contra orixás e outras entidades”, conta. Felippsen critica sua igreja, considerada por ele uma das mais “machistas, homofóbicas e racistas”, porém ainda se identifica com ela por ser o espaço que frequenta desde os três anos de idade, quando sua mãe se converteu. Porém, lembra que é um erro associar todos os evangélicos ao conservadorismo: “Existe um grupo forte de comunidades de fé que se reúnem no Ato Aula Pública Evangelho e Desobediência Civil. São evangélicos de esquerda que se encontram para discutir política. É a contracorrente dentro do movimento”. Cosme Felippsen deixa o recado contra a intolerância: “O problema é que, às vezes, a gente generaliza tudo”.

Para a professora Magali Cunha, o que ocorre hoje é que os grupos religiosos tiram vantagem das concessões e dos arrendamentos da mesma forma que outros segmentos o fazem, uma vez que não há regulação. Segundo ela, “o mesmo ocorre com ‘abusos’ da presença religiosa em outras frentes do espaço público, na política partidária, em que não há regulação e freios para que estes grupos não ultrapassem o sentido democrático de sua participação”.

*A reportagem procurou a Igreja Universal do Reino de Deus através da única forma de comunicação que disponibiliza em seu site, um formulário para envio de email. Não obteve resposta até o fechamento da matéria.

Google é processado por publicidade infantil ilegal no youtube

O Ministério Público Federal (MPF) ingressou na semana passada com uma ação civil pública contra a empresa Google Brasil Internet Ltda pela exposição demasiada de crianças na plataforma Youtube. A justificativa do MPF é de que o Youtube tem diversos vídeos postados por particulares que são protagonizados por crianças de até 12 anos de idade, o que coloca em risco os direitos de crianças e adolescentes.

Em nota, o MPF explanou que, “quando atingem grande número de visualizações, os youtubers mirins tornam-se pequenas celebridades. Em decorrência dessa exposição, acabam atraindo a atenção do mercado, que os faz atuar como promotores de vendas, protagonizando anúncios comerciais de produtos dirigidos ao público infantil”.

Mesmo não havendo uma lei específica sobre publicidade infantil no Brasil, a ação se baseia em dispositivos legais presentes na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Assim, ao se aproveitarem de crianças para promover produtos, os responsáveis pelos vídeos estariam desrespeitando a lei. Pois, conforme a nota, a publicidade na forma de merchandising protagonizada por crianças ou a elas destinada é proibida no Brasil por ser considerada potencialmente abusiva, já que atinge um público altamente suscetível a apelos emotivos e subliminares. “As crianças não têm maturidade suficiente para discernir entre fantasia e realidade ou para resistir a impulsos consumistas”, afirma a nota

O artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) destaca como abusiva a publicidade que “se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança” e, no artigo 39, proíbe que o fornecedor de produtos ou serviços se prevaleça da “fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade”.

Fundamentado por esses dispositivos, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) editou em 2014 uma resolução considerando abusiva a publicidade direcionada ao público infantil com a intenção de incentivá-lo ao consumo.

A ação indica que o Google seja obrigado a disponibilizar um aviso na página inicial da plataforma Youtube ou em todos os vídeos postados sobre a proibição de se veicular merchandising ou propaganda de produtos ou serviços protagonizados por crianças ou a elas destinados.

Também foi pedido à Justiça que determine a inclusão de uma ferramenta que permita aos usuários denunciar como impróprio os vídeos com propaganda de produtos destinados ao público infantil.

O Google informou em nota que o YouTube é uma plataforma aberta e destinada a adultos, conforme descrito nos termos de serviço. “Seu uso por crianças deve sempre ser feito num contexto familiar e em companhia de um adulto responsável”, afirma o texto.

A empresa expõe que usuários e anunciantes precisam observar as diretrizes da plataforma e a legislação brasileira e que tanto os vídeos compartilhados como a publicidade veiculada no Youtube podem ser denunciados por qualquer pessoa, sendo excluídos se constatadas irregularidades.

ONU pede regulamentação da publicidade infantil

Os efeitos da publicidade infantil vêm sendo debatidos em todo o mundo há muitos anos. Em alguns países existem amparos legais justamente a fim de proteger as crianças de abusos na publicidade veiculada.

No dia 09 de agosto deste ano, especialistas em direitos humanos das Nações Unidas alertaram sobre o impacto da publicidade comercial dirigida a crianças, já que a mesma induz em uma idade precoce a cultura do consumo e do endividamento.

Juan Pablo Bohoslavsky, especialista da ONU Independente sobre a dívida externa e direitos humanos, e o relator especial da ONU sobre o direito à saúde, Dainius Puras, pediram que governos em todo o mundo regulamentem a publicidade dirigida às crianças.

Confira trechos do documento:

“Tais mensagens comerciais têm o potencial para moldar consumidor a longo prazo das e moldar o comportamento financeiro das crianças… Anúncios dirigidos para crianças podem causar o comportamento insalubre do consumidor e se tornar enraizada em uma idade precoce, condicionando as crianças a responder mais tarde a estímulos comerciais através da compra de produtos desnecessários sem levar em conta as consequências financeiras de longo prazo.

Muitas propagandas dirigidas à criança promovem o consumo de alimentos não saudáveis com alto teor de açúcar e pouco valor nutritivo. O que pode ter consequências graves para a saúde susceptíveis de persistir na idade adulta. A regulação da publicidade dirigida às crianças para os produtos alimentares, poderia melhorar substancialmente a saúde e reduzir o peso das despesas de cuidados de saúde.

Além disso, depois de ter sido exposto a um grande número de anúncios dirigidos a crianças, elas podem pressionar seus pais para comprar itens que não são nem orçados nem pedagogicamente necessários, muitas vezes em detrimento de outras necessidades domésticas importantes.

Chamamos os Estados a proibir a publicidade, promoção e patrocínio por parte dos fabricantes de álcool, tabaco e alimentos não saudáveis nas escolas e no contexto de eventos desportivos infantis e outros eventos que podem ser frequentadas por crianças. Além disso, os Estados devem criar diretrizes que quer restringir ou minimizar o impacto da comercialização de alimentos não saudáveis, álcool e tabaco em geral.

Mais amplamente, estamos unidos para regulamentar a publicidade dirigida às crianças, em conformidade com o dever dos Estados de proteger as crianças de prejuízo material a seu bem-estar”.

O Projeto de Lei 5921/2001

O Projeto de Lei 5921/2001, de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), pretende criar regras claras para a publicidade dirigida ao público de até 12 anos de idade. Entretanto, sua tramitação na Câmara dos Deputados já completa 15 anos. Dois textos substitutivos foram aprovados – um na Comissão de Defesa do Consumidor, em 2008, e outro na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC), em 2009. Esse último também foi aprovado na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), em 2013.

Entretanto, o texto aprovado na CCTCI, de autoria do deputado Osório Adriano (DEM-DF), muda muito pouco o que já temos hoje na legislação: inclui apenas duas frases no artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, considerando abusiva “a publicidade que seja capaz de induzir a criança a desrespeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família e que estimule o consumo excessivo”.

Segundo o Instituto Alan, o texto aprovado pela Comissão de Defesa do Consumidor em 2008, de autoria da então deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG), é o que melhor protege a criança brasileira. Esse texto é bastante detalhado e define por comunicação mercadológica toda atividade de comunicação comercial para divulgação de produtos e serviços em qualquer suporte (comerciais televisivos, banners e sites na internet, embalagens, promoções, merchandising, etc).

O Projeto de Lei 5921/2001 encontra-se pronto para ser votado pelo plenário.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Relator da OEA denuncia violação à liberdade de expressão em protestos no Brasil

“A situação da liberdade de expressão no Brasil nos últimos seis meses tem se complicado bastante”, lamentou o relator especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), Edison Lanza, que esteve em São Paulo nesta segunda-feira, 26, em debate promovido pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e a Artigo 19.

Para ele, o momento político no país é delicado, mas também é uma boa oportunidade para a reflexão sobre a função democrática que cumpre a liberdade de expressão. “A livre manifestação é um direito fundamental para consolidar e reafirmar o sistema democrático”, afirma.

Lanza, que é jornalista e advogado, destacou algumas questões que considera uma tendência no Brasil no decorrer dos últimos 10 anos, que teriam se constituído em “problemas estruturais”: a violência contra jornalistas e comunicadores; o uso de aparato policial para inibir o trabalho da imprensa; a interpretação que se dá sobre o que é liberdade de expressão e o fato dela não funcionar para proteger a livre manifestação; e a falta de diversidade nos meios de comunicação no país, o que prejudica o pluralismo e a multiplicidade de ideias.

O relator mostrou muita preocupação com questões que eram consideradas avanços, mas que agora apresentam uma pauta de retrocessos, na medida em que caracterizam um momento “regressivo em direitos humanos, o que se aplica à liberdade de expressão, como a tentativa de acabar com a Lei de Acesso à Informação”. O início deste “desmonte” teria sido a incorporação da Controladoria Geral da União (CGU) pelo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, pois, nessa estrutura, o órgão pode sofrer possíveis interferências políticas. Por isso, Lanza reforça a importância da autonomia e independência da CGU.

Segundo Lanza, o relatório de 2016 ainda está em construção, mas já é possível afirmar que houve uma grande derrota no que tange à liberdade de expressão no Brasil. Para ele, o enfraquecimento da comunicação pública com a Medida Provisória (MP) que alterou o caráter da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e destituiu o Conselho Curador trará efeitos muito negativos para o país. “Este é um setor que muito avançou nos últimos anos. Houve um fortalecimento dos canais públicos, com uma programação plural e diversa e uma visão diferente da dos canais comerciais. Mas que perde muito com essa MP e com a maior interferência do governo [atual]”, frisa.

Manifestações e violência policial

Edison Lanza destaca que nesta visita, a OEA está trabalhando a questão do protesto social no Brasil. “Estão sendo desrespeitados direitos básicos da pessoa no espaço público. Jornalistas que trabalham atendendo interesses públicos enfrentam dificuldades para cobrir manifestações”.

Ele critica o uso desproporcional da força para reprimir as manifestações, tanto contra os manifestantes quanto em relação aos profissionais que cobrem os protestos, “A violência contra jornalistas vai das agressões à apreensão de materiais de trabalho, além da militarização e da agressão e detenção de participantes. Nesse momento, mais do que nunca temos que retomar a defesa da liberdade de expressão”, afirma.

Camila Marques, da Artigo 19, reforça que um tema muito recorrente nas relatorias da OEA é o das violações à liberdade de expressão em protestos e manifestações sociais, e que isso vem se tornando cada vez mais evidente a partir de julho de 2013 quando houve muita visibilidade aos protestos. Ela critica a ação do Estado, que violenta ainda mais os direitos dos cidadãos. “Ao invés do Estado parar e repensar suas ações e suas práticas, ele aprimorou e sofisticou tanto suas técnicas de repressão quanto seus argumentos jurídicos para impedir a manifestação de acontecer ou para criminalizar o manifestante. Hoje estão aplicando tipos penais bastante complexos, como a formação de organização criminosa”, afirma ela.

Marques destaca a falta de um protocolo para a ação dos militares durante abordagem de manifestantes na rua. “Desde 2013, a policia faz uso desproporcional da força contra os manifestantes. A gente nem sabe se existem protocolos, já que são documentos sigilosos. Questionamos em determinado momento sobre o que eles [policiais] seguiam para o uso dos armamentos ‘não letais’. Eles indicaram que seguiam a orientação dos fornecedores. Lemos um desses manuais, que dizia que o equipamento só poderia ser usado da cintura para baixo. Ou seja, eles não seguem nem os manuais, que não são documentos oficias.”

Para Marques, existe um vácuo normativo na regulamentação do uso da força. “Existe desde 2014 uma ação judicial tentando obrigar o estado de São Paulo a constituir um protocolo com base em normas internacionais e até mesmo em normativas gerais de uso da força que já existem no Brasil. Em 2015, um juiz decidiu que a polícia não pode agir de qualquer forma. Ele entendeu que os policiais tinham que ter algum amparo legal para seguir, e proferiu uma liminar positiva [à demanda]. Porém, o estado recorreu e ainda aguarda nova decisão”, explica.

Criminalização pelo Judiciário

Outra questão que Marques levanta é a pauta de retrocessos no Congresso Nacional, que tenta reinserir na Lei Antiterrorismo trechos que já foram suprimidos do projeto de lei, como a questão dos atos de terrorismo decorrentes de posições político-ideológicas e a exclusão da ressalva de que a lei não se aplica aos movimentos sociais, desde que estejam reivindicando direitos constitucionais. “A lei já é bastante problemática, e vale lembrar que o Judiciário, em sua maioria, é um Judiciário conservador, que pode fazer uma interpretação bastante criminalizadora desse projeto [texto legal]. Esse é um alerta para que a sociedade acompanhe [a tramitação do projeto], para que não haja ainda mais retrocessos”.

Um alerta à sociedade sobre as posturas criminalizadoras do Judiciário em relação aos movimentos sociais e às pessoas presentes em protestos também se encontra nas últimas decisões de juízes que responsabilizam profissionais da comunicação por acidentes ocorridos nas manifestações. “Decisões judiciais estão culpabilizando a vítima, inclusive jornalistas que cobrem manifestações e estão no exercício de suas profissões, como é os casos de Alex Silveira e Sergio Silva. Os dois cobriam manifestações e perderam a visão por conta de balas de borrachas disparadas pela polícia. Nos dois casos, a Justiça decidiu que eles não deveriam receber indenização do Estado e que eram responsáveis pelo acontecido”, lamenta.

Renata Miele, coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), aponta que as repressões policiais em protestos têm sido seletivas. “Nenhuma manifestação convocada por grupos de direita sofreu qualquer tipo de repressão policial. Todas as manifestações com pautas em defesa da democracia, saúde, educação foram reprimidas. Um exemplo claro foi a manifestação dos professores no Paraná.”

Ela afirma que a vedação à liberdade de expressão tem se ampliado e agora também se manifesta em outros espaços da sociedade, como nos ambientes universitário e escolar, e cita como exemplo o chamado projeto Escola sem Partido, que tenta confundir a sociedade sobre quais são efetivamente suas intenções. Miele pede ao relator especial da OEA que esta questão igualmente seja tratada no relatório. “Não podemos permitir retrocessos. A livre expressão do pensamento é a base para a produção do conhecimento e de formação de uma sociedade mais critica e mais politizada.”

Liberdade de expressão na internet

Edison Lanza citou o Marco Civil da Internet como muito importante para que o Brasil alcance um efetivo exercício de liberdade de expressão, na medida em que defende a neutralidade de rede, a não discriminação e a proteção da privacidade. “Uma lei que é exemplo para outros países, mas que está em risco por tentativas de alterações no Congresso”, aponta ele.

Sobre o assunto, Marques sustenta que estamos vivendo um período de “vigilantismo” virtual e lembra da ação policial que culminou com a prisão de 21 manifestantes, caracterizada pela atuação de um militar que estava infiltrado no grupo de pessoas que simplesmente organizava sua livre manifestação e que vigiava as redes sociais. “Temos que lutar até mesmo pelo direito ao protesto”, desabafa.

Para Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, o Marco Civil da Internet está passando por um momento crucial no Congresso Nacional. “Uma série de projetos de lei tenta mudar a lei já aprovada. Um deles libera o acesso aos dados das pessoas sem ordem judicial para qualquer autoridade policial. São projetos que violam a privacidade do usuário com a falsa ideia de que estão combatendo crimes cibernéticos”, pondera.

Repressão a jornalistas em protestos

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) está produzindo um relatório sobre os casos de violência policial sofridos por jornalistas brasileiros durante a cobertura de protestos nos últimos três anos. Órgão independente da Organização dos Estados Americanos (OEA), a CIDH enviou ao país dois representantes para colher relatos, evidências e dados que possam comprovar as recorrentes denúncias de violência, intimidação e cerceamento da liberdade de expressão nos diferentes protestos de rua que eclodiram no país desde 2013.

O relatório deve estar pronto no início de 2017, quando será apresentado ao Pleno da Comissão. Ela vai decidir se aprova o relatório ou não. Se aprovar, a CIDH pode encaminhar uma ação para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

De acordo com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), entre 2013 e 2016 foram registrados 208 casos de agressões, prisões indevidas, destruição de equipamentos e cerceamento do trabalho de profissionais de imprensa pelas forças policiais do país, em especial pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

OEA: “Brasil enfrenta contexto delicado para liberdade de expressão”

Relator da OEA, Edison Lanza afirma preocupação com repressão a protestos, vigilância na internet e retirada dos mecanismos de autonomia da EBC

Por Bia Barbosa*

Em agosto de 2015, o relator especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a liberdade de expressão – o uruguaio Edison Lanza – esteve no Brasil e, a convite da sociedade civil, se reuniu com diversas autoridades e ministros do governo Dilma Rousseff.

Na época, o objetivo de Lanza era dialogar com o poder público brasileiro no sentido de promover políticas públicas de incentivo à diversidade e pluralidade na mídia brasileira.

A partir da escuta de demandas de organizações com o Intervozes e o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Lanza colocou a relatoria especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos à disposição para contribuir no debate sobre um novo marco regulatório para as comunicações no país, que democratizasse a liberdade de expressão no Brasil.

Pouco mais de um ano depois, Lanza volta o país num contexto muito diferente para o exercício deste direito. Nesta segunda-feira 26, ele participou em São Paulo de um debate sobre o estado da garantia da liberdade de expressão no Brasil e demonstrou preocupação com as ameaças em curso ao direito à palavra em nosso território.

“Estamos num contexto difícil e delicado para a democracia no Brasil, daí a importância de discutirmos o papel da liberdade de expressão para as democracias. A Convenção Americana de Direitos Humanos, as cartas e princípios da OEA falam de uma democracia com pluralismo de ideias, com debate democrático e a garantia de um jornalismo livre e independente, não apenas uma democracia formal”, explicou Edison Lanza.

Segundo o relator, a ausência de políticas de promoção à diversidade e pluralidade midiática é uma característica histórica do Brasil. Porém, a preocupação hoje é com a regressão de avanços obtidos no país no campo das comunicações. “O princípio da não regressão em matéria de direitos humanos também se aplica à liberdade de expressão”, lembrou.

Em junho deste ano, em conjunto com a relatoria especial da ONU para o tema, a OEA publicou um comunicado em que manifestava preocupação com as medidas adotadas pelo então governo interino de Michel Temer em relação à intervenção na direção da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e à conversão da Controladoria Geral da União (CGU) em Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle.

“A interferência na direção da EBC e a conversão da CGU em Ministério são passos negativos para um país conhecido pelo seu sólido compromisso com a liberdade de opinião e expressão”, falava o texto.

Lanza contou que, na época, o governo Temer respondeu ao comunicado afirmando que respeitaria a autonomia da EBC, mas isso não aconteceu.De lá pra cá, como comentamos várias vezes neste blog, um golpe também foi dado ao caráter público da Empresa Brasil de Comunicação.

Além da destituição do presidente Ricardo Melo e da dissolução do Conselho Curador, ambos via medida provisória, da extinção de programas e demissão de dezenas de profissionais, na última semana a nova direção da EBC trocou os ouvidores de rádio e TV da empresa. Foi a primeira vez que eles foram indicados diretamente pelo Planalto.

Direito aos protestos e à privacidade

Outro tema que preocupa a relatoria da OEA é o avanço da repressão a protestos. A visita de Lanza ao país foi justamente para ouvir movimentos sociais e ativistas vítimas de repressão das forças de segurança em manifestações públicas.

O relator está preparando um informe temático da região sobre os protestos e veio ao Brasil para coletar casos específicos. Com o apoio da Artigo 19, organização internacional que trabalha com este tema, já se reuniu em Brasília com movimentos de luta pela terra e, em São Paulo, com estudantes, mulheres e comunicadores que cobrem protestos e também são atingidos pela repressão policial.

“Protestos ganham força quando a população não encontra outra forma de interlocução com os governos. Para muitos grupos sociais, a proteção a esta forma de expressão é vital. E hoje vemos no Brasil uma série de obstáculos para a garantia do direito ao protesto, como a exigência de autorização prévia para as manifestações, o uso desproporcional da força – em vez de se facilitar o exercício deste direito – a violência contra jornalistas, com a apreensão de equipamentos de trabalho e a vigilância das lideranças”, afirmou Edison Lanza.

O relator citou ainda como preocupante os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que pretendem alterar o Marco Civil da Internet e autorizar uma coleta massiva de dados da população. Ele lembrou que a proteção do direito à privacidade dá ao cidadão o direito de saber, por exemplo, quem está coletando dados, por quanto tempo e o que está sendo feito com eles.

Durante o evento em São Paulo, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA lançou uma publicação com os informes dos últimos 10 anos sobre a situação no Brasil.

O documento também aponta problemas como a intimidação e ameaças a comunicadores e blogueiros; decisões judiciais que restringem a liberdade de expressão, como casos de remoção e proibição da publicação de determinados conteúdos; e a criminalização das rádios comunitárias.

No domingo 25, Edison Lanza também se reuniu com organizações da sociedade civil e comunicadores e recebeu uma série de denúncias de violações que vem sendo praticadas no país.

Ele se comprometeu a analisar todos os casos. Já as entidades brasileiras, entre elas o Intervozes, devem se organizar para solicitar formalmente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma audiência pública em Washington, sede da OEA, em março de 2017, para discutir o quadro de violações à liberdade de expressão no Brasil.

“Hoje, mais do que nunca, é importante retomar a defesa desssa liberdade. Sem sua plena vigência, não há verdadeira democracia”, concluiu Lanza.

*Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos, coordenadora do Intervozes e secretária geral do FNDC.

Conselho Nacional dos Direitos Humanos aprova relatório sobre Direito à Comunicação

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) aprovou por unanimidade, em sua 20ª reunião ordinária, realizada no dia 16 de setembro, em Brasília, o relatório sobre Direito à Comunicação e à Liberdade de Expressão na Mídia Brasileira.

O documento destaca as graves violações de direitos praticadas pela mídia brasileira, principalmente em programas com cunho “policialesco”, e foi construído a partir de denúncia firmada pelas organizações ANDI — Comunicação e Direitos, Intervozes — Coletivo Brasil de Comunicação Social e Artigo 19, que informaram ao CNDH a ocorrência de violações de direitos humanos e infrações a leis na mídia brasileira, especificamente em programas de rádio e TV. Os denunciantes basearam-se nos resultados de monitoramento de 28 programas, produzidos e transmitidos em 10 capitais das cinco regiões do país em março de 2015, obtendo um total de 1.928 narrativas analisadas.

Inicialmente discutido e formulado pela Comissão sobre Liberdade de Expressão e Direito à Comunicação da CNDH, o relatório foi levado ao plenário do conselho. Ali, recebeu novos olhares e foi ampliado com novas recomendações e propostas de ações apontadas pelos conselheiros.

Helena Martins, integrante do Intervozes e conselheira do CNDH, destaca que, desde o início da atual gestão do conselho, existe uma preocupação com a abrangência dos impactos da concentração da propriedade midiática e da veiculação de conteúdos violadores, além da necessidade da sociedade avançar na compreensão da comunicação. “No início desta gestão, levantamos a questão de constituir uma comissão que trabalhasse a fim de se fazer cumprir o papel de ampliar o entendimento na sociedade de que a comunicação é um direito humano fundamental. Assim nasceu a Comissão Permanente de Direitos à Comunicação e à Liberdade de Expressão”, frisa Helena.

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos foi criado pela Lei nº 12.986/2014 e possui como atribuições, entre outras: receber representações ou denúncias de condutas contrárias aos direitos humanos; habilitar-se como assistente em ações cíveis ou criminais sobre violações desses direitos; recomendar ações em órgãos públicos.

Nessa perspectiva, o conselho, que tem se proposto a fomentar o diálogo social e a busca conjunta de soluções, listou nove recomendações no relatório:

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação