O atentado ao Charlie Hebdo e a regulação da mídia

Por Mônica Mourão e Bia Barbosa*

Neste domingo (11), mais de um milhão e meio de pessoas foram às ruas em Paris em homenagem às doze vítimas do atentado à revista Charlie Hedbo, no último dia 7, e dos acontecimentos que o sucederam, quando outras quatro pessoas foram assassinadas dentro de um supermercado de produtos judaicos na cidade. Foi a maior manifestação da história da França. Mais de quarenta líderes e chefes de Estado se encontraram com o Presidente François Hollande e reafirmaram seu compromisso no combate ao terrorismo. Depois do Arco do Triunfo, foi a vez da estátua que simboliza a República Francesa e seus valores ser iluminada com a frase “Je suis Charlie”.

Nos últimos dias, entretanto, outra frase ganhou a internet e as redes sociais: “Je ne suis pas Charlie”, adotada por aqueles que consideram ofensivas as charges publicadas pela revista. O caso, porém, enseja um debate muito mais complexo, que exige fugir das dicotomias. O slogan e seu antislogan, em sua condensação de ideias em poucas palavras, falham ao confundir a solidariedade (ou falta dela) às vítimas do atentado com a concordância ou discordância com a linha editorial do Charlie Hebdo – e, ainda, com a defesa de que se deve ter a liberdade de expressar quaisquer pensamentos. Não à toa, ambos estão sendo apropriados pelos mais diferentes “lados” em disputa, em meio à comoção que abateu o mundo ocidental.

Ao criticar as publicações do Charlie Hebdo, não foram poucos os que, absurdamente, seguiram na linha de culpabilizar as vítimas por sua própria morte. “Quem mesmo puxou o gatilho?”, questionaram. Nada mais abjeto. Refletir sobre o impacto de charges ofensivas é, no entanto, também importante, principalmente quando o alvo indireto dos desenhos é uma população já estigmatizada na França: a comunidade muçulmana.

Não foram poucos os analistas que afirmaram, com razão, que os desenhos do Hebdo reforçaram, nos últimos anos, a linha conservadora da política francesa contrária aos imigrantes. Mesmo que seu foco principal fossem os fundamentalistas, diversas retratavam muçulmanos genericamente como terroristas. Depois dos atentados desta semana, a ascensão de uma ofensiva intolerante contra estrangeiros é dada como certa.

Marine Le Pen, presidente da Frente Nacional, partido francês de extrema direita, em entrevista publicada na última sexta-feira pela Folha de S. Paulo, defende o controle das fronteiras e da imigração que causa isolamento. Excluída das celebrações realizadas em Paris neste domingo, Marine reuniu 16 mil pessoas em uma cidade do sul do país para discursar, novamente, contra o “terrorismo islâmico”. Aos conservadores franceses, é muito mais interessante tratar os atentados desta semana como um conflito religioso do que como fruto das políticas interna e externa do país, em relação ao Oriente Médio e aos países do norte da África – suas ex-colônias – e àqueles que de lá migram para o território francês.

O discurso de Le Pen ecoa a ideia do “nós contra eles”, que não apenas é preponderante da mídia francesa como também tem dado a tônica da cobertura jornalística sobre o tema no Brasil, reforçando barreiras entre franceses e imigrantes. No dia do ataque ao Charlie Hebdo, o jornal O Globo escreveu que é preciso que “os governos convençam esses imigrantes [segregados] das vantagens dos valores ocidentais sobre o fundamentalismo”. Trata-se de um tipo de polarização já bastante criticada por Edward Said em 2001, ao colocar em xeque o conceito de “choque de civilizações” como uma explicação para os atentados de 11 de setembro, nos Estados Unidos.

Por isso, não é equivocado afirmar que inúmeras capas do Charlie foram usadas, independentemente da vontade ou não de seus autores, como armas para propagar o preconceito e a estigmatização. Muitas, inclusive, foram alvo de processos, mas a Justiça francesa, seguindo uma antiga tradição do país em relação ao humor e à sátira, não condenou seus autores, com base no princípio da liberdade de expressão. E, em absoluto, nenhuma delas – nem o seu conjunto – pode justificar qualquer tipo de violência.

Mas, tirando o caso específico do Charlie Hebdo do foco, vale perguntar: vale tudo então em nome desta liberdade de expressão? Não. Na própria França, como na maior parte dos países democráticos, há, por exemplo, regras claras contra a veiculação de conteúdo discriminatório na televisão. A diretiva europeia em vigor, válida para todos os países do bloco, proíbe o incitamento ao ódio por razões de sexo, origem racial ou étnica, religião ou convicção, deficiência, idade ou orientação sexual. O Conselho Europeu também emitiu resoluções e recomendações que tratam da representação e de discriminações contra grupos específicos, não apenas na mídia televisiva.

A Recomendação 1277, 1995, sobre migrantes e minorias étnicas, por exemplo, afirma que eles “devem ser representados de forma compreensiva e imparcial na mídia. Esta é uma precondição para que todos os cidadãos desenvolvam uma visão mais racional da imigração e do multiculturalismo e aceitem pessoas de origem imigrante ou membros de minorias étnicas como iguais”. Já a resolução 1510, de 2006, e a recomendação 1805, de 2007, tratam de grupos alvos de preconceito religioso. A primeira afirma que “enquanto há pouco espaço para restrições de discursos políticos ou de debates sobre questões de interesse público, uma margem de apreciação mais ampla está geralmente disponível quando se trata da regulação da liberdade de expressão em relação a assuntos passíveis de ofenderem convicções pessoais morais ou religiosas” e que “o discurso de ódio contra qualquer grupo religioso não é compatível com os direitos e liberdades fundamentais garantidos pela Convenção Europeia de Direitos Humanos e com a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos”.

Já a recomendação de 2007 diz que “em uma sociedade democrática, grupos religiosos, assim como outros grupos, devem tolerar debates e posicionamentos públicos críticos acerca de suas atividades, ensinamentos e crenças, desde que tal crítica não atinja insultos intencionais e gratuitos ou o discurso de ódio, e não configure incitamento à perturbação da paz ou à violência e discriminação contra adeptos de uma determinada religião”.

Colocando tais leis em prática, o Conselho Superior do Audiovisual (CSA), órgão regulador das comunicações na França, já notificou e responsabilizou diversas emissoras de TV por veicularem conteúdo discriminatório contra árabes – mesmo que estes não tenham sido produzidos pelos canais e sim tenham vindo de opiniões emitidas por convidados entrevistados em seus programas. Foi assim com o Canal+, com o France 2 e com o France 5, todos em 2010.

É claro que, por mais que existam normas e um órgão regulador fiscalizador dos meios de comunicação de massa, o problema das ofensas e da subrepresentação da população árabe e muçulmana – vale lembrar que não são sinônimos – na televisão francesa está longe de ser resolvido. Um estudo feito pelo pesquisador Eric Macé em 2006, sobre as discriminações nos programas da televisão do país, revelou que a maioria dos árabes retratados na tela não são membros da sociedade francesa, e sim habitantes de países considerados “subdesenvolvidos”, como Marrocos ou Egito. O autor também encontrou um “efeito de equivalência” entre classes populares, classes perigosas e não-brancos, de forma que “todas as imagens tendem a ganhar conotações desqualificantes”, numa visão de mundo bastante conservadora. Porém, as charges do Charlie Hebdo dificilmente seriam veiculadas pelos canais de TV. Se fossem, os mesmos provavelmente seriam responsabilizados pelo CSA.

Fica clara, assim, a diferença empregada na França entre os limites à liberdade de expressão impostos a canais de rádio e TV – meios de comunicação de massa e concessões públicas – e a meios impressos, como o Charlie Hebdo, lido por 60 mil pessoas que, voluntariamente, optam por adquirir este tipo de conteúdo. Infelizmente, essa diferença está longe de ser considerada por aqueles que, não involuntariamente, transformaram o ataque da última quarta-feira exclusivamente num “atentado à liberdade de expressão”.

No Brasil, o destaque dado à questão da liberdade de expressão como um dos pilares das democracias ocidentais veio muito a calhar para os veículos da chamada “grande mídia”, que aproveitaram mais esse momento para defender a liberdade de expressão como algo oposto à regulação dos meios. Aqui, a ideia equivocada sobre a regulação enquanto mecanismo de cerceamento a uma liberdade fundamental tem servido historicamente para manter privilégios das empresas do setor.

Recentemente, a artilharia orquestrada dos veículos voltou à carga após as declarações da Presidenta Dilma Rousseff – ratificadas pelo novo ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini – de que abrirá um debate público sobre a regulação da mídia no Brasil. A grita foi grande, e novamente vieram à tona frases prontas como a do senador tucano Aloysio Nunes de que “o governo do PT quer controlar a imprensa”. No dia 09, O Globo publicou editorial com o título “Nada justifica atacar a liberdade de expressão”, associando a esquerda à censura, à perseguição de jornalistas e à barbárie, tal como faz, ainda segundo o veículo, o “chavismo bolivarianista”. Na extensa cobertura feita neste domingo sobre as mobilizações na França pela GloboNews, os comentaristas foram enfáticos na defesa do “livre discurso”. De forma bem menos sutil, Rachel Sheherazade, em seu blog, estabeleceu uma correlação direta entre esquerda brasileira e terroristas.

É interessante ver os direitos humanos acionados pelas narrativas midiáticas para servir a seus propósitos, evitando qualquer relação entre a garantia destes e uma mídia mais plural. No caso da cobertura sobre o atentado ao Charlie Hebdo, o propósito de acentuar a distinção entre o Oriente violento e o Ocidente civilizado, e de distanciar desta “civilização” qualquer iniciativa que vise estabelecer limites à única lei respeitada pela maioria das empresas brasileiras de comunicação: a do mais forte.

Nada menos democrático.

Não importa se Dilma e Berzoini pretendem restringir o debate à regulação dos meios de comunicação de massa e a seu aspecto econômico, deixando de lado questões como conteúdos ofensivos e discriminatórios como os publicados pelo Charlie Hebdo. Não importa se a população brasileira desconhece que este tipo de regulação já é praticado com intensidade na França desde a década de 80 – e que, lá, ninguém considera isso censura. Importa, para estes setores, se apropriar da defesa da liberdade de expressão – que corretamente está sendo lembrada de forma massiva nos últimos dias, porque, afinal, uma redação foi metralhada – para defender seus interesses econômicos e manter, no Brasil, um quadro de ausência de diversidade e pluralidade midiática.

Se o governo federal finalmente tiver coragem de lançar este debate público junto à população brasileira, estejamos preparados: todas as armas serão usadas nesta disputa de ideias. E a tragédia do Charlie Hebdo e do atentado que o seguiu na França serão, uma vez mais, apropriadas por aqueles para quem a liberdade de expressão só vale se não for para contrariar seus próprios interesses.

Em tempo: toda a solidariedade do Intervozes aos familiares das vítimas e aos nossos parceiros da mídia alternativa na França. Toda a nossa defesa à liberdade de expressão.

Em tempo 2: todo o nosso repúdio aos atentados ocorridos na Nigéria esta semana, que resultaram na morte de mais de 2 mil pessoas, e que seguiram sem qualquer destaque na imprensa brasileira e mundial.

* Mônica Mourão é jornalista, mestre e doutoranda em Comunicação (UFF). Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos (USP) e mestre em políticas públicas (FGV). Pesquisou a regulação da mídia na França em comparação com os casos inglês e brasileiro. Ambas são integrantes do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

5 anos de Confecom: muito barulho por nada?

Por Jonas Valente*

No dia 17 de dezembro de 2009, encerrava-se às 19h a 1ª Conferência Nacional de Comunicação. O processo, formado por etapas municipais, estaduais e nacional, movimentou, pelas estimativas da organização, mais de 30 mil pessoas para discutir os desafios da área e apresentar recomendações ao poder público de quais políticas deveriam ser implementadas para o setor.

Após um processo polêmico e imerso em disputas, mais de 600 propostas foram aprovadas pelos cerca de 1.500 delegados presentes à etapa nacional. Entre elas, diversas recomendações avançadas, como:

– Afirmação da comunicação como um direito humano;

– Regulamentação do Artigo 221 da Constituição, que dá preferência a finalidades artísticas, informativas, educativas e culturais na programação do rádio e na TV, bem como aponta a necessidade de promoção dos conteúdos regionais e independentes;

– Regulamentação do inciso do Artigo 220 da Constituição, que proíbe as práticas de monopólio e oligopólio nas comunicações;

– Criação de um Conselho Nacional de Comunicação e de órgãos congêneres nos estados para elaborar e acompanhar a promoção de políticas de comunicação com funcionamento efetivo, diferentemente do Conselho de Comunicação Social, órgão apenas assessor do Congresso Nacional;

– Mais transparência na concessão de outorgas, proibição da sublocação da grade de programação e do controle de emissoras por parlamentares e seus familiares;

– Observância na concessão de outorgas da necessidade de promover a diversidade, dando preferência aos que ainda não possuem meios de comunicação;

– Afirmação do acesso à Internet como direito, garantia de sua universalização e prestação do serviço em regime público;

– Divisão do espectro de radiofrequências destinando 40% para canais do sistema privado, 40% para o sistema público e 20% para o sistema estatal;

– Criação do Operador Nacional de Rede Digital Pública, a ser gerido pela EBC, com a função de propiciar as plataformas comuns de operação para todas as emissoras públicas de televisão;

– Garantir na TV digital aberta os canais legislativos, comunitários, universitários e do Poder Executivo, com condições técnicas para que atinjam todos os municípios do País;

– Implantação de um fundo nacional e de fundos estaduais de comunicação pública, com receitas advindas do orçamento geral da União, taxação da publicidade veiculada nos canais comerciais, pagamento pelo uso do espectro, recursos da taxa de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), taxação de aparelhos de rádio e TV e doações;

– Obrigatoriedade da criação de conselhos curadores nos canais públicos, formados por maioria da sociedade civil e com acolhimento obrigatório de suas recomendações pelos gestores das emissoras.

O caminho para chegar a essas resoluções, no dia 17 de dezembro, entretanto, não foi fácil.

Clique aqui para ler um breve histórico do processo

De 2009 a 2014: a inconclusa agenda do marco regulatório

Ao fim, apesar da metodologia desenhada para garantir segurança aos empresários, a realização da Conferência foi um marco fundamental da história das políticas de comunicação no Brasil, tanto pelas recomendações avançadas quanto por ter quebrado o tabu do tema nunca ter sido alvo de um processo de debates com tal amplitude de participação.

A Confecom foi uma novidade histórica, que mostrou ser possível elaborar soluções aos problemas do setor fora das reuniões de gabinetes e dos eventos das associações empresariais. No entanto, se o balanço de sua realização é positivo, o da implementação de suas resoluções é desanimador. Entre as mais de 600 propostas aprovadas nos grupos de trabalho e na plenária final, praticamente nenhuma ganhou consequência por parte do governo federal. Talvez a mais importante delas, a atualização do marco regulatório das comunicações, teve um ensaio com o grupo de trabalho montado sob o comando do então ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, Franklin Martins. No entanto, com a entrada de Dilma Rousseff na Presidência da República e de Paulo Bernardo no Ministério das Comunicações, o resultado do GT foi engavetado.

Após inúmeras cobranças junto ao governo para que o trabalho do grupo se transformasse em um projeto de lei discutido publicamente, organizações da sociedade civil optaram detalhar sua plataforma. As mais de 600 propostas da Conferência foram analisadas e 70 foram elencadas como prioritárias. Tomando como base esse universo, os movimentos sociais elaboraram, em 2011, uma plataforma com 20 pontos para a democratização das comunicações no país.

Dando sequência à luta por um novo marco regulatório das comunicações, foi criada, em 2012, a campanha “Para Expressar a Liberdade”, comandada pelo renovado Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações. A partir da plataforma, e como eixo principal da nova campanha, o FNDC coordenou a elaboração de um projeto de lei de inciativa popular, batizado de Lei da Mídia Democrática.

O esboço inicial, discutido em plenárias da campanha Para Expressar a Liberdade e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, recebeu emendas e sugestões de diversos movimentos sociais. Ao fim, o texto representou uma mediação entre diversos pontos de vista. Mas ele apresenta um programa claro para a democratização do setor no país, alicerçado na regulamentação da Constituição e inspirado em regras e modelos adotados em outros países, de governos mais progressistas na América Latina a regimes liberais na América do Norte e na Europa.

Lançado em 2013, o projeto de lei de iniciativa popular recebe agora assinaturas da população para ser apresentado ao Congresso Nacional – são necessárias mais de 1,4 milhão – e conta com o apoio dos mais variados segmentos da sociedade civil. Junto à divulgação da Lei da Mídia Democrática, movimentos sociais de várias áreas acabaram incorporando a pauta da comunicação como algo central em suas lutas. Nas manifestações de junho de 2013, por exemplo, o tema foi uma das bandeiras das ruas.

Ao longo do processo eleitoral deste ano, a problemática do oligopólio das comunicações também voltou à tona. A novidade, desta vez, foram os anúncios, por parte da candidata e depois reeleita Presidenta Dilma Rousseff, de que pretende realizar uma “regulação econômica dos meios”. O debate, no entanto, como Dilma já afirmou, será feito “com calma”.

A realidade é que as sinalizações difusas e contraditórias sobre a agenda da regulação democrática da mídia são marcas da era Lula-Dilma, desde 2003. Mas a Conferência Nacional de Comunicação é um marco a ser considerado nesta história. As mais de 30 mil pessoas envolvidas no processo em todo o Brasil e as mais de 600 propostas aprovadas são um manifesto inequívoco da relevância e urgência desta pauta. Diferentemente de tempos atrás, quando as forças conservadoras insistiam em bloquear a discussão usando a cortina de fumaça da censura, agora a Lei da Mídia Democrática aparece como formulação concreta de um anteprojeto de lei para debate na sociedade.

Nesta semana, lembrar os cinco anos de realização da Confecom é afirmar que esse legado não pode ser perdido. Ele deve ser a referência para reorganizar este setor para fortalecer a democracia brasileira.

* Jonas Valente é jornalista, mestre em Políticas de Comunicação pela Universidade de Brasília e integrante da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

“Somente a mobilização popular foi capaz de colocar na agenda parlamentar a lei de meios”

Ricardo Sonny Martinez mora em Bariloche, tem 30 anos de jornalismo de rádio, sendo atualmente radialista da Rádio Nacional San Martin de los Andes (LRA 53), aonde trata, entre outras coisas, de política latino-americana.

Ativista pela aprovação e implantação da Lei de Meios, Sonny Martinez desempenhou a tarefa, entre 2003 e 2011, de Diretor Executivo da LRA 53, quando coordenou o trabalho de modernização nas aparelhagens e melhoria profissional da rádio estatal na região da Patagônia, incluindo a preocupação com a vida dos povos originários patagônicos na programação e ações da emissora.

Durante um período da ditadura militar argentina refugiou-se no Brasil, tendo morado em Porto Alegre e Florianópolis.

Anísio Homem (AH) – Desde quando surgiu a necessidade de uma Lei de Meios democrática na Argentina?

Ricardo Sonny Martinez (RSM) – A partir do período democrático, em 1983, durante o governo da União Cívica Radical (UCR), com o presidente Raul Alfonsin, se tornava evidente a necessidade de modificar as legislações que, em vários âmbitos, permaneciam vigentes e que haviam sido ditadas por meio de decretos da Ditadura Militar.

A Lei de Radiodifusão 22.285, de 1980, foi sancionada com a assinatura do ditador Jorge Rafael Videla e impunha sérias restrições à liberdade de expressão. Além disso, condicionava todos os meios de comunicação à Lei de “Segurança Nacional”, proveniente da doutrina do mesmo nome imposta por Washington aos governos ditatoriais que predominavam em grande parte de nosso continente.

É necessário mencionar que a Ditadura Cívico-Militar se havia apropriado dos canais de televisão e rádios tendo-os repartido seu controle com as forças armadas, de tal modo que Marinha, Exército e Força Aérea controlavam cada uma um canal de TV e uma rádio. Na direção de cada meio de comunicação se colocou um interventor, que atuava em conjunto com uma comissão de censura prévia. Esta comissão determinada a natureza dos conteúdos que podiam transmitir ou não cada meio. Para se ter ideia do absurdo e de quanto era férrea esta censura, até mesmo O Pequeno Príncipe era considerado um texto subversivo.

Mas a ditadura também soube recompensar seus parceiros privados como os grupos que controlavam os jornais “La Razón” (extinto), “La Nación”, e em muito maior escala o grupo “Clarín”, que guardadas as proporções, tornou-se uma espécie de Organizações Globo na Argentina. Por exemplo, este grupo tem centenas de concessões de canais de rádio e televisão.

Então, a intenção do governo Alfonsin de modificar a lei de radiodifusão se viu frustrada pela forte oposição destes grupos poderosos de comunicação, que jogavam com a ameaça de volta dos militares para encurralar o governo. Mesmo assim, o governo Alfonsin enviou vários projetos ao Congresso, que ficaram sem trâmite parlamentar pela falta de votos suficientes por parte do governo para fazê-los ir em frente.

AH – Mas, em outubro de 2009, um nova Lei de Meios, proposta e sancionada pela presidente Cristina Kirchner, a lei 26.522 “de serviços e comunicação audiovisual”, alterou a situação das comunicações na Argentina. Explique isso.

RSM – Na atualidade estamos vivendo um processo de aplicação desta nova lei. E sublinho a palavra processo porque a aplicação da lei não foi imediata, por várias razões. Uma delas foi o intenso bombardeio de interpelações judiciais feitas pelos grandes grupos de comunicação, todas alegando a inconstitucionalidade das novas regras previstas, que dissolviam consideravelmente o monopólio de empresas como o Clarín, por exemplo. Mas ademais, a nova lei implica em mudanças culturais profundas.

AH – E o que propõe esta Lei de Meios?

RSM – A aplicação da lei se dá em vários planos, alguns dos quais já produziram seu efeito na sociedade argentina, a saber:

a) A criação de uma empresa estatal de Rádio e Televisão proprietária do canal 7 (que é uma TV pública, com repetidoras em todo o país) e da Rádio Nacional, com 48 emissoras espalhadas pela Argentina.

b) Estabelecimento de cotas de audiência e limite de quantidades de licenças (concessões) que uma determinada empresa pode ter.

c) O acesso dos povos originários à propriedade de meios próprios, contribuindo para que sejam respeitadas as diversidades culturais que formam o povo argentino.

d) A possibilidade de Universidades, Cooperativas, ONGs, e outras instituições sem lucrativos, poderem ter a propriedade de um meio de comunicação.

e) A instituição de uma Defensoria Pública como organismo encarregado de mediar a relação entre os meios de comunicação e os telespectadores e radiouvintes.

f) A criação da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audovisual (AFSCA), com participação de representantes do governo e do legislativo.

g) Criação do Conselho Assessor da Comunicação Audovisual, aonde estão representadas as universidades, sindicatos, associações interessadas.

h) Estabelecimento de cotas de audiência e limite de quantidades de licenças (concessões) que uma determinada empresa pode ter.

AH – Com a validação desta lei pela Suprema Corte, em 2013, o império midiático mais atingido é o do Clarín, maior holding multimídia do país, por que?

RSM – Até o dia de hoje, o grupo multimidiático Clarín, proprietário de mais de 300 concessões de rádio e televisão, de empresas de transmissão a cabo, da única fábrica de papel de impressão da argentina, continua gozando de uma posição dominante, quase de monopólio no mercado. O Clarín não acatou a decisão da Suprema Corte de Justiça, o tribunal mais importante do país, isso depois de anos de litígio nas instâncias menores aonde contou com a cumplicidade de juízes “amigos”. Depois da decisão final da Suprema Corte, sabendo que já não cabem mais recursos sobre a lei, a estratégia do Clarín é de protelar a sua aplicação. Tendo que apresentar um plano de adequação à lei, o que fez o Clarín? Apresentou uma divisão de operações entre seis grupos entre os quais propunha dividir suas atuais e volumosas concessões. Ocorre que foram detectadas as participações cruzadas dos atuais diretores de Clarín nesta nova configuração de concessões. Ou seja, o Clarín quer repartir suas atuais concessões entre si mesmo, rebatizando suas empresas e enganando as autoridades.

O plano de adequação foi rechaçado pela Agência Reguladora (AFSCA), que exigiu que o plano fosse refeito conforme a lei. Por tratar-se de um expediente administrativo se supõe que o Grupo Clarín recorrerá mais uma vez à judicialização do processo. A intenção política evidente deste grupo parecer ser a de postergar a aplicação da lei até que se produza na Argentina uma mudança de governo, dado que os candidatos de oposição já se manifestaram pela revogação da lei. O que só reforça a ideia de a garantia da continuidade da vigência da lei é a mobilização popular para impedir que se retroceda. Agora mesmo, enquanto respondia esta entrevista, chega a notícia de que o Clarín acabou de ganhar uma ação favorável, em primeira instância, contra a ordem de adequação que lhe exigiu a AFSCA. É como eu disse, querem protelar as coisas até o final de 2015 quando imaginam poder eleger um governo federal que liquidem com a lei de meios que o povo conquistou.

AH – Por falar em mobilização popular, como se deu a participação social, de movimentos, para que a lei fosse aprovada e começasse a ser aplicada?

RSM – Desde o início ficou evidente, e cada vez isso é mais claro, que somente a mobilização popular foi capaz de colocar na agenda parlamentar a lei de meios. Foi a mobilização popular quem garantiu sua aprovação pelo Congresso. Será a mobilização nas ruas, com ainda mais gente, quem assegurará sua completa aplicação, ainda mais se temos que enfrentar todas as manobras do grupo Clarín e seus tentáculos na sociedade.

É bom saber que este processo de mobilização não tem sido fácil. Por exemplo, 4 anos antes da aprovação da lei foi formada a “Coalizão por uma Comunicação Democrática”, que reunia uma grande quantidade de organizações sociais, sindicatos, pequenas e médias empresas de meios, associação defensora de direitos humanos, comunidades de povos originários, associação de jornalistas, etc. Foi desta “Coalizão” que saíram os 21 pontos que culminou na chamada “Iniciativa Cidadã por uma Lei de Radiodifusão da Democracia”. Estes 21 pontos se transformaram, depois de discutidos com parlamentares, em um Projeto de Lei. Este projeto foi a debate em todos os cantos do país, inclusive em rincões da Patagônia, alcançando a marca de 3 mil reuniões públicas. Isso fez da lei uma lei de muitos, não só do governo ou dos deputados. Isso lhe deu uma força incrível. Neste processo de discussão foram aprimorados vários pontos do Projeto. Por fim, com esta mobilização toda o Congresso finalmente aprovou a Lei. Continuamos mobilizados agora pelo seu total cumprimento uma vez que as pressões para que isso não aconteça são muitas.

AH – Com a aprovação da lei, o governo está buscando reforçar um sistema público de rádios e tv no país?

RSM – A Rádio e Televisão Pública na argentina sobreviveram, quase inexplicavelmente, a onda privatizadora da década de 90. Quando a atual administração chegou ao governo os meios públicos eram calamitosos. Eu, por exemplo, assumi a Direção Executiva da rádio LRA 30, Rádio Nacional San Carlos de Bariloche, em 23 de novembro de 2003, e o cenário não podia ser pior, com equipamentos obsoletos, transmissores fora do ar ou com potência muito limitada, escassez de pessoal e muito mal pagos e de baixo profissionalismo. Em sua maioria os equipamentos datavam da década de 70.

Foi duro começar a reconstrução dos meios públicos, processo que começou antes ainda da sanção da nova lei de meios mas que se consolida com ela. A nova lei regulamenta a criação da Rádio e Televisão Argentina Sociedade do Estado, dotando-a de verbas, de uma direção amplamente democrática, separando de forma definitiva um meio estatal daquilo que é o governo por meio da participação das diferentes forças políticas uma vez que a direção desta empresa estatal foi composta tomando-se em conta a representação parlamentar.

Hoje em dia a Televisão Pública tem uma grande qualidade técnica digital, uma notável cobertura territorial e uma grande qualidade em seus conteúdos. A mesma coisa se sucede com as emissoras da rede nacional de rádios, que passaram de 40 para 48 em todo o país, como melhoria do pessoal, com equipamentos mais modernos para operar em AM e FM, com estúdios mais bem montados. Hoje podemos dizer que os meios públicos argentinos são de altíssima qualidade humana e técnica.

AH – Por fim, fale um pouco sobre esta confusão que os grandes grupos de comunicação fazem entre liberdade de expressão e liberdade dos monopólios midiáticos.

RSM – A discussão entre a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa é uma falsa discussão, que só existe na mente dos executivos e advogados dos multimeios privados para proteger seus próprios interesses corporativos e sua visão monopolista.

Neste paradigma empresarial todos somos tratados pelos grandes meios de comunicação como “clientes” quando na realidade temos direitos e devemos ser tratados como usuários de um serviço público.

A garantia da liberdade de expressão está na multiplicidade de vozes no ar. Por exemplo, a radiodifusão não pode ser vista com a lógica do mercado mas com a lógica de serviço. É preciso dar voz a quem não as tem, como cooperativas, associações civis, escolas, povos originários, universidades, etc.

Estes são argumentos de caráter sócio-políticos, porém, existem também os de caráter técnico. O espectro radioelétrico é por definição finito, ou seja, não há lugar para infinita quantidade de frequências de rádio e televisão e este espaço radioelétrico é um bem social, é propriedade de toda a sociedade. Se esta sociedade decidiu ter um governo para representá-la, a lógica indica que este governo tem que se encarregar de administrar este bem social.

O mais democrático, me parece, é que no mínimo haja limites bastante claros para que uma empresa ocupe este espaço, porque se uma só empresa ocupa o espaço radioelétrico não há multiplicidade de vozes, ou seja, não há democracia. A nova lei de meios argentina propõe a democratização do ar, ampliando a quantidade de vozes a serem escutadas para que as pessoas tenham a liberdade de escolher os conteúdos e opiniões que mais as satisfazem como usuárias do serviço de comunicação. Volto a frisar: o monopólio das comunicações por empresas privadas é um impeditivo à democracia.

Entrevista concedida à Anísio Homem, publicada no Blog do Andre Machado – www.blogdoandremachado.com.br

Um breve histórico da Confecom

Bandeira histórica dos movimento sociais, a conferência nasceu dentro de uma articulação entre entidades da sociedade civil e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Após uma iniciativa de parlamentares deste órgão, começaram a ser realizadas reuniões que culminaram no Encontro Nacional de Comunicação, em junho de 2007. A principal resolução do evento foi a defesa da realização da conferência e a criação de uma rede para defender essa bandeira, que passou a ser chamada de “Comissão Nacional Pró-Conferência” (CPC).

Para deslegitimar a proposta, o Ministério das Comunicações, então comandado pelo ex-repórter da Rede Globo e senador Hélio Costa, organizou um evento em setembro de 2007 no Congresso que, inicialmente, batizou de “conferência” e, após críticas e pressão das entidades da sociedade civil, denominou “conferência preparatória” (veja mais aqui e aqui).

Entre 2007 e 2008, diversas reuniões e cobranças públicas e em conversas bilaterais junto ao governo foram feitas. Havia resistência tanto do Ministério das Comunicações quanto de setores do Palácio do Planalto. Na Comissão Pró-Conferência, já se discutia a possibilidade de realizar uma conferência chamada pelo Legislativo, nos moldes do que ocorria na área de direitos humanos. Mas parte das entidades acreditava que a participação do Executivo era fundamental.

Integrantes do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) realizaram então reuniões com empresários e integrantes do governo, buscando soluções. A Comissão Pró-Conferência passou a se articular junto à Secretaria Geral da Presidência da República. No fim de 2008, quando havia dúvidas se a pauta vingaria, a Comissão apostou em uma cartada final, com um evento na Câmara dos Deputados convidando representantes do governo para discutir a Conferência. Mais uma vez, a postura foi escorregadia. Foi somente em janeiro de 2009, no Fórum Social Mundial, ao final de uma entrevista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que veio a confirmação: o Executivo Federal convocaria a Conferência.

No entanto, foi preciso muito debate e pressão para que o decreto de convocação da Conferência saísse, o que só ocorreu em abril daquele ano. A CPC buscou estabelecer o diálogo com o governo para pautar a dinâmica do processo e a composição da Comissão Organizadora. Pela proposta, esta seria formada por 30 membros, sendo 12 representantes da sociedade civil não empresarial, 10 do poder público, 5 de entidades empresariais, 2 da mídia pública e 1 da academia. Mas o governo decidiu que a Comissão Organizadora teria 8 representantes do governo federal, 2 do Congresso Nacional, 8 das associações empresariais, 7 dos movimentos sociais e sindicatos e 1 da entidade representativa de emissoras públicas vinculadas a entes estatais. À época, a Federação Nacional dos Jornalistas e o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação saudaram a iniciativa, enquanto outras entidades e comitês estaduais pró-conferência emitiram notas criticando a desproporção entre sociedade civil e representações de empresários.

Nos meses seguinte, as reuniões da Comissão Organizadora transformaram-se em um campo de intensa disputa. Os empresários, comandados pela Rede Globo, queriam obter todos os tipos de salvaguarda para que não houvesse possibilidade de críticas ou resoluções que contrariassem seus interesses. Isso se manifestou no debate sobre objetivos, metodologia, regimento e temário. O governo acenou politicamente com um conjunto de garantias, mas no fim ficou claro que os incômodos manifestados eram apenas um subterfúgio para que uma parte dos empresários pudesse se retirar do processo, que não poderiam controlar. Assim, seis das oito associações de meios comerciais abandonaram a organização, restando a entidade representativa do setor de telecomunicações (Telebrasil) e a que reunia Bandeirantes e RedeTV (Abra).

O racha empresarial, no entanto, deixou cicatrizes e transformou a Conferência de Comunicação em caso único na história recente de eventos deste tipo. Para ficar, as entidades comerciais remanescentes exigiram que o peso dos votos do segmento na organização, mesmo após a debandada, fosse de 40% – os movimentos sociais também teriam 40% e o governo, 20% – proporção que valeria também para a divisão das vagas de delegados nacionais. Para controlar “propostas ameaçadoras”, os empresários também estabeleceram como condição que temas identificados como “sensíveis” por qualquer um dos segmentos só seriam aprovados por um mínimo de 60% dos votos, recebendo, pelo menos, um voto de cada setor. A medida criava, na prática, um poder de veto às propostas, mesmo que 60% dos delegados fossem favoráveis a ela. O Intervozes, que integrava a Comissão Organizadora, foi uma das únicas entidades a votar contra o mecanismo, se posicionando criticamente ao acordo (veja mais aqui). O regimento da Confecom, no entanto, foi aprovado desta forma.

Outro ponto de polêmica foi a escolha do temário geral da Conferência. Os empresários propuseram três eixos de discussão: produção de conteúdo, distribuição e cidadania: direitos e deveres. A lógica por trás era estabelecer um “tratado de Tordesilhas metodológico” na Confecom: o empresariado da radiodifusão discutiria o primeiro eixo, as operadoras de telecomunicações, o segundo e os movimentos sociais, o terceiro. Organizações da sociedade civil propuseram a inclusão de um quarto eixo, “sistemas de comunicação”, que debatesse o setor como um todo, mas ele foi rejeitado.

Em geral, o que se via era que o receio dos empresários em torno de qualquer aspecto se transformava em regras mais restritivas para o funcionamento dos debates, apoiadas pelos representantes do governo e por parte das entidades da sociedade civil. Com a iminência da realização das etapas estaduais – onde as empresas de comunicação teriam menor capacidade de mobilização –, o medo era que as propostas das associações de meios comerciais fossem prejudicadas. A Comissão Organizadora aprovou então a resolução 8, determinando que não haveria votação de propostas nos estados. Todas seriam remetidas à etapa nacional e cada setor escolheria seus delegados segundo a proporção 40/40/20. A norma foi apelidada por comissões estaduais pró-conferência de “AI 8”, em referência ao autoritário ato ditatorial de 1968.

A mesma tensão se repetiu nos momentos antes do início da etapa nacional. Novamente no ímpeto de controlar o processo e com receio de perder o debate nos grupos de trabalho, a Associação Brasileira de Radiodifusão (Abra) ameaçou abandonar a Conferência, pouco antes de sua abertura, caso não fossem garantidas, nos grupos de trabalho (que definiram as propostas a serem levadas à plenária final), a proporção 40/40/20 para os delegados e a repetição do mecanismo de quórum de 60%, com um voto de cada setor, para “temas sensíveis”.

A ameaça da Abra gerou uma crise entre as organizações da sociedade civil. À exceção do Intervozes, as demais entidades da Comissão Organizadora aceitaram a chantagem. Foi chamada uma plenária de última hora, que evidenciou as divergências no campo. Alguns grupos ameaçaram se retirar da Conferência se a regra não fosse revista. Ao final, chegou-se a um acordo para garantir que cada grupo de trabalho remeteria à plenária final 10 propostas (4 escolhidas pelos empresários, 4 pela sociedade civil e 2 pelo governo – veja aqui). Outras foram aprovadas por consenso ou por acordo de mais de 80% dos delegados nos próprios grupos de trabalho.

As mais polêmicas ficaram, assim, para a plenária final. Mas quando sua apreciação teve início, em 17 de dezembro, uma votação apertada fez com que a bancada empresarial passasse a “reivindicar tema sensível” para todas as propostas, o que, mais uma vez, poderia inviabilizar a aprovação de resoluções. Um “gabinete de crise” foi o responsável então por acordar as propostas que seriam votadas com quórum de “tema sensível”. Com isso, fora um ou outro momento de maior disputa, a votação transcorreu até o fim do evento.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Direitos Indígenas: Territórios e Comunicação

Por Thais Brito*

A defesa do princípio de que a comunicação é um direito humano implica na luta para garantir que todos e todas tenham não apenas a liberdade de expressão, mas também o acesso aos meios de produção e veiculação de informação e às condições técnicas e materiais para se comunicar. Há, ainda, um longo caminho a percorrer para que o direito humano à comunicação seja apropriado e exercido pelo conjunto da sociedade. Uma sociedade diversa, em que os distintos grupos possuem acesso em graus diferenciados aos meios.

No caso dos povos indígenas, o genocídio e o etnocídio sofridos ao longo da história faz com que o usufruto dos direitos fundamentais seja ainda mais difícil. Sem o direito aos seus territórios, a vida dos povos indígenas fica ameaçada. Então, esse é o primeiro desafio da questão indígena – demarcar os territórios e garantir a autonomia desses povos sobre suas terras.

Nesse cenário, o direito à comunicação é também um direito essencial e colabora na luta por outros direitos. É tendo acesso aos meios de comunicação que a diversidade de povos e culturas indígenas pode se manifestar. É também por esses meios que eles podem compartilhar suas reivindicações e visões de mundo.

Com as novas tecnologias de comunicação e a ampliação do acesso às mídias, os olhares indígenas passam, também, em alguma medida, a produzir sentidos próprios na contemporaneidade. Etnojornalistas e cineastas indígenas realizam filmes, produzem conteúdos na internet, rádio e televisão, comunicando-se com outras sociedades e dando aos dispositivos a função de comunicação dentro de uma aldeia e entre aldeias. Comunicação que também contribui para a memória, ao tempo em que reafirmam o lugar central da oralidade nessas sociedades.

Há experiências com mídias indígenas em diversos lugares pelo mundo. No Canadá, a Nacional Indigenous Media Association of Canada reúne estações de rádio e televisão, companhias de telecomunicações e provedores de internet cuja propriedade e controle estão nas mãos de empresas ou indivíduos indígenas.

Na Austrália, há uma rede de comunicação indígena que inclui a Central Australian Aboriginal Media AssociationIndigenous Remote Communications AssociationAustralian Indigenous Communications Association, além da ABC Australia Indigenous Media, com conteúdo aborígene na web, e, ainda, duas televisões: a Imparja e aNITV, National Indigenous Televison canal de televisão aberto.

Na América Latina, a Coordinadora Latinoamericana de Cine y Comunicación de los Pueblos Indígenas reúne indígenas e não-indígenas numa rede de colaboração e intercâmbio em comunicação e promove capacitação, produção e difusão do cinema e do vídeo indígena.

Há países com experiências mais avançadas como a Argentina, onde a Ley de Medios, que regula a mídia no país, a qual prevê concessões de rádio e televisão para comunidades indígenas. Como consequência da lei, desde 2012 é transmitido o canal mapuche Wall Kintun TV. Já na Bolívia, a Agencia Plurinacional de Comunicación é um mecanismo de interconexão entre os meios indígenas. Ela coordena as ações e intercambio de conteúdos.

No caso do Brasil, diferente dos outros países, não há nenhuma concessão de canais de comunicação, rádio ou televisão para comunidades indígenas. Nem mesmo um programa com essa temática específica, apesar da vasta e reconhecida produção de conteúdos de autoria indígena.

A comunicação desses povos é um processo realizado, geralmente, em parceria com pessoas e organizações mediadoras, bem como com alguma colaboração do Estado, principalmente no que se refere à infraestrutura, como acesso aos serviços de internet e formação de núcleos de produção audiovisual.

Uma das experiências mais significativas no país é o Vídeo nas Aldeias, projeto precursor na área de produção audiovisual indígena que tem como objetivo apoiar as lutas desses povos para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada.

Na apresentação do livro sobre os 25 anos do Vídeo nas Aldeias, o indigenista e idealizador do projeto, Vincent Carelli, afirma que é “sonhar alto” pensar em ter, a médio prazo, uma rede nacional de cineastas indígenas alimentando seu espaço próprio na TV pública brasileira. Carelli defende a concretização de um veículo de comunicação indígena, vindo de um aprendizado coletivo e colaborativo entre índios e não-índios.

Enquanto isso não se concretiza, a produção de comunicação pelos povos indígenas gera uma diversidade de conteúdos que não tem espaço na comunicação brasileira.

Sem ouvir a voz dos indígenas, torna-se ainda mais difícil garantir o direito ao território e tomar conhecimento de projetos como a Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC 215) que transfere a prerrogativa de homologar Terras Indígenas (TIs), Unidades de Conservação (UCs) e territórios quilombolas para o Poder Legislativo. Torna-se ainda mais difícil trazer à tona o fato de seis índios terem sido presos, supostamente em flagrante, após protesto contra essa proposta que, na prática, representaria a paralisação de todos os processos de criação dos territórios indígenas.

Para que isso ocorra, é preciso que a sociedade brasileira reconheça a importância da diversidade de povos que a constitui e lute para que todos eles não apenas estejam representados como tenham espaço nos meios de comunicação.

* Thais Brito é jornalista, doutoranda em Antropologia e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.