O atentado ao Charlie Hebdo e a regulação da mídia

Por Mônica Mourão e Bia Barbosa*

Neste domingo (11), mais de um milhão e meio de pessoas foram às ruas em Paris em homenagem às doze vítimas do atentado à revista Charlie Hedbo, no último dia 7, e dos acontecimentos que o sucederam, quando outras quatro pessoas foram assassinadas dentro de um supermercado de produtos judaicos na cidade. Foi a maior manifestação da história da França. Mais de quarenta líderes e chefes de Estado se encontraram com o Presidente François Hollande e reafirmaram seu compromisso no combate ao terrorismo. Depois do Arco do Triunfo, foi a vez da estátua que simboliza a República Francesa e seus valores ser iluminada com a frase “Je suis Charlie”.

Nos últimos dias, entretanto, outra frase ganhou a internet e as redes sociais: “Je ne suis pas Charlie”, adotada por aqueles que consideram ofensivas as charges publicadas pela revista. O caso, porém, enseja um debate muito mais complexo, que exige fugir das dicotomias. O slogan e seu antislogan, em sua condensação de ideias em poucas palavras, falham ao confundir a solidariedade (ou falta dela) às vítimas do atentado com a concordância ou discordância com a linha editorial do Charlie Hebdo – e, ainda, com a defesa de que se deve ter a liberdade de expressar quaisquer pensamentos. Não à toa, ambos estão sendo apropriados pelos mais diferentes “lados” em disputa, em meio à comoção que abateu o mundo ocidental.

Ao criticar as publicações do Charlie Hebdo, não foram poucos os que, absurdamente, seguiram na linha de culpabilizar as vítimas por sua própria morte. “Quem mesmo puxou o gatilho?”, questionaram. Nada mais abjeto. Refletir sobre o impacto de charges ofensivas é, no entanto, também importante, principalmente quando o alvo indireto dos desenhos é uma população já estigmatizada na França: a comunidade muçulmana.

Não foram poucos os analistas que afirmaram, com razão, que os desenhos do Hebdo reforçaram, nos últimos anos, a linha conservadora da política francesa contrária aos imigrantes. Mesmo que seu foco principal fossem os fundamentalistas, diversas retratavam muçulmanos genericamente como terroristas. Depois dos atentados desta semana, a ascensão de uma ofensiva intolerante contra estrangeiros é dada como certa.

Marine Le Pen, presidente da Frente Nacional, partido francês de extrema direita, em entrevista publicada na última sexta-feira pela Folha de S. Paulo, defende o controle das fronteiras e da imigração que causa isolamento. Excluída das celebrações realizadas em Paris neste domingo, Marine reuniu 16 mil pessoas em uma cidade do sul do país para discursar, novamente, contra o “terrorismo islâmico”. Aos conservadores franceses, é muito mais interessante tratar os atentados desta semana como um conflito religioso do que como fruto das políticas interna e externa do país, em relação ao Oriente Médio e aos países do norte da África – suas ex-colônias – e àqueles que de lá migram para o território francês.

O discurso de Le Pen ecoa a ideia do “nós contra eles”, que não apenas é preponderante da mídia francesa como também tem dado a tônica da cobertura jornalística sobre o tema no Brasil, reforçando barreiras entre franceses e imigrantes. No dia do ataque ao Charlie Hebdo, o jornal O Globo escreveu que é preciso que “os governos convençam esses imigrantes [segregados] das vantagens dos valores ocidentais sobre o fundamentalismo”. Trata-se de um tipo de polarização já bastante criticada por Edward Said em 2001, ao colocar em xeque o conceito de “choque de civilizações” como uma explicação para os atentados de 11 de setembro, nos Estados Unidos.

Por isso, não é equivocado afirmar que inúmeras capas do Charlie foram usadas, independentemente da vontade ou não de seus autores, como armas para propagar o preconceito e a estigmatização. Muitas, inclusive, foram alvo de processos, mas a Justiça francesa, seguindo uma antiga tradição do país em relação ao humor e à sátira, não condenou seus autores, com base no princípio da liberdade de expressão. E, em absoluto, nenhuma delas – nem o seu conjunto – pode justificar qualquer tipo de violência.

Mas, tirando o caso específico do Charlie Hebdo do foco, vale perguntar: vale tudo então em nome desta liberdade de expressão? Não. Na própria França, como na maior parte dos países democráticos, há, por exemplo, regras claras contra a veiculação de conteúdo discriminatório na televisão. A diretiva europeia em vigor, válida para todos os países do bloco, proíbe o incitamento ao ódio por razões de sexo, origem racial ou étnica, religião ou convicção, deficiência, idade ou orientação sexual. O Conselho Europeu também emitiu resoluções e recomendações que tratam da representação e de discriminações contra grupos específicos, não apenas na mídia televisiva.

A Recomendação 1277, 1995, sobre migrantes e minorias étnicas, por exemplo, afirma que eles “devem ser representados de forma compreensiva e imparcial na mídia. Esta é uma precondição para que todos os cidadãos desenvolvam uma visão mais racional da imigração e do multiculturalismo e aceitem pessoas de origem imigrante ou membros de minorias étnicas como iguais”. Já a resolução 1510, de 2006, e a recomendação 1805, de 2007, tratam de grupos alvos de preconceito religioso. A primeira afirma que “enquanto há pouco espaço para restrições de discursos políticos ou de debates sobre questões de interesse público, uma margem de apreciação mais ampla está geralmente disponível quando se trata da regulação da liberdade de expressão em relação a assuntos passíveis de ofenderem convicções pessoais morais ou religiosas” e que “o discurso de ódio contra qualquer grupo religioso não é compatível com os direitos e liberdades fundamentais garantidos pela Convenção Europeia de Direitos Humanos e com a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos”.

Já a recomendação de 2007 diz que “em uma sociedade democrática, grupos religiosos, assim como outros grupos, devem tolerar debates e posicionamentos públicos críticos acerca de suas atividades, ensinamentos e crenças, desde que tal crítica não atinja insultos intencionais e gratuitos ou o discurso de ódio, e não configure incitamento à perturbação da paz ou à violência e discriminação contra adeptos de uma determinada religião”.

Colocando tais leis em prática, o Conselho Superior do Audiovisual (CSA), órgão regulador das comunicações na França, já notificou e responsabilizou diversas emissoras de TV por veicularem conteúdo discriminatório contra árabes – mesmo que estes não tenham sido produzidos pelos canais e sim tenham vindo de opiniões emitidas por convidados entrevistados em seus programas. Foi assim com o Canal+, com o France 2 e com o France 5, todos em 2010.

É claro que, por mais que existam normas e um órgão regulador fiscalizador dos meios de comunicação de massa, o problema das ofensas e da subrepresentação da população árabe e muçulmana – vale lembrar que não são sinônimos – na televisão francesa está longe de ser resolvido. Um estudo feito pelo pesquisador Eric Macé em 2006, sobre as discriminações nos programas da televisão do país, revelou que a maioria dos árabes retratados na tela não são membros da sociedade francesa, e sim habitantes de países considerados “subdesenvolvidos”, como Marrocos ou Egito. O autor também encontrou um “efeito de equivalência” entre classes populares, classes perigosas e não-brancos, de forma que “todas as imagens tendem a ganhar conotações desqualificantes”, numa visão de mundo bastante conservadora. Porém, as charges do Charlie Hebdo dificilmente seriam veiculadas pelos canais de TV. Se fossem, os mesmos provavelmente seriam responsabilizados pelo CSA.

Fica clara, assim, a diferença empregada na França entre os limites à liberdade de expressão impostos a canais de rádio e TV – meios de comunicação de massa e concessões públicas – e a meios impressos, como o Charlie Hebdo, lido por 60 mil pessoas que, voluntariamente, optam por adquirir este tipo de conteúdo. Infelizmente, essa diferença está longe de ser considerada por aqueles que, não involuntariamente, transformaram o ataque da última quarta-feira exclusivamente num “atentado à liberdade de expressão”.

No Brasil, o destaque dado à questão da liberdade de expressão como um dos pilares das democracias ocidentais veio muito a calhar para os veículos da chamada “grande mídia”, que aproveitaram mais esse momento para defender a liberdade de expressão como algo oposto à regulação dos meios. Aqui, a ideia equivocada sobre a regulação enquanto mecanismo de cerceamento a uma liberdade fundamental tem servido historicamente para manter privilégios das empresas do setor.

Recentemente, a artilharia orquestrada dos veículos voltou à carga após as declarações da Presidenta Dilma Rousseff – ratificadas pelo novo ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini – de que abrirá um debate público sobre a regulação da mídia no Brasil. A grita foi grande, e novamente vieram à tona frases prontas como a do senador tucano Aloysio Nunes de que “o governo do PT quer controlar a imprensa”. No dia 09, O Globo publicou editorial com o título “Nada justifica atacar a liberdade de expressão”, associando a esquerda à censura, à perseguição de jornalistas e à barbárie, tal como faz, ainda segundo o veículo, o “chavismo bolivarianista”. Na extensa cobertura feita neste domingo sobre as mobilizações na França pela GloboNews, os comentaristas foram enfáticos na defesa do “livre discurso”. De forma bem menos sutil, Rachel Sheherazade, em seu blog, estabeleceu uma correlação direta entre esquerda brasileira e terroristas.

É interessante ver os direitos humanos acionados pelas narrativas midiáticas para servir a seus propósitos, evitando qualquer relação entre a garantia destes e uma mídia mais plural. No caso da cobertura sobre o atentado ao Charlie Hebdo, o propósito de acentuar a distinção entre o Oriente violento e o Ocidente civilizado, e de distanciar desta “civilização” qualquer iniciativa que vise estabelecer limites à única lei respeitada pela maioria das empresas brasileiras de comunicação: a do mais forte.

Nada menos democrático.

Não importa se Dilma e Berzoini pretendem restringir o debate à regulação dos meios de comunicação de massa e a seu aspecto econômico, deixando de lado questões como conteúdos ofensivos e discriminatórios como os publicados pelo Charlie Hebdo. Não importa se a população brasileira desconhece que este tipo de regulação já é praticado com intensidade na França desde a década de 80 – e que, lá, ninguém considera isso censura. Importa, para estes setores, se apropriar da defesa da liberdade de expressão – que corretamente está sendo lembrada de forma massiva nos últimos dias, porque, afinal, uma redação foi metralhada – para defender seus interesses econômicos e manter, no Brasil, um quadro de ausência de diversidade e pluralidade midiática.

Se o governo federal finalmente tiver coragem de lançar este debate público junto à população brasileira, estejamos preparados: todas as armas serão usadas nesta disputa de ideias. E a tragédia do Charlie Hebdo e do atentado que o seguiu na França serão, uma vez mais, apropriadas por aqueles para quem a liberdade de expressão só vale se não for para contrariar seus próprios interesses.

Em tempo: toda a solidariedade do Intervozes aos familiares das vítimas e aos nossos parceiros da mídia alternativa na França. Toda a nossa defesa à liberdade de expressão.

Em tempo 2: todo o nosso repúdio aos atentados ocorridos na Nigéria esta semana, que resultaram na morte de mais de 2 mil pessoas, e que seguiram sem qualquer destaque na imprensa brasileira e mundial.

* Mônica Mourão é jornalista, mestre e doutoranda em Comunicação (UFF). Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos (USP) e mestre em políticas públicas (FGV). Pesquisou a regulação da mídia na França em comparação com os casos inglês e brasileiro. Ambas são integrantes do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

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