Canais de TV que alugam horário para igrejas são alvo de ação do Ministério Público Federal

Pela primeira vez, o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) vai recorrer à Justiça para combater o mercado de aluguel de horário da programação de TV e rádio a igrejas. O alvo principal da ação são as emissoras que lucram arrendando partes de sua grade para igrejas, que hoje possuem presença maciça na programação da TV aberta. Nas duas ações protocoladas, a Procuradoria move acusação contra a Rede 21 (UHF do grupo Bandeirantes), a TV CNT e a Igreja Universal do Reino de Deus e seus respectivos representantes legais.

Na ação, a Rede 21, o vice-presidente da Band, Paulo Saad Jafet, e o superintendente de operações e relações com mercado José Carlos Anguita são acusados de violar dispositivos do Código Brasileiro de Telecomunicações, regulamentações do setor e a Lei Geral de Telecomunicações, regulamentações do setor e a Lei Geral de Telecomunicações, isso porque firmaram contrato que cede 22h diárias da grade da emissora à Igreja Universal.

Para o Ministério Público, o contrato da Rede 21 com a Universal é ilegal, pois caracteriza “alienação de concessão pública”. O MP pede que a invalidação da outorga e a declaração de inidoneidade dos envolvidos, fato que se for consumado os impede de participar de novas licitações. A ação também pede que indenizem a União e sejam condenados por danos morais, a indisponibilidade dos bens dos citados e a suspensão de transmissão da Rede 21. Ação similar foi também protocolada contra a CNT, que aluga 22h diárias de sua grade à Universal.

Membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Pedro Ekman, disse à Fórum que acredita na punição dos canais. “A lei sobre o tema existe há muito tempo, mas o governo nunca se deu o trabalho de fiscalizar o seu cumprimento. Acredito que nunca houve punição para esse tipo de prática simplesmente por nunca ter havido uma postura ativa do governo em relação à isso. Essa é uma ação inédita na justiça e acho difícil que um juiz se furte da responsabilidade de aplicar a lei”, comenta.

Confira a entrevista:

O que você acha da ação do Ministério Público Federal?

Pedro Ekman – A ação do MPF é o resultado da atuação do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (FINDAC), que conta com a participação de organizações da sociedade civil como o Intervozes, Artigo 19 e Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. É fundamental para a democracia brasileira que uma instituição da importância do Ministério Público tenha iniciativas como essa que olham com prioridade para a defesa do direito da sociedade à comunicação, sobretudo com uma dinâmica de participação social.

Você considera que a ação vai adiante e que, de fato, estes canais serão punidos?

P.E. – A lei sobre o tema existe há muito tempo, mas o governo nunca se deu o trabalho de fiscalizar o seu cumprimento. Acredito que nunca houve punição para esse tipo de prática simplesmente por nunca ter havido uma postura ativa do governo em relação à isso. Essa é uma ação inédita na justiça e acho difícil que um juiz se furte da responsabilidade de aplicar a lei.

Acredita que a locação de grade horária pode acabar?

P.E. – Se os canais quiserem continuar alugando sua programação para terceiros, eles vão ter que restringir essa prática a 25% do tempo total de sua programação sem poder estabelecer mais nenhum tipo de contrato publicitário, o que não seria financeiramente interessante. Os canais vendem sua grade como uma forma de burlar o limite definido em lei. Não dá para seguir desobedecendo a lei indefinidamente, principalmente com o Ministério Público no seu pé. Acho que temos pela primeira vez na história da comunicação brasileira uma boa chance de acabar com essa prática que atenta contra o direito à comunicação.

Entrevista concedida a Marcelo Hailer, publicada no Portal Fórum

Famílias e organizações civis defendem a classificação indicativa

Por Bia Barbosa*

Na semana em que o mundo celebra mais um aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais de 80 organizações brasileiras lançaram um nota em defesa de uma das principais políticas públicas em funcionamento no país para a proteção dos direitos das crianças e adolescentes: a classificação indicativa da programação das emissoras de TV.

Desde 2001, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação (ADI 2404) que, a pedido da associação dos radiodifusores, pede a declaração de inconstitucionalidade do artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê sanções aos canais que veicularam conteúdo em horário diferente ao previsto na classificação indicativa. Em busca de audiência e ávidas por poderem transmitir qualquer programação em qualquer horário, as emissoras alegam que o fato de poderem ser multadas caso veiculem conteúdo inapropriado a uma determinada faixa etária viola sua liberdade de expressão.

Quatro ministros do Supremo Tribunal Federal já votaram atendendo o pedido das emissoras, o que coloca toda a classificação indicativa em risco. O STF deve voltar a julgar a ação no próximo período. Preocupadas, diversas entidades de defesa dos direitos das crianças pedem que, antes disso, o Supremo realize uma audiência pública para ouvir a população sobre o tema.

Pesquisa realizada a pedido do Ministério da Justiça pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas, em cooperação com a UNESCO, divulgada nesta quinta-feira (11/12), comprova que a Classificação Indicativa é uma política em pleno funcionamento, aprovada pelas famílias. Segundo estudo, 97% dos pais ou responsáveis por crianças de 4 a 16 anos consideram muito importante ou importante que emissoras de TV aberta respeitem a limitação de horário vinculada à classificação indicativa. E 94% consideram que deve existir multa para emissoras que desrespeitarem as regras. Quase a totalidade dos pais ou responsáveis entrevistados (98%) acredita que deve haver algum tipo de controle sobre o que as crianças e adolescentes assistem na TV. Entre as preocupações dos pais estão cenas de tortura, estupro ou suicídio (79%) e cenas de consumo de drogas ilícitas (73%).

A realidade é que a televisão é o meio de comunicação ainda hoje com maior influência na difusão de culturas e na formação de valores. O impacto dos conteúdos que recebemos diariamente pela telinha já foi comprovado em centenas de pesquisas científicas em todo o mundo. No caso das crianças e adolescentes, os efeitos daquilo que assistem na TV é ainda maior, em função de serem pessoas ainda em desenvolvimento, não preparadas para absorver individualmente todo e qualquer tipo de imagem.

Por isso, no mais diferentes países, foram criados mecanismos de proteção das crianças a determinados conteúdos transmitidos pela televisão. Na maior parte deles, como França, Canadá, Inglaterra, Chile, Argentina e Estados Unidos, há uma faixa horária específica de proteção. Neste período, as emissoras devem se abster de veicular, por exemplo, conteúdos violentos ou com cenas que possam impactar fortemente meninos e meninas. Trata-se de uma regulação democrática dos meios que, sem cercear a liberdade de expressão, garante seu equilíbrio com a proteção de outros direitos fundamentais – no caso, os das crianças e adolescentes.

Em 2006, espelhado em democracias como estas, o Brasil também adotou uma política de classificação indicativa. A classificação desses programas é feita pelas próprias emissoras, a partir de critérios claros e transparentes, que foram construídos após amplo debate nacional, do qual os canais de rádio e TV também participaram. O modelo adotado no Brasil parte do princípio que cabe às famílias, mas também à sociedade e ao Estado, garantir a proteção absoluta dos direitos das crianças e adolescentes ao bem-estar social e à sua saúde física e mental, como afirma a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A própria ONU e Comissão Interamericana de Direitos Humanos entendem que mecanismos como este são fundamentais para a proteção da infância. Vale lembrar que somos um dos países em que a população passa mais tempo por dia em frente à TV – na maior parte do tempo, as crianças estão sozinhas.

Por que então mudar o que está dando certo, em nome dos interesses comerciais das emissoras, se o fim da classificação trará inúmeros prejuízos para nossas crianças e adolescentes?

Confira neste link a íntegra da nota pública lançada pelas entidades e que será enviada aos ministros/as do Supremo Tribunal Federal na próxima semana.

* Bia Barbosa é jornalista, especialista em Direitos Humanos (USP), mestre em Políticas Públicas (FGV-SP) e integrante da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Ação Civil Pública questiona arrendamentos ilegais no rádio e na TV

Por Pedro Ekman*

A história é muito simples: uma empresa participa de uma licitação pública para explorar comercialmente um canal de TV (ou de rádio) e oferecer programação de conteúdos para a população. Para isso, existem pelo menos duas regras para se explorar comercialmente esse espaço público na TV e no rádio.

A primeira regra diz que a empresa vencedora da licitação tem que se responsabilizar pela programação de conteúdo, prestando o serviço diretamente, sem terceirizar a função principal do contrato. A segunda determina que a empresa vencedora da licitação pode vender no máximo 25% da sua programação a terceiros para obter retorno financeiro durante a vigência do mesmo contrato.

No entanto, não é exatamente isso que acontece no Brasil. Apesar do regramento, a empresa que ganha a licitação muitas vezes vende o canal para uma igreja que não participou da concorrência. Você pode até se perguntar: e o Governo não fiscaliza?  Deveria! Mas, segundo o ministro Paulo Bernardo, titular da pasta das Comunicações, o debate “é delicado”. “Envolve uma série de interesses das televisões em ter receita, das igrejas em fazer a sua pregação, de conquistar o seu público”, disse em recente entrevista ao grupo Folha.

Para Bernardo, do ponto de vista formal, não existe legislação sobre isso. “Tem um pessoal do Ministério Público Federal lá em São Paulo que está dizendo o seguinte, que vai processar o Ministério das Comunicações por omissão. Omissão em que? Você não faz uma lei, não tem uma legalidade instituindo se isso é correto ou incorreto e eu sou omisso em que? Por que se tiver proibição, então omisso está sendo o Ministério Público que deveria tomar uma providência e entrar com ação contra. Por que não entrou? Porque não tem base legal para isso. Então é o seguinte, eu não quero entrar nesse debate”, complementou.

Certamente o ministro Bernardo conhece o art. 124 Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/62) e o art. 28, §12, “d”, do Decreto Presidencial nº 52.795/63. A legislação determina que o tempo destinado à publicidade comercial não poderá exceder 25% da programação. O ministro também sabe que nenhuma transferência, direta ou indireta, de concessão pode ser feita sem a sua assinatura pessoal, pois é isso que está definido nos artigos 90 e 94 do mesmo decreto.

Parece óbvia a omissão do Ministério das Comunicações, responsável por estes regramentos.  A existência de leis e regulamentos sobre o assunto contradizem as justificativas dadas pelo ministro Paulo Bernardo. Em virtude disto, o Ministério Público Federal de São Paulo entrou com três ações contra arrendamentos ilegais. Foram acionados na Justiça o grupo de TV CNT e o Canal 21 do grupo Bandeirantes pelo arrendamento ilegal de 22 horas diárias das suas programações para a Igreja Universal do Reino de Deus.

A Rádio Vida FM também responderá na Justiça por arrendar toda a sua programação para a Comunidade Cristã Paz e Vida. Nos três processos, o Governo Federal responde por se omitir a cumprir suas obrigações.

As ações pedem que os serviços de radiodifusão dos três canais sejam suspensos imediatamente.  Solicitam, ainda, o impedimento temporário das empresas e instituições religiosas citadas e de seus representantes legais de participar em concorrências públicas, além do congelamento dos de seus bens. Também deve ser paga à União uma série de indenizações por dano moral difuso. A Igreja Universal e CNT devem pagar aos cofres públicos R$ 280 milhões; o grupo Bandeirante e a Igreja Universal, outros R$ 420 milhões; e a Rádio Vida FM e Comunidade Cristã Paz e Vida, mais R$ 20,8 milhões.

É importante frisar a atuação do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (Findac), grupo ligado ao Ministério Público Federal de São Paulo, cujo trabalho resultou nas ações civis públicas aqui citadas. O Findac conta com a participação de organizações da sociedade civil como o Intervozes, Artigo 19 e Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

A presidenta Dilma Rousseff ventilou a possibilidade de debater uma agenda de regulação econômica para o mercado de comunicação brasileiro, o que faria avançar de forma significativa o processo de democratização da comunicação no país.  Essa sinalização é importante, mas é preciso que as fiscalizações básicas sejam cumpridas pelo Ministério das Comunicações. Para isto, não precisa mais que o simples respeito ao interesse público.

*Pedro Ekman é integrante da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Comunicação também é direito humano fundamental

Por Helena Martins*

O Dia Internacional dos Direitos Humanos, comemorado nesta quarta-feira, também é um dia de luta por mudanças no sistema de comunicação do país. Isso porque, mais que um serviço ou técnica, compreendemos que a comunicação é um direito humano fundamental. Nesse sentido, para celebrar este 10 de dezembro e trazer à tona essa discussão, nosso blog publicará, nas próximas semanas, artigos que tratam desse direito e da sua relação com os demais. Afinal, compreendemos que a ausência do reconhecimento do direito à comunicação se constitui num dos maiores obstáculos para sua efetivação hoje em nosso país.

Neste primeiro artigo, buscamos traduzir o que significa direito à comunicação. O conceito foi sendo construído, ao longo do século XX, devido ao fato de termos passado a viver em um mundo com um fluxo de informação cada vez maior. Acontecimentos como as guerras mundiais e escândalos políticos envolvendo a mídia deixaram claro que a comunicação se tornou elemento central para a constituição de uma sociedade democrática.

Isso levou organizações internacionais como a Unesco e mesmo nações como a Bolívia a reconhecerem oficialmente esse direito. Mesmo o Brasil já possui uma lei que se refere à comunicação como direito: o Estatuto da Juventude, em seu artigo 26, estabelece que “o jovem tem direito à comunicação e à livre expressão, à produção de conteúdo, individual e colaborativo e ao acesso às tecnologias de informação e comunicação”.

Na prática, o direito humano à comunicação significa que todas as pessoas devem poder e ter condições para se expressar livremente, ser produtoras de informação, fazer circular essas manifestações, sejam elas opiniões ou produções culturais. Portanto, não basta ter liberdade de expressão ou acesso a uma vasta gama de fontes de informações. É preciso que Estado e sociedade adotem medidas para garantir que todos e todas possam exercer esse direito plenamente.

Neste sentido, é necessário atuar contra as diferenças econômicas, sociais e políticas que fazem tão poucos terem condições de serem produtores/as e difusores/as. Significa impedir, como prevê a Constituição, qualquer forma de concentração dos meios de comunicação. Significa promover a diversidade cultural, apoiando a produção e a veiculação de conteúdo regional, combatendo os preconceitos e distorções na forma como a mulher, o/a negro/a, o/a homossexual, os/as povos tradicionais e tantos outros e outras são retratados pela mídia.

Significa defender a exigibilidade dos direitos como forma de prevenir ou reparar violações. Por isso, defendemos que as rádios comunitárias sejam estimuladas e não combatidas. Lutamos contra a repressão e o cerceamento da liberdade de expressão de ativistas e movimentos sociais. Repudiamos a violência e a lógica calar jornalistas e comunicadores/as populares, seja por meio de bala de borracha ou decisões judiciais. Afinal, não é aceitável que se trate como crime o exercício de um direito.

Em um ciclo positivo, os meios de comunicação podem ser ferramentas para a garantia de diversos direitos, como o direito à educação, saúde, cultura, lazer, participação política, território, vida. Assim a comunicação, além de efetiva, intensa e diversa, poderá ser também libertadora.

* Helena Martins é jornalista, doutoranda em Políticas de Comunicação na UnB e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

“Não há qualquer projeto de esquerda que implique na ampliação dos direitos sem a democratização dos meios de comunicação”

No dia 30 de novembro, a Frente Ampla elegeu Tabaré Vasquéz para comandar o Uruguai até 2020. O resultado das urnas mostrou que as políticas de desenvolvimento local e de ampliação de direitos trabalhistas e sociais desenvolvidas nos últimos 10 anos (primeiro com Tabaré e depois com Pepe Mujica) foram aprovadas pelos uruguaios. E a agenda política que saiu vitoriosa das urnas sinaliza para a ampliação de direitos e adoção de políticas para aprofundar ainda mais a democracia. Nesse contexto, uma das primeiras e mais polêmicas agendas a serem enfrentadas, ainda neste ano, é a discussão no Senado da Lei de Serviços Audiovisuais.

Pouco antes do primeiro turno da eleição, estive no Uruguai e entrevistei o jornalista Gabriel Mazzarovich sobre as dificuldades em se fazer avançar a agenda da democratização da comunicação no Uruguai. As similaridades com os problemas que enfrentamos no Brasil são muitas. Inclusive no discurso blocado dos “barões da mídia uruguaia”, que como nos disse Mazzarovich é a de que “a melhor lei de meios é a que não existe”.

Por isso, assim que perceberam a franca maioria da Frente Ampla no parlamento e o favoritismo de Vásquéz, os empresários dos meios de comunicação no Uruguai rapidamente se mobilizaram para manifestar seu repúdio ao projeto de lei construído pela Frente Ampla com apoio das entidades que participam da Coalização por uma Comunicação Democrática. O Diário El País estampou manchete nesta segunda-feira (01/12) destacando a posição da Associação Nacional dos Radiodifusores Uruguaios que taxa a proposta em tramitação no Senado de autoritária. “Em regimes autoritários da história do homem, como os fascistas, os mussolinistas e os stalinistas, ou em Cuba que não há liberdade para nada, ou na Venezuela onde estão fechando os veículos, há leis desse tipo”, afirmou o presidente da Andebu, Pedro Abuchalja. A reação é claramente uma tentativa de obstruir o debate, que contou com o apoio explícito do presidente eleito.

Se há uma clara semelhança entre a postura dos donos da mídia lá e aqui no Brasil, uma diferença entre a situação brasileira e a uruguaia nesta pauta é gritante e nos coloca, brasileiros, em grande desvantagem: no Uruguai há um projeto de lei tramitando no Congresso, já aprovado pelos deputados e aguardando votação no Senado, onde a Frente Ampla tem maioria para aprovar a proposta que conta com o apoio do atual presidente e do presidente eleito.

Mas, apesar do compromisso em votar o projeto ainda este ano, a luta política em torno da democratização da comunicação no Uruguai ainda tem um vasto caminho que passa, necessariamente, como alertou Gabriel Mazzarovich pela mobilização da sociedade em torno desta pauta, que é estratégica para qualquer projeto de poder.

ComunicaSul – Como está atualmente o debate sobre a comunicação no Uruguai?

Gabriel Mazzarovich – No Uruguai, assim como no mundo inteiro, o tema dos meios de comunicação para a esquerda e para o movimento popular é um tema que apenas recentemente vem sendo tratado como um problema estratégico. Muitos dos nossos companheiros dizem que há governos que governam bem, mas que têm problemas de comunicação. Nós dizermos que se a esquerda tem problema de comunicação, então governa mal. Comunicar é parte de governar e é parte de fazer política, sempre foi, mas nesta sociedade é muito mais. A democratização da sociedade é estratégia de poder e para fazer o debate da democratização da comunicação é preciso discutir poder. Há setores da esquerda e do movimento popular uruguaio que sequer o reivindicam, que a sua perspectiva estratégica é um programa de governo de cinco anos. Mas a nossa perspectiva estratégica é a revolução, portanto é uma perspectiva estratégica histórica e que necessita da democratização dos meios de comunicação, porque eles são um ponto central do poder. Não há democratização da sociedade possível e nem qualquer projeto de esquerda que implique na ampliação dos direitos sem a democratização dos meios de comunicação.

ComunicaSul – E como este debate está organizado na sociedade uruguaia?

Gabriel Mazzarovich – Temos no Uruguai a Coalização por uma Comunicação Democrática, um espaço muito amplo que integra o movimento sindical, as faculdades de comunicação, sindicatos de jornalistas, mas que tem tratado do assunto como um tema de lobby, realizando grandes seminários. Isso é muito importantes, mas nós estamos convencidos de que se não colocarmos milhares de pessoas nas ruas para lutar por esta pauta não teremos êxito. Porque os grandes meios de comunicação são os reis do lobby, eles o inventaram. Por isso temos que ter milhares de pessoas nas ruas.

ComunicaSul – E nos dez anos de governo da FA não houve avanços na pauta da Comunicação?

Gabriel Mazzarovich – O que mudou nos últimos anos. Nós, no Uruguai, temos um sistema de meios de comunicação parecido com o de outros países da América Latina, e que pode ser definido por quatro palavras: privado, comercial, concentrado e estrangeirizado. É uma merda. Um desserviço para a democracia uruguaia. No Uruguai vivemos num país capitalista, a propriedade capitalista está garantida pela Constituição, e existe propriedade capitalista em todos os setores da economia, menos na Comunicação. Na Comunicação a propriedade é feudal. As concessões de radiodifusão existentes foram outorgadas sem nenhum tipo de concurso e não têm fim, não têm prazo para acabar; 60% das concessões de rádio que existem no Uruguai foram outorgadas pela ditadura e ainda seguem vigentes. A direita segue sempre com o mesmo discurso que a melhor lei de meios é a que não existe. É mentira. No Uruguai existe uma lei de meios, é o único setor do Uruguai que continua sendo orientado por uma lei da ditadura. Mesmo com a recuperação democrática e 10 anos de governo de esquerda não conseguimos revogá-la. Não conseguimos mudar essa maldita lei da ditadura. Mas ainda assim, no governo da FA foram feitas várias coisas.

A primeira foi a lei das radiocomunitárias, que é um avanço histórico para o Uruguai no qual o Estado deixou de ser repressivo e passou a ser um Estado com ambição de inclusão. A lei estabelece pela primeira vez nas leis uruguaias três espaços para os meios de comunicação: o espaço privado, o espaço comunitário e o espaço público e estabelece que estes espaços devam ser equivalentes. Isso foi fundamental porque aqui se criou o antecedente para todo o resto. Hoje, 95% das rádios são privadas e 80% dos canais também. Todas as novas frequências estão sendo alocadas para as rádios comunitárias e para aumentar a presença das rádios públicas. Falta muito, mas efetivamente criamos este espaço.

O governo da Frente Ampla estabeleceu por decreto presidencial — por isso é tão importante a lei de serviços audiovisuais, já que decreto pode ser mudado por outro presidente – que é obrigatório haver licitação e audiências públicas para destinar as novas frequências e ainda proíbe a entrega de frequências radioelétricas um ano antes das eleições e seis meses depois de assumir o mandato. Porque é neste período que elas são repartidas para favorecer a cobertura da campanha e para dar os serviços aos candidatos e a FA é a única força política que não fez isso. Outro tema principal é o decreto da TV Digital, que definiu a distribuição das novas frequências da TV Digital a partir de um concurso público, que teve os seus problemas, mas que foi um concurso público, com audiência pública, os pleiteantes tiveram que apresentar um projeto de comunicação, foram julgados, e as concessões têm prazo para terminar (25 anos). Além disso, a cada 5 anos as emissoras serão submetidas a uma avaliação e se não cumpriram com seus planos de investimento e programação podem ter suas outorgas canceladas. Mas, mesmo com essas medidas, nós reiteramos que precisamos de uma nova lei de serviços audiovisuais porque ela é um instrumento legal e tem um peso que não têm os decretos.

ComunicaSul – E o que propõe a Lei de Serviços Audiovisuais?

Gabriel Mazzarovich – A lei de serviços audiovisuais é muito mais ampla. Ela outorga pela primeira vez direitos à audiência, cria-se a figura do defensor da audiência, estabelece a participação dos trabalhadores no acompanhamento da lei, estabelece que as emissoras devam respeitar os direitos trabalhistas e a liberdade sindical. Pela lei fica obrigada a reserva de uma porcentagem da programação para exibição de conteúdo nacional, estabelece critérios de como se devem dar as notícias de violência para proteger os direitos das crianças e adolescentes, estabelece prazos para a vigência das outorgas e estabeleces a divisão do espectro em terços: 1/3 privado; 1/3 comunitária e 1/3 pública. E mais, se não for possível ocupar o espectro reservado para o campo comunitário e público, porque não existiram propostas, esses espaços não podem ser oferecidos aos meios privados, eles se mantêm em reserva até que se tenha uma proposta comunitária e pública. O privado fica limitado a 1/3 do espectro. Este é o projeto de lei que o parlamento está discutindo, que já tem a aprovação dos deputados e agora resta ser aprovado pelo Senado.

ComunicaSul – E como é o cenário das Telecomunicações? O serviço no Uruguai é público certo?

Gabriel Mazzarovich – Sim. Nós temos uma coisa distintiva no Uruguai. Ainda durante a ditadura se criou Antel como ente das telecomunicações. Porque os milicos já tinham claríssimo, eles sim tinham estratégia de poder. Nós mantemos com vocês (privados) os meios de comunicação e cuidamos das telecomunicações, que são o futuro. E é lindo nós termos uma empresa de telecomunicação estatal, estratégica, e que é central para qualquer projeto de desenvolvimento. Por isso, nós temos que defendê-la. A Argentina não tem, está inventando. Todas as empresas de telecomunicações na Argentina são privadas, todas. Inclusive a plataforma pela qual vai circular a muito boa lei de meios que eles têm é toda privada. Eles não têm nada público. Aqui é o contrário, tudo é público, e o setor privado terá a obrigação de pagar para as empresas públicas para utilizar a plataforma digital. E na nossa proposta de lei agregamos uma coisa que é única no mundo, que se chama proibição cruzada. A lei tem um artigo que estabelece que as empresas que sejam concessionárias de ondas de televisão são proibidas de terem empresas telefônicas, e as empresas telefônicas são proibidas de terem concessão de radiodifusão. Por exemplo, no caso do Peru, a Movistar e Claro são donas de todas as televisões peruanas. Isso é o que se está passando no mundo. Por isso, o Uruguai enfrenta processos da Organização Mundial do Comércio e de outras cortes internacionais por violar a liberdade comercial, os tratados comerciais. Esse é o centro da disputa hoje, porque eles querem destroçar a Antel e dar mais poder a esta tropa. Então, essa é a lei pesada que estamos discutindo no parlamento hoje, mas que os deputados conseguiram aprová-la depois de um debate de dois anos. Foram feitas inúmeras modificações no projeto original de lei, algumas inclusive impulsionadas por nós, para aperfeiçoá-lo. Por exemplo, introduzimos a proposta de se criar um conselho independente que ficará encarregado de fazer a gestão de todos os temas relacionados ao assunto. No projeto original da FA não havia esse conselho.

ComunicaSul – E qual a sua perspectiva para a aprovação do projeto de lei dos serviços audiovisuais?

Gabriel Mazzarovich – O compromisso de Mujica e Tabaré é de votar depois das eleições. Queríamos votar antes de outubro. Apresentamos o projeto dois anos antes das eleições para que fosse votado antes. Mas não conseguimos colocar a massa lutando por ele. Se conseguirmos aprová-lo será um passo histórico para o uruguaio. O debate sobre o conteúdo da lei de serviços audiovisuais avançou muito no governo da FA. Mas veja, tivemos experiências fundamentais neste último período. Aprovamos no Uruguai a lei de responsabilidade penal empresarial, que é uma lei pesada, dura, uma das mais importantes que foram votadas no Uruguai. Também a lei de negociação coletiva e a lei que anula a lei da impunidade. Estas talvez tenham sido as três leis mais pesadas votadas no Uruguai. Elas representam um passo contra-hegemônico dos trabalhadores e da esquerda e por isso sofreram tanta resistência dos empresários, como se fossem uma revolução. Porque foram aprovadas? Porque houve uma pressão gigantesca para serem aprovadas. A bancada da esquerda mudou cinco vezes o seu voto. Começamos perdendo de 15 a 1 e terminamos ganhando de 12 a 5. Saiu porque tivemos 350 mil assinaturas, porque tivemos mais de 35 mil trabalhadores nas ruas e mais de mil assembleias de trabalhadores. Outras leis importantes que podemos usar de exemplo são a lei do matrimônio igualitário e da regulação da maconha. Elas representaram uma ampliação de direitos enorme, em uma sociedade hipócrita como essa, com toda a Igreja Católica e Evangélica lutando contra as duas, com a esquerda na dúvida se apoiava ou não. Porque saiu? Porque existiu um movimento popular pujante e novo que foi às ruas com mais de 30 mil pessoas defendendo essas bandeiras. O que aconteceu com a lei de serviços audiovisuais. Teve um debate programático na Frente Ampla, tem fundamentos de sobra, todos os debates que fizemos nós ganhamos, todos. Então, porque os donos dos meios de comunicação conseguiram trancar essa discussão? Porque neste processo não conseguimos mobilizar nem 10 pessoas para defender essa lei aqui no Uruguai. O dia em que se discutiu esse tema no Congresso éramos 20 pessoas nas galerias. Então, o tema da correlação de forças e da base social que é necessária para essa lei se tornar realidade é central. Este é o problema que nós estamos enfrentando agora, criar uma base social que dê respaldo para a lei, criar uma onda para todo movimento popular uruguaio tomar isso como bandeira central.

Entrevista concedida a Renata Mielli, publicada em ComunicaSul.