Nesta quarta-feira (28), o ministro das Comunicações Ricardo Berzoini recebeu a executiva do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC), que reúne os principais movimentos e organizações que defendem a liberdade de expressão e o direito à comunicação no país. O Intervozes esteve presente. Na pauta, necessariamente, o debate sobre como Berzoini pretende conduzir as discussões públicas sobre a elaboração de um novo marco regulatório para o setor no Brasil. O ministro reafirmou as declarações já feitas na imprensa: esta gestão Dilma quer enfrentar o tema, “desmistificando conceitos e compartilhando informações”, como explicou.
O processo de construção e aprovação de um novo marco regulatório, entretanto, levará tempo e encontrará obstáculos não apenas junto ao empresariado, mas também no Congresso Nacional.
Como o quadro atual do sistema midiático brasileiro requer ações urgentes, bastando para isso vontade política e uma mudança de postura do Ministério das Comunicações, o FNDC apresentou a Berzoini questões que podem ser tratadas no curto prazo, independentemente da aprovação de uma nova lei geral para o setor. Isso porque o marco normativo atualmente em vigor no Brasil já garante os elementos necessários para que tais desafios sejam finalmente enfrentados por essa gestão governo federal. É só querer.
Compartilhamos abaixo algumas delas, na expectativa de que o nomo ministro efetivamente cumpra o que tem anunciado: fazer diferente.
1. Proibição de outorgas para deputados e senadores
O artigo 54 da Constituição aponta, em seus dois primeiros parágrafos, como fundamento da República, que deputados e senadores não podem firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público. O artigo 38 do Código Brasileiro de Telecomunicações também determina, em seu parágrafo primeiro, que não pode exercer a função de diretor ou gerente de concessionária, permissionária ou autorizada de serviço de radiodifusão quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial. No entanto, há 40 deputados federais e senadores, da legislatura que termina neste domingo (1), que controlam diretamente pelo menos uma emissora de rádio ou televisão em seu estado de origem.
2. Combate aos arrendamentos/subconcessões
Levantamento de arrendamentos na grade de programação da TV aberta, feito pelo Intervozes, aponta que algumas emissoras chegam a ter 92% do seu tempo vendido para terceiros, como a Rede 21, do Grupo Bandeirantes. Há casos também de emissoras maiores, como a RedeTV, que cresceu, nos últimos quatro anos, de 32% para 50% o percentual de sua grade arrendada. As igrejas cristãs são as responsáveis pela parte mais significativa dessas compras. A Igreja Universal do Reino de Deus, proprietária da Record e da TV Universal, por exemplo, paga cerca de 12 milhões por mês para o Canal 21 e para a CNT. Recentemente, o Ministério Público Federal de São Paulo entrou com três ações contra arrendamentos ilegais. Foram acionados na Justiça o grupo de TV CNT e o Canal 21 do grupo Bandeirantes pelo arrendamento ilegal de 22 horas diárias das suas programações para a Igreja Universal do Reino de Deus. O Ministério das Comunicações é réu nas ações, pois o MPF considera que o órgão deveria impedir a prática, e não o faz.
Segundo o MPF, a subconcessão é inconstitucional pois (i) viola o princípio da licitação e a regra da isonomia, e (ii) a concessão possui caráter personalíssimo. Ainda que se admita a legalidade da subconcessão, seriam necessárias (i) a previsão no edital de licitação inicial da outorga, (ii) a permissão contratual, (iii) a prévia autorização do Poder Executivo e (iv) a realização de concorrência pública. Na venda de programação, nada disso é feito. Já se for considerado o aspecto mercadológico do negócio, a legislação brasileira também está sendo desrespeitada, visto que o art. 124 Código Brasileiro de Telecomunicações e o art. 28, §12, “d”, do Decreto Presidencial nº 52.795/63 determinam que o tempo destinado à publicidade comercial não poderá exceder 25% da programação. O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) determina fim do direito à outorga se a concessionária ou permissionária descumprir o contrato de concessão ou permissão, ou as exigências legais e regulamentares (art. 67). Mas o Ministério das Comunicações e o Congresso nacional nunca fizeram isso.
3. Enfrentamento ao livre mercado de compra e venda de outorgas de rádio e TV
A radiodifusão, além de ser um serviço público, utiliza um bem público: o espectro eletromagnético. Apesar disso, muitos concessionários utilizam a outorga obtida junto à União como uma mercadoria por meio das vendas declaradas ou das negociações não públicas conhecidas como “contratos de gaveta”. Ao mesmo tempo, transferências diretas e indiretas de outorgas também revelam a apropriação privada de recursos públicos. Previstas em lei, desde que autorizadas pelo Poder Executivo, as transferências de outorgas já são consideradas inconstitucionais – há jurisprudência nesse sentido e uma ação da Procuradoria Geral da República questiona um dispositivo análogo na lei de concessões. Além disso, uma série de transferências ocorrem sem a anuência do Poder Executivo.
4. Garantia do respeito aos limites à concentração de propriedade já existentes
A legislação brasileira veda que um mesmo ente possua mais de cinco emissoras em VHF ou mais de 10 em UHF no território nacional, bem como duas outorgas do mesmo serviço na mesma localidade. No entanto, esses limites são burlados cotidianamente no país. Um primeiro problema é o uso de estruturas societárias diferentes dentro de um mesmo grupo comercial. Um segundo problema é a afiliação em rede, cuja ausência de regramento permite, além da concentração de veículos por poucos grupos econômicos, contratos com obrigações excessivas para as afiliadas e a verticalização da produção audiovisual brasileira. Normas infralegais poderiam constituir mecanismos que identificassem os grupos comerciais, aplicando os limites à concentração de propriedade já existentes para estes.
5. Responsabilização das emissoras por violações de direitos humanos na programação
Em busca de audiência, canais multiplicam violações com a profusão de programas policialescos e conteúdos baseados na estigmatização e humilhação. Denúncias crescentes nas Procuradorias dos Direitos do Cidadão comprovam uma questão sistemática. No processo de fiscalização das obrigações de conteúdo, além de não realizar um acompanhamento sistemático do que é veiculado, o MiniCom trabalha e orienta a Anatel a considerar apenas as normas dispostas no CBT e no regulamento do serviço de radiodifusão. O Código afirma que constitui abuso no exercício da radiodifusão o emprego dos meios de comunicação para a promoção de campanha discriminatória de classe, cor, raça ou religião. Já o Decreto Presidencial 52.795/63 proíbe as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico” (Art.28, item 12).
Além de ser complexo enquadrar determinada programação na definição de campanha discriminatória, o MiniCom não considera as demais leis e tratados internacionais ratificados pelo Brasil que tratam do tema, como o Estatuto da Igualdade Racial, que prevê, por exemplo, que o poder público deve garantir medidas para “coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas”(Art. 26). Em relação às eventuais sanções aplicadas, apesar de serem gradativas, elas não podem ser consideradas cumulativas em casos de reincidência. Assim, mesmo que uma emissora tenha como prática sistemática a difusão de conteúdos atentatórios contra os direitos humanos, ela nunca chegará a perder sua licença por este motivo. O valor aplicado também não é dissuasivo. Em 2013, as multas tinham como teto R$ 76.155,21, sendo que, por apenas 30 segundos de inserção publicitária, as emissoras cobram o valor médio de R$ 15 mil.
6. Fim da criminalização às rádios comunitárias
É urgente promover uma mudança institucional no sentido de barrar a criminalização histórica das rádios comunitárias. Principal veículo de exercício da liberdade de expressão de milhares de comunidades em todo o país, essas rádios sofrem a frequente repressão por parte da Anatel, movida na maior parte dos casos por denúncias de rádios comerciais concorrentes. Ações de fechamento e lacração de emissoras tem levado, sem qualquer justificativa, além da detenção de líderes comunitários, à apreensão de equipamentos preciosos para a população e à cobrança de multas que colocam as associações em situação mais precária do que a em que já se encontram. A anistia dessas multas e a devolução dos equipamentos confiscados é uma medida urgente para a sobrevida deste movimento. A desburocratização dos processos de autorização (há casos de espera de quase 10 anos) e a criação de um mecanismo de financiamento para as rádios comunitárias, que seja compatível com a lei 9612/98, também são estratégicos para a sustentabilidade dos canais.
7. Universalização do acesso à banda larga
O Programa Nacional de Banda Larga foi lançado em maio de 2010 com objetivo de ampliar os acessos à Internet de alta velocidade no país. Embora os acessos tenham crescido desde então, mais da metade dos domicílios brasileiros permanece desconectada, o que se soma a uma considerável desigualdade regional e um profundo fosso entre áreas urbanas e rurais. O cenário atual é reflexo de uma das falhas mais graves do Programa – a não consideração do serviço de banda larga como essencial e a crença de que meros incentivos ao mercado são capazes de superar desigualdades e garantir direitos. O plano de banda larga popular e as metas destinadas à área rural são também retratos dessa insuficiência e precisam ser revistos. A Presidenta Dilma tratou esse tema com prioridade em sua campanha e se comprometeu com a universalização do acesso à banda larga. Contudo, isso deve ser feito de acordo com a legislação brasileira, com a sua prestação também em regime público, conferindo ao poder público instrumentos regulatórios suficientes para exigir obrigações das empresas. Deve ser feito também com investimentos em redes de fibra ótica e fortalecimento da Telebras. Por fim, a concepção e implementação de uma nova fase do PNBL deve ter a participação social como um de seus pilares, assim como ocorreu com o Marco Civil da Internet.
Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.