Por Marina Cardoso*
A Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), Lei 12.485, foi aprovada em 2011 para regular o mercado de TV paga no Brasil. O ineditismo desta norma consiste em definir limites claros à propriedade cruzada e também regras de programação de conteúdos e empacotamento, isso é, de agregação de canais, tendo em vista a necessidade de geração de uma indústria audiovisual forte no país.
Essas medidas tanto fazem bem para a economia quanto cumprem o papel fundamental de garantir diversidade e pluralidade nos meios de comunicação, por meio do incentivo à produção regional e independente. Para consolidá-las, com regulamentação e fiscalização, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) foi transformada em agência reguladora de conteúdo audiovisual.
Diante disso, o movimento que luta pelo direito à comunicação e pela democratização das comunicações e que defende a lei tem olhado para a Ancine com expectativa. Nas últimas semanas, contudo, acompanhamos com desapontamento a nomeação de Débora Ivanov para ocupar uma vaga na diretoria da Ancine. Por quê?
Porque Ivanov é uma das donas de uma das cinco maiores produtoras do Brasil, a Gullane. E a Gullane (suspiros de lamento) possui nada menos do que R$ 40 milhões em projetos captando na Ancine, que terão que passar pela diretoria. Há um conflito de interesses evidente. Conflito que mostra ainda o problema da mesma agência possuir atribuições de fomento e regulação e que traz à tona o velho debate sobre a possibilidade de captura das agências reguladoras por parte dos grupos privados.
Os problemas tornam-se mais graves devido ao pouco – para não dizer nenhum – espaço para debate sobre as ações e programas da agência. Exemplo maior dessa lógica foi a publicação da agenda regulatória da Ancine 2015/2016 no Diário Oficial da União em 13 de março de 2015 sem discussão pública.
Essa agenda é crucial para o setor – entre seus pontos está, por exemplo, a “regulação da atuação da agência no campo da defesa da concorrência e da ordem econômica e a regulação dos canais de distribuição obrigatória”. Por isso, é vital garantir o debate público e não discussões a portas fechadas em gabinetes, nas quais o poder de influência dos conglomerados se fortalece.
A pergunta que fazemos é: como agência reguladora, não caberia à Ancine realizar audiências acerca de sua agenda regulatória ou estabelecer uma metodologia para que os diversos segmentos da sociedade possam debater tal planejamento? No nosso entendimento, sim, assim como ocorre inclusive na Aneel e na Anatel.
A participação é fundamental também porque, ainda hoje, a Ancine carece de apoio das organizações e redes da sociedade civil, do pequeno e médio produtor e empresário, para lutar dentro do governo pelo fim do contingenciamento e pela aplicação dos recursos captados pela Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que é paga pelas empresas de telecomunicações.
Infelizmente, apesar do salto de arrecadação a partir da aprovação da Lei do Seac, os investimentos não seguiram o mesmo ritmo. Em 2012, quando as teles passaram a pagar a Condecine, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) captou R$ 727 milhões exclusivamente desta fonte. Em 2013, a captação dessa fonte foi de R$ R$ 806 milhões. Em 2014, o montante foi de R$ 784 milhões. No entanto, conforme o relatório de gestão da Ancine de 2013 (último disponível no site da agência), a contratação e liberação de recursos para os programas de incentivo à produção (Prodav e Prodecine) somaram pífios R$ 44 milhões, em 2012, e R$ 85 milhões, em 2013. O desembolso nos programas nestes dois anos foi de R$ 36 milhões e R$ 47 milhões, respectivamente. Estamos falando da aplicação de um montante na casa de poucas dezenas de milhões para uma captação na casa das várias centenas de milhões.
Outra mostra da dificuldade de abertura da agência é a pouca transparência ativa praticada por ela. No site da Ancine, a página de orçamento do FSA não traz dados para além de julho de 2013. Na parte de investimento, a agência apresenta um dado classificado como “valor disponibilizado”, que pouco diz sobre investimento de fato. E, para piorar, os dados aparecem de forma bianual, e cruzados e atualizados até apenas até 2013.
Neste momento, portanto, é preciso acender um sinal de alerta. Em um país onde falar sobre qualquer forma de regulação do que vemos nas telas é coisa de comunista que quer censurar o mundo, a aprovação da Lei do SeAC foi um importante passo para pacificar o entendimento de que as comunicações devem, sim, ser reguladas para evitar a constituição de oligopólios e monopólios e para salvaguardar o interesse público.
No entanto, o importante projeto de agência reguladora da produção, distribuição e comercialização de conteúdo audiovisual no país, um dos pontos fundamentais para a organização do setor proposta pela lei, está ameaçado. E é preciso começar a debater e defender publicamente esse projeto antes que seja tarde demais.
* Marina Cardoso é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.
Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.