Ancine sob risco

Por Marina Cardoso*

A Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), Lei 12.485, foi aprovada em 2011 para regular o mercado de TV paga no Brasil. O ineditismo desta norma consiste em definir limites claros à propriedade cruzada e também regras de programação de conteúdos e empacotamento, isso é, de agregação de canais, tendo em vista a necessidade de geração de uma indústria audiovisual forte no país.

Essas medidas tanto fazem bem para a economia quanto cumprem o papel fundamental de garantir diversidade e pluralidade nos meios de comunicação, por meio do incentivo à produção regional e independente. Para consolidá-las, com regulamentação e fiscalização, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) foi transformada em agência reguladora de conteúdo audiovisual.

Diante disso, o movimento que luta pelo direito à comunicação e pela democratização das comunicações e que defende a lei tem olhado para a Ancine com expectativa. Nas últimas semanas, contudo, acompanhamos com desapontamento a nomeação de Débora Ivanov para ocupar uma vaga na diretoria da Ancine. Por quê?

Porque Ivanov é uma das donas de uma das cinco maiores produtoras do Brasil, a Gullane. E a Gullane (suspiros de lamento) possui nada menos do que R$ 40 milhões em projetos captando na Ancine, que terão que passar pela diretoria. Há um conflito de interesses evidente. Conflito que mostra ainda o problema da mesma agência possuir atribuições de fomento e regulação e que traz à tona o velho debate sobre a possibilidade de captura das agências reguladoras por parte dos grupos privados.

Os problemas tornam-se mais graves devido ao pouco – para não dizer nenhum – espaço para debate sobre as ações e programas da agência. Exemplo maior dessa lógica foi a publicação da agenda regulatória da Ancine 2015/2016 no Diário Oficial da União em 13 de março de 2015 sem discussão pública.

Essa agenda é crucial para o setor – entre seus pontos está, por exemplo, a “regulação da atuação da agência no campo da defesa da concorrência e da ordem econômica e a regulação dos canais de distribuição obrigatória”. Por isso, é vital garantir o debate público e não discussões a portas fechadas em gabinetes, nas quais o poder de influência dos conglomerados se fortalece.

A pergunta que fazemos é: como agência reguladora, não caberia à Ancine realizar audiências acerca de sua agenda regulatória ou estabelecer uma metodologia para que os diversos segmentos da sociedade possam debater tal planejamento? No nosso entendimento, sim, assim como ocorre inclusive na Aneel e na Anatel.

A participação é fundamental também porque, ainda hoje, a Ancine carece de apoio das organizações e redes da sociedade civil, do pequeno e médio produtor e empresário, para lutar dentro do governo pelo fim do contingenciamento e pela aplicação dos recursos captados pela Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que é paga pelas empresas de telecomunicações.

Infelizmente, apesar do salto de arrecadação a partir da aprovação da Lei do Seac, os investimentos não seguiram o mesmo ritmo. Em 2012, quando as teles passaram a pagar a Condecine, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) captou R$ 727 milhões exclusivamente desta fonte. Em 2013, a captação dessa fonte foi de R$ R$ 806 milhões. Em 2014, o montante foi de R$ 784 milhões. No entanto, conforme o relatório de gestão da Ancine de 2013 (último disponível no site da agência), a contratação e liberação de recursos para os programas de incentivo à produção (Prodav e Prodecine) somaram pífios R$ 44 milhões, em 2012, e R$ 85 milhões, em 2013. O desembolso nos programas nestes dois anos foi de R$ 36 milhões e R$ 47 milhões, respectivamente. Estamos falando da aplicação de um montante na casa de poucas dezenas de milhões para uma captação na casa das várias centenas de milhões.

Outra mostra da dificuldade de abertura da agência é a pouca transparência ativa praticada por ela. No site da Ancine, a página de orçamento do FSA não traz dados para além de julho de 2013. Na parte de investimento, a agência apresenta um dado classificado como “valor disponibilizado”, que pouco diz sobre investimento de fato. E, para piorar, os dados aparecem de forma bianual, e cruzados e atualizados até apenas até 2013.

Neste momento, portanto, é preciso acender um sinal de alerta. Em um país onde falar sobre qualquer forma de regulação do que vemos nas telas é coisa de comunista que quer censurar o mundo, a aprovação da Lei do SeAC foi um importante passo para pacificar o entendimento de que as comunicações devem, sim, ser reguladas para evitar a constituição de oligopólios e monopólios e para salvaguardar o interesse público.

No entanto, o importante projeto de agência reguladora da produção, distribuição e comercialização de conteúdo audiovisual no país, um dos pontos fundamentais para a organização do setor proposta pela lei, está ameaçado. E é preciso começar a debater e defender publicamente esse projeto antes que seja tarde demais.

* Marina Cardoso é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes. 

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

“Um dos pressupostos da democracia é a diversidade de vozes”

A elevada concentração da propriedade dos meios de comunicação na América Latina e no Caribe está na mira da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que recentemente abriu uma consulta pública para conhecer melhor a legislação de cada país e propor mecanismos para evitar ou reverter a formação de monopólios ou oligopólios.

“Um dos pressupostos da democracia é o pluralismo político, a diversidade de vozes”, explica o advogado e jornalista uruguaio Edison Lanza, relator especial para a Liberdade de Expressão da entidade. Em passagem pelo Brasil, Lanza conversou com CartaCapital e criticou a letargia do País em criar medidas concretas para assegurar a diversidade na mídia.

CartaCapital – Por que rediscutir os marcos regulatórios das comunicações?

Edison Lanza – Na América Latina e no Caribe, há um elevado grau de concentração da propriedade dos meios. Poucas mãos controlam a maior parte das frequências, sobretudo dos meios audiovisuais, mas também há monopólios e oligopólios nos escritos. Isso tem implicações no processo democrático, pois um dos pressupostos da democracia é o pluralismo político, a diversidade de vozes. A Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2000, diz claramente que a formação de monopólios ou oligopólios de comunicação atenta contra a democracia.

Em uma sociedade democrática, devem conviver atores públicos, comunitários e privados. E o Estado tem legitimidade para criar instrumentos para garantir isso. Há uma clara necessidade de incluir mais vozes. O impasse é que os países do continente tentam regular um sistema que existe desde o surgimento do rádio e da televisão, entre os anos 1930 e 1950. Com uma peculiaridade: esse sistema se estruturou de forma desregulada, favorecendo o setor privado.

C.C. – É inevitável, portanto, contrariar interesses nessa reordenação.

E.L – Quando se tenta regular um sistema que já existe é natural haver conflitos. Mas vivemos um momento de transição dos meios analógicos para os digitais, e isso é uma grande oportunidade para garantir maior diversidade. Onde antes só poderiam existir quatro ou cinco canais, hoje é possível haver dezenas de outros. Agora, diante de uma situação consolidada de concentração de meios, que medidas são legítimas? É válido restringir a propriedade dos meios em poucas mãos? É válido coibir a propriedade cruzada, quando o mesmo grupo é proprietário de rádios, tevês e impressos? Muitos países buscaram regular melhor essas questões. Outros não fizeram muita coisa, preferiram manter como está.

C.C – No Brasil, os proprietários dos meios de comunicação usam o argumento da censura para se opor a qualquer forma de regulação.

E.L – Se o Estado não intervir em nada, prevalece a lei do mais forte. Basta ter dinheiro para acumular frequências, controlar um maior número de veículos, o que implica em concentração de poder. Na Guatemala, para citar um exemplo, um só ator, Ángel González, é proprietário de quatro emissoras da tevê aberta e 30 frequências de rádio. É um empresário com influência política enorme, tanto no governo quanto no Parlamento. Isso, de fato, torna mais complexa a discussão na América Latina.

Na Europa, primeiro foram estruturados os meios públicos, para depois regular a atuação privada. Mas também há propostas de regulação que ultrapassam a questão da propriedade e interferem no conteúdo produzido. Temos criticado várias imposições da nova lei do Equador. Sob a justificativa de regular o setor, os parlamentares criaram brechas para punir os meios de comunicação por seu conteúdo com multas, inclusive o conteúdo crítico ao governo. É um tema realmente delicado. A regulação pode servir tanto para incluir mais vozes, com espaço aos meios públicos e comunitários, quanto para criar mecanismos de censura disfarçados.

C.C – Quais são os melhores exemplos de regulação dos meios?

E.L. – No Reino Unido, na França, na Suécia, há excelentes serviços públicos de comunicação, com autonomia e financiamento adequado. Essas nações também têm instrumentos legais para garantir o acesso dos meios comunitários. Também há os grupos privados, mas eles estão submetidos a certas regras para garantir a diversidade. Na América Latina, as iniciativas são mais recentes e fragmentadas. A nova legislação da Argentina tenta criar uma estrutura parecida com essa que descrevi, com a participação dos setores público, comunitário e privado, além de impor limites para a concentração dos meios por particulares.

C.C. – A Suprema Corte da Argentina validou a cláusula antimonopólio, mas até hoje o governo Kirchner é acusado de perseguir o grupo Clarín.

E.L. – Questiona-se que a legislação tem sido utilizada contra um único meio de comunicação. A regra deveria valer para todos, sem qualquer tipo de discriminação. Estamos monitorando de perto essa situação. No Uruguai, o Parlamento acabou de aprovar uma lei, após cinco anos de debates sobre o tema. É basicamente uma regulação da estrutura da propriedade, com mecanismos mais transparentes para a concessão de outorgas. Também há disposições para fomentar a produção de conteúdos de base nacional e para incluir os meios comunitários, além de uma regulação mínima de conteúdo, apenas para garantir a proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e punir discursos de incitação ao ódio.

C.C. – Nesse cenário, o Brasil está muito atrasado, não?

E.L. – De fato, o Brasil postergou a adoção de medidas concretas. Pelas denúncias que recebemos da sociedade civil, o País tem um sistema muito concentrado, sobretudo na tevê aberta. Há muitas rádios controladas por políticos e o setor comunitário permanece excluído. A legislação para as rádios comunitárias é deficiente, pois impõe limites de alcance e restringe o financiamento pela publicidade. O Brasil poderia avançar mais por meio de políticas públicas, que assegurem, por exemplo, a inclusão dos meios comunitários. Há um contrassenso na perseguição às rádios sem licença quando o objetivo é incluir mais vozes. Com a transição da televisão digital, também não há desculpa para não ampliar o número de atores, pois nem sequer é preciso mexer nos já existentes.

C.C. – A internet assegurou a inclusão de vozes alternativas aos meios tradicionais. Por outro lado, vemos a emergência de um forte discurso de ódio, sobretudo nas redes sociais.

E.L. – A internet foi construída para ser uma rede descentralizada, e logo se converteu num importante instrumento para a liberdade de expressão. Uma das características da rede é o enorme pluralismo, com barreiras de acesso muito baixas. Tanto que vimos a emergência de dessas vozes alternativas aos meios tradicionais. Temos de ser muito cuidadosos ao falar de regulação da internet para não interferir no projeto original da rede, marcada pela descentralização e diversidade. Se há a necessidade de regular algum conteúdo, precisa haver regras muito precisas. As normas internacionais já proíbem discursos de incitação ao ódio. O artigo 13.5 da Convenção Interamericana diz, textualmente, que “a lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.

As Nações Unidas têm uma metodologia para identificar essas expressões que incitam o ódio. Precisamos aprimorar os padrões de proteção aos direitos das mulheres, dos povos indígenas… Mas os Estados têm a obrigação de educar seus cidadãos, inclusive na promoção de valores na cultura digital. Não adianta só apostar na repressão, é preciso educar as pessoas para o exercício ético e responsável da liberdade de expressão.

Entrevista concedida a Rodrigo Martins, publicada em Carta Capital – www.cartacapital.com.br

Relator da OEA defende novo marco regulatório para a comunicação no Brasil

Por Bia Barbosa*

Na última semana, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (Organização dos Estados Americanos), o uruguaio Edison Lanza, esteve no Brasil. Além de participar de dois seminários promovidos por organizações da sociedade civil – entre elas o Intervozes –, Lanza teve uma importante agenda de reuniões com o governo federal e com os movimentos sociais. O objetivo: contribuir para destravar a agenda de construção de um novo marco regulatório para as comunicações no país.

Em suas palestras e entrevistas, assim como nas audiências com os ministros Juca Ferreira (Cultura), Edinho Silva (Secretaria de Comunicação da Presidência da República) e Ricardo Berzoini (Comunicações – foto), Lanza reafirmou a necessidade dos Estados contarem com leis, mecanismos e órgãos independentes de regulação que sejam capazes de garantir a diversidade e o pluralismo nos meios de comunicações e o exercício da liberdade de expressão pelo conjunto da população.

“O Brasil postergou a adoção de medidas concretas. Pelas denúncias que recebemos da sociedade civil, o País tem um sistema muito concentrado, sobretudo na TV aberta. Há muitas rádios controladas por políticos e o setor comunitário permanece excluído. A legislação para as rádios comunitárias é deficitária, pois impõe limites de alcance e restringe o financiamento pela publicidade”, declarou o relator à Carta Capital. Para Lanza, a concentração da propriedade dos meios no Brasil e na região, somada à ausência de sistemas públicos de comunicação fortalecidos, “tem implicações no processo democrático, pois um dos pressupostos da democracia é o pluralismo político, a diversidade de vozes. Há uma clara necessidade de incluir mais atores”, afirmou.

Em seminário na Universidade de Brasília, Lanza destacou que o país perdeu algumas oportunidades para democratizar o setor. Ele relatou que, desde 1985, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que os oligopólios atuam contra a liberdade de expressão. E que a Declaração de Princípios sobre o tema, aprovada pela Comissão, desde o ano 2000 afirma que os Estados tem obrigação de limitar a concentração dos meios. “Se isso tivesse sido aplicado, teríamos outro quadro”, disse.

A relatoria aproveitou para lembrar, uma vez mais, que a liberdade de expressão é condição para o exercício de outros direitos; porém, não é um direito absoluto, que pode ser limitado pelo que está previsto no direito internacional. “Ter um sistema plural de comunicação no país é uma dessas previsões, assim como a proteção de crianças e adolescentes e a incitação ao ódio. É falso entender qualquer regulação como censura. A discussão depende de como se constrói a proposição de regulação e como se considera os padrões internacionais”, explicou.

E acrescentou: “Este é um processo que deve ser feito com participação popular. Se o Brasil construiu de maneira tão exemplar o Marco Civil da Internet, por que não consegue fazer o mesmo para atualizar o marco da radiodifusão?”, questionou Edison Lanza.

O retorno do governo

A pergunta acima foi feita, em formato de sugestão, ao governo federal. Com o ministro Edinho Silva, Lanza tratou da importância do fortalecimento dos meios públicos, de seu desenho institucional – que precisa ter autonomia em relação ao governo, incluindo a forma como são escolhidos os dirigentes das emissoras públicas de comunicação – e da necessidade das verbas públicas de publicidade serem distribuídas também com base em critérios de estímulo à diversidade e à pluralidade. Edinho se comprometeu a analisar um estudo da Unesco, indicado pelo relator, sobre padrões internacionais de sustentabilidade da mídia, além da lei sobre publicidade oficial recentemente aprovada pelo Uruguai, considerada um bom modelo.

Do ministro Berzoini, Edison Lanza soube que o governo pretende trabalhar com uma articulação dos ministérios da Cultura, Comunicações, Secretaria de Comunicação Social e Secretaria Geral da Presidência da República para construir “a opinião” da gestão Dilma sobre “a questão da comunicação”. A proposta já havia sido feita ao ministro pelo FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), no início do ano. Incrivelmente, o governo como um todo parece não estar convencido de que parte significativa da crise que enfrenta é porque se acovardou, nos últimos 12 anos, a alterar a estrutura do sistema midiático brasileiro…

Berzoini é um dos poucos que tem consciência sobre isso. Para ele, uma abordagem internacional, como a da Relatoria da OEA para a Liberdade de Expressão, pode ajudar o governo a fazer o debate sobre um novo marco regulatório para o setor no Brasil. O MiniCom está organizando, para novembro, um evento internacional para ouvir especialistas e experiências de outros países sobre regulação dos meios. Edison Lanza pode voltar ao país na ocasião.

Até lá, espera um convite do governo brasileiro para uma missão oficial ao Brasil, o que lhe permitiria viajar pelo território durante alguns dias e elaborar um informe mais global sobre a garantia – ou não – da liberdade de expressão no país. Enquanto isso não acontece, as organizações da sociedade civil e movimentos que se reuniram com o relator se comprometeram a manter a Comissão Interamericana de Direitos Humanos bem informada sobre os desafios enfrentados por aqui. E eles não são poucos.

* Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos e integrante da Coordenação do Intervozes.  

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Os protestos de domingo e a estratégia da Globo

Por Gustavo Gindre*

Muita gente estranhou o recente comportamento da Globo, depois de uma conversa de dirigentes da empresa com senadores petistas. O grupo passou a moderar sua cobertura do governo Dilma e, em editorial do jornal impresso O Globo, chegou a pedir que as forças políticas atuem em prol da governabilidade. Da surpresa surgiram diversas explicações estapafúrdias. De um lado, petistas achando que a Globo teria se rendido à força dos governos do PT. De outro lado, nas passeatas deste domingo 16, houve quem dissesse que a Globo era comunista.

Na verdade, não deveria haver surpresa alguma. A Globo faz o que sempre fez. Atua a favor de seus próprios interesses, quase como se fosse um partido político. Traça uma estratégia, analisa a conjuntura e faz alianças de curto, médio e longo prazo. E a cobertura da emissora dos protestos deste final de semana não nega este raciocínio.

No segundo mandato de Dilma, quando percebeu que a Operação Lava Jato teria potencial para derrubar o governo, a Globo chegou a flertar com a hipótese de impeachment. Com isso, seus noticiários recrudesceram a cobertura e a ordem, aos seus obedientes jornalistas, era criticar o governo de todos os modos possíveis. Mas a Globo se assustou, tanto com o crescimento de Eduardo Cunha quanto com o festival de posições reacionárias ensandecidas que foi às ruas contra o governo.

No caso de Cunha, preocupa tanto sua ligação com o pentecostalismo (do qual a Globo nunca foi muito próxima) quanto o fato de ele parecer ter agenda própria, descolada do establishment da política nacional – além de fazer política com o fígado.

A última experiência da Globo em apoiar alguém com um perfil semelhante (Collor) acabou não sendo boa para os interesses dos Marinho. Collor se virou contra a emissora, que o criara como “caçador de marajás”, tentou articular a construção de um império próprio nas comunicações e acabou apeado do poder com ajuda fundamental da própria Globo. Outra iniciativa deste tipo só será tentada se não houver alternativas, o que não é o caso.

Foi, então, que a Globo concluiu que manter um governo petista em frangalhos pode ser um bom negócio. Frágil, lutando para sobreviver, o governo Dilma pode aceitar uma agenda imposta de fora para dentro, que acentue a virada liberal iniciada com a chegada de Levy ao governo. Ficariam na conta do governo Dilma as políticas impopulares dessa virada liberal, o que de resto teria a vantagem de liquidar as chances de um novo governo petista em 2018.

Plano B

Ao mesmo tempo que aposta na governabilidade, a Globo sabe que mais denúncias da Lava Jato podem acabar inviabilizando de vez o governo Dilma. Aí é necessário construir um plano B. A alternativa seria um governo Temer, absolutamente submisso aos interesses do grande capital, defendidos pela Globo. Mas, para que Temer possa governar com tranquilidade, é preciso neutralizar Eduardo Cunha. Para isso, foi escalado o presidente do Senado, Renan Calheiros. A Globo conta, também, que a Operação Lava Jato acabe, enfim, alcançando também o presidente da Câmara.

Contribui ainda para a análise da Globo a percepção de que os tucanos não conseguiram galvanizar a crise do governo Dilma e acabaram a reboque da extrema-direita, que tomou as ruas. Definitivamente, o PSDB foi uma decepção para os interesses defendidos pela Globo.

O que impressiona mesmo é que o restante dos grandes grupos de mídia (exceto a Record) não consiga ter uma agenda própria e, nos momentos críticos, abaixe a cabeça e siga o rumo definido pelos Marinho. No fundo, eles reconhecem seu caráter ancilar e o predomínio avassalador da Globo.

História

Para entender o comportamento da Globo, é preciso analisar um pouco de nossa história recente. Até a década de 70, a imprensa brasileira era criada a partir de interesses da vida partidária. Havia o jornal getulista, o periódico lacerdista, etc. Mas o surgimento da TV Globo muda esse cenário.

Já no início dos anos 70, setores dentro da ditadura começaram a se preocupar com o crescimento da Globo e com o fato de que ela viesse a construir uma agenda própria, não necessariamente dependente dos militares. Esses setores acabaram derrotados por aliados da Globo, como o então Ministro da Justiça, Armando Falcão, e a Globo teve carta branca para crescer, com todo o apoio, inclusive financeiro, do Estado brasileiro.

A Globo ainda chegou a retribuir o apoio da ditadura no caso Proconsult e na cobertura das Diretas Já, mas pagou caro, sendo hostilizada nas ruas. Desde então, o grupo percebeu a utilidade de ter uma agenda própria. Foi assim, por exemplo, que a Globo apoiou a Nova República e recebeu em troca o Ministério das Comunicações, dado ao homem de confiança, Antônio Carlos Magalhães (o único ministro civil escolhido por Tancredo que ficou até o final do governo Sarney, demonstrando a força dos Marinho).

Mas, veio, então, a opção Collor, que se revelou um desastre. Collor usou laranjas para comprar a TV Manchete, construir a OM (hoje uma pálida sombra chamada CNT) e a TV Jovem Pan, e ajudou Edir Macedo a montar a Record. Obviamente a Globo percebeu a movimentação de Collor e PC Farias e entrou de vez na canoa da oposição, definindo o jogo a favor do impeachment.

Sob a direção dos filhos de Roberto Marinho, mais pragmáticos que o pai, a Globo percebeu a vantagem de não tentar movimentos bruscos, aceitar alguns fatos da política e procurar tirar vantagem deles. Foi assim que “aceitou” a vitória de Lula em 2002, mas tratou de garantir que seus interesses não seriam afetados. A ida de Luiz Inácio ao Jornal Nacional, logo após a vitória, sinalizou que o novo mandatário havia entendido o recado.

Em 2006, no auge do “mensalão”, a Globo novamente demonstrou como atua na política. Bateu bastante no governo. Não ao ponto de criar uma crise institucional ou de inviabilizar a reeleição de Lula. Mas, o suficiente para que o presidente nomeasse um ex-empregado da Globo como Ministro das Comunicações (Hélio Costa), acatando todas as demandas da empresa e garantindo um decreto presidencial para a transição à TV digital que liquidou qualquer expectativa democratizante. A Globo trocou inteligentemente a reeleição de Lula pela manutenção de seu absoluto predomínio na TV aberta (ainda a galinha dos ovos de ouro).

E assim chegamos às eleições de 2014. Em 2012 (R$ 2,9 bilhões), 2013 (R$ 2,6 bilhões) e 2014 (R$ 2,3 bilhões), mesmo com a crise econômica, a Globo teve sucessivamente o maior lucro líquido de uma empresa de capital fechado no Brasil. Ficou para trás o período do início dos anos 2000, onde a empresa dos Marinho quase quebrou. A Globo hoje é uma potência econômica sem paralelo nas comunicações brasileiras. Nunca houve um grupo de mídia com tanto poder político e econômico.

Seu único desafio é o cenário de convergência, que atrai ainda mais grupos estrangeiros e aumenta a influência da internet.

Mas, na política, não há com que se preocupar, especialmente com um governo fraco. Foi por isso que, ao contrário do que pensavam alguns petistas, a Globo não usou o Jornal Nacional da véspera do domingo do segundo turno para tentar uma bala de prata contra Dilma. Por que a Globo se arriscaria a tanto? O que ela teria a perder com Dilma no poder? A resposta vem sendo dada agora, com a atual crise: nada!

O que vivemos hoje é a consequência da opção dos sucessivos governos do PT em compor com os interesses dos grandes grupos de mídia e não alterar a estrutura do sistema midiático brasileiro; em não enfrentar a agenda da regulação das comunicações; em aceitar tacitamente a mentira de que um novo marco regulatório seria uma forma de censura.

Agora, acuado pelas crises econômica e política, não há muita esperança de que este governo venha a adotar qualquer iniciativa para quebrar a nefasta influência que a Globo exerce sobre a política nacional. Ao contrário, o governo é cada vez mais refém dos interesses dos Marinho e busca apenas a sua sobrevivência até 2018.

Aos militantes em prol da democratização da comunicação, cabe a tarefa de manter viva essa luta e seguir acreditando que um dia acertaremos e será cumprida essa tarefa imprescindível para a efetiva construção de nossa democracia. Apesar da Globo.

* Gustavo Gindre é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Conselho de Comunicação Social sub judice

A deputada Luiza Erundina (PSB-SP), juntamente com outros nove parlamentares e nove entidades da sociedade civil, deu entrada em um Mandado de Segurança no Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde desta terça-feira (14/7), para anular o ato que nomeou os novos integrantes do Conselho de Comunicação Social (CSS) do Congresso Nacional. A posse da nova gestão do CCS, marcada para esta quarta-feira (15/7), às 10h30, encontra-se, portanto, sub judice. Os autores da ação defendem que o processo que levou à homologação da nova composição do Conselho foi ilegítimo, inconstitucional e antirregimental.

A sessão do Congresso Nacional ocorrida na última quarta-feira (8/7), na qual os novos membros foram, suportamente, eleitos, não registrou quórum mínimo de 257 deputados e 41 senadores  para deliberação. Segundo a Lei 8.389, de 30 de dezembro de 1991, que cria o CCS, o Conselho ser eleito em sessão conjunta das duas Casas. Ainda contrariando o Regimento Comum do Congresso Nacional, a pauta não foi distribuída aos parlamentares com a antecedência de 24h, como deve ser feito no caso dos itens da ordem do dia, bem como as indicações não foram submetidas à votação secreta em plenário.

Para além das violações regimentais, há uma clara afronta no processo à Lei que cria o CCS:  dentre os nomes indicados para ocupar vagas destinadas à sociedade civil estão dois ministros de Estado: do Turismo, Henrique Eduardo Alves (titular), e da Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo (suplente); um ex e um atual servidor da Secretaria de Comunicação do Senado e a diretora do Instituto Palavra Aberta, que reúne associações empresariais – que, por sua vez, já possuem vagas próprias na composição do CCS.

Por meio de nota pública, entidades da sociedade civil manifestaram repúdio ao processo, entre elas, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que reúne entidades como a Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Rádio, Televisão Aberta ou por Assinatura (Fitert), o Intervozes e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que também subscreveram o mandado de segurança impetrado na tarde desta terça-feira. Para o FNDC,  “o Congresso Nacional dá um novo golpe contra a sociedade civil, desrespeitando por completo este espaço de participação social e demonstrando não ter discernimento nem mesmo para reconhecer, de forma transparente e republicana, as organizações sociais que atuam no campo das comunicações no país”.

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) afirma que a lei que deu origem ao CCS não previu a participação de representantes do Estado. “Ao indicar representantes do Poder Executivo para ocupar o espaço destinado à sociedade civil, o Congresso Nacional comete o erro de levar para o Conselho o debate que deve se dar entre os poderes Executivo e Legislativo e, principalmente, o de ferir o espírito da lei, que colocou a sociedade civil como o fiel da balança do CCS”, afirma a federação.

O professor de comunicação e pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom) da Universidade de Brasília (UnB), Murilo César Ramos, um dos indicados como suplentes para as vagas da sociedade civil, informou ao presidente do Congresso, Renan Calheiros, que não vai tomar posse nesta quarta-feira para não legitimar o processo. Na semana passada,  a deputada Luiza Erundina já havia denunciado o processo em fala no plenário da Câmara, ao mesmo tempo em que apresentou questão de ordem pedindo a anulação da decisão.

As reuniões do Conselho são mensais e ele é formado por 13 integrantes, sendo três representantes de empresas de rádio, televisão e imprensa escrita, um engenheiro especialista na área de comunicação social, quatro representantes de categorias profissionais e cinco representantes da sociedade civil. Os nomes devem ser aprovados pelos parlamentares.

Lista dos signatários do mandado de segurança:

Deputados
Luiza Erundina (PSB-SP)
Glauber Braga (PSB-RJ)
Janete Capiberibe (PSB-AP)
Jean Wyllys (PSOL-RJ)
Chico Alencar (PSOL-RJ)
Alessandro Molon (PT-RJ)
Érika Kokay (PT-DF)
Margarida Salomão (PT-MG)

Senadores
Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) – senador
João Capiberibe (PSB-AP) – senador

Entidades da sociedade civil
Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM)
Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU)
Central Única dos Trabalhadores (CUT)
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itabaré
Conselho Curador da EBC (Empresa Brasil de Comunicação)
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)
Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Rádio, Televisão Aberta ou por Assinatura (Fitert)
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Escrito por FNDC