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Os protestos de domingo e a estratégia da Globo

Por Gustavo Gindre*

Muita gente estranhou o recente comportamento da Globo, depois de uma conversa de dirigentes da empresa com senadores petistas. O grupo passou a moderar sua cobertura do governo Dilma e, em editorial do jornal impresso O Globo, chegou a pedir que as forças políticas atuem em prol da governabilidade. Da surpresa surgiram diversas explicações estapafúrdias. De um lado, petistas achando que a Globo teria se rendido à força dos governos do PT. De outro lado, nas passeatas deste domingo 16, houve quem dissesse que a Globo era comunista.

Na verdade, não deveria haver surpresa alguma. A Globo faz o que sempre fez. Atua a favor de seus próprios interesses, quase como se fosse um partido político. Traça uma estratégia, analisa a conjuntura e faz alianças de curto, médio e longo prazo. E a cobertura da emissora dos protestos deste final de semana não nega este raciocínio.

No segundo mandato de Dilma, quando percebeu que a Operação Lava Jato teria potencial para derrubar o governo, a Globo chegou a flertar com a hipótese de impeachment. Com isso, seus noticiários recrudesceram a cobertura e a ordem, aos seus obedientes jornalistas, era criticar o governo de todos os modos possíveis. Mas a Globo se assustou, tanto com o crescimento de Eduardo Cunha quanto com o festival de posições reacionárias ensandecidas que foi às ruas contra o governo.

No caso de Cunha, preocupa tanto sua ligação com o pentecostalismo (do qual a Globo nunca foi muito próxima) quanto o fato de ele parecer ter agenda própria, descolada do establishment da política nacional – além de fazer política com o fígado.

A última experiência da Globo em apoiar alguém com um perfil semelhante (Collor) acabou não sendo boa para os interesses dos Marinho. Collor se virou contra a emissora, que o criara como “caçador de marajás”, tentou articular a construção de um império próprio nas comunicações e acabou apeado do poder com ajuda fundamental da própria Globo. Outra iniciativa deste tipo só será tentada se não houver alternativas, o que não é o caso.

Foi, então, que a Globo concluiu que manter um governo petista em frangalhos pode ser um bom negócio. Frágil, lutando para sobreviver, o governo Dilma pode aceitar uma agenda imposta de fora para dentro, que acentue a virada liberal iniciada com a chegada de Levy ao governo. Ficariam na conta do governo Dilma as políticas impopulares dessa virada liberal, o que de resto teria a vantagem de liquidar as chances de um novo governo petista em 2018.

Plano B

Ao mesmo tempo que aposta na governabilidade, a Globo sabe que mais denúncias da Lava Jato podem acabar inviabilizando de vez o governo Dilma. Aí é necessário construir um plano B. A alternativa seria um governo Temer, absolutamente submisso aos interesses do grande capital, defendidos pela Globo. Mas, para que Temer possa governar com tranquilidade, é preciso neutralizar Eduardo Cunha. Para isso, foi escalado o presidente do Senado, Renan Calheiros. A Globo conta, também, que a Operação Lava Jato acabe, enfim, alcançando também o presidente da Câmara.

Contribui ainda para a análise da Globo a percepção de que os tucanos não conseguiram galvanizar a crise do governo Dilma e acabaram a reboque da extrema-direita, que tomou as ruas. Definitivamente, o PSDB foi uma decepção para os interesses defendidos pela Globo.

O que impressiona mesmo é que o restante dos grandes grupos de mídia (exceto a Record) não consiga ter uma agenda própria e, nos momentos críticos, abaixe a cabeça e siga o rumo definido pelos Marinho. No fundo, eles reconhecem seu caráter ancilar e o predomínio avassalador da Globo.

História

Para entender o comportamento da Globo, é preciso analisar um pouco de nossa história recente. Até a década de 70, a imprensa brasileira era criada a partir de interesses da vida partidária. Havia o jornal getulista, o periódico lacerdista, etc. Mas o surgimento da TV Globo muda esse cenário.

Já no início dos anos 70, setores dentro da ditadura começaram a se preocupar com o crescimento da Globo e com o fato de que ela viesse a construir uma agenda própria, não necessariamente dependente dos militares. Esses setores acabaram derrotados por aliados da Globo, como o então Ministro da Justiça, Armando Falcão, e a Globo teve carta branca para crescer, com todo o apoio, inclusive financeiro, do Estado brasileiro.

A Globo ainda chegou a retribuir o apoio da ditadura no caso Proconsult e na cobertura das Diretas Já, mas pagou caro, sendo hostilizada nas ruas. Desde então, o grupo percebeu a utilidade de ter uma agenda própria. Foi assim, por exemplo, que a Globo apoiou a Nova República e recebeu em troca o Ministério das Comunicações, dado ao homem de confiança, Antônio Carlos Magalhães (o único ministro civil escolhido por Tancredo que ficou até o final do governo Sarney, demonstrando a força dos Marinho).

Mas, veio, então, a opção Collor, que se revelou um desastre. Collor usou laranjas para comprar a TV Manchete, construir a OM (hoje uma pálida sombra chamada CNT) e a TV Jovem Pan, e ajudou Edir Macedo a montar a Record. Obviamente a Globo percebeu a movimentação de Collor e PC Farias e entrou de vez na canoa da oposição, definindo o jogo a favor do impeachment.

Sob a direção dos filhos de Roberto Marinho, mais pragmáticos que o pai, a Globo percebeu a vantagem de não tentar movimentos bruscos, aceitar alguns fatos da política e procurar tirar vantagem deles. Foi assim que “aceitou” a vitória de Lula em 2002, mas tratou de garantir que seus interesses não seriam afetados. A ida de Luiz Inácio ao Jornal Nacional, logo após a vitória, sinalizou que o novo mandatário havia entendido o recado.

Em 2006, no auge do “mensalão”, a Globo novamente demonstrou como atua na política. Bateu bastante no governo. Não ao ponto de criar uma crise institucional ou de inviabilizar a reeleição de Lula. Mas, o suficiente para que o presidente nomeasse um ex-empregado da Globo como Ministro das Comunicações (Hélio Costa), acatando todas as demandas da empresa e garantindo um decreto presidencial para a transição à TV digital que liquidou qualquer expectativa democratizante. A Globo trocou inteligentemente a reeleição de Lula pela manutenção de seu absoluto predomínio na TV aberta (ainda a galinha dos ovos de ouro).

E assim chegamos às eleições de 2014. Em 2012 (R$ 2,9 bilhões), 2013 (R$ 2,6 bilhões) e 2014 (R$ 2,3 bilhões), mesmo com a crise econômica, a Globo teve sucessivamente o maior lucro líquido de uma empresa de capital fechado no Brasil. Ficou para trás o período do início dos anos 2000, onde a empresa dos Marinho quase quebrou. A Globo hoje é uma potência econômica sem paralelo nas comunicações brasileiras. Nunca houve um grupo de mídia com tanto poder político e econômico.

Seu único desafio é o cenário de convergência, que atrai ainda mais grupos estrangeiros e aumenta a influência da internet.

Mas, na política, não há com que se preocupar, especialmente com um governo fraco. Foi por isso que, ao contrário do que pensavam alguns petistas, a Globo não usou o Jornal Nacional da véspera do domingo do segundo turno para tentar uma bala de prata contra Dilma. Por que a Globo se arriscaria a tanto? O que ela teria a perder com Dilma no poder? A resposta vem sendo dada agora, com a atual crise: nada!

O que vivemos hoje é a consequência da opção dos sucessivos governos do PT em compor com os interesses dos grandes grupos de mídia e não alterar a estrutura do sistema midiático brasileiro; em não enfrentar a agenda da regulação das comunicações; em aceitar tacitamente a mentira de que um novo marco regulatório seria uma forma de censura.

Agora, acuado pelas crises econômica e política, não há muita esperança de que este governo venha a adotar qualquer iniciativa para quebrar a nefasta influência que a Globo exerce sobre a política nacional. Ao contrário, o governo é cada vez mais refém dos interesses dos Marinho e busca apenas a sua sobrevivência até 2018.

Aos militantes em prol da democratização da comunicação, cabe a tarefa de manter viva essa luta e seguir acreditando que um dia acertaremos e será cumprida essa tarefa imprescindível para a efetiva construção de nossa democracia. Apesar da Globo.

* Gustavo Gindre é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Coronéis eletrônicos continuam no Congresso

Por Bia Barbosa*

Passado o segundo turno das eleições presidenciais, volta à tona a discussão sobre a nova composição do Congresso Nacional e sobre como Dilma governará diante do crescimento de bancadas conservadoras. Nada foi dito até agora, entretanto, sobre um segmento parlamentar que tem tido enorme sucesso na defesa de seus interesses: os radiodifusores.

Não é novidade no Brasil o controle de meios de comunicação de massa por políticos – fenômeno conhecido por “coronelismo eletrônico”, em referência aos velhos oligarcas que controlavam o voto a partir do domínio da terra. Nas últimas décadas, também o domínio do ar – por onde trafegam as ondas do rádio e da televisão – passou a ser determinante para que políticos se perpetuem no poder.

Os casos clássicos já se tornaram folclore: a família Sarney, no Maranhão; a família Magalhães, na Bahia; Collor, em Alagoas; Barbalho, no Pará; e por aí vai. O que é pouco difundido, por questões óbvias, é que a prática do coronelismo eletrônico é disseminada em todo o país e adotada pela grande maioria dos partidos.

Dos atuais 40 deputados e senadores que controlam diretamente emissoras de radiodifusão, somente 7 tentaram e não conseguiram se reeleger neste pleito. Os que garantiram mais um mandato estão em partidos como PSB, PV, PRB, PDT, PSD, DEM e PR, representando estados como SC, SP, RJ, GO, PE, PI e RO. Ou seja, os coronéis da mídia tem várias colorações partidárias e muitos sotaques.

Alguns alçaram vôos mais altos que o Parlamento nacional. O deputado Renan Filho (PMDB) foi eleito em primeiro turno para o governo de Alagoas. Em sua declaração de bens apresentada à Justiça Eleitoral e também nos dados da Anatel, Renan Filho aparece como sócio do Sistema Costa Dourada de Radiodifusão, que possui três rádios no interior do estado.

Já o atual presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, também do PMDB, disputou – mas perdeu no segundo turno – o governo do Rio Grande do Norte, tendo na bagagem pelo menos quatro emissoras de rádio e a outorga da TV Cabugi, que leva o sinal da Globo aos potiguares.

Por fim, sem que este aspecto tenha sido destacado em seu currículo, concorreu ao posto mais alto do Executivo um conhecido radiodifusor de Minas Gerais: Aecio Neves, que, ao lado de sua mãe e sua irmã, é acionista da rádio Arco-Íris, retransmissora da Jovem Pan em Belo Horizonte. Outros parentes de Aecio, que agora voltou ao Senado, também controla emissoras no interior do estado.

Nenhum desses políticos reconhece praticar ilegalidades. Apesar de o artigo 54 da Constituição proibir que deputados e senadores firmem contrato com concessionárias de serviço público, deputados federais e senadores – assim como vereadores, prefeitos, deputados estaduais e governadores – continuam controlando canais de rádio e TV.

O Ministério das Comunicações, responsável por fiscalizar o serviço, alega estar de mãos atadas. Apesar de se declarar contra a posse de emissoras por políticos, o Ministro Paulo Bernardo disse que é preciso aprovar uma nova regulação do setor para proibir a prática.

Não é esta a compreensão do Ministério Público Federal e de amplos setores da sociedade que denunciam o uso político deste espaço público e a contaminação de processos eleitorais por emissoras de parlamentares. Tramita há três anos no Supremo Tribunal Federal uma ação movida pelo PSOL, a partir de iniciativa do Intervozes, que pede justamente o cancelamento dessas outorgas e a exigência de que radiodifusores eleitos, antes de tomar posse, se desfaçam do controle acionário dessas empresas. Trata-se de uma medida republicana, fundamental não só para garantir eleições livres, mas para que os meios de comunicação deixem de ser usados para fins privados no Brasil.

* Bia Barbosa é jornalista, mestre em políticas públicas e integrante da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A sociedade civil em ação contra o coronelismo eletrônico

Por Daniel Fonsêca*

Hoje (17) é o Dia Internacional pela Democratização da Comunicação. Além de comemorar a data, entidades promovem, ao longo desta semana, uma série de atividades com o objetivo de ampliar o debate e a coleta de assinaturas em apoio ao chamado Projeto de Lei da Mídia Democrática. O projeto propõe uma nova regulação do sistema de comunicação do país, a partir de medidas como o estímulo à concorrência e a proibição da outorga de concessões para políticos com mandato eletivo.

Nestas atividades, a denúncia contra políticos que são concessionários (ou que a família possui a concessão) de meios de comunicação ganhou as ruas de várias capitais do Brasil. Colagens de cartazes apontaram para este problema nunca enfrentado com rigor pelo Poder Público, ainda que a Constituição de 1988 proíba a vinculação de deputados e senadores com concessões públicas.

É importante, no entanto, trazer o debate sobre o chamado Coronelismo Eletrônico. Com a reconfiguração e o fortalecimento do movimento de comunicação no começo dos anos 2000, várias entidades, coletivos e redes também passaram a incidir neste tema.  As entidades demonstravam não apenas interesse nos debates, mas pretendiam também intervir objetivamente na questão para forçar uma tomada de posição do Ministério Público e do Poder Judiciário, judicializando casos específicos.

Foi o que fez o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (ProJor), que, em 2005, protocolou uma representação à Procuradoria Geral da República em audiência ocorrida em Brasília em outubro do mesmo ano. À época, a direção do Instituto Projor, responsável pelo Observatório da Imprensa, era composta pelos jornalistas Alberto Dines, José Carlos Marão, Luiz Egypto e Mauro Malin. A fim de procurar o Ministério Público, o Projor financiou uma pesquisa, desenvolvida por Venício Artur de Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, a partir dos dados do cadastro de concessionários do Ministério das Comunicações. O relatório do estudo foi anexado à representação. Ela se baseou em pesquisa coordenada pelo professor Os dados restringiram-se aos deputados, poupando momentaneamente os senadores.

De acordo com a entidade, a investigação “reuniu indícios de que deputados e senadores são concessionários de rádio e televisão”, confrontando a Constituição, e que, “mais grave ainda”, parte desses parlamentares participava das reuniões da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados e da Comissão de Educação do Senado Federal. Essas comissões tratam exatamente das renovações e das homologações das concessões de rádio e televisão. A pesquisa identificou que, em 2005, na Câmara dos Deputados, pelo menos 51 dos 513 deputados são concessionários diretos de rádio e de televisão. O Projor acompanhou a tramitação de 762 processos de outorgas e renovações de emissoras comerciais de radiodifusão que entraram na pauta de votação. Um caso chamou a atenção: “os deputados Corauci Sobrinho (PFL-SP) e Nelson Proença (PPS-RS), respectivamente presidente e membro titular da CCTCI, participaram e votaram favoravelmente nas reuniões em que foram aprovadas as renovações de suas concessões de rádio, respectivamente a Rádio Renascença OM, de Ribeirão Preto (SP), e as Emissoras Reunidas OM, de Alegrete (RS)”.

A análise revelou que, neste caso, além da Constituição e do CBT, foram descumpridos o § 6º do artigo 180 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e o artigo 306 do Regimento Interno do Senado Federal. Ambos preveem que, “tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse individual, deverá o deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco, para efeito de quorum” (apud Projor, 2005, p. 05). Tomando como referência as atas das reuniões da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), foi acompanhada a tramitação de 639 processos em 2003 e 123 em 2004, num total de 762 processos. De 2003, 181 foram transformados em Decretos Legislativos, sendo 118 renovações e 63 outorgas. Em 2004, apenas duas outorgas se transformaram em decretos. Nos dois períodos o total foi de 183.

Prática comum no relacionamento entre o governo federal e o Congresso Nacional há décadas, a concessão pública de emissoras de rádio e TV a parlamentares fere o Artigo 54[1] da Constituição. Os pedidos de outorga ou renovação podem ser vetados pelo Congresso Nacional, desde que respaldados por dois quintos de seus membros, em votação nominal.  Além de ações penal e civil, os envolvidos podem ser punidos com a perda do mandato. Na Ação Civil Pública, Ministério Público Federal requereu a nulidade de concessões de rádio e televisão, pois as considerou “viciadas” em razão de ofensa ao princípio da impessoalidade, uma vez que “os próprios sócios de tais empresas, na condição de parlamentares, participaram das referidas votações”. Para o MPF, a renovação dessas outorgas violou o § 3º do Artigo 33 da Lei nº 4.117/62, segundo o qual “os prazos de concessão e autorização serão de 10 (dez) anos para o serviço de radiodifusão sonora e de 15 (quinze) anos para o de televisão, podendo ser renovado por períodos sucessivos e iguais se os concessionários houverem cumprido todas as obrigações e contratuais, mantido a mesma idoneidade técnica, financeira e moral, e atendido o interesse público”.

Em julho de 2007, o Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF/DF) propôs ações civis públicas para anular a renovação e/ou concessão de outorga de cinco empresas de rádio e TV de deputados federais. Para o MPF, houve favorecimento pessoal nas concessões, uma vez que os parlamentares, mesmo sendo sócios das empresas concessionárias, participaram das votações em que foram analisados e deferidos os pedidos de outorga e de renovação dessas concessões.

O MPF analisou todas as atas da CCTCI de janeiro de 2003 a dezembro de 2005 e constatou que vários parlamentares utilizaram a função exercida na comissão para beneficiar, direta ou indiretamente, interesses pessoais relativos à renovações ou a outorgas de serviços de radiodifusão. Foram denunciados os deputados Nelson Proença (PPS-RS) e os ex-deputados Corauci Sobrinho (ex-PFL, atual DEM-SP), João Batista (PP-SP), João Mendes de Jesus (sem partido) e Wanderval Santos (ex-PL, atual PR-SP). Eles eram sócios, cotistas ou diretores de empresas concessionárias do serviço de radiodifusão à época em que essas mesmas empresas tiveram os pedidos de renovação e/ou concessão aprovados na comissão. Os casos analisados deram origem aos seguintes processos junto ao Tribunal Regional Federal – 1ª Região (TRF-1):

1. Alagoas Rádio e Televisão (Maceió-AL); João Mendes (sem partido); sócio-diretor – Processo 2007.34.00.026698-1

2. Emissoras Reunidas (Caxias do Sul-RS); Nelson Proença (PPS-RS); sócio – Processo 2007.34.00.026697-8

3. Rádio Continental FM (Campinas-SP); Wanderval Santos (PL/SP); sócio – Processo 2007.34.00.026700-0

4. Rádio Renascença (Ribeirão Preto-SP); Corauci Sobrinho (PFL/SP); sócio – Processo 2007.34.00.026702-7

5. Sociedade Rádio Atalaia de Londrina (Londrina-PR); João Batista (PP/SP); sócio – Processo 2007.34.00.026699-5 (MPF…, 25 jul. 2007)

Os procuradores da República argumentaram que os atos de concessão violaram “os princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade”. Foram propostas cinco ações civis públicas contra a União e contra as empresas de radiodifusão beneficiadas pelas votações dos deputados. O MPF pediu, na ação, medida liminar suspendendo imediatamente as concessões e, no mérito, requereu a anulação definitiva das outorgas. De acordo com os procuradores, além disso, caberia também a condenação das empresas ao pagamento de multa por dano moral coletivo, e os deputados poderiam ainda ser processados por improbidade administrativa.

Dos cinco processos, pelo menos um resultou em julgamento em primeira instância. Em acórdão publicado em 29 de outubro de 2013, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região – seguindo o relator, o juiz Marcio Barbosa Maia – manteve, por unanimidade, a decisão da juíza federal Ivani Silva da Luz. Em julho de 2010, ela havia determinado a anulação da sessão da Câmara dos Deputados na qual havia sido renovada a concessão da rádio Atalaia, de Londrina (PR), vinculada ao então deputado federal João Batista pelo PP de São Paulo. O acórdão se baseou no entendimento de que a participação do parlamentar na sessão como sócio da rádio violou os princípios da moralidade e da impessoalidade. De acordo com a juíza, que proferiu a sentença inicial, “o fato de parlamentar sócio da requerida haver participado da votação que renovou a concessão macula os princípios da moralidade e da impessoalidade. Isso porque o parlamentar tinha interesse direto na renovação, de modo que é induvidoso que seu voto não se pautou pelo interesse público, senão em seu próprio benefício. […] A conduta em tese endossa na sociedade a convicção de os parlamentares podem praticar atos administrativos em seu favor, e, em última instância, que a máquina administrativa não é do povo, senão que se destina a satisfazer quem está no poder” (TRF-1ª REGIÃO, 29 out. 2013).

A decisão, inédita no país, abriu o precedente para o questionamento de outras outorgas ou renovações de concessões em sessões que tiveram a participação direta de sócios, cotistas ou dirigentes de empresas de radiodifusão concessionárias. No entanto, além de caberem recursos, a decisão do TRF ataca somente um dos vícios presentes no sistema de outorgas de radiodifusão e não chega a julgar o mérito principal, que é o fato de políticos com mandatos serem concessionários de radiodifusão, contrariando o Artigo 54 da Constituição.

Na apelação apresentada ao Tribunal, a rádio Atalaia sequer respondeu ao questionamento sobre o fato de um parlamentar ser sócio da emissora, argumentando que “o parlamentar que participou da sessão é acionista não-administrador [sic] da Radio Atalaia”. Alegou ainda que a participação do deputado João Batista na sessão não comprometeria o julgamento da comissão que aprovou a renovação da concessão. No recurso, a ré afirmou que foram “apresentados documentos e comprovada a regularidade da emissora quanto às questões fiscais, sindicais e trabalhistas”, advogou que o “processo homologatório apresenta critérios objetivos” e afirmou “que foram atendidos os requisitos previstos na legislação”. A interpretação do TRF coíbe a atuação dos parlamentares em benefício próprio para acessar e manter concessões públicas de radiodifusão.

Este é mais um caso que pode ser inserido no conjunto de interferências (diretas ou indiretas) que o Poder Judiciário tem produzido nos rumos do direito à comunicação, fazendo das cortes um espaço de decisão política e mesmo de “legislativo” na área, considerando as jurisprudências que acabam regulamentando dispositivos legais, como expõe o professor da UnB Venício Lima. São exemplos de judicializações de conflitos essencialmente políticos o fim da exigência de diploma de nível superior para jornalista, em 2009; a ação de inconstitucionalidade contra o Decreto da TV Digital, declarada improcedente em 2010; o julgamento pela inconstitucionalidade total da Lei de Imprensa (5.290/67) – e a consequente derrubada da regulamentação do direito de resposta, prevista no Capítulo IV dessa legislação – e, mais recentemente, o questionamento da vinculação horária da classificação indicativa junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).

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[1] Segundo o Artigo 54 da Constituição Federal, senadores e deputados federais não podem, de acordo com o Inciso I, item “a”, desde a expedição do diploma, “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes”; e, de acordo com o Inciso II, Item “a”, desde a posse, “ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada”.

* Daniel Fonsêca é jornalista, integrante do Conselho Diretor do Intervozes e doutorando em Comunicação na ECO/UFRJ.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A TV e o rádio como trampolim político

Por Iara Gomes de Moura e Janaíne Aires* 

No terceiro artigo da série sobre coronelismo eletrônico, mostraremos como a imbricada relação entre meios de comunicação de massa e política não se restringe apenas à propriedade das empresas concessionárias do sistema de radiodifusão. Se a relação entre políticos e concessões públicas já é um dado conhecido no país, pouco se tem atentado ao fato de os programas televisivos serem também espaços privilegiados para a elevação de seus apresentadores ao patamar de representantes eletivos da sociedade brasileira.

Mesmo que a legislação eleitoral impeça a aparição dos candidatos em tais programas durante o período de campanha, não há uma legislação específica coibindo a presença de políticos com mandatos em vigência na apresentação de programas de TV. O poder de lobby instituído a partir do momento em que os eleitos têm uma interlocução privilegiada com os cidadãos, podendo utilizar a TV como palanque eleitoral, é, portanto, altamente questionável e também mereceria algum tipo de regulação.

Pegando exclusivamente o exemplo dos chamados programas policialescos, que se multiplicam país afora, uma rápida passagem pelos principais mostra claramente seu uso político, mesclando populismo político a conteúdos sensacionalistas que violam o direito à privacidade e dignidade humana além de violar outros direitos de crianças e adolescentes, jovens, negros e negras, mulheres e população LGBT. Em geral, tais programas trazem a figura de um apresentador carismático, que se coloca na posição do líder e, a partir de discursos insuflados, baseados em recortes da realidade, convoca as pessoas a tomarem posições sobre os problemas retratados no programa. Assim, constroem narrativas de forma com que a única opção do telespectador ou ouvinte seja concordar com a verdade ali construída. Não por acaso, âncoras e repórteres desse tipo de programa têm alçado e alcançado cada vez mais espaços dentro da política institucional no país.

No último domingo, Wagner Montes (PSD) foi reeleito para o terceiro mandato como deputado estadual do Rio de Janeiro, sendo o segundo mais bem votado, com 208.814, para a Assembleia Legislativa. No pleito anterior, em 2010, ele ficou em primeiro lugar, com 528.628 votos. Há mais de 30 anos, Montes trabalha em programas televisivos deste gênero, tendo apresentado o Aqui e Agora (TV Tupi) e O povo na TV (SBT). Atualmente, enquanto exerce o cargo eletivo no Legislativo fluminense, apresenta um dos programas policialescos mais populares da TV brasileira, o Balanço Geral, no ar pela Rede Record desde 2005. O deputado é famoso por seu estilo eloquente e por cobrar no ar maior firmeza por parte da força policial contra os “marginais”. Seu bordão, gritado, é “escraaacha”.

Ao seu lado, a jornalista Cidinha Campos, que tem mais de 50 anos de atuação em programas de rádio e televisão, obteve no domingo mais de 75 mil votos pelo PDT, seguindo para seu terceiro mandato consecutivo como deputada estadual. Após as eleições de 2010, até 2012, a parlamentar apresentou, na TV Bandeirantes do Rio de Janeiro, o programa Cidinha Livre.

Em São Paulo, Russomanno foi o candidato a deputado federal com maior número de votos alcançado em todo o país: 1.524.361, 7,26% dos votos válidos do eleitorado paulista. O apresentador (PRB), já em 1994, elegeu-se o deputado federal mais votado graças à popularidade alcançada como repórter de defesa do consumidor. Suas reportagens mostravam as queixas de cidadãos mal atendidos, colocados frente a frente com fornecedores de serviços e produtos. A conversa muitas vezes descambava para brigas físicas. Russomanno fazia papel de advogado em busca de um acordo. Quando conseguia, encerrava sua aparição com a frase que ficou conhecida na TV: “estando bom para ambas as partes, Celso Russomanno, Aqui e Agora”.

Até o início da campanha eleitoral deste ano, ele seguia como apresentador da TV Record. As urnas confirmaram, no domingo, o impacto do uso das emissoras de rádio e TV nos processos eleitorais.

A relação comprova-se em todos os estados brasileiros e também revela-se a nível municipal. Em Fortaleza (CE), no ano de 2012, o segundo vereador mais votado, com 29.952 mil votos, foi Vitor Valim (PMDB) apresentador do Cidade 190, da TV Cidade, afiliada da Rede Record. No último domingo, ele foi eleito para uma vaga na Câmara dos Deputados em Brasília, tendo recebido a soma vultosa de 92.499 votos no estado. Os radialistas Ely Aguiar (PSDC) e Ferreira Aragão (PDT), também apresentadores de programas policiais, foram reeleitos para a Assembleia Legislativa do Estado. Ely obteve 41.632 votos, enquanto Aragão conseguiu 27.607 votos.

Cabe destacar ainda outro aspecto da relação entre apresentadores de programas e política eleitoral, que vem se mostrando bastante comum: a transferência de capital midiático entre parentes com objetivos eleitorais. Os casos de maior destaque são os de Wagner Montes e Wagner Montes, o filho, no Rio de Janeiro; Wallace Souza e seus irmãos Fausto e Carlos Souza, no Amazonas; Samuka Duarte e Samuka Filho, na Paraíba; e Ratinho e Ratinho Jr., no Estado do Paraná. Depois de se candidatar à Prefeitura de Curitiba em 2012, Ratinho Jr. (PSC) se elegeu neste domingo o deputado estadual mais bem votado no Paraná, com mais de 300 mil votos – 5,23% dos válidos.

Crimes e eleições: o caso amazonense

No Amazonas, o programa policialesco Comunidade Alerta, da afiliada da Rede Bandeirantes de televisão, é apresentado por Ronaldo Tabosa e Jander Tabosa, o “Tabosinha”. Juntos, pai e filho protagonizaram recentemente um caso emblemático de violação da legislação eleitoral.

Em 2008, Tabosinha disputou um cargo de vereador, mas apesar de ter sido eleito, não exerceu o mandato até o fim. Ele foi cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Amazonas por ter se passado pelo pai nas vinhetas utilizadas na campanha eleitoral daquele ano. Com isso, parte dos eleitores votou no candidato Tabosinha imaginando estarem votando no pai, Ronaldo Tabosa.

Em 2010, foi a vez de Ronaldo Tabosa se candidatar ao cargo de deputado estadual. Ele não foi eleito, mas acabou assumindo, posteriormente, a suplência de outro parlamentar do mesmo partido (PP). Tabosa também foi processado pelo TRE (Carvalho, 2011), por compra de votos e uso indevido do programa de TV para fins eleitorais. Segundo o TRE, Ronaldo Tabosa explorava e expunha o estado miserável de famílias e realizava entrega de cestas básicas no programa.

O apresentador conseguiu, no entanto, candidatar-se novamente, para o cargo de vereador, elegendo-se em 2012. Seu mandato finalmente cassado no início de 2013, tornando-se pai e filho inelegíveis por um período de três anos.

Também no Amazonas, a família Castelo Branco se utiliza de programas de TV para construir carreiras políticas. À frente de A voz da esperança, da TV Em Tempo, afiliada do SBT, estão Sabino e Reizo, pai e filho, ambos políticos do PTB. Sabino começou sua carreira no programa Bronca na TV, na mesma emissora. Em 2006, candidatou-se a deputado federal, sendo o segundo deputado mais votado daquele ano no Amazonas, com 126 mil votos. Antes disso, já havia sido vereador de Manaus por três mandatos. Atualmente é presidente do PTB local. Já o filho Reizo, além de apresentador, é vereador da cidade, reeleito em 2012 para o segundo mandato consecutivo. Vera Lucia Castelo Branco, esposa de Sabino e mãe de Reizo, atualmente exerce o mandado de deputada estadual também pelo PTB. Ela e o filho tentaram uma vaga na Assembleia Legislativa do Amazonas, mas não se elegeram no último domingo. O pai, Sabino, desta vez também ficou de fora da Câmara Federal.

O Ministério Público Federal do Amazonas acusou Sabino e Reizo de praticaram ilegalidades eleitorais através de doações de inúmeros bens à população, por intermédio do programa televisivo que comandam. Porém, embora tenham sofrido processos do TRE local, ambos mantém seus espaços na TV e na política.

Por fim, do Estado do Amazonas vem também o exemplo de um dos casos mais emblemáticos associando meios de comunicação de massa, violação de direitos e crime organizado: o “Caso Wallace”. Policial civil durante a década de 1980, Francisco Wallace Cavalcante de Souza foi expulso da corporação por prática de corrupção. Apesar disso, foi eleito vereador de Manaus pelo PP em 1996, sendo reeleito em 2000.

Nesta época, Wallace Souza já era apresentador bastante conhecido do programa Canal Livre, exibido na antiga TV Rio Negro, hoje TV Bandeirantes Amazonas. Até 2008, a emissora pertencia ao ex-deputado federal Francisco Garcia. Durante a década de 1990, a atração televisiva também foi exibida na TV A crítica, com o título de Espaço Aberto; e na TV Manaus (atualmente TV Em Tempo), afiliada do SBT, também como Canal Livre. Ao lado dos irmãos Carlos Souza e Fausto Souza, Wallace comandava o programa apresentando casos policiais, mostrando assassinatos, sequestros e operações de combate ao tráfico de drogas.

Em 2004, Wallace Souza foi reeleito vereador, um dos mais votados da história de Manaus, mas abandonou o mandato para concorrer ao legislativo estadual. O exercício diário da comunicação na televisão foi quesito chave para lhe garantir reeleições consecutivas e, em 2006, o cargo de deputado estadual mais votado do estado, com 48.965 votos.

Em 2008, foi acusado de chefiar um grupo de extermínio. Segundo a Polícia Militar do estado, Wallace orientaria o grupo a matar pessoas com histórico de crimes para, em seguida, exibir os casos em seu próprio programa de TV. O deputado foi indiciado por formação de quadrilha e tráfico de drogas e teve seu mandato cassado. Seus irmãos e seu filho também foram acusados de envolvimento no esquema, ao lado de membros da produção do programa. Em 2009, Wallace teve prisão decretada

Todos esses fatos, no entanto, não foram suficientes para que a família deixasse a política e a televisão. Carlos Souza e Fausto Souza, irmãos de Wallace, foram, além de apresentadores, vice-prefeito e vereador da cidade de Manaus, respectivamente. Hoje, Carlos está concluindo seu terceiro mandato como deputado federal (eleito pelo PP, agora no PSD) e Fausto Souza atualmente é deputado estadual (PSD), não reeleito no último domingo.

Em abril de 2013, o programa dos irmãos Souza foi retomado com algumas modificações, mas seguindo a mesma linha sensacionalista. Ele passou a ser chamado de Programa Livre, e está sendo exibido pela emissora TV Em Tempo.

A ausência de uma regulação efetiva de tais programas têm possibilitado, portanto, a reprodução de um sistema pernicioso, que resulta na exploração de concessões públicas de radiodifusão e no uso da programação do rádio e da TV para fins estritamente privados. Embora os tribunais eleitorais sejam rígidos em sua fiscalização durante os períodos de campanha, a “propaganda eleitoral” nos programas policialescos acontece cotidianamente, ao longo de anos e longe dos olhos dos TREs.

Tais programas constituem-se, assim, em trampolins para candidaturas e espaços privilegiados de ascensão política. Ao fazerem uso de uma linguagem sensacionalista e, por vezes, praticarem o assistencialismo via TV, os apresentadores destes programas acabam por criar uma imagem de “salvadores”, justiceiros ou “protetores” da população favorecendo-se significativamente nas disputas eleitorais de que participam.

* Iara Gomes de Moura é jornalista e mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense. Janaíne Aires é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; integra o Grupo de Pesquisa em Economia e Políticas da Informação e da Comunicação (PEIC).

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Controle de emissoras por políticos leva à falsificação da democracia

Por Carlos Gustavo Yoda*

Nesta segunda reportagem da série sobre os “coronéis da mídia”, vamos mostrar o que diz a legislação brasileira sobre o controle de emissoras de rádio e televisão por políticos e o que pode e vem sendo feito pelas organizações de defesa do direito à comunicação acerca das ilegalidade praticadas.

Desde 2011, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação, intitulada Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), elaborada pelo Intervozes, em parceria com o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que pede a declaração de inconstitucionalidade à concessão de outorgas de radiofusão a emissoras controladas por políticos. A arguição – “acusação”, para desembrulhar o juridiquês, também afirma que, desde a posse, os parlamentares não podem mais ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada. Assim, defende como inconstitucional o ato de posse desses radiodifusores eleitos, pelo fato de os mesmos não terem deixado, antes, o controle de suas emissoras.

A base da ADPF 246 é o artigo 54 da Constituição, que aponta, em seus dois primeiros parágrafos, como fundamento da República, que deputados e senadores não podem firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público. Além deste artigo, a ação também entende que a prática do coronelismo eletrônico viola o direito à informação (artigo 5º e 220 da Constituição Federal), a separação entre os sistemas público, estatal e privado de comunicação (art. 223), o direito à realização de eleições livres (art. 60), o princípio da isonomia (art. 5º) e o pluralismo político e o direito à cidadania (art. 1º).

Além da Constituição Federal, o artigo 38 do Código Brasileiro de Telecomunicações, principal lei de rege o setor, aponta, em seu parágrafo primeiro, que não pode exercer a função de diretor ou gerente de concessionária, permissionária ou autorizada de serviço de radiodifusão quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial.

No entanto, a ADPF cita mais de 40 deputados federais e senadores, da atual legislatura, que controlam diretamente pelo menos uma emissora de rádio ou televisão em seu estado de origem. A tese da ação aponta diferentes órgãos como responsáveis pela ilegalidade. Em primeiro lugar, o Ministério das Comunicações e a Presidência da República, por concederem outorgas a empresas que não poderiam recebê-las e pela omissão na fiscalização das emissoras; o Congresso Nacional, também responsável pela autorização e renovação das outorgas e pela diplomação dos parlamentares; e o Poder judiciário, também responsável pela diplomação de candidatos eleitos.

O STF ainda não se manifestou sobre o tema, mas já coletou a manifestação dos órgãos envolvidos. Em parecer enviado ao Supremo, o Senado afirma que o entendimento de sua Comissão de Constituição e Justiça é de que os contratos de concessão e de permissão de radiodifusão enquadram-se na incompatibilidade constitucional prevista pelo artigo 54, II, “a”. Deputados e senadores não poderiam, portanto, ser proprietários e controladores de pessoas jurídicas prestadoras do serviço de radiodifusão pois estas gozam do benefício decorrente da celebração de contrato com pessoa jurídica de direito público – no caso, a União.

Em parecer sobre a ADPF solicitado pelo Intervozes aos juristas Gilberto Bercovici, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e Airton Serqueira Leite Seelaender, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, eles afirmam que o ordenamento jurídico brasileiro deixa claro que há um dever estatal de impedir a oligarquização do regime democrático, de combater a oligopolização do setor e fomentar o pluralismo na mídia, destacando “a importância de preservar o dissenso na radiodifusão”. Bercovici e Seelaender afirmam que as práticas expostas na denúncia apresentada ao STF representam “clara burla à Constituição”.

A posição da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (MPF), também é de que os detentores de mandatos não podem direta ou indiretamente ter vínculo societário em empresas que detêm concessão de radiodifusão.

“Sem meias palavras, uma das grandes tragédias da comunicação social no país é o fato dos parlamentares terem o controle gerencial dessas empresas. É um poder que retroalimenta o controle político”, pontua o procurador Regional da República no Rio Grande do Sul, Domingos Sávio da Silveira. “O que me parece mais grave é o poder de gestão que esses clãs políticos exercem sobre concessões [de radiodifusão]. E mais do que isso, como o fato de ser parlamentar tem ao longo da história feito com que as concessões sejam dirigidas a empresas que estão sob o controle indireto desses parlamentares”, acrescenta.

Para Silveira, quando grupos políticos controlam as emissoras acontece a distorção direta do processo político. “É a falsificação da democracia. A opinião pública é construída pela mídia. Se frauda a democracia quando, através da utilização desigual de uma concessão, se consegue uma visibilidade incomparável em relação aos outros candidatos”, explica.

Debate recorrente

A discussão pública acerca do coronelismo eletrônico não é recente. Na Câmara dos Deputados, o relatório dos trabalhos da Subcomissão Especial da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), criada para analisar mudanças nas normas de apreciação dos atos de outorga e renovação de concessões, apontou, já em 2007 o conflito de interesses. O documento afirma que, “como o Congresso Nacional é responsável pela apreciação dos atos de outorga e de renovação de outorga de radiodifusão, a propriedade e a direção de emissoras de rádio e televisão são incompatíveis com a natureza do cargo político e o controle sobre concessões públicas, haja vista o notório conflito de interesses”.

A Deputada Luiza Erundina (PSB-SP), no entanto, que presidiu a Subcomissão, constata a dificuldade de se fazer cumprir tal compreensão, justamente porque o número de parlamentares que, de forma ilegal e inconstitucional, são detentores de concessões de rádio e TV ainda é elevado. “E eles têm seus prepostos, seus representantes, na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara e do Senado, o que explica a dificuldade que há em se avançar minimamente em relação a esse marco legal”, diz.

Em 2010, o então ministro chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins, também afirmou a inconstitucionalidade do controle de outorgas de radiodifusão por políticos. De acordo com ele, “criou-se terra de ninguém. Todos sabemos que deputados e senadores não podem ter televisão, tem TV e usam de subterfúgios dos mais variados”.

Na mesma linha, em janeiro de 2011, o Ministro das Comunicações Paulo Bernardo novamente afirmou que já existe uma restrição que está colocada na Constituição: “É o Congresso que autoriza as concessões. Então, me parece claro que o congressista não pode ter concessão, para não legislar em causa própria. Os políticos já têm espaço garantido na televisão, nos programas eleitorais. E há também a vantagem nas disputas eleitorais, e o poder político e econômico”. O Ministério das Comunicações, no entanto, deu continuidade à sua política histórica de ignorar o artigo 54 da Constituição Federal e conceder outorgas de radiodifusão para empresas controladas por políticos.

Questionado pela nossa reportagem sobre o tema, o Ministério pediu que as perguntas fossem enviadas por e-mail. Perguntamos: Como o Ministério das Comunicações interpreta o artigo 54 da Constituição em relação às concessões de radiodifusão? Cabe ao Ministério das Comunicações a sua fiscalização? Se sim, quais são os canais de denúncia disponíveis à população? Se não cabe ao MiniCom, de quem deveria ser a responsabilidade por fiscalizar as emissoras controladas por políticos? O Ministério considera o atual quadro de trâmite de outorgas problemático? No entendimento dos gestores do Ministério, a legislação precisa de atualização? Até o fechamento desta reportagem, o Ministério das Comunicações não havia manifestado seus posicionamentos.

Laranjas e celebridades

Comprovar o controle de uma emissora de rádio ou TV por políticos não é tarefa simples. Os casos mais óbvios – mas também mais raros – são aqueles em que o próprio registro de acionistas da empresa concessionária inclui o nome do parlamentar, prefeito ou governador. Mas o coronelismo eletrônico tem muitas faces. De acordo com Domingos Sávio da Silveira, operam hoje no Brasil diversas formas de controle indireto da radiodifusão. Além dos chamados laranjas, usados para esconder o nome do verdadeiro dono da emissora, há casos de políticos que, mesmo sem serem proprietários da empresa, são capazes de acumular poder midiático e usar o espaço do rádio e da televisão como fonte de poder pessoal.

“É o exemplo dos comunicadores candidatos e dos parlamentares comunicadores, que passam os quatro anos de seu mandato retroalimentando sua atuação, que deveria estar no Congresso, às vezes até sem receber e, outras vezes, alugando ou arrendando espaços nos meios de comunicação. É uma relação desigual. A celebridade candidata também frauda o processo democrático”, explica Silveira.

Questionado pela reportagem, o Tribunal Superior Eleitoral declarou que “a Lei das Eleições só se refere aos permissionários públicos quando os proíbe de fazer doações”. Contudo, o TSE indica o Ministério Público Eleitoral para representações: “Quanto a denúncias, o Ministério Público Eleitoral é parte para oferecê-las à Justiça Eleitoral”, informou a assessoria de imprensa da instituição.

Para o procurador Domingos Sávio da Silveira, a sociedade deve procurar o Ministério Público Federal para denunciar possíveis casos de uso indevido de concessões públicas que podem interferir no processo eleitoral. Ele acredita que iniciativas como a ADPF 246 e demandas individuais e pontuais que podem ser delatadas não devem ser entendidas como “censura”, como colocam-se os opositores a todo e qualquer tipo de regulação da mídia. “Seria muito bom que toda a sociedade fizesse representações. É preciso provocar em cada local um processo de aplicação democrática da Constituição, de construção da igualdade. Essas ações têm poder pedagógico”, condui.

* Carlos Gustavo Yoda é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.