Por Arthur William*
Depois do anúncio da criação dos canais da Cidadania e da Educação, previstos no decreto de 2006 que instituiu o padrão de TV digital no Brasil, o governo federal divulgou, na última semana, a criação do Canal da Cultura. Agora, é o Ministério da Cultura (MinC) que tem, em suas mãos, uma poderosa ferramenta para inovar a comunicação pública no Brasil. E ouvir a sociedade é o primeiro passo. A medida surge como possibilidade para a construção de um sistema público de comunicação plural com TVs não-estatais. Mas para tal é preciso fugir dos erros do passado e acelerar sua implementação.
Infelizmente, antes de um diálogo com a sociedade, foi assinada a portaria sobre o tema, em parceria com o Ministério das Comunicações. É verdade que trata-se de um texto genérico, que não apresenta definições sobre como se dará o funcionamento do novo canal. Mas a própria portaria, como já ocorreu com outras ações da pasta, poderia ter passado por um processo de consulta pública antes de ter sido firmada. Tampouco o Ministério tornou público um estudo realizado no ano passado, em parceria com a Universidade de Brasília, sobre a viabilidade de implantação do Canal da Cultura. A pesquisa analisou questões como gestão, financiamento, plataformas e conteúdo, e é fundamental que seja aproveitada no processo de implantação do novo canal.
A radiodifusão está em crise e um novo modelo de televisão pública pode dar novos horizontes a este tipo de comunicação. Por isso não é possível esperar muito para acertar o passo.
O Canal da Cultura deve ser um espelho das demais políticas públicas do MinC, descentralizando suas ações e a produção do conteúdo a ser veiculado, e permitindo a cogestão da emissora com a sociedade. Esta foi a indicação do ministro Juca Ferreira durante debate com artistas da Baixada Fluminense; sinalização confirmada pelo secretário do Audiovisual, Pola Ribeiro. Centralizar sua operação e a programação do canal, mesmo que em forma de curadoria, seria um erro. Uma das grandes falhas na regulamentação do Canal da Cidadania foi justamente conceder a exclusividade de sua operação por parte do poder público. A medida do Ministério das Comunicações tem impedido a instalação da emissora em municípios onde não há vontade do Poder Executivo local – mesmo havendo interesse da sociedade civil e já funcionando um canal comunitário na TV por assinatura.
Resultado dessa opção do Canal da Cidadania é que apenas 6% dos municípios brasileiros solicitaram a outorga e, quase três anos depois da sua regulamentação, apenas a cidade de Salvador avançou no processo. Isso porque, na verdade, a TVE Bahia transformou-se em Canal da Cidadania.
Já o Canal da Educação depende 100% da ação do MEC para se concretizar, num cenário de grandes cortes de recursos na TV Escola e recentes demissões na Acerp, responsável pela produção da TV.
Aprendendo com o passado recente, o Canal da Cultura poderia experimentar um modelo que deu certo na Rádio Cúpula dos Povos da Rio+20. A emissora comunitária, que funcionou temporariamente durante o encontro paralelo da sociedade civil à convenção da ONU sobre o clima, teve sua outorga concedida pela EBC, porém era operada pela própria sociedade. Uma das possibilidades para o novo Canal da Cultura é esta. O MinC poderia viabilizar a outorga para a operação direta do Canal por Pontos de cultura, TVs comunitárias e Pontões de Mídia Livre. Isso ajudaria na rápida implementação da política pública e fortaleceria a comunicação pública não-estatal, ainda muito pouco valorizada no Brasil.
É claro que seriam necessários investimentos de fomento à produção e distribuição de conteúdos. Mas o Ministério da Cultura tem capacidade de envolver a ANCINE (agência reguladora e fomentadora do audiovisual) e sua própria estrutura interna, que já possuem programas de incentivo ao Canal da Cidadania, e as próprias TVs do chamado campo público. Pastas como a Educação, a Saúde e até mesmo a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) desenvolvem ações de cultura e comunicação que poderiam se somar na implementação do Canal da Cultura – antes mesmo da criação do sonhado fundo para a comunicação pública no país.
Além do financiamento do Canal da Cultura, a gestão é outro desafio a ser superado. A manutenção de modelos centralizados e verticais de gerenciamento de redes bate de frente com as redes distribuídas da mídia livre e da cultura digital. A sociedade não quer apenas exibir programas na grade desta nova TV. Ela quer ir além da produção e cogerir a emissora. Isso significa implantar o funcionamento de conselhos, audiências, consultas e debates, primordiais para que uma televisão seja realmente pública.
Outro ponto diz respeito à tecnologia. O sistema de TV digital adotado no Brasil é extremamente subutilizado. Quase nenhuma emissora faz uso da multiprogramação ou da interatividade, tampouco pensa estratégias para mobilidade. A grande maioria dos canais apenas repete a programação do sistema analógico em alta definição, desperdiçando os avanços que a digitalização proporciona. O Canal da Cultura tem a oportunidade de experimentar a multiprogramação, com iniciativas que atendam às diretrizes normativas, sejam elas produzidas por universidades, comunidades ou pelos poderes públicos locais.
Estabelecer espaços fechados aos quais as iniciativas devem se adequar é o que o Ministério das Comunicações faz com as rádios e TVs comunitárias há anos, tendo como consequência a ilegalidade de boa parte das emissoras realmente comunitárias e a legalização de muitos canais controladas por grupos políticos e religiosos.
Em outras políticas públicas, o MinC já optou pelo reconhecimento dessas iniciativas. Da mesma forma que pontos de cultura de Santarém, no Pará, e de uma favela carioca são diferentes, os Canais da Cultura devem considerar o atendimento à política pública – o que pode ser secundarizado se tiverem que obedecer a dezenas de requisitos burocráticos.
Para agilizar seu processo de implantação, é possível utilizar a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que já possui infraestrutura instalada em vários estados, e compartilhar desta rede. Isso garantiria a veiculação de conteúdos em alta definição, a recepção por dispositivos móveis, a interatividade e a multiprogramação com outros canais culturais. Isso não significa, contudo, dividir a atual frequência da TV Brasil com os demais canais públicos previstos no decreto da TV Digital, mas sim compartilhar espaços e equipes para viabilizar a transmissão em frequência própria.
Um acordo firmado esta semana entre Ministério das Comunicações, MEC, MinC, Secom, Ministério da Saúde e EBC vai justamente neste sentido. O objetivo anunciado é ampliar o alcance dos “Canais de TV Digital do Poder Executivo”. É importante lembrar, entretanto, que o decreto que criou a TV Digital no Brasil fala em “canais públicos”, e não estatais. O maior erro que o governo federal pode cometer neste momento é se apropriar dos canais da Cidadania, da Educação e da Cultura para transmitir programação de entes governamentais. Outro risco é que, no processo de compartilhamento da infraestrutura da EBC, desista-se da concessão de outorgas próprias para cada um desses canais e eles sejam obrigados a se contentar com uma faixa de programação da atual TV Brasil – o que reduziria brutalmente o espaço no espectro para os novos canais públicos. A íntegra do documento de acordo ainda não foi publicizada.
Mas, para o Canal da Cultura, são muitas as possibilidades. É preciso abrir já este processo de construção, para além do GT interno do Ministério da Cultura. Muita gente tem contribuições a dar: artistas, movimentos, ONGs, sindicatos, entre outros coletivos. A atual gestão deve pensar políticas públicas que não dependam dela mesma. Elas passarão e a sociedade não pode ficar refém dos gestores de plantão para ter garantido um direito que lhe é fundamental: a comunicação. O canal é da
cultura e não do ministério.
* Arthur William é jornalista e integrante do Intervozes.
Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.