Canal da Cultura pode inovar com TV pública não-estatal e descentralizada

Por Arthur William*

Depois do anúncio da criação dos canais da Cidadania e da Educação, previstos no decreto de 2006 que instituiu o padrão de TV digital no Brasil, o governo federal divulgou, na última semana, a criação do Canal da Cultura. Agora, é o Ministério da Cultura (MinC) que tem, em suas mãos, uma poderosa ferramenta para inovar a comunicação pública no Brasil. E ouvir a sociedade é o primeiro passo. A medida surge como possibilidade para a construção de um sistema público de comunicação plural com TVs não-estatais. Mas para tal é preciso fugir dos erros do passado e acelerar sua implementação.

Infelizmente, antes de um diálogo com a sociedade, foi assinada a portaria sobre o tema, em parceria com o Ministério das Comunicações. É verdade que trata-se de um texto genérico, que não apresenta definições sobre como se dará o funcionamento do novo canal. Mas a própria portaria, como já ocorreu com outras ações da pasta, poderia ter passado por um processo de consulta pública antes de ter sido firmada. Tampouco o Ministério tornou público um estudo realizado no ano passado, em parceria com a Universidade de Brasília, sobre a viabilidade de implantação do Canal da Cultura. A pesquisa analisou questões como gestão, financiamento, plataformas e conteúdo, e é fundamental que seja aproveitada no processo de implantação do novo canal.

A radiodifusão está em crise e um novo modelo de televisão pública pode dar novos horizontes a este tipo de comunicação. Por isso não é possível esperar muito para acertar o passo.

O Canal da Cultura deve ser um espelho das demais políticas públicas do MinC, descentralizando suas ações e a produção do conteúdo a ser veiculado, e permitindo a cogestão da emissora com a sociedade. Esta foi a indicação do ministro Juca Ferreira durante debate com artistas da Baixada Fluminense; sinalização confirmada pelo secretário do Audiovisual, Pola Ribeiro. Centralizar sua operação e a programação do canal, mesmo que em forma de curadoria, seria um erro. Uma das grandes falhas na regulamentação do Canal da Cidadania foi justamente conceder a exclusividade de sua operação por parte do poder público. A medida do Ministério das Comunicações tem impedido a instalação da emissora em municípios onde não há vontade do Poder Executivo local – mesmo havendo interesse da sociedade civil e já funcionando um canal comunitário na TV por assinatura.

Resultado dessa opção do Canal da Cidadania é que apenas 6% dos municípios brasileiros solicitaram a outorga e, quase três anos depois da sua regulamentação, apenas a cidade de Salvador avançou no processo. Isso porque, na verdade, a TVE Bahia transformou-se em Canal da Cidadania.

Já o Canal da Educação depende 100% da ação do MEC para se concretizar, num cenário de grandes cortes de recursos na TV Escola e recentes demissões na Acerp, responsável pela produção da TV.

Aprendendo com o passado recente, o Canal da Cultura poderia experimentar um modelo que deu certo na Rádio Cúpula dos Povos da Rio+20. A emissora comunitária, que funcionou temporariamente durante o encontro paralelo da sociedade civil à convenção da ONU sobre o clima, teve sua outorga concedida pela EBC, porém era operada pela própria sociedade. Uma das possibilidades para o novo Canal da Cultura é esta. O MinC poderia viabilizar a outorga para a operação direta do Canal por Pontos de cultura, TVs comunitárias e Pontões de Mídia Livre. Isso ajudaria na rápida implementação da política pública e fortaleceria a comunicação pública não-estatal, ainda muito pouco valorizada no Brasil.

É claro que seriam necessários investimentos de fomento à produção e distribuição de conteúdos. Mas o Ministério da Cultura tem capacidade de envolver a ANCINE (agência reguladora e fomentadora do audiovisual) e sua própria estrutura interna, que já possuem programas de incentivo ao Canal da Cidadania, e as próprias TVs do chamado campo público. Pastas como a Educação, a Saúde e até mesmo a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) desenvolvem ações de cultura e comunicação que poderiam se somar na implementação do Canal da Cultura – antes mesmo da criação do sonhado fundo para a comunicação pública no país.

Além do financiamento do Canal da Cultura, a gestão é outro desafio a ser superado. A manutenção de modelos centralizados e verticais de gerenciamento de redes bate de frente com as redes distribuídas da mídia livre e da cultura digital. A sociedade não quer apenas exibir programas na grade desta nova TV. Ela quer ir além da produção e cogerir a emissora. Isso significa implantar o funcionamento de conselhos, audiências, consultas e debates, primordiais para que uma televisão seja realmente pública.

Outro ponto diz respeito à tecnologia. O sistema de TV digital adotado no Brasil é extremamente subutilizado. Quase nenhuma emissora faz uso da multiprogramação ou da interatividade, tampouco pensa estratégias para mobilidade. A grande maioria dos canais apenas repete a programação do sistema analógico em alta definição, desperdiçando os avanços que a digitalização proporciona. O Canal da Cultura tem a oportunidade de experimentar a multiprogramação, com iniciativas que atendam às diretrizes normativas, sejam elas produzidas por universidades, comunidades ou pelos poderes públicos locais.

Estabelecer espaços fechados aos quais as iniciativas devem se adequar é o que o Ministério das Comunicações faz com as rádios e TVs comunitárias há anos, tendo como consequência a ilegalidade de boa parte das emissoras realmente comunitárias e a legalização de muitos canais controladas por grupos políticos e religiosos.

Em outras políticas públicas, o MinC já optou pelo reconhecimento dessas iniciativas. Da mesma forma que pontos de cultura de Santarém, no Pará, e de uma favela carioca são diferentes, os Canais da Cultura devem considerar o atendimento à política pública – o que pode ser secundarizado se tiverem que obedecer a dezenas de requisitos burocráticos.

Para agilizar seu processo de implantação, é possível utilizar a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que já possui infraestrutura instalada em vários estados, e compartilhar desta rede. Isso garantiria a veiculação de conteúdos em alta definição, a recepção por dispositivos móveis, a interatividade e a multiprogramação com outros canais culturais. Isso não significa, contudo, dividir a atual frequência da TV Brasil com os demais canais públicos previstos no decreto da TV Digital, mas sim compartilhar espaços e equipes para viabilizar a transmissão em frequência própria.

Um acordo firmado esta semana entre Ministério das Comunicações, MEC, MinC, Secom, Ministério da Saúde e EBC vai justamente neste sentido. O objetivo anunciado é ampliar o alcance dos “Canais de TV Digital do Poder Executivo”. É importante lembrar, entretanto, que o decreto que criou a TV Digital no Brasil fala em “canais públicos”, e não estatais. O maior erro que o governo federal pode cometer neste momento é se apropriar dos canais da Cidadania, da Educação e da Cultura para transmitir programação de entes governamentais. Outro risco é que, no processo de compartilhamento da infraestrutura da EBC, desista-se da concessão de outorgas próprias para cada um desses canais e eles sejam obrigados a se contentar com uma faixa de programação da atual TV Brasil – o que reduziria brutalmente o espaço no espectro para os novos canais públicos. A íntegra do documento de acordo ainda não foi publicizada.

Mas, para o Canal da Cultura, são muitas as possibilidades. É preciso abrir já este processo de construção, para além do GT interno do Ministério da Cultura. Muita gente tem contribuições a dar: artistas, movimentos, ONGs, sindicatos, entre outros coletivos. A atual gestão deve pensar políticas públicas que não dependam dela mesma. Elas passarão e a sociedade não pode ficar refém dos gestores de plantão para ter garantido um direito que lhe é fundamental: a comunicação. O canal é da
cultura e não do ministério.

* Arthur William é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

No 7 de Setembro, gritemos por uma comunicação democrática

Por Paulo Victor Melo*

Denunciar a manipulação e a violação de direitos pela mídia e anunciar a necessidade de democratização dos meios de comunicação. Essa é a síntese do tema da comunicação no Grito dos Excluídos deste ano, que tem como lema “Que país é esse, que mata gente, que a mídia mente e nos consome?”.

Ao chegar a sua 21ª edição, o Grito dos Excluídos – manifestação popular realizada anualmente desde 1995 – evidencia que o debate sobre comunicação é atual, diz respeito ao caráter da democracia brasileira e, por isso, deve ser amplo, com a participação de todos e todas.

E nada melhor que os setores que organizam o Grito dos Excluídos – movimentos sociais, organizações populares e coletivos de direitos humanos – para protagonizar esse debate nas ruas de todo o País, durante o 7 de Setembro. Afinal, são esses segmentos que, dia após dia, têm seus direitos violados pelos meios de comunicação, em especial pela televisão.

Assistida cotidianamente por 94% da população, segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, a televisão brasileira tem como um dos seus pilares justamente a propagação de conteúdos que violam direitos de mulheres, jovens, idosos, negros e negras, indígenas, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência e população LGBT.

Dois formatos são emblemáticos nesse sentido: os programas de auditório que exploram conflitos pessoais e abusam da exposição das mazelas de pessoas em situação de vulnerabilidade psicológica e social; e os programas policiais, que, com base no discurso de ódio e do preconceito, incitam o crime e a violência, criminalizam a pobreza, invadem domicílios e desrespeitam, de todas as formas, a dignidade humana.

Somam-se a esse cenário comentaristas e apresentadores que, utilizando-se de espaços públicos (é sempre importante lembrar que rádio e televisão são concessões públicas), estimulam a “justiça com as próprias mãos” como saída para resolução dos nossos conflitos sociais, comemoram ao vivo o extermínio da juventude negra e defendem a redução da maioridade penal. Exemplos não faltam: José Luiz Datena, Marcelo Rezende, Rachel Sheherazade, Luiz Carlos Prates e tantos outros pelo País afora.

E cabe frisar: essa realidade de permanente violação de direitos humanos pelos meios de comunicação tem como aliadas a omissão e a conivência do Estado brasileiro. O mesmo Estado que, como diz o lema do Grito dos Excluídos, “mata gente”. Omissão e conivência que são verificadas, por exemplo, no fato de o Ministério das Comunicações quase não se manifestar diante das constantes violações ou no fato da legislação estabelecer 89 mil reais como valor máximo para pagamento de multas pelas emissoras que violem direitos, uma cifra irrisória para as principais redes de TV do País.

Mas não encerram por aí a omissão e conivência do Estado que mata gente com a mídia que mente. A permissão para que políticos com cargo possuam propriedade de radiodifusão, desrespeitando o artigo 54 da Constituição Federal; a permissão do oligopólio, também em oposição ao que diz a Carta Magna; a ausência de regulamentação da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal; e a negativa em garantir o conteúdo regional e independente na programação do rádio e da TV são outros exemplos de como a relação entre Estado e meios de comunicação se constituiu ao longo da nossa história.

Diante disso, não restam dúvidas que, no dia em que se celebra a independência oficial do Brasil, é preciso denunciar a mídia que mente e viola direitos e ampliar, nas ruas, o coro dos que gritam por uma comunicação democrática. Só assim a diversidade de vozes, cores e ideias existentes na sociedade, e que caracteriza o Grito dos Excluídos, será refletida nos meios de comunicação.

*Paulo Victor Melo é jornalista, doutorando em Comunicação e Política na Universidade Federal da Bahia e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A violência que cala toda a sociedade

Por Helena Martins*

O assassinato da repórter Alison Parker e do cinegrafista Adam Ward, jornalistas de uma TV afiliada à rede norte-americana CBS, na quarta-feira 26, enquanto faziam uma entrevista ao vivo, chocou o mundo. Mostrou a vulnerabilidade humana, bem como a perversidade de quem, friamente, dispara contra outros humanos sem se esquecer de registrar cada segundo com uma câmera. Afinal, no império da imagem, um “caso” como esse não poderia passar despercebido.

Mas a brutalidade do que ocorreu, cujas circunstâncias ainda não foram totalmente esclarecidas, pode ter a força de suscitar o debate sobre o cotidiano de violência ao qual é submetida a pessoa que trabalha com comunicação.

Tensões, ameaças, conflitos e mesmo mortes são mais comuns do que imaginamos. E os motivos que geram essas situações envolvem, na maior parte dos casos, a defesa do interesse público, a investigação e a denúncia daqueles que controlam o poder – e, muitas vezes, também os meios de comunicação, numa associação que tem sido apontada, no Brasil, como coronelismo midiático.

Também na última quarta, em uma audiência pública que tratou sobre o tema na Assembleia Legislativa do Ceará, o presidente da Associação de Imprensa do Sertão Central do estado, Wanderley Barbosa, foi claro ao relacionar as questões. De acordo com ele, conforme consta na reportagem do jornal O Povo: “No Interior, o rádio é um meio de comunicação muito poderoso e tudo que se fala tem repercussão. A grande maioria das emissoras pertence a políticos, e o radialista está no meio dessa história de rivalidade”.

A audiência foi motivada pelo assassinato do radialista Gleydson Carvalho no estúdio da Rádio FM Liberdade, em Camocim (CE), enquanto trabalhava, no dia 6 de agosto. Na mesma data, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (Organização dos Estados Americanos), Edison Lanza, estava no Brasil a convite de organizações, entre elas o Intervozes, para debater a garantia dos direitos no País. Ao saber do ocorrido, a relatoria manifestou preocupação com a situação. No Ceará, apenas este ano, quatro radialistas foram assassinados.

Todas as mortes ocorreram em cidades do interior e envolveram discussões políticas, conforme apuração dos órgãos competentes. No caso de Gleydson, a denúncia do Ministério Público é clara. Ela cita como motivo o “desprezível sentimento de intolerância às concepções diferentes e críticas feitas à gestão de Martinópole por mais virulentas que fossem”.

Esse tipo de crime mostra a perpetuação da lógica de resolução de conflitos com a imposição do poder pela força. Fica claro, portanto, que, além de calar uma voz, a violência extrema é utilizada para calar a dissidência, o debate, a livre opinião. E as violações não atingem apenas um indivíduo, mas toda a sociedade que, ou acaba privada do acesso à informação, ou recebe apenas aquilo que não gerará incômodo, muito menos abalará as estruturas do poder.

Essa cultura perversa coloca o Brasil em terceiro lugar na lista de países onde o exercício da profissão de jornalista é mais perigoso na América Latina, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras. Os números são alarmantes.

Já o relatório do Grupo de Trabalho “Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil” do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), hoje Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), mostra que entre 2009 e 2014 ocorreram pelo menos 321 casos de violações de direitos. As situações são diversas e envolvem agressões, ameaças de morte, atentado a veículo de comunicação, assédio moral, cerceamento da atividade profissional, detenção arbitrária, hostilização, perseguição, sequestro e assassinatos – que chegaram a 18 no período citado.

Importante salientar que o “envolvimento de autoridades e policiais locais na violência contra comunicadores é uma das evidências mais importantes apreendidas dos depoimentos apresentados” ao grupo, de acordo com o relatório. A essa conclusão também chegou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que contabilizou 190 casos de detenção ou violência contra jornalistas em protestos ocorridos entre maio de 2013 e junho de 2014. Do total, 88% dos casos foram provocados por policiais. Em quase metade dos casos (44%), a violência foi intencional.

É fato que, assim como outras muitas violências que vemos cotidianamente, essa é difícil de ser enfrentada por se tratar de um problema estrutural, organicamente relacionado à arquitetura de poder político e econômico historicamente constituída em nosso País. Não obstante, é preciso desenvolver medidas para romper com essa lógica e assegurar o direito à liberdade de expressão, à comunicação e à vida dessas pessoas. E o pontapé inicial disso é tirar os casos de agressão da invisibilidade.

Nesse sentido, as organizações que participaram do Grupo de Trabalho “Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil” apontaram a necessidade de constituição do Observatório da Violência contra Comunicadores. O órgão, segundo a proposta apresentada pelo grupo, deveria ser consolidado por meio de cooperação com o Sistema ONU, o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Sua gestão deveria ser feita por meio de um Comitê Gestor tripartite, composto por organizações da sociedade civil que atuem na área de combate à violência contra comunicadores, setores do Estado considerados estratégicos para o tema e o Sistema ONU. A proposta é que o observatório conte com unidade de recebimento de casos, sistema de indicadores e, a fim de desenvolver medidas efetivas, mecanismos de proteção. Hoje, a demanda está sendo discutida pelo CNDH e deve voltar à tona com o início dos trabalhos da Comissão sobre Direito à Comunicação e Liberdade de Expressão do conselho, a qual foi criada recentemente.

Além disso, outras medidas podem ser efetivadas por diversos sujeitos – das empresas de comunicação ao Estado brasileiro. A adoção de equipamentos de proteção, a criação de linhas específicas para comunicadores em programas que objetivam proteger defensores de direitos e a elaboração de um protocolo padronizado de atuação das forças de segurança pública no âmbito das manifestações sobre aplicação do princípio da não violência em circunstâncias como manifestações e eventos públicos são algumas delas. Urge tratá-las com prioridade e envolver a sociedade na luta pela vida e contra todas as formas de violência.

*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Para ativistas digitais, projeto da Câmara não protege dados pessoais

Ao contrário das empresas de publicidade e marketing, ativistas digitais ouvidos em audiência da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, nesta terça-feira, 25/08, reclamaram do texto do PL 6040/12, sobre proteção de dados pessoais. A proposta foi considerada prejudicial aos cidadãos por ser permissiva na utilização dos dados, inclusive ao autorizar o compartilhamento com terceiros.

“O projeto cria grande espaço de liberdade às empresas privadas, em detrimento dos cidadãos. Para começar, o projeto não trata de coleta, apenas tratamento. Temos que lembrar que há vários aplicativos em que a coleta é no país, mas o tratamento não. Já estariam fora do alcance dessa lei”, diz a coordenadora do InternetLab, um laboratório ‘jurídico-digital’ da Faculdade de Direito da USP, Mariana Valente.

Para Joana Varon, fundadora da Coding Rights, “o projeto não é capaz de abordar os desafios da coleta de dados na escala que existe atualmente. E é um texto altamente permissivo, uma vez que todos podem compartilhar com todo mundo. Nunca vi isso em lei nenhuma”. Veridiana Alimonte, do Invervozes, emenda que “mesmo nos casos de consentimento, não há preocupação de que tem que ser informado completamente ou mesmo qual a finalidade de coleta dos dados”.

De fato, o PL “aplica-se aos tratamentos de dados pessoais realizados em território nacional” (art. 4), e diz que “os responsáveis pelo tratamento de dados poderão compartilhá-los, inclusive para fins de comunicação comercial, com empresas integrantes de um mesmo grupo econômico, parceiros comerciais ou terceiros que direta ou indiretamente contribuam para a realização do tratamento de dados pessoais” (art. 14).

Outra queixa é que mesmo o fim da relação entre usuário e aplicação, exceções permitem que a coleta continue. “Quando do término ou bloqueio do tratamento dos dados pessoais, o responsável poderá conservá-los ou compartilhá-los com terceiros, somente quando tais práticas sejam adotadas para finalidades históricas, estatísticas ou de pesquisa científica” (art. 16).

Escrito por Luís Osvaldo Grossmann
para Convergência Digital

“Boa parte da mídia abdicou de fazer jornalismo para fazer oposição política”

Pesquisador há décadas sobre o papel social da mídia, o professor aposentado da Universidade de Brasília Venício Lima é autor de vários livros sobre o assunto e segue refletindo sobre o comportamento dos veículos de comunicação, a necessidade de regulação do setor e o papel da comunicação alternativa e pública.

Brasil de Fato – Temos visto uma cobertura cada vez mais parecida, especialmente da política, nos veículos da mídia hegemônica. Apesar de pequenas diferenças de linha editorial, parece haver uma homogeneização no tratamento de alguns temas, como na questão da crise e da operação Lava Jato. Como você avalia esse comportamento?

Venício Lima – Na verdade, não acho que constitui uma novidade. Há muitos anos, em livro que publiquei com o Kucinski [“Diálogos da perplexidade: reflexões críticas sobre a mídia”], comentamos essa questão da posição homogênea da grande mídia. É a ideia de que a grande mídia funciona como se tivesse um supraeditor, como se as principais notícias, a pauta, a narrativa, fossem cotidianamente editados por um super editor, que dá a elas o mesmo enquadramento. Isso é tão verdadeiro que às vezes as mesmas palavras aparecem reiteradamente, para os mesmos assuntos, para a mesma pauta, em diferentes veículos. Isso não é uma novidade, e expressa apenas o fato sabido e conhecido de que os oligopólios privados de mídia no Brasil têm interesses comuns e defendem basicamente as mesmas propostas e são contra as mesmas propostas, projetos e políticas.

A que você atribui essa recente inflexão em alguns veículos, como a Folha e o Globo, na questão do golpe ou impecheament contra a presidenta?

V.L. – É uma questão delicada. Os grandes oligopólios no Brasil têm, sobretudo o grupo Globo, historicamente conseguido se adaptar às conjunturas e preservar seu interesse. E, correspondente a isso, o Estado brasileiro também historicamente não tem sido capaz de fazer prevalecer a natureza de serviço público, sobretudo na radiodifusão. Um observador como eu, sem acesso a fontes privilegiadas, sem vínculos com partidos ou nada do tipo, me valho da minha experiência e dos dados públicos. O que se sabe agora é que houve uma reunião do secretário de comunicação da presidência com os controladores do grupo Globo e, por ocasião de uma homenagem à Globo no Senado, uma reunião com executivo do grupo e nove senadores do PT. Depois desses encontros, de fato observa-se uma inflexão na cobertura política e um posicionamento diferente com relação ao impeachment da presidente. O que não se sabe é se houve – e muito provavelmente houve – algum tipo de entendimento, de acordo. Como foi feito no passado, com outros governos, em outras situações. O Estado brasileiro e qualquer grupo que temporariamente controlam sua máquina têm sido incapazes de fazer prevalecer políticas de interesse público e negociam com esses meios, que se tornam cada vez mais poderosos e mais capazes de fazer valer seus interesses. Depois saberemos melhor do que se trata. Vi especulações em relação à atribuição das frequências, utilização do chamado 4G, questões tecnológicas que o Estado tem poder, disputa entre os velhos grupos e operadoras… teremos que ver se se confirma a inflexão e saberemos o que foi negociado. Mas certamente alguma coisa foi negociada.

Na sua avaliação, por que os governos do PT não avançaram na questão da regulação do mercado de comunicação?

V.L. – Essa pergunta tem que ser feita aos governos do PT. Eu não consigo compreender. Houve momentos em que se acreditava que os governos petistas iam pelo menos propor uma atualização da legislação, a regulação dos artigos que estão na Constituição, que fossem encaminhar projetos ao Congresso. Isso ocorreu em diversos países da América Latina em que projetos democráticos chegaram ao poder, mas nada disso aconteceu no Brasil. Tenho dito que esses governos caíram numa armadilha de acreditar que seria possível que os oligopólios de mídia apoiassem um projeto político, com repercussão na economia, que beneficiasse as classes populares, que promovesse a inclusão. Há informações seguras que durante muito tempo figuras importantes nos governos petistas acreditavam que era possível trazer o apoio desses oligopólios para a execução dessas políticas. Assim, a negociação com eles, as verbas publicitárias, empréstimos etc, deveriam ser a prioridade da política de comunicação do governo. Em detrimento da construção de um sistema público de comunicação, como, aliás, manda a Constituição. Ao cair nessa armadilha, perderam-se as oportunidades históricas de se fazer o que era necessário fazer e que não foi feito.

A partir da pressão da sociedade e também dada a virulência desses meios hegemônicos contra o governo do PT, você acredita que há possibilidade de avanço na regulação neste segundo mandato da Dilma?

V.L. – De novo, quem tem que responder são os agentes públicos do governo, ou a própria presidente. Posso dar uma reposta de observador que tem décadas que acompanha essas questões. Sou pessimista. Não vejo no momento atual de crise política e de diluição completa da sustentação parlamentar do governo possibilidades de avanço. As condições são adversas para que se implemente algo nessa área. É interessante observar que o discurso de regulação econômica da mídia, que fez parte da campanha eleitoral, que foi vocalizado diversas vezes pelo ministro das comunicações, desapareceu. Não se fala mais nisso. Além disso, até mesmo medidas que poderiam e podem ser tomadas por diferentes setores do governo, que independem de aprovação parlamentar, não têm sido tomadas. Como, por exemplo, a revisão de critérios das verbas oficias de publicidade e a fiscalização de arrendamento de emissoras. Coisas que fazem parte do papel do Ministério das Comunicações, em alguns casos, ou podem ser de decisão política da presidência, medidas que poderiam ser tomadas independentes de aprovação do parlamento, que é sabida e declaradamente de oposição ao governo.

Você escreveu que não temos no país uma “narrativa pública alternativa”. Na sua avaliação, como os veículos comunitários, sindicais e populares poderiam avançar para pautar a pluralidade de vozes e visões de mundo?

V.L. – Tem uma questão histórica, na mídia alternativa brasileira, incluindo as TVs e rádios comunitárias, a mídia sindical, o sistema público de um modo geral, que é a dificuldade de unificar sua narrativa. Há avanços, mas são ainda muito tímidos em relação ao que seria necessário. Eu considero absolutamente crítica a necessidade de apoio do governo ao sistema público de comunicação. A Empresa Brasil de Comunicação, EBC, tem, a duras penas, tentado produzir uma alternativa de qualidade à mídia comercial. Mas é muito difícil, porque a forma como a EBC está regulamentada depende de recursos não só do governo, mas de contribuição à radiodifusão pública, que inclusive vem sendo questionado na Justiça. É uma situação financeira difícil. E mesmo a empresa conseguindo, em seus diferentes veículos, produzir programas de boa qualidade, é difícil quebrar a inércia da audiência, que há décadas é dominada pela mídia comercial. A mídia pública não consegue ser divulgada fora dela própria e fica reduzida à sua pequena audiência. Acho que esta é das possibilidades que devem ser apoiadas. Inclusive uma coisa que esquecemos é que as pessoas que acreditam na necessidade de uma mídia alternativa à comercial devem apoiar a TV pública assistindo sua televisão e ouvindo suas emissoras de rádio.

Ao mesmo tempo em que assistimos ao fortalecimento da mídia comercial, aumenta o número de demissões e se discute o futuro do jornalismo. O que se desenha para o cenário da comunicação hoje?

V.L. – Essa não é uma peculiaridade brasileira. É algo que está acontecendo na sociedade contemporânea e decorre de uma transição tecnológica, cujos resultados não sabemos ainda. Há uma nova geração surgindo que não terá os mesmos hábitos de consumo de mídia e isso já está claro, sobretudo no Brasil. E isso tem implicação para modelos de negócio. Mas sou daqueles que não compartilho o entusiasmo, muitas vezes acrítico, com relação ao acesso à informação que as novas tecnologias possibilitam. Os dados que temos no Brasil e no mundo confirmam que, apesar da transição e das mudanças de plataforma tecnológica, os grandes produtores de conteúdo continuam os velhos grupos da mídia tradicional. Pesquisas confirmam e isso é visto junto a segmentos que acessam a internet, blogs e sites: os mais citados são da velha mídia. Esse quadro se repete nas redes sociais, às quais 90% das pessoas que acessam a internet estão vinculadas. Importante destacar que essas redes não são produtoras de conteúdo, elas distribuem conteúdo e facilitam a interação. E o conteúdo distribuído vem em grande medida dessa velha mídia.

Do ponto de vista da força de trabalho, tenho defendido há anos que as novas tecnologias não implicam na desqualificação da mão de obra. Ao contrário, ela tem ter que ser mais qualificada para sobreviver no mercado de distribuição de conteúdo. Essa geração, embora embevecida com as redes, vai precisar de informação de qualidade. Eu não posso ser exemplo, já tenho meus 70 anos, mas sou seletivo no dinheiro que gasto para receber informação. Boa parte da mídia brasileira não me interessa porque abdicou de fazer jornalismo para fazer oposição política. Quero informação para compreender o mundo e me ajudar a tomar posições. Não quero generalizar minha posição, mas me parece que será preciso uma qualificação da força de trabalho para produzir informação de qualidade. Isso já está ficando claro em alguns países do mundo. Mas ninguém tem bola de cristal. Estamos claramente vivendo um momento de transição, que não é só no Brasil.

Como você vê iniciativas como o jornal Brasil de Fato, que chega aos dois anos em Minas Gerais?

V.L. – Absolutamente fundamentais. Eu como indivíduo estou numa tentativa de lançamento de um jornal popular aqui em Brasília, como forma de furar o bloqueio da mídia comercial. É muito importante não esperar que a grande mídia venha a ser aliada para projetos que beneficiem classes subalternas, nem aqui, nem em lugar nenhum. O Brasil é exceção na América Latina porque não conseguiu ter, nem na mídia impressa, nem eletrônica, uma alternativa à mídia comercial. Outros países têm essa construção, como Argentina, México, Bolívia. Acho fundamental, apoio como posso e cumprimento grupos que conseguem, com todas as dificuldades, produzir de alguma forma uma imprensa alternativa.

Entrevista concedida a Joana Tavares, publicada em Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br