*Por Helena Martins
A omissão histórica dos governos brasileiros em relação ao setor da comunicação ganhou um oponente de peso nos últimos anos: o Ministério Público Federal (MPF). Detentor da missão de defender a ordem pública, o regime democrático e os interesses sociais e individuais, o órgão confirmou seu interesse em atuar pela garantia de direitos na comunicação em seminário realizado nesta semana, em São Paulo.
Promovido pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), o encontro discutiu a regulação da mídia e o direito à comunicação, a partir das experiências brasileiras e de países tais como Argentina, Uruguai, Equador, Colômbia e Espanha.
No debate, que reuniu procuradores integrantes do Grupo de Trabalho sobre Comunicação do MPF, organizações da sociedade civil e estudiosos do tema, ficou claro o atraso do nosso País na adoção de políticas que garantam a pluralidade e a diversidade nos meios de comunicação.
Enquanto no Brasil se vivencia uma brutal desigualdade entre meios privados e públicos, o cerceamento da liberdade de expressão da maioria da população que não tem acesso aos veículos e a ausência de canais para a defesa do público, em países vizinhos há defensorias específicas, regras que limitam a concentração da propriedade e que garantem a presença de conteúdos regionais e independentes na mídia. Neles há também uma atuação decisiva do Estado para garantir que as normas saiam do papel, o que, infelizmente, também não encontra eco na realidade brasileira.
Há décadas analisando a comunicação brasileira, o jornalista Alberto Dines classificou o envolvimento do MPF na pauta como histórico, por anunciar o rompimento com a lógica do silêncio sobre a mídia e com a ausência de ações para efetivar os mecanismos de regulação existentes nas leis brasileiras.
Legislações estas que são ignoradas pelo órgão que têm a função garantir outorgas para a exploração do serviço de radiodifusão, fiscalizar o setor e, quando necessário, aplicar sanções, o Ministério das Comunicações (MiniCom).
O MiniCom, além de não tirar das suas gavetas as diversas propostas que tratam de um novo marco regulatório da comunicação, sequer tem utilizado as leis existentes no sentido de garantir um ambiente democrático e sanar o desrespeito que marca a atuação dos oligopólios midiáticos. Ao contrário, por diversas vezes a leitura jurídica feita pelo Ministério das Comunicações em relação às normas existentes é não apenas equivocada como legitimadora de práticas ilegais no setor.
Confirmação disso foi a resposta enviada por esse Ministério à denúncia feita pelo Intervozes das violações praticadas pelas emissoras Record e Band nos programas Cidade Alerta, apresentado por Marcelo Rezende, e Brasil Urgente, que tem José Luiz Datena à frente. Recentemente, eles exibiram, ao vivo, uma perseguição policial a dois suspeitos, chamados de “bandidos” e outros termos do gênero, praticaram incitação à violência e ainda legitimaram a ação das forças de segurança, que mataram os dois homens.
Apesar dos problemas flagrantes, o MiniCom ainda não sancionou as empresas. Na justificativa, o órgão disse que abriu um procedimento interno para estudar o caso, mas já alegou que tem o papel de fiscalizar apenas grades de programação e que uma sanção por incitação à prática de crime dependeria de uma decisão judicial.
Diante disso, uma atuação independente dos interesses que permeiam o vasto campo da comunicação é muito importante. Ela pode ser capaz de mostrar que os limites à concentração da propriedade são desrespeitados no País, que as concessões são públicas, mas seguem sendo tratadas como mercadoria, e que direitos não podem ser violados na mídia. Todas as ações podem ter mais impacto se capilarizadas nos estados, como propõe o projeto Ministério Público pelo Direito à Comunicação, site que reunirá mostras de boas práticas, ações judiciais e artigos sobre o tema.
Exemplos do que pode ser concretizado já existem. O Ministério Público Federal, em parceria com a sociedade civil, atuou contra transferências ilegais de concessões, como ocorreu quando a Abril anunciou a venda do canal que era ocupado pela MTV por R$ 290 milhões, sem sequer informar o Ministério das Comunicações sobre a intenção de fazer a transação.
No campo da regulação democrática do conteúdo, o MPF também tem sido importante para proteger direitos, como comprovam as várias ações movidas devido às violações de direitos humanos constatadas em programas, dos policialescos aos supostamente humorísticos. Entre essas ações, podemos citar a que resultou, em 2005, num direito de resposta na Rede TV! contra o programa Tardes Quentes, do apresentador João Kléber, que violava direitos da população LGBT; outra relativa à humilhação de um suspeito por uma repórter da Band Bahia; e, por fim, uma terceira que resultou na garantia de direito de resposta, também na Band, para reparar violações presentes em conteúdos exibidos pela emissora contra ateus. Sem dúvida, uma medida relevante para a defesa do Estado laico.
De forma geral, a criação do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (Findac), que reúne integrantes do MPF de São Paulo e representantes de organizações da sociedade civil, é uma mostra do potencial dessa parceria em favor da defesa do interesse coletivo. A partir dessa experiência, que neste ano foi vencedora do Prêmio República na categoria Constitucional, várias outras ações já foram promovidas, o que é fundamental para se conquistar medidas concretas e exemplares, bem como para ampliar e manter presente na agenda política do país o debate público sobre comunicação.
Uma mudança estrutural no setor é necessária para que, de fato, o direito à comunicação seja garantido para toda a população brasileira. Isso só vai ser efetivado com amplo debate público e muita vontade política de quem está à frente dos Poderes, especialmente do Executivo e do Legislativo. A falta de coragem para enfrentar os muitos interesses que permeiam o setor está clara e deve ser ainda mais abafada na atual conjuntura, marcada por retrocessos profundos em relação a direitos.
É claro que, como acontece em outras instituições, o conservadorismo também está presente e tem força no Judiciário. Medidas tomadas por esse Poder contra a liberdade de expressão e que criminalizam movimentos sociais não deixam esquecer que esse é um campo de disputa intensa, inclusive de classes. Mas, também por isso, é importante destacar o trabalho daqueles e daquelas que, atuantes nesse espaço complexo e muitas vezes contraditório, abrem-se à boa discussão e à participação popular para fazer valer o Estado Democrático de Direito, como vem fazendo o Ministério Público Federal.
*Helena Martins é jornalista, membro do Conselho Diretor do Intervozes e integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
**Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.