CPI de crimes cibernéticos aprova relatório que ataca liberdade na internet

O documento contém propostas de leis que vão de encontro ao Marco Civil da Internet e os direitos dos usuários

Por Jonas Valente e Bia Barbosa*

Foi aprovado na quarta-feira 4 o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos (Cpiciber, como ficou conhecida). O documento traz uma série de propostas e de projetos de lei (PLs) que passarão a tramitar na Câmara dos Deputados com prioridade, parte importante deles com ameças à liberdade na internet e criminalizando ainda mais quem navega na rede.

Um dos PLs prevê a possibilidade de bloqueio “a aplicação de internet hospedada no exterior ou que não possua representação no Brasil e que seja precipuamente dedicada à prática de crimes puníveis com pena mínima igual ou superior a dois anos de reclusão, excetuando-se os crimes contra a honra”.

Em outras palavras, um juiz poderá bloquear toda uma aplicação (aplicativos de celular, sites ou redes sociais) por considerar que ela é voltada majoritariamente para se praticar crimes, entre eles o de violação de direitos autorais, ou “pirataria”. Esse PL foi a grande polêmica da votação do relatório final.

De um lado, deputados atendendo ao lobby dos grandes estúdios de Hollywood e de emissoras de TV que buscam ampliar a criminalização do compartilhamento e o uso de produtos audiovisuais “não oficiais” – prática corrente na Internet. De outro, deputados e entidades de defesa dos usuários alertando que é importante punir crimes na rede mas sem comprometer, por meio do bloqueio, o conjunto das pessoas que fazem uso das aplicações.

O debate sobre o tema, que já era polêmico desde a apresentação da primeira versão do relatório final, esquentou ainda mais com a decisão do juiz Marcel Montalvão, da comarca de Lagarto (SE), de bloquear o Whatsapp por 72 horas, tomada na última segunda-feira 2.

A despeito das motivações importantes do magistrado (a resistência da empresa em cooperar com uma investigação), o episódio mostrou como uma decisão desproporcional pode prejudicar dezenas de milhões de brasileiros que usam um aplicativo para se comunicar, trabalhar e desenvolver todo tipo de atividade diariamente.

A solução encontrada pelos deputados? Também excluir da possibilidade de bloqueio autorizado “aplicações de mensagens instantâneas, de uso público geral”. O restante do texto, porém, foi mantido, com sérias ameaças à liberdade de expressão e ao acesso à informação dos internautas.

Além da amplitude da proposta – considerar qualquer crime cuja pena de reclusão seja de, no mínimo, dois anos, incluindo novas tipificações que possam surgir –, como definir se uma aplicação é “precipuamente dedicada à prática de crimes”?

Cada magistrado interpretará ao seu bel prazer e teremos um campo fértil para novas decisões como a do juiz Montalvão.

O relatório final do deputado Espiridião Amin (PP/SC), traz uma série de exemplos de países que autorizam a prática do bloqueio de sites e aplicações. Para o deputado Sandro Alex (PSD/PR), subrelator da CPI, responsável pela redação deste PL, a vedação total dos usuários a uma aplicação ou página da internet não pode ser considerada censura.

O que os parlamentares esqueceram de mencionar é que, nos países democráticos onde o bloqueio é permitido, ele é considerado uma prática excepcional, aplicada em casos extremos, para crimes muito bem definidos e situação explicitamente determinadas.

A relatoria para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos já chegou a expedir nota afirmando que o bloqueio de sites é uma medida extrema, que ameaça o respeito a este direito fundamental. Alguém tem dúvidas de para que um texto genérico como este será usado por aqui?

Criminalização em alta

Outro trecho do relatório final, que também trazia preocupações às organizações defensoras da liberdade na internet, recebeu, na votação final, uma emenda – proposta pelo deputado Nelson Marchezan Júnior (PSDB/RS) – que piorou ainda mais o texto.

A emenda alterou a Lei conhecida como Carolina Dieckmann (12.737/2012), norma que criminaliza quem “invade dispositivo informático alheio com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa”. Na versão proposta por Amin, o texto previa mudar a “invasão de dispositivo informático alheio” para “acesso indevido a sistema informatizado”.

Novamente, o caráter vago do termo já era preocupante, mas a prática só seria criminalizada se tivesse a finalidade de cometer alguma ilegalidade. Marchezan defendeu, e convenceu a maioria dos pares, de que o simples “acesso indevido” já deve ser considerado crime, passível de multa e até um ano de prisão.

O que é acesso indevido? Pergunte ao relator e aos sub-relatores da CPI de Cibercrimes. A falta de definição abre uma avenida para a criminalização de usuários, incluindo pesquisadores e quem trabalha com testes de segurança de rede.

O relatório final traz ainda projetos de lei como o que destina 10% de recursos do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel) para o aparelhamento da Polícia Federal com vistas ao combate a crimes cibernéticos.

As entidades da sociedade civil haviam sugerido a reserva de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, uma vez que o PL promove uma destinação equivocada e retira verba da necessária fiscalização dos serviços de telecomunicação no Brasil, notadamente caros, ineficientes e de baixa qualidade.

Outra proposição sugerida pela CPI prevê a retirada, mediante simples notificação ao site, de um conteúdo idêntico cuja remoção já tenha sido ordenada pela Justiça. O deputado Alessandro Molon (Rede/RJ) argumentou que a medida também atinge a liberdade de expressão, já que esta análise – se realmente trata-se de conteúdos idênticos – caberá aos provedores e não a um juiz. A redação final do PL proposto poderia ter ficado pior, não fosse a pressão da sociedade civil.

Em versões anteriores do relatório, o PL atribuía aos aplicativos a obrigação de fiscalizar suas publicações para retirar não apenas conteúdos idênticos mas “similares” àqueles que tivessem recebido ordem judiciar para saírem do ar. Ou seja, transformava redes sociais e outros aplicativos em máquinas de vigilância e feria ainda mais a liberdade de expressão.

Outra proposição da CPI alterada a partir de pressão das entidades foi o PL que previa a retirada, sem ordem judicial, de conteúdos que atentassem contra a honra de uma pessoa. A medida deveria ser cumprida em um prazo de até 48 horas.

A iniciativa, que visava proteger políticos de acusações nas redes sociais, era um claro ataque à liberdade de expressão e criava uma prática generalizada de derrubada de conteúdos pelas aplicações sem a avaliação criteriosa da Justiça e sem permitir o direito de defesa. Nos debates e em razão das críticas das entidades, o projeto foi retirado do relatório.

A despeito dos esforços e mobilizações de diversas organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior – entre elas o Intervozes, Ibidem, Coding Rights, AccessNow, EFF e o Comitê Gestor da Internet no Brasil – o relatório da CPICiber plantou na Câmara sementes de ameaças a direitos fundamentais dos usuários, que agora passam a tramitar com prioridade.

Tais movimentações se inserem em um processo mais amplo de ataque ao Marco Civil da Internet e de restrições às liberdades na rede, juntamente com tentativas de reforma da Lei Geral de Telecomunicações e da imposição de franquias nos serviços de banda larga fixa. A batalha continuará e vai exigir mais mobilização dos defensores da Internet livre no país.

* Jonas Valente e Bia Barbosa são jornalistas e integram o Conselho Diretor do Intervozes.

Por que a franquia de dados na internet é absurda e o que ela causará

O argumento falacioso de que é inviável oferecer acesso ilimitado à rede mudará a forma do brasileiro navegar e, de novo, prejudicará os mais pobres

Por Pedro Ekman*

Recentemente, a Anatel, agência que regula as telecomunicações no Brasil, anunciou que autorizaria a limitação do consumo de dados de internet pelas operadoras. Depois, voltou atrás por “tempo indeterminado”, devido à forte rejeição popular à medida. A crítica foi tamanha que já ensejou o pedido de uma CPI da Anatel no Congresso e a realização de uma audiência pública sobre o tema no Senado, convocada para esta terça-feira 3.

Motivos para a grita dos consumidores não faltam. Até hoje, o negócio funciona assim: na internet móvel (celular), contratamos uma determinada velocidade e volume de dados para se utilizar por mês, seja no plano pós-pago, seja no pré-pago.

Quando o volume de dados previsto na franquia se esgota, a velocidade contratada deixa de valer e praticamente inviabiliza a navegação. Na internet fixa instalada nas casas, escritórios e estabelecimentos que oferecem acesso via wi-fi, até hoje a diferença contratual é apenas em função da velocidade, sem um limite máximo de consumo de volume de dados por mês.

Citando uma comparação que tem sido usada pelas operadoras: se a internet fosse água, a velocidade seria equivalente ao tamanho da boca do cano instalado na sua casa e o volume de dados seria equivalente ao volume de água consumido. Se você quer uma velocidade maior, contrata um cano mais largo. E, independente da largura do cano, não paga pela quantidade de água que consome; ela é ilimitada. Parece um erro, não?

Acontece que há uma diferença básica entre água e os dados da internet. Enquanto o primeiro é um bem finito e pode acabar – fazendo sentido não permitir seu consumo ilimitado ou então a cobrança diferenciada para quem consome mais –, no caso dos dados de internet eles são infinitos e o funcionamento das aplicações varia apenas em função da velocidade de transmissão desses dados.

Limitar o consumo de dados na internet fixa terá enormes impactos para os usuários da rede. O primeiro deles será justamente para aqueles que, hoje, apenas possuem acesso à internet via aparelhos celulares, e que são a maioria da população.

Apenas 50% dos lares brasileiros estão conectados por planos de internet fixa, e nas classes D e E esse índice não passa de 14%. A esmagadora maioria da população se conecta, portanto, apenas através do celular. Boa parte desse grupo não tem mais de cinco reais por mês para gastar em um plano pré-pago. Essa condição faz com que seus planos tenham volumes de dados ofertados muito baixos e, em poucos dias ou horas, sua navegabilidade fique comprometida.

Para continuar navegando no restante do mês, essa enorme parcela da população utiliza o acesso via wi-fi nos mais diversos estabelecimentos Brasil afora. Se o volume de consumo de dados também for limitado na internet fixa, serão raros os locais que vão oferecer acesso gratuito via wi-fi, e a imensa maioria da população ficará simplesmente sem qualquer possibilidade de conexão.

O outro grande impacto será na forma como se navega na rede fixa e se utilizam as aplicações disponíveis na rede. A mudança será brutal. Não se poderá mais assistir a quantos filmes quiser, assistir aulas em cursos de educação à distância, jogar por muito tempo ou fazer longas ligações pelos aplicativos. Quem fizer isso, terá seu pacote de dados esgotado rapidamente. E é justamente isso que as operadoras de telecomunicação querem barrar.

Interesses comerciais e não limitações técnicas

Alegando motivos técnicos para impor a franquia limitada de dados na internet fixa, na realidade, o oligopólio nas telecomunicações busca interesses puramente comerciais. Para compreendê-los, é preciso analisar como a convergência tecnológica vem diminuindo o vasto mercado de telefonia fixa e móvel, internet fixa e móvel e TV por assinatura – serviços explorados hoje por poucas empresas transnacionais.

A possibilidade de se fazer ligações por Skype ou pelo Whatsapp, por exemplo, reduziu fortemente o mercado da telefonia móvel e fixa. Ao mesmo tempo, Netflix, HBO On Demand, YouTube Red e outros canais de conteúdo com preços mais baratos do que os caros pacotes de TV por assinatura estão aniquilando o faturamento das empresas que, até pouco tempo, tinham a exclusividade da oferta deste tipo de conteúdo.

As operadoras Vivo, Claro (NET), Tim e Oi tentaram de toda forma cobrar essa perda de mercado das empresas de conteúdo e das aplicações de internet. Queriam poder reduzir a velocidade de aplicações como o Netflix, YouTube, Whatsapp ou Skype se elas não pagassem pelo direito de funcionar adequadamente na rede.

Mas o Marco Civil da Internet consagrou o princípio da neutralidade de rede no Brasil, obrigando as operadoras de infraestrutura a serem neutras em relação ao conteúdo que trafega em seus cabos. Não conseguindo extorquir as empresas de conteúdo, partem agora para a tentativa de extorquir o consumidor.

Mas o argumento de que é inviável oferecer acesso ilimitado à internet é absolutamente falacioso do ponto de vista técnico. A rede fixa está desenhada para entregar determinada velocidade em determinado ponto. O que importa é a largura do cano e não quantos dados irá passar naquele ponto durante o mês.

Se o volume de dados utilizados na rede como um todo está crescendo – e isso é positivo –, a resposta deve ser novos investimentos, que devem ser feitos para acompanhar esse crescimento.

Isso acontece desde o início da história da internet; o volume trafegado sempre irá crescer. O problema é que as operadoras, que seguem tendo altíssimos lucros, não querem se responsabilizar pelos custos da expansão da rede que elas próprias exploram.

Querem que alguém pague pelo seu desenvolvimento – no caso, o lado mais fraco da corrente, o usuário brasileiro, que já é obrigado a arcar com um dos mais altos custos de acesso à rede do mundo.

Em seu discurso para justificar a mudança nos contratos, as empresas tentam criar a ilusão de que, com a existência de planos limitados, seria possível oferecer pacotes de conexão mais baratos para quem usa pouco a rede e planos mais caros por quem joga muito on-line ou assiste a muitos filmes.

Mas isso não passa de conversa de vendedor, que quer abrir a porta para um modelo onde todos vão acabar pagando mais e onde as infinitas possibilidades da internet acabarão exclusivas para os usuários mais abastados.

Além de injusta, limitação é ilegal

Assim como a quebra da neutralidade de rede, a limitação da franquia na internet é ilegal no Brasil. O Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, proíbe que um serviço essencial seja interrompido (ou degradado a ponto de ficar inviável) por qualquer outro motivo que não o da falta do pagamento.

Isso vale para o fornecimento de água, eletricidade e também para o acesso à internet, que não podem ser interrompidos se o pagamento estiver em dia. Foi o mesmo Marco Civil da Internet que definiu, na letra da lei, a internet como um serviço essencial para o exercício da cidadania. Quem insiste em não reconhecer sua essencialidade são o Ministério das Comunicações, a Anatel e as operadoras de telecomunicações, numa atitude de franco desrespeito legal.

A realidade é que a ameaça de limitação da internet brasileira é mais um episódio de um complexo cenário de disputas entre os interesses das operadoras e os direitos dos usuários da rede no País.

Um quadro que vem sendo agravado por uma tentativa de acordo criminoso entre as empresas e o poder público, que pode resultar na total privatização do que ainda resta de serviço público neste campo. Algo que vai na contramão do interesse público e que atropela a lei vigente, nos tornando ainda mais vulneráveis à sanha das empresas campeãs em reclamações.

Não apenas a forma como você usa a internet está em jogo, portanto, mas todo e qualquer direito dos cidadãos acerca dos serviços de telecomunicações. Silenciar neste momento pode nos levar a um caminho sem volta.

* Pedro Ekman é integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

O olhar da imprensa internacional sobre o impeachment no Brasil

Enquanto a mídia tradicional brasileira mantém discurso de legitimação do impeachment, veículos internacionais dão visibilidade ao risco à democracia.

Por Camila Nóbrega*

Diversidade de narrativas e análises sobre a crise política não faltam no Brasil, mas ela segue engolida pelo monopólio dos veículos tradicionais. Em tom bastante conservador e politicamente localizada à direita, a narrativa que pauta o noticiário do país faz desaparecer boa parte das nuances e oculta personagens e fatos importantes da crise. Neste contexto, a cobertura internacional ganha holofotes e acende o alerta sobre o perigo da concentração da chamada grande mídia brasileira. Protegidos pelo distanciamento e pautados por analistas políticos, pela mídia alternativa nacional e por movimentos sociais, alguns veículos estrangeiros têm chamado atenção por terem mudado seu próprio discurso. Se inicialmente a imprensa internacional acompanhava a ode aos protestos pró-impeachment criada pelos grandes conglomerados da imprensa nacional, houve uma meia-volta significativa. A mudança, que marcou a cobertura da votação na Câmara no dia 17 de abril, tem repercutido.

“O deputado votou ‘sim’ pela abertura do processo de impeachment e disse que fez a escolha pelo futuro do Brasil e por sua esposa e filhos”, traduzia um repórter da BBC Internacional, em flash com imagens diretas da Câmara dos Deputados no domingo 17 de abril, seguido de uma análise sobre a ausência de argumentos relacionados às acusações feitas à presidenta nos discursos dos parlamentares.

“O presidente da Câmara brasileira, Eduardo Cunha, que conduz a votação no dia de hoje, é acusado de corrupção e alvo da Lava Jato”, explicava o canal Euronews. “Milhares de pessoas estão nas ruas, divididas; enquanto há quem comemore, são muitos os brasileiros e brasileiras que denunciam um golpe em curso”, esclarecia a jornalista da Al Jazeera ao vivo, apenas alguns minutos antes da confirmação da abertura do processo.

Durante as cerca de oito horas de votação, o Brasil esteve nas notícias mais importantes (“breaking news”) de centenas de canais de televisão, jornais, rádios e sites de todo o mundo.

E, durante todo este tempo, jornalistas enfrentavam em diferentes sotaques o desafio de explicar o emaranhado de relações de poder e alianças no Congresso brasileiro e a construção de um discurso conservador e autoritário, no caminho que levou à abertura de processo para julgamento de um possível impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Entre os veículos de comunicação que adotaram uma linha mais crítica e apostaram na apuração jornalística própria, especialmente com correspondentes enviados ao Brasil ou até mesmo a partir de escritórios instalados no País, os obstáculos não eram menores.

Afinal, imagine o desafio de explicar que vários dos parlamentares que tinham direito ao voto naquele momento figuravam na lista da operação Lava Jato sob graves acusações de corrupção, incluindo o presidente da Casa.

Se a tarefa de esclarecer a situação é árdua entre brasileiros, imagine o fardo de quem precisa fazer isso para pessoas que não estão sequer familiarizadas com o contexto político do País, apresentando a biografia extensa desses parlamentares que ali vociferavam contra a “corrupção”.

Some a isso a necessidade de traduzir, além de centenas de dedicatórias a filhos e esposas, declarações como a do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que homenageou Brilhante Ustra, primeiro militar reconhecido pela Justiça Brasileira como torturador.

Em meio às dificuldades – e também às facilidades, é bom lembrar – impostas pelo distanciamento, a cobertura internacional de um dos principais momentos na história recente brasileira marcou grandes diferenças em relação ao que figurou na mídia tradicional nacional. E, acima de tudo, marcou uma virada.

Onde, apenas um mês atrás, veículos descreviam os protestos nas ruas com um certo glamour de luta contra a corrupção, os espaços de questionamento cresceram. Veio à tona o fato de que os motivos para a abertura de um processo de impeachment são, no melhor dos casos, duvidosos, assim como a credibilidade e idoneidade dos deputados que estavam à frente do processo.

A narrativa na imprensa internacional

Enquanto a imprensa brasileira seguiu retratando a votação do impeachment como um jogo de futebol, ficou a cargo da mídia internacional o chamado a reflexões e à garantia de princípios jornalísticos de apuração.

Ganharam espaço detalhamentos sobre o processo da votação em si, o que aconteceria daqui para frente e o fato de que a crise política não se encerraria na votação, independentemente do resultado.

Foram órgãos de mídia internacionais também os responsáveis por pautarem e explicarem os motivos que levam uma grande parcela da população brasileira a denunciar um golpe em curso.

Assim seguiu a semana com uma cobertura mais equilibrada vinda dos meios de comunicação estrangeiros. Entre os impressos, o jornal britânico The Guardian, após o resultado da votação na Câmara, optou por reportar a situação dando espaço à fala do líder do governo na Câmara, José Guimarães, que pediu aos brasileiros e brasileiras contrários ao golpe que permaneçam mobilizados.

O jornal é um dos poucos a dar nome e sobrenome ao processo. Afirmou abertamente que há uma ansiedade da oposição em conseguir o impeachment de Dilma Rousseff a fim de instalar no Brasil o primeiro governo de centro-direita em 13 anos.

O periódico é um dos que também tem feito questão de ressaltar as acusações nas costas do presidente da Câmara.

Aliás, se a ficha de Cunha está longe de ganhar destaque no Brasil, ela é considerada elemento central por muitos veículos da mídia internacional. A versão brasileira do jornal El País também ressaltou na última semana o preço que a oposição aceitou pagar para que o impeachment passasse, em referência à aliança com Cunha e à ocultação de seus milhões não declarados no discurso que passou a apontar apenas a presidenta e o ex-presidente Lula como focos dos escândalos.

Os mesmos questionamentos também ganham espaço nos três principais jornais norte-americanos, de linha liberal: The New York TimesThe Wall Street Journal e The Washington Post, que têm destacado as suspeitas de corrupção contra vários parlamentares à frente do impeachment.

Já a revista alemã Der Spiegel, apesar de manter em seu site um vídeo da votação mostrando apenas as manifestações verde-amarelas, descreveu o processo de votação como “a insurreição dos hipócritas”.

Na América Latina, a cobertura dos jornais hermanos também têm tido um papel importante. O colombiano El Espectador ressaltou a falta de argumentos dos deputados durante a votação, apontando que falas com cunho religioso e até mesmo contra “o comunismo” foram feitas de forma absolutamente descontextualizada.

O La Nación, da Argentina, afirmou que a crise política está longe de acabar e apontou que o País tem uma presidência “na porta da saída de emergência, um Congresso que festeja com euforia a crise política que divide o País e um novo eventual mandatário também suspeito de corrupção”.

Agências independentes de notícias como a PressenzaInternational Press Agency, que tem foco na América Latina – ficam a cargo de análises mais aprofundadas e questionamentos que posicionam a crise política no cenário e de interesses econômicos internacionais.

A crítica internacional à mídia brasileira

A emissora do Catar Al Jazeera trouxe como alvo de questionamentos a própria mídia brasileira, fazendo crescer a discussão sobre o cenário de concentração dos meios de comunicação no Brasil e tocando no calcanhar de Aquiles dos principais veículos do País.

A Al Jazeera foi uma das primeiras a utilizar com mais clareza a palavra “golpe”, explicitando o posicionamento crítico de grande parcela da população em relação à tentativa da oposição de centralizar acusações e investigações sobre o Partido dos Trabalhadores e sobre a presidenta, passando por cima de processos e instituições democráticas e protegendo um número considerável de parlamentares envolvidos nos escândalos da Lava Jato.

A publicação online norte-americana The Intercept também têm colocado a mídia nacional em xeque, principalmente por meio das reportagens do jornalista Glenn Greenwald, que mora no Brasil e se tornou conhecido após publicar reportagens sobre os documentos revelados por Edward Snowden.

No último mês, Greenwald publicou textos no The Intercept sobre a concentração da mídia brasileira e o papel dos veículos do País na construção do discurso conservador contra a corrupção e a favor da retirada de Dilma Rousseff.

O The Intercept também apontou, na última semana, a possível investida do vice-presidente Michel Temer em angariar apoios de setores nos Estados Unidos, por meio de uma viagem de um senador Aloysio Ferreira Nunces (PSDB-SP) ao País.

Por esses exemplos e outros mais, a cobertura internacional tem desempenhado um papel importante nesse momento da história brasileira e tem ganhado status de mais equilibrada, contundente e aprofundada.

A situação, porém, está longe de ser ideal. Os casos relatados acima ganharam repercussão aqui no Brasil exatamente por conterem informações ocultadas pela mídia brasileira. No entanto, a maior parte do que é divulgado sobre a crise política no País ainda se limita a reproduzir fragmentos de agências internacionais e a superficialidade da cobertura dos canais nacionais.

A agência Press Trust of India, principal daquele país, limitou-se, por exemplo, a falar da votação. A leitura descontextualizada não dá sequer a dimensão da divisão de opiniões.

A cobertura restrita se repete também nas agências de notícia russas, que só agora começaram a falar do tema, após semanas de silêncio. A Russian Information Agency só deu espaço ao caso no Brasil após a votação do impeachment na Câmara.

Logo após, o jornal Russia Today publicou uma matéria intitulada “As Olimpíadas serão um sucesso, independentemente do impeachment”, tentando apaziguar os ânimos para os jogos.

Alguns russos têm interpretado o silêncio da imprensa local sobre o que se passa no Brasil como uma tentativa de não trazer ao debate público um caso de impeachment em um dos BRICS – e assim não inspirar críticos de Putin.

Fugindo das armadilhas

Nessa análise sobre cobertura internacional, é importante não cair em algumas armadilhas. Os elogios à cobertura internacional devem ser ponderados, para não resultar em mais retrocessos. Uma coisa é sabida por todo correspondente internacional: é sempre mais fácil falar dos problemas alheios.

É natural que a mídia local tenha mais dificuldades de falar de problemas do próprio território. Com menos relações diretas com poderes locais, às mídias estrangeiras sobra mais liberdade.

Isso não significa, entretanto, que essas mesmas mídias poderão chegar a fazer associações mais amplas, questionando as relações de seus países de origem com escândalos em outras nações, como o que ocorre no Brasil, por exemplo.

Segundo ponto: não faltam exemplos de como a globalização no campo da comunicação também traz prejuízos às narrativas. Nesse olhar geral de contexto mundial faltam, entre outros aspectos, espaço para o esclarecimento sobre o que aconteceu com o Brasil nas décadas que sucederam a ditadura militar e que mantiveram no poder parlamentares que lá estão desde então, assim como as características de coronelismo, que permanecem.

A falta dessas perspectivas a partir de uma mídia brasileira não será suprida por veículos e jornalistas internacionais. Não nos iludamos.

Por fim, um dos maiores erros é olhar para a cobertura internacional como uma idealização em termos de técnica jornalística. As mídias independentes que têm surgido no Brasil são uma boa imagem disso. Se aqui não há espaço para uma boa cobertura, isso nada tem a ver com um padrão de jornalismo. Colocar as coisas nesses termos seria aceitar um enquadramento realizado de fora para dentro, fazendo com que nosso olhar acabe se rendendo a uma análise eurocêntrica.

O que falta no Brasil nesse sentido é uma mudança política, que vem sendo pautada há muito tempo pelos movimentos pela democratização da comunicação. O desafio é a alteração do cenário atual, que viola o direito à comunicação e aos diferentes lugares de fala, absolutamente necessários em um país como o nosso, onde a mídia atribui aos discursos pesos políticos absolutamente desiguais e desproporcionais à composição da população.

* Camila Nóbrega é jornalista e integrante do Intervozes.

Governo e PT pagam a conta por não investir em agência de notícias

Ausência de agência que informe a imprensa estrangeira sobre o Brasil deixa a narrativa nas mãos de grupos privados

A crise política que o Brasil vive virou manchete na imprensa internacional. Mas como essas informações são produzidas e qual relação existe entre esse processo e a arquitetura do sistema de comunicação brasileiro? Para compreender essas questões, o Intervozes convidou o jornalista e pesquisador Pedro Aguiar para abordar a situação das agências de notícias em nosso país e em outras nações.

Por Pedro Aguiar*

Os correspondentes que cobrem a crise política brasileira agora já entendem um pouco melhor os meandros do nosso sistema político. Quando começaram a mandar matéria, no segundo semestre do ano passado, sobre a crise em curso, a maioria estava bastante perdida.

Mesmo alguns que já estão baseados no País há anos tiveram certa dificuldade para explicar como é que uma presidenta sabidamente ilesa de qualquer acusação de corrupção estava sofrendo impeachment por uma tecnicalidade contábil e não por acusação objetivamente relacionada ao escândalo da investigação Lava Jato.

Repórteres estrangeiros expatriados no Brasil vivem o que chamo de “Síndrome de Magu”, em referência ao antológico personagem criado por Fritz Utzeri (1944-2013).

Com seu humor sarcástico, o premiado jornalista inventou, em suas crônicas, o infeliz Harald Magnussen, o “Magu”, correspondente do fictício jornal sueco Montbläat, que sofria de descrédito junto ao editor para quem mandava matérias do Brasil. Da longínqua e perfeitinha Suécia, o chefe não conseguia acreditar nas rocambolescas, porém reais, tramas da política brasileira.

Certa vez, o editor deu a Magu o prazo de 24 horas para desmentir a existência do PMDB. “Como é possível que exista um partido que seja, ao mesmo tempo, da oposição e do governo? Isso é simplesmente impossível! Ou você para de beber ou vai para o olho da rua!”, vociferava o chefe sueco contra o pobre correspondente, numa crônica de julho de 2005.

É, no entanto, exatamente essa a função dos correspondentes. Eles precisam não só explicar, mas frequentemente convencer os seus superiores e colegas nos países de origem de que estamos, sim, à beira de um impeachment sem crime, reféns de umparlamento cujo presidente da câmara baixa é réu por corrupção, mas campeão da moralidade, em que setores da social-democracia pedem a volta do autoritarismo e em que a esquerda corteja o apoio do partido da ditadura militar para tentar se sustentar no poder.

E essa tarefa seria bem menos árdua se o País contasse com um aparato institucional de distribuição de notícias sobre nós mesmos e que fossem escritas pelos nossos próprios jornalistas, nas línguas estrangeiras. Isso seria feito com uma agência de notícias internacional. Mas não.

O Brasil fez uma opção histórica por não ter uma agência de notícias voltada para fora, publicando em inglês e em espanhol, dada a nossa inserção na América Latina, e enviando– não só publicando, mas fazendo a logística da informação da fonte até o cliente, até que chegue nas mãos dos jornalistas estrangeiros – esse tipo de conteúdo.

Fizeram essa opção tanto o governo, que em 13 anos de PT abdicou de construir uma política nacional de comunicação, confiando na docilidade da mídia privada nacional, quanto os empresários dessa própria mídia, que nunca articularam uma agência cooperativa formada por joint-venture entre os principais jornais brasileiros, como são aAssociated Press norte-americana, a Ansa italiana, a DPA alemã e a Kyodo japonesa, entre muitas outras.

Todas essas agências são resultado da associação entre os jornais, revistas e emissoras de seus respectivos países, que deixam de lado a concorrência setorial para montar um serviço que beneficie a todos, compartilhando custos de cobertura e de distribuição externa de seu material original (sem abrir, é claro, mão do material exclusivo nem dos furos).

Em vez disso, temos basicamente dois tipos de “agências” brasileiras: ou a dos conglomerados (Agência Estado, Folhapress, Agência O Globo), que são balcões de revenda de fotos e textos já produzidos pelas equipes dos jornais de cada grupo; ou nossa única agência de notícias estatal federal**, a Agência Brasil, a qual produz uma quantidade ínfima de quatro ou cinco matérias em inglês e espanhol por dia (ainda que o trabalho, conduzido pela jornalista Olga Bardawil, seja admirável, respeitável e melhor que nada, já que era rigorosamente nada até 2012).

Nos dois casos, essas agências produzem notícias brasileiras para brasileiros. Para os gringos, de fato, ninguém escreve nada.

Mas a “introspecção” da Agência Brasil não é a única causa, e sim um ponto entre uma série de escolhas políticas feitas pelos governos Lula e Dilma. Não aderir à Telesur, criada em 2005 com participação de Venezuela, Argentina, Uruguai e Equador, foi uma escolha. Acabar com o Canal Integración, que produzia conteúdo audiovisual em espanhol para a América Latina, em 2010, foi outra escolha.

Não redistribuir a verba publicitária federal, atribuída pela Secretaria de Comunicação Social (Secom), levando ao sufocamento financeiro de mídias independentes, inclusive algumas históricas que também tinham edições internacionais em outros idiomas, como aCadernos do Terceiro Mundo, foi mais uma escolha.

Tudo isso contribuiu para a manutenção do isolamento midiático do País, a despeito de esporádicas capas da The Economist. Esse tipo de ausência faz o Estado brasileiro pagar caro por não ter quase ninguém que entenda de Brasil publicando na imprensa internacional.

No fim de março, o jornalista Glenn Greenwald notou, em artigo, que grande parte da cobertura estrangeira sobre o Brasil é feita citando a mídia corporativa privada brasileira, que tem partido tomado na crise e está longe de tentar isenção.

No começo de abril, na TV Brasil, o professor Laurindo Leal Filho, especialista em comunicação pública, elogiou o trabalho dos correspondentes baseados por aqui, mas notou a dificuldade em manter a soberania informativa sobre as informações a respeito do País e que saem deste.

Brasil está isolado no cenário mundial da produção de notícias

Em outros países de mesmo grau de desenvolvimento que o Brasil, como os que compõem os BRICS, há alguma agência de notícias que distribui, de forma permanente, notícias em inglês. Os modelos e arranjos institucionais são variados, mas os exemplos servem para ilustrar as possibilidades de organização das agências.

A China sustenta a gigantesca Xinhua, que presta serviço noticioso em dez idiomas, emprega 8 mil jornalistas e tem 138 escritórios espalhados pelo mundo.

A Rússia mantém duas agências distintas – a TASS, desde os tempos soviéticos, e a recém-criada Sputnik, que produz conteúdo para rádio em cinco idiomas e web em 31 idiomas, além de enviar 790 matérias por dia, em média. A PTI, da Índia, é outro colosso formado pela cooperação entre jornais concorrentes indianos, com 400 jornalistas que produzem 2 mil matérias por dia.

Para ficarmos só em nossa região, a Argentina mantém a Télam (Telenoticiosa Americana) desde a primeira época de Perón. Embora ameaçada pelos cortes orçamentários do governo Mauricio Macri, segue como um canal de referência nacional e internacional para bom jornalismo – e para cobrir as notícias argentinas.

Os governos da guinada à esquerda latino-americana entenderam o potencial multiplicador das agências e, por isso, investiram no setor.

A Venezuela de Chávez remodelou sua antiga Venpress como a AVN (Agencia Venezolana de Noticias), enquanto o Equador de Rafael Correa estabeleceu a Andes (Agencia de Notícias del Ecuador y Sudamérica), a Bolívia de Evo Morales criou a ABI (Agencia Boliviana de Información) e o Paraguai de Fernando Lugo fundou a IP-Paraguay.

Os países sul-americanos que não têm agências públicas de notícias são Colômbia e Chile, justamente os dois geopoliticamente mais próximos dos Estados Unidos.

Nenhuma dessas empresas é só “um site”, como ocorre com a nossa Agência Brasil. Ao contrário desta, as demais contam com estrutura de transmissão de informação até os destinatários finais, seja por linha dedicada, intranet ou conexão via satélite.

Com exceção da ABI e da IP-P, elas operam em mais de um idioma (em geral, pelo menos o nativo e o inglês), fazendo da tradução parte central de sua rotina produtiva. E, com isso, conseguem tornar-se referência mundial na cobertura do noticiário sobre seus respectivos países, especialmente garantindo que os jornalistas estrangeiros tenham acesso aos pormenores do dia a dia.

Mesmo que só publiquem uma pequena fração do conteúdo, eles pelo menos recebem e leem conteúdos mais completos. Assim, na hora de cobrir uma crise, não partem do zero, mas de uma base informativa construída paulatinamente.

Não podemos esperar que os jornalistas lá fora aprendam português para nos cobrir com propriedade, factualidade, apuração própria e checagem minuciosa. Não podemos contar com a boa vontade deles em vir buscar informações verídicas e de fonte confiável sobre nossa realidade, nosso contexto e nossos processos históricos.

Não podemos confiar na imparcialidade já há muito abandonada da nossa imprensa privada para ser referência junto aos repórteres e editores do exterior.

O cenário só será alterado quando o Estado brasileiro contar com uma agência de notícias voltada para fora, com serviço permanente em língua estrangeira e volume significativo deoutput, com entrega garantida por canais de distribuição e logística de transmissão própria e soberana.

Enquanto isso não ocorre, continuamos largamente ignorados e vistos como exóticos pela cobertura estrangeira – que, na falta do fluxo contínuo de notícias em língua estrangeira, só fala do País na excepcionalidade de crises ou do pitoresco –, deixando que os outros contem para o mundo os acontecimentos que definem a nossa própria história.

*Pedro Aguiar é jornalista e doutorando em Comunicação Social na UERJ. 

** O Intervozes trabalha com o conceito de comunicação pública ao referir-se à Agência Brasil, mas manteve, no texto, o termo apresentado pelo autor que, como convidado do nosso blog, manifestou livremente sua opinião sobre os assuntos abordados.

O papel da comunicação pública na crise política brasileira

Para funcionar como contraponto à cobertura da mídia comercial, EBC tem levantado a bandeira anti-impeachment e aberto mão do equilíbrio jornalístico

Por Mariana Martins*

A repercussão da linha editorial da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), assumida desde o início da crise política e aprofundada na última semana, tem gerado satisfação por parte da direção da empresa, da diretoria executiva ao Palácio do Planalto.

Os recorrentes programas com apoiadores do governo como entrevistados vêm sendo compartilhados pelos partidários da bandeira “contra o golpe”. A EBC está sendo vista como o “contraponto” à Globo neste processo de noticiamento espetacularizado – que eu não ouso chamar jornalismo. Nas redes sociais, tem sido citada como refúgio para os que são contra o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e buscam alguma diversidade na cobertura televisiva.

É fato que a emissora tem acertado ao buscar aprofundar a análise sobre os fatos, por meio de discussões, em estúdio, sobre as falas dos parlamentares, os protestos nas ruas, a crise e suas diversas repercussões. No entanto, a TV ainda está distante de garantir equilíbrio e diversidade de opiniões e informações, elementos fundamentais da comunicação pública.

Um exemplo ocorreu no último domingo (17), durante a fala do relator do processo de impeachment, na abertura dos trabalhos na Câmara dos Deputados. A TV Brasil cortou as transmissões para os comentaristas que defendem abertamente os argumentos do governofalarem. Até as cores escolhidas por comentaristas e apresentadores para vestir no domingo foram consideradas. Na bancada, o jornalista Paulo Moreira Leite, em sua defesa do governo, abriu pouco espaço para o diálogo, mesmo que crítico, com outras posições.

No dia 31 de março, dia nacional de protestos contra o impeachment, a EBC fez plantão ao vivo do seu jornal, que durou aproximadamente o dobro do tempo do plantão feito no dia dos protestos favoráveis ao afastamento de Dilma. As manifestações retratadas, na imensa maioria das vezes, foram acompanhadas de juízo de valor positivo. Por outro lado, quando mostrava o lado pró-impeachment, a emissora limitou-se a exibir imagens. As capas da Agência Brasil também têm sido recorrentemente mais favoráveis ao governo.

Ligados direta ou indiretamente ao governo ou à defesa dele, os principais comentaristas e entrevistados da TV Brasil seguem a mesma linha. Quando o lado contrário é ouvido –como ocorreu quando o jurista Hélio Bicudo participou do programa Espaço Público – o apresentador Paulo Moreira Leite assumiu uma postura de defensor do governo, perdendo a condição original de entrevistador e assumindo uma posição de opositor do convidado.

Comunicação do Palácio do Planalto

Os exemplos, infelizmente, não se resumem a esses. O desequilíbrio na cobertura dos veículos da EBC ocorre neste momento e seguirá ocorrendo se o papel da comunicação pública e de sua autonomia frente ao governo não for resgatado. O grande perigo que a EBC corre é cair no conto do público carente.

É inegável que a mídia comercial brasileira tem lado, descaradamente. É inegável que esta mesma mídia está atrelada ao que há de mais conservador na política nacional e que os grupos privados não apenas reportam mas orquestram o que se configura como um golpe na nossa recente democracia.Também é inegável que o país está órfão de uma comunicação minimante equilibrada. Temos uma carência de jornalismo diverso e equilibrado. Mas este não pode ser confundido com um jornalismo partidário, cuja tarefa já vem sendo cumprida por um conjunto de veículos que não só podem como devem assumir seus lados. Esse não é, no entanto, o papel da comunicação pública.

A comunicação pública não pode se contentar em ganhar audiência baseada no partidarismo ou no jornalismo tendencioso e unilateral, tentando ser o outro lado da mídia privada e conquistar um público carente a partir de uma visão unilateral. O desafio é conquistar sim o público com várias visões, pretensiosamente com todas as visões. A cartilha unilateral da mídia privada não merece ser sequer contraposta, porque, simplesmente, não é jornalismo, não tem como foco a cidadania, a democracia e outros valores tão caros à construção de um Estado Democrático de Direito.

A segmentação pelo político-partidarismo de visão unilateral tem vida curta, muito curta. A mão que afaga hoje poderá ser a mão que apedrejará amanhã, porque dificilmente o Brasil prescindirá de uma alternância de poder. Pior, estamos, nesse processo, mais uma vez ameaçados pela ascensão de um governo não eleito, autoritário.

O perigo de deixar a comunicação pública ao sabor do governo nunca foi tão grave. Logo, se a opção do atual governo, mais precisamente do ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Edinho Silva, e dos seus indicados para direção da EBC for por umacomunicação ditada pelo Palácio do Planalto, não fará sentido a existência e a manutenção de uma empresa pública de comunicação. Os veículos governamentais – felizmente – existem para cumprir essa função.

Se, ao contrário de se contentar com a audiência carente, que vê refletir na crise política do Brasil a crise do jornalismo nacional, a comunicação pública aprofundar os princípios básicos do jornalismo – como é a sua missão –, obterá não apenas um resultado melhor, mas mais duradouro. A audiência na comunicação pública é, logicamente, desejável. Não há razão de existir sem ela. Mas o diferencial da comunicação que se pretende pública é sobreviver ao seguinte dilema: não viver sem audiência, sem que tenha que viver para ela.

A comunicação pública precisa buscar a sua essência e encontrará toda audiência que busca conteúdo qualitativo, seja no jornalismo, seja na programação de uma forma geral. Ao contrário do que a direção da EBC defende em seu plano de trabalho – no melhor modelo endomarketing de empresas que elaboram planejamentos estratégicos homogêneos –, que é buscar ser “referência”, é preciso voltar à essência.

A EBC deve buscar, como todo veículo de comunicação, ser crível. Referência é uma palavra extremamente vaga. Ser referência de quê, para quem? Ser referência não pode ser o projeto em si. Ser referência prescinde um projeto, e o projeto a ser perseguido pela comunicação pública é baseado na credibilidade, e não na referência. Só a credibilidade fará a comunicação pública conquistar uma audiência duradoura e fiel.

Por fim, credibilidade não se constrói correndo atrás de cliques e compartilhamentos nas redes sociais. A credibilidade se constrói com honestidade, transparência, diversidade, pluralidade, equilíbrio, inovação, foco em cidadãs e cidadãos, trazendo para o conteúdo e para as suas práticas o que é essencial para a construção da própria democracia. Pois a comunicação é parte fundamental da democracia. Ela reflete e é refletida neste contexto.

Portanto, a receita para que a comunicação seja pública é a mesma usada para que um Estado seja democrático: aprofundamento da participação social e dos princípios democráticos em todas as esferas.

*Mariana Martins é jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Intervozes.