Unesco defende alfabetização midiática como forma de fortalecer o uso livre e democrático da mídia

“Alfabetização midiática como ferramenta de transformação”. Essa foi a tese defendida por Alton Grizzle, representante da Divisão de Liberdade de Expressão e de Desenvolvimento da Mídia, vinculada à Organização das Nações Unidas para a Educação, Comunicação e Cultura (Unesco), em seminário realizado hoje, 7 de novembro, no Congresso Nacional, em Brasília (DF).

Grizzle defendeu a posição durante sua palestra no seminário “Educação Midiática e Informacional no Brasil”, que teve como objetivo debater experiências de educomunicação nas escolas brasileiras e dar a conhecer o projeto “Alfabetização Midiática e Informacional”, da Unesco.

O representante do escritório central da Unesco, em Paris, enfatizou que a entidade usa o termo “informação e alfabetização midiática” para o que no Brasil estamos chamando de educomunicação. Tratar sobre o tema, na sua avaliação, é uma forma de “transformar a vida dos jovens no país”.

Para ele, a má compreensão ou a falta de compreensão a respeito da mídia, da comunicação, das bibliotecas, da informação inicia-se na mente dos homens e das mulheres, e é na mente dos homens e das mulheres que se deve corrigir esse mau uso. Grizzle  relata que o trabalho da Unesco sobre a temática sse concentra em fortalecer o uso livre e democrático da mídia.

“Vivemos num mundo virtual. Acredito que grande parte de nós pode se entender em algum lugar deste mundo. Seja no mundo da televisão, do Facebook ou do Radiopélago, nós vivemos num mundo virtual. Tudo que fazemos, tudo que aprendemos sobre o mundo ao nosso redor é mediado neste mundo virtual”, aponta ele, refletindo sobre a relevância da alfabetização midiática para que se comunique e se informe eticamente.

Grizzle enfatizou a necessidade de que se reconheça que cada cidadão é co-criador da informação e do conhecimento e que tem uma mensagem a dizer. Dessa forma, deve ser empoderado para que possa acessar os meios para expressar a sua própria comunicação. Respondendo à crítica de conselheiros do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, sobre a função jornalística nos projetos, ele foi enfático: “Jornalismo para cidadão não substitui jornalismo profissional. É complemento”.

Educação midiática

A iniciativa de realização do seminário partiu do conselheiro Ismar de Oliveira Soares, que também preside a Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (ABPEducom). Para ele, é necessário discutir sobre a contribuição que um programa de educação midiática e informacional pode oferecer para a melhoria dos processos educativos, “tanto na educação formal escolar quanto na educação não formal, na família e nas organizações sociais”.

Soares lembrou que o tema do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”, ressalta As possibilidades da educomunicação, que permite aos estudantes uma oportunidade de compreender questões de relacionamento e de contextos sociais da sociedade brasileira.

“Para alguém ter tido um bom desempenho na prova do Enem, era necessário que tivesse tido também uma educação midiática e informacional que correspondesse a essa necessidade. Estamos falando de algo relativo ao currículo das escolas e algo relativo à prática social, especialmente no que se refere ao direito de conhecer o sistema de comunicação e de nele intervir a partir da perspectiva da cidadania”, destacou Soares.

Analfabetos funcionais

Conforme Raquel Paiva, professora e pesquisadora do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nas duas últimas semanas um conceito muito utilizado nas décadas de 1970 e 1980 tem voltado a figurar na mídia, o dos “analfabetos funcionais”, referindo-se principalmente à condição suscetível de manipulação.

“Até o início do século passado, nós tínhamos instituições responsáveis por fazer a mediação entre o homem e o mundo. Tínhamos o trabalho, a escola, a família, a religião, a política. Enfim, estruturas que eram responsáveis por realizar essa mediação, ou seja, explicar o mundo para o sujeito, inserindo o sujeito no mundo. Entretanto, tudo isso mudou. Essas instituições foram completamente invadidas pelo que nomeamos midiatização, o que significa neste momento a concretização total do domínio da informação, com os seus valores e regras”, ressalta paiva

Paiva defende que o poder midiático seja reconhecido como tal, como primeira medida de enfrentamento à situação. “O não reconhecimento significa adotarmos a compreensão de que se trata de algo natural, da natureza, e não é. Trata-se de um sistema, e este sistema carrega as imperfeições da natureza humana. Então, se temos um sistema político voltado para a inclusão social, o sistema de produção de mensagens é aberto a todos, os quais passam a atuar não apenas como consumidores da produção. Se, por outro lado, temos um sistema de concentração de empresas responsáveis pela produção dessas mensagens [entretenimento e notícias], as pessoas são, em maior número, meros consumidores passivos”.

A pesquisadora defende a necessidade de ser sistematizada a leitura crítica da produção midiática de forma a reduzir “o fascínio e, consequentemente, o pouco questionamento crítico da produção”. Ela professora lembrou que alguns institutos e teóricos já se preocuparam com a força dessa estrutura midiática e como esse quadro poderia transformar a humanidade, caso do relatório MacBride. “Esse relatório – Many voices, one world (Muitas vozes, um só mundo) – foi divulgado em 1980, na Conferência Geral da Unesco, e chocou o mundo. Por quê? Além do diagnóstico, propunha uma nova ordem comunicacional, buscando promover a paz e o desenvolvimento humano”, enfatizou ela, lamentando que o relatório nunca tenha sido efetivamente executado – embora tenha permanecidocomo um referencial teórico para aqueles que acreditam na democratização da comunicação.

Educomunicação na prática

Nessa perspectiva, as estudantes Clarice Villari, do Dante Alighieri, e Maria Eduarda Silva de Oliveira, da Escola de Ensino Fundamental Casablanca, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, apresentaram o projeto “Educom.geraçãocidadã.2016”, uma experiência realizada entre as duas instituições de ensino – uma particular e a outra pública – com a implementação de práticas de educomunicação voltadas para a alfabetização em educação midiática e informacional. As escolas já possuíam projetos de educomunicação e, por iniciativa do professor Ismar Soares, realizaram A ação em parceria.

“Fomos apresentados ao projeto na mesma semana e tivemos nosso primeiro contato visual via Google Hangouts. Então nós nos conhecemos um pouco virtualmente antes de nos conhecermos pessoalmente. Antes de o projeto começar, assistimos a um vídeo, que seria o início da nossa reflexão, chamado “Nós, os Povos!”, da ONU, com as 17 metas da organização. A partir desse vídeo, tivemos a nossa reflexão inicial sobre o mundo, que depois daria origem à maioria das atividades do projeto”, declarou Clarice Villari.

De acordo com Maria Eduarda de Oliveira, a iniciativa proporcionou uma compreensão melhor sobre a mídia. “Foi uma contribuição muito grande para nossas vidas, uma nova forma de ver um mundo e de ser mais críticos ao que está ao nosso redor”. O Educom.geraçãocidadã.2016 possui página no Facebook e um canal no YouTube, onde estão reunidas a informações sobre o projeto.

Saber interpretar a mídia

A proposta central dos temas que envolvem educomunicação e alfabetização midiática é a de habilitar pessoas de todas as idades, de todos os sexos e de qualquer nível de instrução a ler, a interpretar a produção que hoje é responsável por expressar valores e ditar na sociedade o que deve ser feito e aceito. A importância desse tema é visível ao se observar os dados da Pesquisa Brasileira de Mídia de 2015, elaborado pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, junto com o Ibope: a TV segue sendo a principal fonte de informação e entretenimento para 95% da população, com os jovens de 14 a 25 anos assistindo uma média de quatro horas diárias. O uso da mídia digital aparece em segundo lugar, alcançando 48% dos brasileiros, com um consumo de 5 horas diárias. O principal acesso da mídia digital são as redes sociais, em especial, o Facebook.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

A cobertura midiática das escolas ocupadas: silêncio e criminalização

Como em vários momentos da história, a imprensa, quando não invisibiliza a ação dos estudantes, criminaliza as ocupações e quem luta por direitos

Por Marina Pita*

O silêncio pode dizer mais do que mil palavras. A frase – dessas compartilhadas em grupos de WhatsApp pela manhã – significa muito na atual conjuntura do país.

Num contexto de mais de mil escolas ocupadas em todo o Brasil contra a PEC 241 e a Medida Provisória que reforma o Ensino Médio, o silêncio da imprensa sobre a mobilização dos estudantes é mais um capítulo sombrio do processo pelo qual passa o país, exemplar quando falamos de ausência de diversidade e garantia do acesso à informação no Brasil.

Muita gente só tomou conhecimento das ocupações no último final de semana, quando locais de votação no segundo turno das eleições municipais tiveram que ser trocados em função das escolas mobilizadas.

Até ali, as matérias – principalmente na televisão – foram raras. Agora seguem poucas, sem dar voz aos estudantes que ali estão, tampouco aos setores da sociedade que apoiam os protestos contra da PEC e a MP 746/2016.

Um dos maiores jornais do país, a Folha de S.Paulo ignorou a ascensão das ocupações. O tema aparece no impresso em matéria do dia 11 de outubro com o foco apenas no estado do Paraná: ”Estudantes ocupam cem escolas e professores aprovam greve no Paraná”.

Mais de uma semana depois, apenas em 19 de outubro, vem o segundo texto, com viés claramente criminalizador: “Ocupação em 181 escolas pode causar cancelamento de provas do Enem”. No dia 24 de outubro, o tema volta a aparecer por conta da morte de um estudante em Curitiba.

Entre o crescimento de 100 a 800 escolas ocupadas, vigorou o silêncio do jornal sobre o assunto. Nada se falou sobre as ocupações em outros estados.

Na sexta-feira 25, um novo texto intitulado “Protesto em escola ocupada do Paraná tem tensão, apitaço e xingamentos”. O movimento dos estudantes é apresentado como “baderna”.

Considerando a amplitude do movimento “Ocupa Paraná”, a opção da Folha foi cobrir desproporcionalmente uma manifestação contra a ocupação em uma das escolas.

Frases genéricas como “de um lado, pais, alunos e professores que querem a volta às aulas passaram a organizar protestos contrários. Em algumas cidades, chegaram a “ocupar” antes os colégios para evitar a tomada do local pelos manifestantes” demonstram a ausência de rígido critério de apuração.

Afinal, as ações contra as ocupações – apesar da violência que adotam, algo também não apontado pela imprensa – são minoritárias diante do crescimento da mobilização nacional.

A sequência de matérias como “Com escolas ocupadas, Paraná vai ter Força Nacional na eleição”, “Alunos são algemados após serem retirados de escola invadida no TO”, “Tumulto em Escola no Paraná”, “Com escolas ocupadas, até supermercado vira local de votação no Paraná”, “Escolas ocupadas poderão ter o Enem adiado, diz Ministério da Educação” mostra a facilidade como os jovens mobilizados por seus direitos são apresentados como baderneiros,irresponsáveis e que atrapalham a vida dos cidadãos que simplesmente querem estudar.

A tônica da Folha tem sido, assim, colocar em oposição o movimento que defende a educação universal, gratuita e de qualidade e os demais estudantes.

O próprio Ombudsman do jornal classificou a cobertura do jornal de protocolar:

“A Folha noticiou de forma tímida a movimentação. Para dar ideia da extensão, na sexta, segundo entidades estudantis, havia 123 universidades e 1.197 escolas ocupadas no país; cerca de 850 no Paraná”. Ainda, lembrou o silêncio da imprensa local quanto à marcante fala da estudante Ana Julia, que incendiou as redes sociais.

“Na quarta, 16, nenhum grande jornal noticiou a inusual presença de estudantes na tribuna. Na quinta, às 12h53, o site da revista econômica americana ‘Forbes’ captou a importância da fala da jovem. Só às 19h a Folha colocou no ar perfil de Ana Júlia, recuperando o discurso”.

O STF e a criminalização

No jornal carioca O Globo, a cobertura com viés crítico às ocupações também deu a linha. Se primeiro o foco era no “distúrbio” que a mobilização poderia trazer ao Exame Nacional do Ensino Médio (“Com mais de 640 escolas ocupadas governo do Paraná se diz preocupado com eleições e Enem” no dia 18).

Depois, os veículos do Grupo Globo fizeram questão de destacar a fala do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre os eventuais gastos que as ocupações geraram com a mudança dos locais de votação.

A declaração de Gilmar Mendes foi exibida à exaustão ao longo da noite do domingo 30 nos telejornais da GloboNews, chegando a irracionalidade de sugerir à AGU que estude cobrar os estudantes o “custo” das ocupações para as eleições. No site d’O Globo, a chamada era “Ocupação de escolas gerou gastos nas eleições, diz Gilmar Mendes”.

Antes disso, a opção do jornal carioca tinha sido entrevistar com destaque o Secretário estadual de Educação do Paraná e silenciar os estudantes. As aspas escolhidas para o título da matéria não são sobre soluções para o impasse, negociações, mas a simples ameaça: “Wagner Victer: ‘Quem diz que não prejudica é leviano’ “.

O Jornal Nacional do dia 27 apresentou reportagem sobre a bárbara apreensão de estudantes no Tocantins, que chegaram a ser algemados ilegalmente.

Mostraram o documento do Ministério Público que “justificava” a medida e deram um tempo irrisório para a opinião contrária da Defensoria Pública do estado, que criticou a apreensão dos alunos. A matéria sequer informou aos telespectadores por que aquela escola tinha sido ocupada.

Nesta terça, 1 de novembro, o Bom Dia Brasil preferiu dizer que o cerco da Polícia Militar para pressionar pela saída de estudantes de uma escola ocupada em Taguatinga, no Distrito Federal, atrapalhava a circulação de moradores.

Ocupações escolas no Jornal Hoje
Criminalização: estudantes retratados no Jornal Hoje como quem está praticando atos ilegais

 

O desequilíbrio no espaço dado – quando dado – aos estudante também caracteriza a cobertura na TV. Apenas a título de exemplo, no mesmo Bom Dia Brasil do dia 26 de outubro, em reportagem de 3 minutos e 40 segundos, apenas 13 segundos foram dedicados aos estudantes para explicarem por que ocupam as escolas.

Um exemplo contrário foi a matéria da Agência Estado, “Mais de mil escolas e universidades estão ocupadas no Brasil”, de 26 de outubro, que ouve não apenas a presidente da Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), Camila Lanes, mas cita nota da Associação dos Reitores das Universidades Federais (Andifes) e da Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais favoráveis ao movimento dos estudantes. Algo raro até agora na imprensa nacional.

O papel da comunicação pública e da internet

Foi na Agência Brasil – com todos os problemas que a EBC sofre depois do desmonte que tem sido implantado na empresa pública pelo governo Temer – que o cidadão pôde se informar minimamente sobre o contexto geral das ocupações Brasil afora.

Reportagens como “Mais de mil escolas do país estão ocupadas em protesto; entenda o movimento”, “Estudantes secundaristas e meio acadêmico debatem ocupação de escolas no Rio” e “Alunos do DF ocupam escolas para serem ouvidos sobre mudanças na educação” fizeram o que se espera da imprensa: jornalismo.

A batalha pela narrativa das ocupações, entretanto, segue travada mesmo na internet, em blogs, sites da imprensa alternativa e nas redes sociais. O discurso de Ana Julia – que ganhou a capa de CartaCapital essa semana – foi ouvido por todos no Youtube, Facebook e nos grupos de WhatsApp.

Ao participar de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado nesta segunda-feira 31, a estudante do Paraná fez questão de negar, veementemente, o papel de passividade atribuído aos estudantes por alguns e replicado por comentaristas e jornalistas da grande mídia. Não há doutrinadores e doutrinados neste jogo. Tampouco revoltados sem causa.

A jovem que fez milhares pararem para ouvir quem está vivendo as ocupações jogou luz a algo que se repete sistematicamente quando o país precisa debater temas centrais para o seu futuro: a dificuldade de entender o que está acontecendo quando se acompanhando o noticiário apenas pela mídia tradicional.

* Marina Pita é jornalista e integra o Conselho Diretor do Intervozes.

AGU tenta conter vitórias obtidas nos tribunais contra concessões de rádio e TV para políticos

A Advocacia-Geral da União (AGU) requereu ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, “medida cautelar incidental” com o objetivo de suspender o andamento de todos os processos e decisões judiciais que tenham relação com a outorga e a renovação de concessões de rádio e televisão mantidas por empresas de parlamentares. A medida pretende conter uma série de vitórias que as entidades do campo da democratização da comunicação estão obtendo nos estados.

Em resposta à ação da AGU, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), autor de duas ações no Supremo que tratam deste tema, em conjunto com representantes do Intervozes e da Artigo 19, organizações que solicitaram participar das ações na figura de amicus curiae, se reuniram na última quarta-feira (26) com o ministro Gilmar Mendes. O PSOL e as entidades entregaram ao relator das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 246 e 379 uma petição solicitando que ele, antes de analisar o pedido da AGU, conceda as medidas liminares solicitadas nas ADPFs.

As arguições ajuizadas no STF estão fundamentadas sobre o fato de que a Constituição é descumprida quando atos do Executivo permitem que políticos com mandato eletivo sejam beneficiados com a outorga de concessões de emissoras de rádio e de canais de televisão. A ADPF 246 foi protocolada em dezembro de 2011, enquanto que a ADPF 379, em dezembro de 2015. Segundo Bráulio Araújo, advogado do PSol, a “ jurisprudência vem avançando de forma sólida no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade da participação de políticos titulares de mandato eletivo como sócios de empresas de radiodifusão.”

Araújo menciona na petição que, em julgamento da Ação Penal 530, em novembro de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) já afirmava que os artigos 54, inciso I, alínea “a”, e 54, II, “a”, da Constituição Federal, proíbem claramente que deputados e senadores sejam sócios de pessoas jurídicas com titularidade sobre concessão, permissão ou autorização de radiodifusão. Além disso, em julgamento de agravo de instrumento publicado em outubro deste ano, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo) confirmou a liminar deferida pelo desembargador Johonsom di Salvo em março de 2016, suspendendo a execução dos serviços de radiodifusão prestados por empresas que possuem congressistas em seu quadro de sócios. Isso justamente em razão da violação ao artigo 54 da Constituição.

Influência indevida de políticos
Por sua vez, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em manifestação expressada em agosto deste ano, apoiou a iniciativa das ADPFs, considerando que a participação de parlamentares em empresas de radiodifusão “confere a políticos poder de influência indevida sobre importantes funções da imprensa, relativas à divulgação de informações ao eleitorado e à fiscalização de atos do poder público”. Araújo ainda relata que decisões tomadas em outros tribunais também reforçam o entendimento de que a Constituição veda a celebração de contratos públicos, entre os quais se encontram as permissões e as concessões de radiodifusão, firmados entre a Administração Pública e pessoas jurídicas que tenham como sócios os políticos titulares de mandato eletivo.

Um exemplo disso seria o julgamento de apelação (nº 102.771.5/0-00) pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que decidiu que, “em virtude das incompatibilidades negociais previstas pelos artigos 54, I, “a”, e 54, II, “a”, da Constituição Brasileira, empresa que possui políticos titulares de mandato eletivo como sócios não pode participar de licitação pública, nem pode firmar ou manter contratos com a Administração”. Outro exemplo seria a decisão sobre apelação cível (nº 2006.011311-6) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que anulou um contrato administrativo celebrado pelo Poder Público com uma empresa que tinha deputado federal como sócio-cotista, em razão da proibição prevista no artigo 54 da Constituição. O tribunal condenou os responsáveis pela celebração do contrato pelo crime de improbidade administrativa, além de ordenar a devolução dos valores recebidos.

Tribunais apontam inconstitucionalidade
Bráulio Araújo rebate as alegações da AGU sobre as ADPFs 246 e 379, de que “a Constituição não proíbe que políticos sejam sócios de empresas de radiodifusão”. Para ele, os tribunais têm dado uma resposta firme a esse discurso: “a Constituição proíbe sim, de forma clara, a participação de políticos como sócios de empresas de radiodifusão”. Para ele, as decisões judiciais tomadas até o momento dialogam com as duas ADPFs e têm sim se posicionado contra a prática inconstitucional de participação de políticos como sócios de empresas de radiodifusão. “Ao combater essa inconstitucionalidade, essas decisões estão promovendo a segurança jurídica, e não o contrário, como sustenta a AGU. Não há direito adquirido com a manutenção de práticas inconstitucionais”, declara o advogado.

A petição entregue pelo Intervozes, Artigo 19 e Partido Socialismo e Liberdade ao ministro Gilmar Mendes relata que “a tutela jurisdicional ordinária é o único instrumento que vem sendo capaz de combater essa prática inconstitucional, ainda que com os limites inerentes aos processos ordinários”, e solicita que seja indeferida a medida cautelar requerida pela AGU por flagrante falta de base legal. Agora, cabe ao relator da ação pedir à presidenta do STF, ministra Cármen Lúcia, uma data para o julgamento do tema pelo plenário do tribunal.

“Ficamos surpresos com essa atuação da AGU. Claramente é uma resposta do governo federal a um pedido de deputados que começaram a ser condenados nas ações que o Ministério Público Federal moveu em seus estados de origem e que agora pretendem usar o STF para manter seus privilégios ilegais”, analisa Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes, que esteve na reunião com o ministro Gilmar Mendes. O Intervozes é uma das organizações que formalizou uma representação, junto ao MPF em diferentes estados, contra o controle de emissoras de rádio e TV por políticos. “Em vez de coibir essa inconstitucionalidade, por meio do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, que outorga as licenças e tem o dever de fiscalizar o setor, o governo federal age para impedir que a Justiça atue no âmbito dos estados para barrar as ilegalidades. É uma vergonha. Esperamos que o Supremo não impeça os processos em andamento em todo o país e que julgue rapidamente as ADPFs, que já estão na Corte há bastante tempo”, conclui Bia.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

A internet livre sob ameaça no Brasil

Uma série de iniciativas de empresas e dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pode mudar radicalmente a forma como os/as brasileiros/as usam a rede

Trabalhar, estudar, locomover-se, informar-se, comunicar- se. Os usos da internet em nosso cotidiano são tão diversos e tão essenciais que nos deixam a dúvida se seria possível hoje viver sem conexão. Mais além, especialistas há muito apontam a existência de dois universos onde convivemos concomitantemente: físico e virtual. Não, isso não é coisa da ficção inspirada na trama da trilogia Matrix ou da recente ‘série-febre’ Black Mirror. Mesmo quando estamos aparentemente desconectados, os rastros virtuais e nossos dados pessoais continuam com vida própria, em transações bancárias, perfis em redes sociais, cadastros em big datas (espécie de arquivo com grande capacidade de processamento de dados), entre outras ações que se dão concomitantemente na internet e fora dela. Parece óbvio defender a vida física e os direitos fundamentais que a garantem, mas e os da rede, quem cuida? E se uma não existe mais sem a outra? Em 2014, uma Resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) dispõe que os direitos humanos do mundo off-line também valem para o online.

No Brasil, a Lei 12.965 de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet (MCI), estabelece um conjunto de princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país, além de consagrá-la como um serviço essencial. Ao longo de 2016, infringindo os princípios do MCI, uma série de iniciativas de empresas privadas, do Judiciário e de parlamentares busca alterar a lógica de funcionamento da internet da maneira como se conhece atualmente. Segundo o relatório Freedom on the Net da organização Freedom House, divulgado em novembro de 2016, o status da internet no Brasil perdeu três pontos e passou de “livre” a “parcialmente livre”.

Os motivos para a queda foram os constantes bloqueios judiciais ao aplicativo WhatsApp, a decisão de operadoras de implantar franquias na banda larga fixa e o Projeto de Lei 215/2015, conhecido como “PL espião”, que estabelece medidas polêmicas como a quebra do anonimato de internautas. Em declaração recente, Maximiliano Martinhão, secretário de políticas de informática do Ministério de Ciência Tecnologia Inovações e Comunicações (MTIC), defendeu a flexibilização da legislação vigente tanto no que diz respeito a alguns pontos colocados no Marco Civil da Internet quando na proposta que tramita de revisão da Lei Geral de Telecomunicações (LGT). Questões como a neutralidade de rede, o manejo e a guarda de dados pessoais, a revisão de contratos de prestação de serviços de telefonia e internet, o bloqueio de aplicativos, entre outros temas, estão atualmente em pauta no congresso e no judiciário e podem alterar radicalmente a maneira como os/as brasileiros/as utilizam a internet no dia a dia. Analisamos a seguir algumas destas ameaças.

Acesso

No último dia 9 de novembro, o Projeto de Lei 3453/15, de autoria do deputado Daniel Vilela (PMDB-Go) foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) por 36 votos favoráveis e 11 contrários. A aprovação foi questionada por vários deputados que alertaram que o PL representa uma entrega de patrimônio público e reduz a capacidade de regulação do Estado em um setor conhecido por ser um dos piores prestadores de serviço do país. O projeto impacta também o acesso à internet fixa que, no caso brasileiro, compartilha a infraestrutura com a telefonia. Rafael Zanatta, pesquisador em telecomunicações do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), alerta que, se aprovado, o PL pode piorar a qualidade de serviços essenciais como telefonia e internet além de abrir caminhos para o aumento do preço. Isso porque o projeto pretende mudar o regime de prestação de serviço de telefonia de regime público, que se dá atualmente por meio de contratos de concessão, para regime privado, mais flexível. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações e Defesa do Consumidor (Sindec), de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro do mesmo ano, as empresas Claro/ Embratel/Net, OI Fixo/Celular e Vivo Telefônica/GVT aparecem respectivamente em primeiro, segundo e terceiro lugar entre as 50 que mais receberam queixas nos Procons no último ano.

Dados divulgados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em 2016 sobre os serviços de telefonia e internet mostram que o setor com a pior avaliação em relação à satisfação dos consumidores é o de banda larga fixa, que obteve nota 6,58 em nível nacional, em uma escala de zero a 10. “No regime privado, deixa de existir a modicidade tarifária, ou seja, o consumidor pode se deparar com preços ainda mais elevados, ainda mais num mercado extremamente oligopolizado como o nosso que tem atualmente três grandes players”, explica.

Além disso, segundo o especialista, há um interesse das empresas de telefonia e dos parlamentares que encampam o projeto de rever metas de universalização (que significa acesso para todas as pessoas) direto com a Agência regulatória, a Anatel. Atualmente, pouco mais de metade dos domicílios brasileiros têm acesso à banda larga fixa. O modelo de mercado concentra a distribuição do serviço em áreas urbanas e de maior Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto isso, áreas rurais, principalmente do norte e nordeste do País são verdadeiros “desertos digitais”. Mas não só. Enquanto o mundo assistia aos jogos olímpicos sediados no Rio de Janeiro, moradores do Morro da Conceição, na região portuária da cidade olímpica há poucos metros de onde a tocha ficou aberta à visitação, denunciavam a falta de acesso à internet banda larga fixa. Outro ponto polêmico do PL é a busca das telefônicas por não devolver ao Estado brasileiro os chamados bens reversíveis. Segundo apuração do Ministério Público Federal (MPF), estes bens somam cerca de 100 bilhões em infraestrutura montada para prestação de serviços essenciais de telefonia.

O contrato de concessão das telecomunicações, realizado em 1998 por meio da privatização do sistema Telebrás, estabelece que, findado o prazo de outorga, o Estado retomaria a posse dos bens necessários para oferta do serviço e iniciaria um novo processo de concessão da prestação do serviço, incluindo obrigações de preço, continuidade e universalização. Com a aprovação do PL 3453/15, esses bens, que fazem parte da outorga de telefonia fixa, não voltam mais para o Estado e não há mais garantias de que essa soma seja revertida para ampliação do acesso aos serviços. Após aprovação na CCJC, a votação segue para o Senado. Enquanto a proposta avança, outras iniciativas no Congresso e no Judiciário também vêm causando preocupação entre internautas, especialistas e ativistas.

Bloqueio de aplicativos

Ao longo de 2016, várias decisões judiciais, com base em investigações criminais, têm resultado no bloqueio de alguns aplicativos usados por um amplo público, como o WhatsApp. Mais recentemente, o lobby da indústria de direitos autorais também tem investido pesado na tentativa de alterar o Projeto de Lei 5204/16 (baseado no PL 5204/16, apensado ao primeiro) que visa justamente proibir esse tipo de decisões arbitrárias da justiça. Os bloqueios também foram pontos determinantes na queda do Brasil no ranking de liberdade na internet da Freedom House. Também com o intuito de evitar que casos similares voltassem a ocorrer, o Partido da República (PR), ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 5.527 (ADI). Para especialistas, há uma distorção na interpretação do MCI pelo poder Judiciário, o que abre precedentes perigosos para a liberdade de escolha do consumidor/ usuário. A legislação aponta a possibilidade de bloqueio de aplicativos somente no caso destes descumprirem a proteção da privacidade dos dados do usuário. Em Amicus curiae que endossa a ADI citada, o Instituto Beta para Democracia e Internet argumenta:

“Não parece plausível e muito menos proporcional que o descumprimento de uma medida judicial de quebra de sigilo bancário ou telefônico, por exemplo, atinja todos os demais correntistas de uma instituição financeira ou os usuários de uma operadora de telefonia. O Marco Civil constitui um importante patamar regulatório de proteção dos direitos do usuário da internet, porém ainda requer uma cautelosa compreensão de suas premissas e a das formas de implementação das suas sanções”.

Zero Rating

Outra prática que vem sendo questionada por especialistas é a das operadoras de telecomunicações de ofertar “gratuitamente” o acesso a determinados aplicativos após o fim da franquia de internet móvel. Detentoras das infraestruturas por onde trafegam os dados de navegação, as operadoras têm trabalhado para criar mecanismos que favorecem alguns aplicativos e conteúdos em detrimentos de outros, o chamado zero rating. É como se a empresa concessionária do serviço de pedágio de uma rodovia tivesse também o poder de escolher quais carros trafegam ou não naquele trecho e com que qualidade de estrada ou limite de velocidade determinados motoristas irão se deparar. A prática confronta o princípio da neutralidade de rede, consagrado no inciso IV, artigo 3º do Marco Civil da Internet (MCI), segundo o qual a rede deve ser igual para todos, sem diferença quanto ao tipo de uso. Assim, ao obter um plano de internet, o usuário paga pela velocidade contratada e não pelo tipo de página ou conteúdo que vai acessar ou usar.

Segundo Flávia Lefèvre, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI – BR), a utilização de zero rating, sem regulação específica, também viola o princípio da neutralidade de rede e ameaça o modelo aberto da internet. “A prática do zero rating associada aos planos com limite de volume de dados e restrição de acesso à internet ao final da franquia cria condições para que a internet se torne um espaço voltado preponderantemente a interesses comerciais e contrários à verdadeira e efetiva inclusão digital”, defende.

Por outro lado, o governo demonstra abertura para a pressão das empresas em flexibilizar o princípio da neutralidade. “Para a gente poder avançar com a internet, e estou falando como secretário, e não como coordenador do CGI.br, não dá para pensar com tamanha rigidez o aspecto de neutralidade de rede, sem poder usar zero rating, até para vencer a insegurança jurídica que está posta”, declarou Maximiliano Martinhão, secretário de Políticas de Informática do MCTIC, em novembro de 2016.

Franquia de dados

O alerta feito por Flávia Lefèvre também se refere à tentativa das operadoras de implementar o modelo de franquia de dados na banda larga fixa. Este é o padrão de negócio utilizado na banda larga móvel, e consiste na forma de serviço em que o usuário, ao utilizar toda a capacidade contratada, tem a sua conexão interrompida e para voltar a navegar na web é incitado a comprar pacotes adicionais. O argumento das operadoras de telecomunicações é o de que o modelo de “internet ilimitada” é um modelo de negócio ultrapassado e que não contempla mais a atual fase de uso da rede, pois existem hoje muito mais dados trafegando do que há dez anos. À época, o presidente da Anatel, João Rezende, em entrevista ao G1, defendeu o limite de franquia e argumentou que obrigar as empresas a oferecer banda larga ilimitada pode elevar o preço do serviço ou reduzir a qualidade deste.

Rafael Zanatta, do Idec, argumenta que não há estudos específicos que comprovem que haja uma “escassez de rede”. O especialista aponta que, mesmo com a crise econômica, as telefônicas continuam com alta taxa de lucro que poderia ser revestido em investimento pra ampliar a infraestrutura. “No último balanço trimestral, por exemplo, os três players que dominam o mercado brasileiro apresentam uma margem de lucro superior a um milhão”. Rafael acrescenta que a internet no Brasil é um serviço caro, que chega a superar 2% da renda média familiar e, ainda assim, a velocidade está muito aquém dos padrões globais. “Existe a possibilidade de regular a franquia sem abusividade. Vendo se a empresa tem escassez temporária de infraestrutura, considerando as especificidades das pequenas operadoras, por exemplo. Não faz sentido isso nos casos onde há infraestrutura abundante”, defende. E completa: “A estratégia oculta [neste debate] é implementar a franquia e flexibilizar o Marco Civil da Internet para permitir o zero rating”, resume.

Durante audiência que discutiu a questão no Senado Federal em junho deste ano, Bia Barbosa, do Intervozes, argumentou que é possível que esta prática comercial crie um fosso entre aqueles que poderão ter a “liberdade” de navegar por quaisquer tipos de conteúdos e aqueles que, por questões financeiras, não poderão pagar um valor que garanta a navegação sem restrições. Isso sem falar nos prejuízos para a educação à distância, por exemplo, já que esta modalidade educacional exige várias horas na frente da tela do computador com aulas em vídeo de alta resolução.

Dados pessoais

Em 2014, a Oi, empresa de telefonia, foi condenada pelo Ministério da Justiça a pagar R$ 3,5 milhões por ser acusada de monitorar a navegação dos consumidores na internet para posterior comercialização de dados. Durante o processo administrativo, foi observado que a empresa violou direitos à informação, à proteção contra publicidade enganosa e o direito à privacidade e à intimidade. A porta de verificação do comportamento dos consumidores era o serviço Navegador, oferecido pelo Velox, o serviço de banda larga da Oi. Durante as investigações, verificou-se ainda que a parceria da empresa Oi com a britânica Phorm permitiu o desenvolvimento do software Navegador, que capturava e mapeava todo o tráfego de dados do usuário, permitindo a criação de um perfil de uso da internet.

Após a análise do episódio, o Ministério da Justiça entendeu que a empresa violou princípios contidos na Constituição Federal e no Marco Civil da Internet. De posse de todas as nossas informações, e com o uso de uma tecnologia que cada vez mais se aprimora por meio de algoritmos, Google, Facebook, Twitter, entre outras grandes corporações têm acesso a informações privilegiadas do dia a dia dos usuários. A localização exata, o percurso que fazemos ao nos deslocar de casa ao trabalho, os destinos de férias ou as pesquisas nas ferramentas de busca, os problemas de saúde, entre outras questões estritamente pessoais, são dados valiosos que estão sendo manipulados e negociados por essas grandes empresas.

Mas não só por elas. Há também os casos de dados pessoais de órgãos públicos que são vazados para empresas privadas. No início de 2016, aposentados do Espírito Santo que haviam pedido aposentadoria pelo INSS caíram nas mãos de bancos e agências financeiras. Segundo o Ministério Público do Estado, as pessoas que haviam requerido o benefício ao INSS receberam ligações de agências financeiras oferecendo empréstimos consignados antes mesmos dos pedidos serem aceitos. A investigação está apurando como essas agências tiveram acesso a esses dados pessoais. À época, o INSS informou que os dados dos segurados são mantidos em sigilo e que não fornece qualquer dado pessoal a outras instituições que não sejam as responsáveis pelo pagamento da aposentadoria.

“Cada vez mais, em todo e qualquer momento, todas as nossas relações sociais estão apoiadas em coletas ou tratamentos de dados. Basta pensar nas relações que a gente tem com o governo, com o setor estatal de uma maneira geral. É impossível você aderir a um programa social, pensar, por exemplo, num bolsa família ou financiamento estudantil, sem que você troque os seus dados pessoais para poder aderir a aquele determinado benefício social”, explica Bruno Bioni, advogado do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e pesquisador do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da USP (GPoPAI/USP). O pesquisador defende que é urgente pensar uma política de proteção de privacidade e uso de dados pessoais na rede, uma vez que grande parte dos modelos de negócios online e as próprias políticas públicas, como as apontadas, se baseiam no tratamento de nossos dados.

Até o momento, o Brasil não tem sancionada uma lei que regule a coleta, armazenamento, processamento e divulgação de dados pessoais. O PL 5276/2016, que trata do assunto, atualmente tramita na Câmara dos Deputados. A legislação protege os dados pessoais tanto no que diz respeito ao uso por entes privados quanto públicos e ainda impede a transferência internacional de dados para países com leis de proteção menos rigorosas do que a nossa.

Joana Varon, integrante da Coding Rights, organização liderada por mulheres que promove direitos no mundo digital, explica que vivemos atualmente num contexto de capitalismo de dados. “Tudo o que a gente faz na rede é registrado. E esses dados são utilizados como modelos de negócios das empresas que a gente usa pra navegar na rede e que a gente usa nos serviços digitais”, resume. Enquanto isso, também avançam na Câmara e no Senado algumas iniciativas de Projetos de Lei que caminham na direção contrária da promoção da privacidade e da liberdade de expressão na web, como o PL 2390/15 que propõe a criação de um “Cadastro Nacional de Acesso à Internet”. O cadastro incluiria informações como endereço e CPF do usuário e teria como função combater práticas de pedofilia na internet. Segundo o PL, a cada nova conexão, o usuário teria de fornecer todos os dados pessoais para que a conexão seja liberada.

O cadastro obrigatório põe em xeque não só direitos individuais mas também coletivos e ameaça organizações e movimentos sociais que trabalham com a defesa e promoção de direitos humanos e que têm o anonimato como retaguarda para resistir à perseguição ou retaliação. É o caso do aplicativo Nós por Nós. Lançado em março de 2016, o aplicativo, voltado para denúncias de violações de direitos cometidas por policiais no Rio de Janeiro, recebeu em quase um ano de funcionamento 250 denúncias. Segundo relatório “Você matou meu filho”, publicado pela Anistia Internacional, de 2005 a 2014 foram registrados 8.466 casos de homicídio decorrentes de intervenção policial no estado do Rio de Janeiro; 5.132 casos apenas na capital.

Ao checar o andamento de todas as 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção policial no ano de 2011 na cidade, a Anistia descobriu que foi apresentada denúncia em apenas um caso. Até abril de 2015 (mais de três anos depois), 183 investigações seguiam em aberto. O medo e a descrença no sistema judicial são os principais fatores apontados para a falta de denúncia.

Um dos idealizadores do aplicativo, Fransérgio Goulart, afirma que a ideia da ferramenta é justamente facilitar a reação da população atingida pela violência de Estado. “Tinha já algo se iniciando, mas o aplicativo Nós por Nós facilitou e potencializou essas denúncias. E a grande novidade é que temos para onde encaminhar a denúncia (rede de apoio) defensoria, Ministério Público, ONGs de direitos humanos de forma articulada”, contou.

Para fazer uma denúncia por meio de vídeo, foto, áudio ou texto no Nós por Nós, o usuário não precisa fazer nenhum cadastro anterior que permita sua identificação, o que no caso do teor da ferramenta, é um detalhe vital para o funcionamento.

Além do PL 2390/15, uma série de inciativas decorrentes dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos, conhecida como CPI Ciber, afetam a privacidade e a liberdade de expressão na rede. O relatório final da comissão apresentado em março deste ano, reúne oito propostas de projetos de leis que, segundo a própria comissão, objetivam combater os crimes cometidos na internet.

Direitos na rede

Diante deste cenário, entidades da sociedade civil brasileira criaram em julho de 2016 a Coalizão Direitos na Rede, como uma forma de combater as crescentes tentativas de retirada de direitos. Em manifesto lançado durante o VI Fórum da internet, ocorrido em julho de 2016, as entidades afirmam que o objetivo da coalizão é defender princípios fundamentais para a garantia de acesso universal à Internet: respeito à neutralidade da rede, liberdade de informação e de expressão, segurança e respeito à privacidade e aos dados pessoais, assim como assegurar mecanismos democráticos e multiparticipativos de governança.

Segundo a Coalizão, além de atacar a privacidade, a liberdade de expressão e comunicação e o direito à informação de cidadãos conectados, este conjunto de propostas legislativas não leva em conta as características da rede e instaura uma espécie de “censura preventiva”. Os níveis de vigilância massiva da série Black Mirror vêm causando furor em discussões e tentativas de prognósticos que se multiplicam nas redes sociais. Se as iniciativas analisadas avançarem, trabalhar, estudar, locomover- se, informar-se, comunicar-se, organizar protestos, denunciar violações de direitos, entre outras ações essenciais para democracia, devem ficar bem comprometidas. Se depender da pressão das empresas e de alguns entes do Estado, a realidade fictícia da série está mais próxima do que podemos imaginar.

Entidades denunciam PL que não garante Banda Larga para a população e entrega o patrimônio público para o setor privado

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados realizou nesta terça-feira, dia 25, uma audiência pública para discutir o Projeto de Lei (PL) 3453/2015, que prevê a prestação do serviço de telefonia fixa por autorização. O projeto altera a Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/1997), tornando mais flexíveis as regras sobre as modalidades de outorga de serviços de telecomunicações. Na prática, isso significará que determinados serviços hoje outorgados na forma de concessão poderão no futuro ser outorgados na modalidade de autorização. Esta mudança fará com que as empresas tenham menos deveres e mais privilégios.

O PL 3453, que está em análise na CCJC, gera divergências entre os deputados, mas também é alvo de duras críticas de entidades ligadas à democratização da comunicação e de órgãos de defesa do consumidor. Segundo Renata Mielli, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), o projeto de lei “atenta contra o direito das pessoas de terem acesso à comunicação”. Mielli lembra que a Constituição Federal dá ao Estado o dever de garantir os serviços essenciais para a população. “Hoje o serviço essencial é o serviço de banda larga, que deve ser atendido pelo poder público. Esse projeto (PL 3453) não apresenta exigências regulatórias e não garante a universalização do acesso com tarifas justas”, apontou.

Por outro lado, Juarez Quadros do Nascimento, presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), e André Müller Borges, secretário de Telecomunicações do Ministério da Ciência e Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), consideram que a diminuição na presença de usuários na telefonia fixa e o crescimento do uso de dados para internet justificam a proposta em análise. Segundo eles, o PL garante o dinheiro necessário paraa realização de investimentos na ampliação da Banda Larga. Os dois também se juntam para criticar a legislação atual no que diz respeito à obrigatoriedade das empresas de devolverem a infraestrutura em uso ao poder público, ou seja, ao cidadão. Nascimento diz que os “bens reversíveis atrapalham a captação de recursos e investimentos”. Borges vai ainda mais longe, afirmando que o “bem reversível sempre pertenceu às redes de telecomunicações”.

O representante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social na audiência, Jonas Valente, rebateu enfaticamente as afirmações. “Ter zelo pela coisa pública não é entregar R$ 100 bilhões em bens públicos quase de graça para empresas privadas. Esse é um patrimônio da população brasileira’, protestou. Valente enfatizou que esta não é uma questão “telefonia fixa X banda larga”, destacando que o serviço essencial hoje para a populaçãobrasileira é o acesso à internet. Sendo assim, o Estado deve garantir a universalização da banda larga. “A questão aqui é que o Poder Público promova a modernização dos setores, construa planos de banda larga de forma a garantir que as empresas invistam e que o serviço chegue com valor acessível a toda a população. Esse projeto queestá aqui não contribui para isso”, ponderou.

Além disso, o Projeto de Lei 3453 apresenta conflitos com a Constituição Federal. “Há dúvidas se a migração da concessão para a autorização, com entrega dos bens reversíveis, não viola o artigo 37 da Constituição, que trata dos princípios que devem orientar as licitações. Em 1998, quando foi feita a concessão, o termo dizia que os bens deveriam ser devolvidos para a União. O princípio da impessoalidade está sendo ferido”, lembrou Flávia Lefèvre, representante da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste), no debate.

Sobre as argumentações do governo de que não há recursos públicos para investimentos em banda larga, Lefèvre destacou que apenas 1% do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) está sendo aplicado com este fim. Ela ainda ressaltou que o modelo privado de prestação do serviço vigente no Brasil penaliza o usuário com uma das maiores tarifas do mundo, além de concentrar sua oferta nas mãos de poucas empresas. Ou seja, a população paga a conta, que é alta, e a riqueza fica concentrada nas mãos de um pequeníssimo grupo de companhias privadas.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação