Facebook negocia dados de milhões de jovens emocionalmente vulneráveis

Uso de informações de crianças e jovens pela rede social comprova urgência da proteção dos dados pessoais

Por Marina Pita*

Há cerca de dois anos, eu e minha família recebemos a notícia de que minha mãe teria de enfrentar um tratamento para câncer. Dias depois de ter recebido a notícia, resolvi compartilhar pelo WhatsApp, com uma amiga querida que estava longe, o estado de ansiedade e apreensão pelo qual passava.

No dia seguinte, um e-mail na minha caixa de entrada informava sobre um remédio milagroso para a doença. Respirei fundo e apaguei. Coincidência ou não, o fato que é que a informação de que o assunto “câncer” estava no meu espectro de interesse poderia, sim, ser usada para fins de publicidade. A fragilidade, a vulnerabilidade, a insegurança, já descobriram os publicitários há alguns anos, são importantes impulsionadores de vendas.

Agora, se o caso ocorreu já há dois anos, por que compartilhá-lo agora?

Porque um documento interno do Facebook, que acaba de ser vazado pelo jornal Australian, revelou a capacidade da companhia de identificar quando um adolescente ou um jovem trabalhador se sente “inseguro”, “inútil” e precisa de um “impulso de autoestima” – tudo baseado num banco de dados de 1,9 milhão de estudantes de Ensino Fundamental, 1,5 milhão do Ensino Médio e 3 milhões de jovens trabalhadores.

Quem acompanhou, no Dia Mundial da Saúde, os diversos alertas sobre depressão e como a doença é hoje a principal causa de problemas de saúde e invalidez no mundo, pode pensar: que ótimo! Esta informação pode ser usada para gerar algum tipo de acompanhamento, indicação de profissional, sugerir que o adolescente busque ajuda.

Não. Veja bem.

O documento em que a maior rede social do mundo se gabava de poder monitorar posts e fotos em tempo real para determinar quando um jovem se sente “estressado”, “derrotado”, “ansioso”, “nervoso”, “estúpido”, “fracassado”, “idiota” ou “um fracasso” era, na realidade, uma apresentação feita para um dos maiores bancos da Austrália.

Isso mesmo, um banco.

Ou seja, a informação sobre a situação emocional de adolescentes e jovens está sendo usada para fins econômicos, para o lucro de corporações.

Neste sentido, o vazamento do documento do Facebook e a exposição dos dados nele contidos não é apenas mais um alerta sobre a capacidade de coleta e processamento de dados na era moderna. É um importante indicador de que todo mundo precisa de privacidade se não quiser que suas maiores vulnerabilidades sejam exploradas para o único fim de vender.

Em um momento em que muitos alardeiam a era do fim da privacidade, como se fosse algo trivial, em que se ouve a cada roda de conversa que alguém não teme a coleta massiva de dados e a vigilância “porque não tem nada a esconder”, talvez esta notícia faça com que todos passem a entender que a privacidade não é importante apenas para os corruptos, bandidos ou ditos subversivos, mas para que qualquer cidadão esteja protegido do modelo de consumo atual: a qualquer custo, sem limites e sem ética, ao qual todos estamos sujeitos.

É hora de pararmos para questionar as maravilhas que os sistemas de “Big Data” farão pela humanidade, usando os nossos dados para nos entregar o que há de mais perfeito para nossa personalidade ou para encontrar a origem de nossas doenças, e começarmos a entender que uma sociedade orientada para o lucro obviamente usará os recursos tecnológicos em vasta medida para este único e exclusivo fim.

E isso é verdade, apesar do que dizem os “evangelistas” de tecnologia, profissionais altamente qualificados, pagos por grande empresas do setor de “coleta de dados e softwares de inteligência” para apregoar, com apoio de potente máquina de influência de mídia, as benesses que serão um dia obtidas com o modelo em que nós entregamos nossas informações mais pessoais sem nem sequer entrar na lógica do lucro e cobrar por isso.

Exploração comercial de crianças e adolescentes

O mais incrível é que a exploração de dados para fins de lucro não encontra limites nem para com crianças e adolescentes, que devem ser tratados como prioridade absoluta – como estabelece a Constituição brasileira.

Pouco importa se pelo menos eles deveriam ser poupados de determinadas práticas mercadológicas até que tenham maturidade para compreender as implicações de terem seus dados disponíveis para as áreas de publicidade e marketing (no mínimo) das companhias.

Além da sanha do mercado, essa falta de limites está relacionada também com a fragilidade regulatória sobre a coleta, processamento, uso e, claro, proteção de dados pessoais. No Brasil, por exemplo, e apesar dos esforços de diversas entidades, especialistas, acadêmicos e juristas (muitos deles reunidos na Coalizão Direitos na Rede) de ver aprovada uma Lei de Proteção de Dados Pessoais, a agenda política do país e alguns interesses escusos têm impedido que o tema se torne prioridade no Congresso Nacional.

Pelo contrário, o que mais se vê são projetos de lei baseados na violação da nossa privacidade para, supostamente, nos proteger dos males contemporâneos.

Uma legislação adequada à proteção de dados dos cidadãos e cidadãs – em especial, dos mais vulneráveis – é necessária e mais do que bem-vinda. Mas o debate ainda encontra os limites na cultura, nas tecnologias disponíveis e no conhecimento dos brasileiros sobre o assunto.

Para tentar sustentar este outro pilar para a tão necessária garantia do direito à privacidade e à autodeterminação em dados pessoais, organizações como o Intervozes, Saravá, Actantes, Encripta Tudo e Escola de Ativismo organizam anualmente um evento aberto para discutir, neste contexto de coleta massiva de dados e vigilância constante por Estados e empresas, temas como segurança, privacidade, criptografia, técnicas e soluções tecnológicas para a proteção de cidadãos e organizações. Trata-se da CryptoRave.

A edição deste ano começa nesta sexta-feira, 5 de maio, e segue até o sábado 6, às 19hs, na Casa do Povo, em São Paulo. Serão 24 horas diretas de palestras, debates, oficinas, jogos e apresentações artísticas para todos os perfis de pessoas – desde os mais geeks até o cidadão comum, que acaba de descobrir que tem muito a perder se não começar a se atentar para o tema.

Nosso lema deste ano é: “Dance como se ninguém estivesse olhando, porque ninguém precisa de mais depressão no mundo. Mas criptografe, porque todos estão”.

* Marina Pita é jornalista, membro do Intervozes e uma das organizadoras da CryptoRave.  

Encontro em São Paulo discute ativismo e liberdade nas redes

Entre os dias 5 e 6 de maio acontece a quarta edição da CryptoRave, evento que tem como objetivo difundir conceitos fundamentais e softwares básicos de criptografia

São Paulo recebe entre os dias 5 e 6 de maio o maior encontro sobre tecnologia da América Latina, a CryptoRave. O evento, que já está em sua quarta edição, tem como objetivo difundir conceitos, a cultura e as ferramentas básicas do universo da criptografia, além de debater privacidade e liberdade nas redes.

O grande e acelerado avanço tecnológico mostra que, em tempos de retrocessos sociais e políticos, tensionamento entre setores e mobilização de grupos envolvendo os mais diferentes atores, o direito à privacidade deve ser considerado um direito fundamental de todo cidadão e cidadã. Contudo, encontramos atualmente diversas iniciativas que tentam desabilitar a criptografia em sistemas de mensagens instantâneas, como acontece com alguma frequência com o aplicativo WhatsApp.

É neste contexto que entidades e ativistas que defendem o direito à privacidade e ao uso de tecnologias que garantam esta privacidade se unem em torno da CryptoRave, um evento com duração de 24 horas voltado para pessoas interessadas no tema.

Desde 2014, a Crytorave vem se consolidando como um dos maiores encontros abertos e gratuitos sobre a privacidade nas redes. Organizado por coletivos como Actantes, Escola de Ativismo, Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Saravá, além de ativistas e hackers independentes, a iniciativa foi totalmente custeada por campanhas de financiamento coletivo e doações de entidades.

Diferentemente da maioria dos eventos de segurança da informação, para além dos aspectos técnicos, a Cryptorave aborda a questão também sob as perspectivas humana, social e política da privacidade. Neste sentido, o encontro oferecerá uma série de oficinas básicas para quem quer entender e melhorar a privacidade em sua comunicação – ou de sua empresa, organização, movimento.

Nas 24 horas do evento, estão programadas palestras, oficinas e atividades sobre segurança, criptografia, hacking, anonimato e privacidade na rede. Assuntos imprescindíveis para entender o impacto crescente da vigilância em massa e aprofundar o debate sobre privacidade na internet como direito fundamental e essencial à democracia.

A abertura do evento contará com a presença do jornalista investigativo James Bamford, um dos maiores especialistas em vigilância de massa e ciberguerra. “Ele nunca esteve no Brasil para um evento aberto, como é a CryptoRave, e estamos animados para o resultado deste encontro”, destaca Marina Pita, jornalista e integrante do Intervozes.

A CryptoRave 2017 será realizada na Casa do Povo, localizada na Rua Três Rios, 252, bairro Bom Retiro, na cidade de São Paulo (SP), a partir das 18 horas do dia 5 de maio (sexta-feira) até 19 horas do dia 6 de maio (sábado). A participação em todas as atividades é aberta mediante inscrição online gratuita, realizada no próprio site do evento: cryptorave.org.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

UNESCO publica relatório sobre concentração de mídia e liberdade de expressão

Documento, que abrange a situação nas Américas, foi lançado nesta quarta-feira, 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa

Foi lançado nesta quarta-feira, 3 de maio, na cidade de Assunção, Paraguai, o relatório “Concentração de Propriedade de Mídia e Liberdade de Expressão: Padrões e Implicações Globais para as Américas”, elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

O ato faz parte da celebração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa na América Latina e no Caribe, que começou nesta quarta e segue até sexta, dia 5 de maio. O relatório representa uma importante contribuição da UNESCO e de vários parceiros nos esforços para desenvolver padrões de comunicação que ultrapassem a barreira do exercício da liberdade de expressão, de forma a alcançar um ambiente de mídia diversificado e pluralista.

O documento elaborado por Toby Mendel, Angel Garcia Castillejo e Gustavo Gómez, especialistas mundiais na área da regulação dos meios de comunicação e em questões relacionadas à liberdade de expressão, mostra que há um esforço mundial para normatizar estas questões nos últimos 70 anos.

O relatório aborda a dupla proteção dos direitos à liberdade de expressão, do “falante” e do “ouvinte”, e apresenta ações para regular o mercado de mídia, com base no direito internacional. Este elemento proporciona a base jurídica do conceito de diversidade de meios de comunicação, o que pressupõe a colocação de obstáculos à concentração indevida da propriedade destes meios.

Neste contexto, a publicação pretende lançar luz sobre a regulamentação internacional dos meios de comunicação, bem como analisar as várias abordagens em nível nacional para fazer implementar essas normas.

A primeira parte do relatório dá exemplos de como a concentração indevida da propriedade e controle dos meios de comunicação afeta o livre fluxo de informações e ideias na sociedade, que em última análise representa o núcleo do direito à liberdade de expressão.

Na segunda parte, é apresentada uma visão geral das mais importantes normas internacionais sobre a concentração, bem como a jurisprudência apresentada pelos principais tribunais internacionais em relação ao assunto. A terceira parte, do anti-monopólio da mídia, relata o que têm sido implementado em algumas democracias consolidadas pelo mundo, a fim de atenuar a concentração da propriedade dos meios de comunicação, e são analisadas as consequências destas iniciativas. A quarta parte descreve as principais tendências na América Latina sobre a questão.

A quinta e última parte apresenta um conjunto de conclusões e recomendações que devem servir como orientações para os poderes políticos e a quem possa decidir sobre o tema.

Os principais conteúdos do relatório foram previamente discutidos pelos autores durante o seminário internacional “Mídias livres e independentes em sistemas midiáticos plurais e diversos”, ocorrido na cidade de Bogotá, Colômbia, em 18 e 19 de novembro de 2015, quando jornalistas, acadêmicos, gestores e representantes da mídia de mais de 25 países na América e Europa tiveram a oportunidade de discutir este e outros temas relacionados.

Confira o relatório disponível em Espanhol e Inglês.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação, com informações do Observatorio Latinoamericano de Regulación, Medios y Convergencia (OBSERVACOM)

Comunicação pública de Pernambuco pode estar com os dias contados

Baixo orçamento e reduzidas ferramentas de participação social podem levar ao desmonte das iniciativas de radiodifusão pública no estado

Por Eduardo Amorim e Cátia Oliveira*

Uma audiência pública na Câmara Municipal do Recife, na última quarta-feira 26, abriu espaço para discussões sobre o abandono de diversos órgãos públicos de comunicação em Pernambuco.

Enquanto vemos na mídia privada questões importantes, como a da reforma trabalhista, sendo distorcidas ou silenciadas, veículos que poderiam contribuir para que o debate de fato exista são sucateados.

Convocada pelo vereador Ivan Moraes Filho (Psol) para discutir a Rádio Frei Caneca, a audiência abordou também o possível fechamento da TV Pernambuco (TVPE), no Recife, o desmonte das estratégias de controle social e participação da TV Universitária (TVU) e o pouco investimento nas tevês e rádios legislativas.

Apesar de algumas vitórias importantes, como a digitalização da TVU e a entrada no ar da Rádio Frei Caneca, a situação de Pernambuco reflete o que acontece em um estado onde a comunicação pública vive de promessas não cumpridas.

Também faz parte de um contexto nacional de desmonte acelerado da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) pelo governo ilegítimo de Michel Temer.

Em Recife, a Empresa Pernambuco de Comunicação (EPC), empresa pública que gere a TVPE, veicula conteúdos da EBC e conta com retransmissoras em mais de 60 municípios, ao contrário das tevês comerciais, que têm menor alcance (principalmente em regiões mais afastadas).

Mas esse cenário pode mudar.

No calendário do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), o desligamento do sinal analógico dos televisores e a substituição pelo digital estão previstos para meados de julho deste ano.

A TVPE, ainda operando com sinal analógico, deverá sair do ar na capital pernambucana, já que não foi cumprida a promessa do ex-governador Eduardo Campos de investimento de R$25 milhões para modernizar a emissora.

Vale lembrar que muitos municípios em diversas áreas do Estado não contam com transmissoras locais nem recebem sinal de cidades vizinhas. Sem acesso à informação, tais lugares tornaram-se conhecidos pelo uso das parabólicas. As antenas captam sinal de diversas regiões, não necessariamente da localidade onde estão.

O fenômeno leva as pessoas a desconhecer o que é produzido em seu Estado, incluindo aí parte de seu patrimônio cultural, assim como acontecimentos e problemas de sua região, em detrimento de outras.

Um exemplo é o que já acontece em Araripina. Segundo o representante do município na audiência pública, o blogueiro Portnalli Chuim, a emissora atualmente não chega à sua cidade.

Para resolver o problema, a sociedade civil demanda a implementação de uma estação retransmissora em Ouricuri, ponto ideal para atingir toda a região do sertão do Araripe.

Segundo o diretor-presidente da EPC, Guido Bianchi, a digitalização da TVPE precisaria começar por Caruaru, onde se localiza a geradora do sinal da emissora.

Em seu Plano de Gestão para 2016, a EPC estimou em R$ 4 milhões a implantação da transmissão digital na cidade de Caruaru e em Recife. Porém, essa não parece ser uma prioridade do governo estadual.

Enquanto as cifras para publicidade crescem, a TV pública permanece à míngua, correndo o risco de deixar de existir se não for digitalizada. No mesmo ano, conforme dados do site Ombudspe, o governador Paulo Câmara injetara 17,4 milhões de reais no orçamento previsto para publicidade oficial.

Isto sobre um montante já provado na Lei Orçamentária Anual (LOA) de R$ 54,5 milhões, somando então mais de R$ 70 milhões no total.

A farra dos gastos publicitários se repete na capital. O vereador Ivan Moraes denunciou durante a audiência pública que, em 2017, a Prefeitura do Recife já havia pedido uma suplementação de verba para publicidade, podendo chegar a gastos de R$ 15 milhões.

No entanto, parece difícil que sejam disponibilizados os R$ 1,7 ou R$ 2 milhões necessários, segundo o diretor da Rádio Frei Caneca, Patrick Torquato, para que a emissora pública municipal comece a funcionar com programação e equipe próprias.

Participação social? Só no papel

Inspirada nos moldes da EBC, a EPC foi criada atendendo a uma reivindicação antiga e persistente dos movimentos sociais de comunicação, entre outros segmentos.

A proposta de reestruturação da antiga tevê do Estado foi a mais votada da Conferência Estadual de Comunicação, em 2009. Após muitas pelejas, a lei de criação de empresa pública EPC foi aprovada e foi instituído um Conselho de Administração – com membros da sociedade civil com poder decisório.

Contudo, a nova estrutura da empresa permaneceu sem recursos compatíveis com o seu funcionamento.

Hoje, com um novo quadro eleito de conselheiros/as ainda não nomeados/as e sem previsão de orçamento para seu porte, a emissora vem deixando de atender às demandas de produção de conteúdo que poderiam ser veiculados em sua grade.

Em relação à TV Universitária – que não faz parte da EPC e é ligada à Universidade Federal de Pernambuco –, o cenário é melhor por já ter sido digitalizada, mas ainda está longe do ideal em termos de participação.

Em 2015, um comitê formado por funcionários, professores e integrantes de Organizações Não Governamentais do campo do direito à comunicação, além de representações de movimentos sociais, deram início a um processo de reestruturação do Núcleo de TV e Rádio Universitária (NTVRU), que tem alcance metropolitano.

Após vários encontros e debates, foram elaborados documentos que norteariam as práticas para uma efetiva comunicação pública: participação social; transparência e possibilidade de acesso dos diversos segmentos da cultura, entre outras áreas; construção participativa da grade de programação dos veículos, com pluralidade de conteúdos e elaboração de editais de ocupação.

No entanto, a nova direção do Núcleo, que acompanhou o processo de digitalização da emissora, ainda não tirou as propostas do papel.

Uma rara boa notícia na TV Universitária é o programa Fora da Curva, realizado em parceria com diversas organizações sociais.

A falta de resposta às demandas da sociedade também é a prática de gestão municipal da rádio pública Frei Caneca FM. Depois de mais de 50 anos de reivindicações, apenas em 2016 a rádio foi colocada no ar pela prefeitura, mas ainda em caráter experimental.

Desde então, a FM funciona de forma muito aquém de seu potencial e de sua proposta inicial, tendo produzido conteúdo próprio apenas durante o carnaval, quando abriu os microfones para um programa de entrevista sobre o frevo e a produção local. Durante o restante do tempo, a Frei Caneca tem ocupado sua grade de programação com música. Porém, um veículo público deveria ser bem mais que uma playlist de qualidade.

As iniciativas do legislativo para tentar resolver a falta de orçamento também têm sido ignoradas. Em 2016, o deputado estadual Edilson Silva destinou R$ 260 mil de emenda parlamentar para a emissora.

Até agora, o convênio entre a Secretaria de Planejamento e Gestão do Governo do Estado e a Secretaria de Planejamento do Recife não foi sequer firmado para recebimento da verba e os recursos correm, cada vez mais risco, de serem perdidos.

Permanecem distantes da rádio os 90 minutos diários de jornalismo (sendo 50% por cento de conteúdo local), as 3 horas semanais de programas voltados a propostas para o público infantil e infanto-juvenil (com ênfase de conteúdos locais conteúdos locais e regionais realizados, concebidos e desenvolvidos por produtores independentes do Estado), além da garantia de 20% de conteúdos radiofônicos criados e desenvolvidos por produtoras independentes do estado.

Tais diretrizes, além da constituição de um conselho com participação social, com caráter deliberativo  e fiscalizador, integram as 54 propostas apresentadas em audiência pública na Câmara Municipal do Recife, em 2014.

Passados três anos, mais uma audiência pública mostrou que as 54 propostas sequer foram homologadas pela atual administração, com a recondução ao cargo do prefeito Geraldo Julio.

“As propostas ainda não foram publicadas no Diário Oficial. Nem uma versão em papel timbrado chegou a ser apresentada. Assim, apesar toda legitimidade, elas permanecem sem valor de documento. Além disso, a rádio não tem existência jurídica e também não consta no organograma da Prefeitura. Essa falta de reconhecimento oficial lança sérias dúvidas a respeito do compromisso da gestão com o caráter público da emissora e deixa um campo aberto para arbitrariedades na Frei Caneca”, denuncia Renato Feitosa, integrante do Grupo de Trabalho (GT) que foi constituído pela Fundação de Cultura da Cidade do Recife (FCCR), ligada à Secretaria Municipal de Cultura, para a implementação dos 54 pontos.

As reuniões do GT foram suspensas pela gestão no final do ano passado.

Apesar de insistentes questionamentos de representantes do Fórum Pernambucano de Comunicação (Fopecom) na audiência pública, o presidente da FCCR, Diego Rocha, não se comprometeu com um prazo para publicar no Diário Oficial as 54 propostas, nem para realização de concurso para contratação de profissionais, efetivação de um Conselho com participação social ou a própria estruturação do órgão dentro do organograma do governo municipal.

Efetivamente, a única evolução da audiência foi que o Grupo de Trabalho que vem discutindo a implementação da Frei Caneca finalmente será formalizado em reunião aberta e voltará a se reunir na semana que vem, 09 de maio, em um dos auditórios do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães.

A falta de recursos e as formas precárias de participação social colocam em risco a própria existência de uma radiodifusão pública em Pernambuco. A sociedade está de olho, mas é preciso que as diferentes esferas do governo encarem a questão com seriedade e evitem o fim desta fundamental ferramenta para a democracia.

*Eduardo Amorim e Cátia Oliveira são jornalistas e integrantes do Coletivo Intervozes. Cátia é mestra em Ciência Política pela UFPE e foi conselheira pela sociedade civil do Conselho de Administração da EPC, além de integrar o Grupo de Trabalho para implantação das propostas para a Rádio Frei Caneca. Eduardo é vice-presidente da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco.

Temer mandou, a imprensa obedeceu: cobertura não fala ou foca na greve

No dia em que milhões de trabalhadores pararam o país contra as reformas da previdência e trabalhista o jornalismo brasileiro não falou em greve geral

Por Bia Barbosa e Mônica Mourão*

Manda quem pode, obedece quem tem juízo, diz a sabedoria popular. Bastou a primeira greve no país desde que assumiu ilegitimamente o governo para se perceber que a relação entre a imprensa comercial e Michel Temer é de servidão ou sintonia.

O posicionamento oficial do governo, divulgado através de nota do Presidente e em entrevista do ministro da Justiça Osmar Serraglio, estava no mesmo tom da cobertura feita nesta sexta (28) pelos principais veículos do país. A ordem era não falar em “greve geral”, mas sim em “dia de protestos” e, no máximo, “paralisações”.

E isso foi o difundido para a população brasileira.

Segundo a BandNews, o que houve no Rio de Janeiro “não foi uma greve. […] Foi um dia de muitos problemas, de muito caos para as pessoas que seguiam para o trabalho, que queriam tocar a vida”. No Jornal Hoje, da Globo, foram ao ar 40 minutos de matérias sobre a greve sem que a palavra fosse usada. Falou-se em “paralisação de 24 horas chamada pelos sindicatos”. Na Record, nada da expressão “greve geral”. O tom da cobertura deu ênfase para as depredações e nenhuma explicação das motivações do movimento.

Nos bastidores do jornalismo, circulou a notícia de que essa foi uma orientação das chefias em diferentes veículos, de grupos de mídia diversos. Mas aí não houve coincidência, e sim uma orquestrada combinação entre governo e corporações midiáticas, que os jornalistas – também trabalhadores – tiveram que seguir.

Palavras são arma sem pólvora e, quando apontadas para o mesmo lado, têm um grande poder de destruição de certas ideias e construção de outras. Afinal, o que se espera de uma greve e qual a diferença entre ela e protestos de rua?

A greve é justamente um momento chave na consciência da classe trabalhadora, que se nega a vender o único bem que possui para a economia: sua força de trabalho. O que se espera de uma greve é, portanto, o esvaziamento do comércio, das escolas, repartições, escritórios. Justamente o contrário de um “dia de protestos”, cujo sucesso pode ser medido por ruas cheias, tomadas por manifestantes. Embora também houvesse atos de rua marcados para 28 de abril, reduzir a data a isso e “esquecer” de mencionar ou adotar o termo “greve geral” (ou mesmo “greve”) faz com que a população não tenha acesso ao básico para compreender o que aconteceu no dia de ontem – e o que está em curso no país.

Definir a sexta-feira como “dia de protestos”, como também fez a GloboNews durante todo o dia, não só distorceu o que de fato ocorria como legitimou as declarações da gestão Temer de que “tudo não passou de vias interditadas”. A parceria Planalto-grande mídia continua firme.

O foco nos transtornos e na violência, o silêncio dos manifestantes

“Protesto de centrais afeta transportes e tem violência” (O Globo), “Greve afeta transporte e comércio e termina com atos de vandalismo” (O Estado de S. Paulo), “Greve afeta transporte e termina em vandalismo” (Correio Braziliense), “Greve atinge transportes e escolas em dia de confronto” (Folha de S. Paulo).

As manchetes dos jornais deste sábado (29) não conseguiram mais omitir o termo vetado durante o dia de ontem. Mas mostram, uma vez mais, que a mídia pratica o velho “faça o que eu digo, mas não o que eu faço”. Enquanto publica matérias sobre como a criatividade brasileira pode nos tirar da crise, segue com a mesma velha fórmula em coberturas de manifestações: foco nos transtornos gerados nos transportes para quem quis trabalhar (sem ouvir se essa escolha de fato existia) e na violência dos “vândalos”.

Ao longo da sexta-feira, o Intervozes acompanhou a cobertura jornalística dos principais noticiários do Brasil, na televisão (Globo, GloboNews, Record), na internet (Uol, R7, G1, Correio, Veja, Portão Estadão) e no rádio (BandNews, CBN e Agência Brasil). Com algumas sutilezas, em especial no Jornal Nacional, o tom foi o mesmo das manchetes de hoje. E a cobertura foi abundante, durante todo o dia, ao contrário do silêncio sobre as mobilizações registrado na véspera da greve. Mesmo sendo de conhecimento público que ela estava programada para aquele dia, a mídia preferiu não anunciá-la.

Na Globo, o Jornal Nacional foi o único a falar sobre o conteúdo das reformas trabalhista e da previdência. Em cerca de 4 minutos, ao final das reportagens sobre as manifestações, apresentou as principais propostas de cada uma. Dos 50 minutos totais de programa, toda a primeira parte do jornal, de 20 minutos, foi dedicada à greve geral. O termo acabou sendo usado pelos apresentadores, depois de ter sido evitado ao longo do dia. Foram entrevistadas 16 pessoas (entre elas Paulinho da Força Sindical, o presidente da CUT Wagner Freitas e o ministro da Justiça Osmar Serraglio) e lida a nota de Michel Temer. O JN tentou equilibrar as opiniões sobre a greve, ao contrário dos outros telejornais da emissora.

Pela manhã, no Bom Dia Brasil, a culpabilização dos sindicatos foi gritante. Segundo Alexandre Garcia, “o movimento sindical não quer deixar de receber o valor de um dia de trabalho do assalariado com a contribuição sindical, ainda tira mais um dia de trabalho do país que precisa produzir, voltar a crescer e gerar emprego”. A pauta reduziu-se a uma tentativa de se manter “privilégios” desse grupo.

No Jornal da Record, foi entrevistado um advogado que disse: “Nunca vi sindicato pagar multa, nunca vi sindicato fazer uma prestação de contas em relação aos seus sindicalizados do movimento e nunca vi o sindicato obedecer ordem judicial”. O mesmo tom seria depois repetido na fala do ministro da Justiça Osmar Serraglio, mostrando mais uma vez a orquestração da mídia com o governo.

No rádio, a Agência Brasil, agora com sua independência cerceada pelas mudanças na lei da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) feitas via Medida Provisória, veiculou notas do governo e defendeu amplamente as reformas trabalhista e da previdência. No CBN Brasil, só foram lidos os comentários de ouvintes contrários à greve. A propaganda da previdência privada do Bradesco, veiculada várias vezes durante o programa, explica bem os interesses em jogo.

Enquanto se ouviu muito sobre transtornos e vandalismo, o silenciamento dos principais atores da mobilização foi brutal. O Jornal da Record conseguiu não dar voz sequer a um manifestante ou sindicalista, enquanto deu espaço para Temer e seu ministro da Justiça. No Jornal Hoje, da Globo, sindicatos só foram citados ao mencionar os números de adesão à greve. Em 40 minutos de cobertura, foram reservados menos de 10 segundos para ouvir um manifestante e um sindicato. A primeira fala de uma central sindical na programação da GloboNews foi veiculada, pasmem, às 22h18 – e não durou um minuto.

A velha tática de mostrar cenas de violência para colocar a população contra as manifestações também se repetiu. Na GloboNews, quatro horas praticamente ininterruptas (das 16h30 às 20h30) mostrando a ação de black blocs. Como não se indignar com o movimento? Na internet, durante todo o dia, as fotografias que representavam a greve mostravam pneus queimados, policiais enfileirados e armados, confronto entre manifestantes e polícia. Houve muito destaque para as falas de João Doria, prefeito de São Paulo (que chamou os grevistas de “vagabundos”), do ministro da Justiça e, no final da noite, de Temer. O foco das coberturas em tempo real era a divulgação dos serviços em funcionamento e notícias sobre o trânsito. De novo, nada sobre as cerca de 100 categorias que pararam neste dia 28. E quase nada sobre as propostas de reforma em tramitação no Congresso.

Repórteres no chão: as sutilezas da manipulação midiática

Não se pode dizer que a mídia não aprendeu com as manifestações dos últimos anos, especialmente do emblemático 2013. Depois de a grande imprensa ter sido confrontada principalmente pela cobertura em tempo real da Mídia Ninja, a GloboNews resolveu incorporar seu modus operandi. Nesta sexta, jornalistas da emissora estiveram no chão, em meio às manifestações, e não cobrindo apenas a partir do helicóptero da empresa. Fizeram transmissões ao vivo com imagens de baixa qualidade técnica, ficaram sufocados com gás lacrimogêneo, correram ofegantes.

Assim, as denúncias de parcialidade (já que estariam “mostrando tudo” em “tempo real”) poderiam ser rebatidas. No Estudio I, uma das comentaristas falou claramente que não se podia criminalizar os movimentos. Mas até que ponto, vale perguntar, com o espaço para as divergências sendo tão residual, essa suposta “reaproximação” com os fatos não seria mais uma estratégia de marketing para ampliar o público (como já fez com a criação do aplicativo Na Rua) e para se sintonizar com uma audiência privilegiada (apenas 32% têm TV por assinatura no Brasil) que têm acesso a outras fontes de informação?

Novamente, a diferença na cobertura internacional

Se o discurso arquitetado politicamente na imprensa nacional garantiu que a maior parte da população brasileira passasse o dia desinformada sobre a greve que de fato ocorria no país, uma vez mais os leitores de outros países tiveram mais chances de compreender o que aconteceu neste 28 de abril.

O The New York Times não teve dúvidas: afirmou “Brasil imobilizado por greve geral contra medidas de austeridade”. Pode-se até divergir do discurso sobre a austeridade, mas o primeiro parágrafo do texto fazia, de cara, a relação das paralisações também com os escândalos de corrupção do governo Temer e dava voz a um cidadão que declarou: “Temer odeia os trabalhadores. Este é o pior governo que o Brasil já teve”. Mais adiante, a reportagem explicava as medidas propostas pelas reformas previdenciária e trabalhista, apresentava os baixíssimos índices de popularidade de Temer (apenas 4%) – que não foram mencionados por nenhuma emissora de TV em sua cobertura da greve – e falava das denúncias de propina contra o próprio presidente.

“Seus principais assessores denunciaram a greve, com o ministro da Justiça, Osmar Serraglio, fazendo pouco caso dela e taxando a mobilização de “nonsense” e de “baderna generalizada” em uma entrevista. Mas com os membros do Congresso tentando preservar os benefícios de sua generosa aposentadoria, a elite política parece mesmo ignorar o humor das ruas”, criticou o NYT.

O francês Le Monde chamou a greve de “histórica”, relatando os diversos setores e categorias que cruzaram os braços. O foco, ao contrário do dado pela imprensa brasileira, ficou longe dos transtornos da greve nos transportes. Falaram de bancos, correios, escolas públicas e privadas, comércio e do setor de saúde, divulgando a estimativa, dos sindicatos, de 40 milhões de trabalhadores parados. E como direito trabalhista é algo que a França costuma valorizar, o Le Monde também explicou as propostas inclusas nas reformas em debate no Congresso – algo que os veículos nacionais não acharam importante fazer nesta sexta. Tampouco as definiram como “modernização na legislação”, como orienta a cartilha do Planalto.

A BBC destacou que esta foi a “primeira greve geral em duas décadas” no Brasil. E achou jornalisticamente relevante – porque de fato é – informar que diversas denominações religiosas tenham apoiado a paralisação. Ouviu o porta-voz da igreja anglicana, que explicou a posição de encorajar seus seguidores a participarem do movimento “porque entende a situação política” atual e as condições de vida do povo.

Os exemplos mostram que, se quisesse fazer bom jornalismo nesta cobertura, seria muito fácil. A imprensa alternativa fez, com destaque para a intensa cobertura da equipe do jornal popular Brasil de Fato. Mas os tradicionais veículos brasileiros mais uma vez passaram bem longe disso. Um dia, a fatura chegará.

*Bia Barbosa e Mônica Mourão são jornalistas e integram o Conselho Diretor do Intervozes. Colaboraram: Alex Pegna Herzog, Eduardo Amorim, Olívia Bandeira, Ramênia Vieria e Raquel Dantas, todos integrantes do Intervozes.