Na Bahia, novo edital da TVE, maior entre os lançados até agora para a produção televisiva, usa recursos do Fundo Setorial do Audiovisual
Alex Pegna Hercog*
No dia 15 de maio o Governo do Estado da Bahia lançou o maior edital de fomento à produção audiovisual para a televisão brasileira. O “Bahia na Tela” irá destinar 20 milhões de reais para produções autorais que serão exibidas na TVE a partir da parceria entre o Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (Irdeb) e a Agência Nacional de Cinema (Ancine), via Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
O recurso irá contemplar produtoras independentes que produzirão cerca de 90 horas de conteúdo que serão veiculados na TV pública baiana. As categorias contemplam ficção, documentários e séries, com temáticas que pretendem representar a diversidade do conjunto da sociedade brasileira, pouco vistas na tela das TVs comerciais.
O edital prevê recursos para obras que abordem temas como cultura africana e indígena; universo LGBT, rural e jovem; questões relacionadas ao uso de drogas; cultura geek e digital; mulheres baianas; terceira idade; diversidade religiosa; pessoas com deficiência; segurança alimentar; esportes; agroecologia, dentre outros temas ligados aos territórios de identidade e à própria cultura da Bahia.
Ao adotar uma política de incentivo à pluralidade de representações no audiovisual e de valorização da TV pública, o projeto se contrapõe ao novo modelo político adotado pelo governo de Michel Temer para o setor da comunicação pública, materializada pela Lei nº 13.417/2017 que operou mudanças negativas na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), dentre as quais, a extinção do seu Conselho Curador.
Ainda interino, o governo Temer exonerou o diretor-presidente da EBC, Ricardo de Melo, que tinha mandato a ser cumprido até 2020, e colocou em seu lugar o jornalista Laerte Rimoli. Desde então, os processos de desmonte da empresa se intensificaram com corte de investimentos, interferência na programação da TV Brasil, perseguição de funcionários e, em alguns casos, práticas de censuras de conteúdos e entrevistados.
Além disso, ao associar política de fomento audiovisual, vinculado ao setor da cultura, à produção de conteúdo para a TV pública, o edital também se contrapõe ao processo de desvalorização da cultura promovido pelo atual governo federal.
Como se sabe, ao assumir interinamente, Michel Temer extinguiu o Ministério da Cultura (Minc), mas voltou atrás após uma série de ocupações e protestos que exigiam a manutenção da pasta. O ministro nomeado foi o advogado Roberto Freire (PPS) que nos últimos dias renunciou ao cargo logo após a publicação das gravações envolvendo Temer e Joesley, presidente da JBS. Enquanto ministro, Freire já havia anunciado que “renovaria” o perfil da Ancine, cuja diretoria era classificada pelo jornal O Globo como “último ‘bunker’ pró-Dilma”.
Não por acaso, o novo edital ainda é resultado de propostas formuladas durante a última gestão da diretoria colegiada da Ancine – nomeada ainda no governo da presidenta Dilma Rousseff – incluindo o diretor-presidente Manoel Rangel, que participou do evento de lançamento do edital na Bahia, uma de suas últimas atividades oficiais antes de encerrar o seu mandato, no dia 19 de maio. Vale lembrar que a Ancine, autarquia vinculada ao Minc, sofre com a instabilidade política vivida no atual governo.
Representatividade na tela e atrás dela
Uma das principais políticas do “Bahia na Tela” é o estímulo à diversidade de conteúdo a ser produzido. Suas categorias e eixos temáticos pretendem contemplar obras que tratem de questões normalmente preteridas pelas televisões comerciais.
No entanto, a cineasta Larissa Fulana de Tal, que pertence ao Coletivo Tela Preta e à Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), pondera o fato de o edital não estabelecer nenhuma política afirmativa. Para Larissa, é importante garantir que a diversidade esteja contemplada também no perfil das produtoras. “Ao olharmos a imagem observamos o que está no campo, o que compõe a imagem. Não é novidade o diagnóstico de quais os papéis que os personagens negros ocupam nas histórias do cinema. Bem como fora do campo, atrás das câmeras, que não é revelado, mas é refletido na imagem, a ausência dos nossos corpos”, afirma Larissa, que destaca a necessidade de se pensar também o lugar do realizador e não apenas da temática.
David Aynan, que também pertence ao Coletivo Tela Preta, complementa ressaltando que “não podemos esperar que as ações afirmativas resolvam a problemática da representação e inserção dos negros no mercado audiovisual. É preciso que o mercado compreenda que o cinema negro é um bom negócio”.
Já Lilih Curi, da Segredo Filme, que no início do ano promoveu uma mostra de cinema com produções femininas, comemorou o lançamento do edital, considerando uma importante oportunidade de fomento à produção do audiovisual da Bahia. Mas ela também destacou a necessidade de haver uma paridade racial e de gênero nas comissões julgadoras dos projetos inscritos. Segundo Lilih, esse equilíbrio é “urgente, pois contempla as diferenças de olhares e fazeres no audiovisual, e o mercado recebe um conteúdo mais diverso e democrático”.
Flávio Gonçalves, diretor-geral do Irdeb, afirmou que a paridade de gênero nas comissões avaliadoras do edital está garantida, mantendo a política interna já adotada pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia.
Política de fomento
O uso do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é uma das grandes apostas para o fomento da produção nas TVs públicas. Trata-se de uma categoria específica do Fundo Nacional da Cultura, utilizada para o fomento da produção audiovisual brasileira.
Para Flávio, o FSA dispõe de recursos públicos e, portanto, deve atender não apenas ao segmento da TV comercial, mas também da TV pública. “É o que fizemos agora na Bahia. Com estes recursos os produtores poderão produzir, a sociedade poderá assistir na TVE e depois em outras emissoras que tenham interesse no conteúdo”, destaca.
Segundo ele, o “Bahia na Tela” será um estímulo à TVE. Isto porque a comunicação pública no Brasil está longe de ser compreendida pela população como algo essencial à democracia. “Por isso, a sociedade exige pouco em termos de investimentos e isso faz com que tenhamos dificuldades no funcionamento das TVs”, afirma o diretor-geral, que concluiu dizendo que o mais relevante é fortalecer a comunicação pública, ampliando o alcance e a audiência.
É importante ponderar, no entanto, que a parceria com a Ancine é restrita à produção de conteúdo, com a garantia de exibição pela TVE. Isso, por si só, não contempla todas as necessidades de funcionamento de uma TV pública. A realidade das emissoras públicas pelo Brasil, inclusive a TVE, é delicada. Ao contrário do que acontece em países como Argentina e Inglaterra, falta o reconhecimento da importância da comunicação pública tanto pela sociedade quanto pelos governos.
Além de exibir um conteúdo de qualidade, é fundamental que a TV possua infraestrutura capaz de levar o sinal para o máximo de territórios. Possuir uma equipe permanente de funcionários capazes de produzir independente de eventuais editais também é condição necessária para a sobrevivência das TVs públicas.
Nesse sentido, o “Bahia na Tela” cumpre um papel essencial para a democratização do conteúdo, mas é necessário que a valorização da TV pública vá além de produções pontuais. Sua efetividade só se dará a partir do investimento necessário para garantir seu pleno funcionamento, com infraestrutura e recursos humanos capazes de desenvolver um projeto contínuo a serviço da comunicação pública.
*É relações públicas e membro do Coletivo Intervozes