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OEA: “Brasil enfrenta contexto delicado para liberdade de expressão”

Relator da OEA, Edison Lanza afirma preocupação com repressão a protestos, vigilância na internet e retirada dos mecanismos de autonomia da EBC

Por Bia Barbosa*

Em agosto de 2015, o relator especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a liberdade de expressão – o uruguaio Edison Lanza – esteve no Brasil e, a convite da sociedade civil, se reuniu com diversas autoridades e ministros do governo Dilma Rousseff.

Na época, o objetivo de Lanza era dialogar com o poder público brasileiro no sentido de promover políticas públicas de incentivo à diversidade e pluralidade na mídia brasileira.

A partir da escuta de demandas de organizações com o Intervozes e o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Lanza colocou a relatoria especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos à disposição para contribuir no debate sobre um novo marco regulatório para as comunicações no país, que democratizasse a liberdade de expressão no Brasil.

Pouco mais de um ano depois, Lanza volta o país num contexto muito diferente para o exercício deste direito. Nesta segunda-feira 26, ele participou em São Paulo de um debate sobre o estado da garantia da liberdade de expressão no Brasil e demonstrou preocupação com as ameaças em curso ao direito à palavra em nosso território.

“Estamos num contexto difícil e delicado para a democracia no Brasil, daí a importância de discutirmos o papel da liberdade de expressão para as democracias. A Convenção Americana de Direitos Humanos, as cartas e princípios da OEA falam de uma democracia com pluralismo de ideias, com debate democrático e a garantia de um jornalismo livre e independente, não apenas uma democracia formal”, explicou Edison Lanza.

Segundo o relator, a ausência de políticas de promoção à diversidade e pluralidade midiática é uma característica histórica do Brasil. Porém, a preocupação hoje é com a regressão de avanços obtidos no país no campo das comunicações. “O princípio da não regressão em matéria de direitos humanos também se aplica à liberdade de expressão”, lembrou.

Em junho deste ano, em conjunto com a relatoria especial da ONU para o tema, a OEA publicou um comunicado em que manifestava preocupação com as medidas adotadas pelo então governo interino de Michel Temer em relação à intervenção na direção da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e à conversão da Controladoria Geral da União (CGU) em Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle.

“A interferência na direção da EBC e a conversão da CGU em Ministério são passos negativos para um país conhecido pelo seu sólido compromisso com a liberdade de opinião e expressão”, falava o texto.

Lanza contou que, na época, o governo Temer respondeu ao comunicado afirmando que respeitaria a autonomia da EBC, mas isso não aconteceu.De lá pra cá, como comentamos várias vezes neste blog, um golpe também foi dado ao caráter público da Empresa Brasil de Comunicação.

Além da destituição do presidente Ricardo Melo e da dissolução do Conselho Curador, ambos via medida provisória, da extinção de programas e demissão de dezenas de profissionais, na última semana a nova direção da EBC trocou os ouvidores de rádio e TV da empresa. Foi a primeira vez que eles foram indicados diretamente pelo Planalto.

Direito aos protestos e à privacidade

Outro tema que preocupa a relatoria da OEA é o avanço da repressão a protestos. A visita de Lanza ao país foi justamente para ouvir movimentos sociais e ativistas vítimas de repressão das forças de segurança em manifestações públicas.

O relator está preparando um informe temático da região sobre os protestos e veio ao Brasil para coletar casos específicos. Com o apoio da Artigo 19, organização internacional que trabalha com este tema, já se reuniu em Brasília com movimentos de luta pela terra e, em São Paulo, com estudantes, mulheres e comunicadores que cobrem protestos e também são atingidos pela repressão policial.

“Protestos ganham força quando a população não encontra outra forma de interlocução com os governos. Para muitos grupos sociais, a proteção a esta forma de expressão é vital. E hoje vemos no Brasil uma série de obstáculos para a garantia do direito ao protesto, como a exigência de autorização prévia para as manifestações, o uso desproporcional da força – em vez de se facilitar o exercício deste direito – a violência contra jornalistas, com a apreensão de equipamentos de trabalho e a vigilância das lideranças”, afirmou Edison Lanza.

O relator citou ainda como preocupante os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que pretendem alterar o Marco Civil da Internet e autorizar uma coleta massiva de dados da população. Ele lembrou que a proteção do direito à privacidade dá ao cidadão o direito de saber, por exemplo, quem está coletando dados, por quanto tempo e o que está sendo feito com eles.

Durante o evento em São Paulo, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA lançou uma publicação com os informes dos últimos 10 anos sobre a situação no Brasil.

O documento também aponta problemas como a intimidação e ameaças a comunicadores e blogueiros; decisões judiciais que restringem a liberdade de expressão, como casos de remoção e proibição da publicação de determinados conteúdos; e a criminalização das rádios comunitárias.

No domingo 25, Edison Lanza também se reuniu com organizações da sociedade civil e comunicadores e recebeu uma série de denúncias de violações que vem sendo praticadas no país.

Ele se comprometeu a analisar todos os casos. Já as entidades brasileiras, entre elas o Intervozes, devem se organizar para solicitar formalmente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma audiência pública em Washington, sede da OEA, em março de 2017, para discutir o quadro de violações à liberdade de expressão no Brasil.

“Hoje, mais do que nunca, é importante retomar a defesa desssa liberdade. Sem sua plena vigência, não há verdadeira democracia”, concluiu Lanza.

*Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos, coordenadora do Intervozes e secretária geral do FNDC.

A falência da Oi e a entrega do patrimônio público

A portas fechadas, governo Temer e Anatel entregarão R$ 11 bilhões de recursos públicos de multas para a concessionária “investir” em sua própria rede

Por Marina Pita*

Em meio ao turbulento cenário político, com direito a eleições municipais, é arranjada, a portas fechadas, a solução para não deixar a Oi, maior concessionária de telecomunicações do País, fechar as portas e deixar mudos 50% dos municípios do Brasil que dependem exclusivamente de sua infraestrutura. A gravidade da situação pode levar à entrega de bilhões de reais em bens e recursos públicos para salvar não apenas o serviço, mas gerar mais uma onda de acúmulo de capital no País. Quem sairá perdendo, ao contrário do que dizem, é o cidadão.

“Não podemos deixar o sistema parar. A malha da Oi é crucial para outras operadoras. Muitas podem não falar entre si se houver problemas com a Oi”, afirmou recentemente Isaac Averbuch, assessor do conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) Igor de Freitas.

A declaração, feita durante um evento do setor, publicada no site Convergência Digital, é um indício de como o piloto automático pode ser acionado sem que o interesse de longo prazo dos usuários seja considerado na prestação do serviço.

Isso porque o plano de recuperação judicial da Oi – recorde no País, de R$ 65,4 bilhões – inclui o pedido à Anatel da conversão da dívida da empresa, que chega a R$ 11 bilhões de multas, em investimentos na sua própria rede. Tais multas são resultado, em grande parte, do não cumprimento das obrigações da Oi enquanto concessionária de telefonia fixa.

Mas, por este não cumprimento, a Oi, em vez de ressarcir o Tesouro, vai usar os recursos para melhorar seu patrimônio privado. Ou seja, por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), Anatel e governo federal autorizarão a entrega de recursos públicos à construção de ativos privados.

A ideia já recebeu acenos mais ou menos explícitos do comando da vez. O secretário de Telecomunicações do novo Ministério da Ciência e Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), André Borges, já declarou que conta com esses recursos para a ampliação das redes de banda larga no País.

Ex-diretor da NET e da Oi, com atuação na área regulatória das companhias, Borges não chega a engasgar com a proposta. Ignora a necessidade, para o País, de uma infraestrutura de banda larga gerida para atender às necessidades da população hoje excluída digitalmente. Caberá ao mercado, uma vez mais, decidir como e onde investir os recursos públicos

Ideia antiga

Nas telecomunicações, a proposta de entregar recursos e bens públicos à iniciativa privada é algo antigo. Ainda no governo Dilma Rousseff, o então ministro das Telecomunicações, Paulo Bernardo, chegou a ventilar a ideia de, em vez de garantir o retorno das redes de telecomunicação à União ao final dos contratos de concessão da telefonia fixa, o caminho seria entregá-las à iniciativa privada, como incentivo ao setor.

Organizações da sociedade civil e de defesa do consumidor precisaram ameaçar o governo com uma ação civil pública para que Bernardo congelasse seus planos. O ministro percebeu a ilegalidade da medida e a derrota que viria na Justiça.

No final de 2015, o Tribunal de Contas da União (TCU), entendendo que os bens reversíveis são patrimônio público, que não podem ser simplesmente entregues ao setor privado, obrigou a Anatel a apurar o valor obtido por cada concessionária em todas as alienações desses bens realizadas desde 1998.

Em março deste ano, a Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor obteve uma nova vitória neste sentido. O Poder Judiciário rejeitou os pedidos da Anatel para anular sentença que protegia os bens reversíveis vinculados aos contratos de concessão da telefonia fixa.

Onde andava a Anatel?

Neste momento de “recuperação judicial” da Oi, cabe nos perguntarmos: onde estava a Anatel este tempo todo, incapaz de observar ou de agir diante dos rumos e riscos que se desenhavam para a “supertele”? Por um lado os dividendos dos acionistas foram garantidos. Por outro, vigorou a ineficiência do serviço, essencial, em pelo menos 3 mil municípios.

“Um acompanhamento mais próximo da agência poderia ter ajudado em medidas que pudessem ter mitigado o problema. É importante trazer esse tema aos debates, independente da revisão do modelo [de telecomunicações]. É preciso trazer para o âmbito da agência um acompanhamento maior das empresas, focado na prestação de serviços ao consumidor e equilíbrio econômico”, afirmou o secretário de Fiscalização de Logística e Infraestrutura de Telecomunicações do TCU, Marcelo Barros da Cunha.

“A Anatel não teve controle adequado de quanto foi o ganho das concessionárias quando o serviço era atrativo, da mesma forma que não houve controle da alienação dos bens reversíveis, que deveriam ter sido revertido para o serviço”, criticou Cunha, para quem a Anatel também deveria ter fiscalizado se houve subsídio entre os serviços de telefonia fixa e móvel prestados simultaneamente pela Oi.

“Dizer que hoje o serviço [de STFC] é inviável é óbvio, e havia esse risco. Mas há um passado que não permite afirmar com certeza se na ausência de atuação da Anatel não há responsabilidade”, completou.

Outros caminhos

Salvar a Oi e entregar ainda mais recursos públicos a seus acionistas – que já se mostraram incapazes de administrar adequadamente a empresa – ou permitir que a Anatel defina o futuro da concessionária não são, ao contrário do que querem nos fazer crer, as únicas alternativas para este imbróglio.

O governo Temer poderia, por exemplo, decretar uma intervenção na empresa, com pedido de afastamento imediato dos controladores da concessionária. Seria uma maneira de assegurar os interesses dos acionistas minoritários, de uma parte dos credores (em especial a União), da própria empresa e seus trabalhadores, mas, principalmente, dos usuários dos serviços de telecomunicações.

Em junho de 2016, o então presidente da Telebras, o engenheiro Jorge Bittar, em agenda no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, chegou a aventar a possibilidade de incorporação dos bens da Oi pela estatal, de forma a garantir a continuidade do serviço.

Mas o fato é que, tanto a agência reguladora quanto o Executivo não estão interessados em se debruçar sobre as possibilidades que melhor atendem aos interesses dos brasileiros no longo prazo. Sem apresentar estudos e em reuniões a portas fechadas com os administradores da Oi, os rumos da infraestrutura essencial para o futuro do Oaís vão sendo definidos. Se a população demorar mais para reagir, pode não sobrar nada.

* Marina Pita é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes.

Projeto de Lei favorece empresas, não usuário

Em debate realizado nesta terça-feira, dia 06, em Brasília, o 45º Encontro Tele.Síntese, representantes de empresas de telecomunicações, do governo federal e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), além de companhias interessadas em investir na área, discutiram sobre a revisão do modelo de telecomunicações no Brasil.

No primeiro painel, que teve como tema “Visão do Poder Executivo e do Regulador”, o secretário de Telecomunicações do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, André Borges, destacou que o principal assunto em discussão na pasta é a tramitação do Projeto de Lei (PL) 3.453/2015. Caso aprovado na sua versão atual, o PL modificará a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), tornado mais flexíveis as regras sobre as modalidades de outorga de serviços de telecomunicações. Na prática, isso significará que determinados serviços hoje outorgados na forma de concessão poderão no futuro ser outorgados na modalidade de autorização. Esta mudança fará com que as empresas tenham menos deveres e mais privilégios.

André Borges alegou que a mudança na legislação estará vinculada à exigência de adoção de algumas medidas compensatórias por parte das empresas, como a de investir em locais não tão atrativos em termos econômicos, como localidades rurais de pequena densidade demográfica. Segundo ele, a Anatel está negociando com as operadoras de telecomunicações os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) – acordos que trocam os valores das multas aplicadas pela agência pela oferta de serviços e instalação de novas redes nestes locais inicialmente menos atrativos –, termos estes que, na opinião de Borges, trariam benefícios aos investimentos previstos no Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). “Os recursos dos TACs deverão ser até 50% maiores do que os calculados [para o PNBL pelas regras atuais] com a transformação da concessão em autorização”, declarou.

No entanto, o secretário não apresentou nenhum estudo que confirme essa estimativa feita por ele. Quando questionado por um participante do evento sobre o assunto, tangenciou e preferiu não reafirmar a questão. Já a respeito dos serviços Over The Top (OTTs), entre os quais se enquadram o WhatsApp e o Facebook entre outros, Borges disse que vêm sendo discutidos dentro do ministério. “Estamos desenvolvendo estudos e vendo o que o resto do mundo está fazendo em relação a essas atividades. Talvez tenhamos que impor algumas obrigações, já que são empresas que estão se beneficiando de negócios no Brasil”, afirmou ele. O secretário reconheceu, porém, que ainda não há propostas especificas, e indicou que está em estudo a possiblidade da tributação do setor, em um formato semelhante ao que ocorre nas telecomunicações.

Igor de Freitas, presidente-substituto da Anatel, fez coro às afirmações do secretário André Borges, alegando que “o formato de concessão não é adequado ao ambiente competitivo das telecomunicações”. Freitas utiliza o velho discurso neoliberal de que a regulamentação tira a competitividade das empresas para defender uma auto-regulamentação por parte do mercado, o que contraria os modelos de legislação e controle público implementados nas democracias consolidadas do mundo. Por fim, defendeu que a Anatel tenha autonomia, inclusive financeira, em relação ao governo. “A subordinação da agência reguladora à administração direta atrasa o setor”, pontuou.

Má vontade das operadoras

Na segunda mesa do evento, “A visão dos Players”, o PL 3.453/2015 voltou à cena. Representantes da Telefônica, Oi, América Móvil e Tim expressaram sua posição de desonerar o setor. Isso seria obtido com a diminuição da exigência de prestação de serviços obrigatórios e com o atendimento de investimentos em áreas socialmente vulneráveis, de pouca perspectiva de retorno financeiro para as empresas, com recursos de fundos setoriais. “Não se pode pensar em atendê-las [essas áreas] com recursos do saldo da troca da concessão pela autorização”, afirmou Camilla Tápias, diretora de Assuntos Regulatórios da Telefônica.

Francisco Matulovic, da Icatel, fez duras críticas às empresas operadoras de telecomunicações pelo posicionamento manifestado, questionando também a falta de investimentos do setor na telefonia fixa, em especial nos Telefones de Uso Público (TUPs). “No telefone móvel, houve investimento e a evolução do serviço. Mas, no público, não. Os pontos de orelhão estão hoje em locais muitas vezes inadequados, não atendendo às necessidades da sociedade atual”, ponderou. Matulovic lembrou que em vários países do mundo os orelhões foram transformados em pontos de internet wi-fi, com a possibilidade de constituírem também pontos para recarga de celular. “O que existe é uma má vontade das operadoras em investir nesse setor”, ressaltou.

Fundos de financiamento em disputa

No terceiro painel do encontro, denominado “A visão dos stakeholders”, Caio Bonilha, diretor da Futurion, defendeu que o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) fosse utilizado para a implantação da internet banda larga nas áreas sem interesse econômico por parte das empresas. “O governo precisa colocar a banda larga no centro da política pública e, desta forma, incentivar os pequenos provedores”, sugeriu.

Já o superintendente de Planejamento e Regulamentação da Anatel, José Alexandre Bicalho, apresentou uma proposta de Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU) para as concessionárias de telefonia fixa. Ele frisou que o PGMU apresentado traz indicadores e incentivos para melhoria dos serviços prestados como medidas prévias à aplicação de sanções. “Sairemos de 30 indicadores para 8, pois os usuários não percebem esses indicadores. Eles apenas prolongam ainda mais a dificuldade na fiscalização”, pontuou Bicalho.

Segundo o superintendente, a proposta apresenta mudanças nas regras de qualidade do serviço e da utilização de espectros, revisão do limite máximo de frequência, revisão do preço público e ajuste da tabela do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). Na opinião dele, é preciso ampliar o entendimento sobre o Fistel, não sendo relevante contabilizar se haverá ou não desoneração das empresas, mas se as mudanças propostas estimulam uma melhor prestação de serviço e a ampliação dos investimentos no setor.

E os usuários e usuárias?
Uma ausência de representantes que defendam os usuários dos serviços de telecomunicações foi amplamente perceptível no evento. Em julho deste ano, o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) se posicionou a respeito do PL 3.453/2015, ressalvando que, por força do regime de concessão, o serviço de telefonia fixa é prestado em regime público e as concessionárias são obrigadas a seguir metas de universalização – ou seja, disponibilizar o serviço em todo o país –, a prestar o serviço de forma ininterrupta e a manter tarifas dentro dos critérios definidos pela Anatel. “Com o fim das outorgas, todas essas exigências podem acabar, o que resultaria em significativa perda de qualidade do serviço de telefonia fixa para o consumidor brasileiro”, destacou à época Rafael Zanatta, advogado pesquisador do Idec.

O estudo do Idec também aponta como consequência gravíssima da mudança do regime de concessão para o de autorização o fato de as empresas do setor poderem ficar com a infraestrutura instalada por elas para a prestação do serviço de telefonia fixa, as quais deveriam, pela legislação atual, ser repassadas à União ao final do período de concessão, em 2025 – a chamada reversibilidade dos bens. Para que pudessem fazer tais investimentos, as empresas receberam em troca, e continuam recebendo, uma série de incentivos fiscais. O Idec defende no estudo uma ampla revisão da Lei Geral de Telecomunicações, a fim de garantir a expansão dos serviços prestados e o respeito aos direitos dos usuários e usuárias, e não mudanças pontuais na legislação que objetivam apenas beneficiar as empresas concessionárias.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Brasil é medalhista olímpico em violação do direito à comunicação

A empolgação com os esportes não apaga o “legado negativo” dos Jogos Olímpicos. Além da repressão policial e das remoções, o cerceamento à liberdade de expressão e a concentração midiática marcaram a Rio 2016

Texto: Iara Moura e Mônica Mourão |Colaborou: Eduardo Amorim, Yuri Leonardo, Caio Barbosa, Camila Nobrega e Cinco de Terra

As Olimpíadas de 2016 encerram quase dez anos em que diversas cidades do Brasil viveram as mudanças causadas por um megaevento esportivo. Desde a preparação para os Jogos Pan-Americanos de 2007, bilhões foram investidos em gastos feitos a partir de parcerias público- privadas (PPP) em diferentes áreas. A comunicação é uma delas. O International Broadcast Center (IBC), centro de mídia para a transmissão dos Jogos, faz parte de uma PPP que inclui também o Main Press Center (MPC) e o Hotel de Mídia. O custo total do complexo é estimado em R$ 1,68 bilhão, dos quais R$ 1,15 bilhão vem de recursos privados e R$ 528 milhões da prefeitura do Rio de Janeiro. Após os Jogos Olímpicos, o “legado” ficará sob a responsabilidade da Concessionária Rio Mais, formada pelas empresas Odebrecht, Andrade Gutierrez e Carvalho Hosken, responsáveis pela construção.

“Saber que a prefeitura do Rio gastou todo este dinheiro para um centro de mídia que vai funcionar apenas durante os megaeventos é ter certeza de que a prefeitura e o governo do estado do Rio têm suas preferências no que investir. Este é mais um exemplo para mostrar também que esta cidade está virando uma cidade apenas para turistas, para ricos, para alguns”, afirmou a jornalista, comunicadora popular e moradora do Complexo da Maré Gizele Martins. No contexto dos megaeventos realizados na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 250 mil pessoas sofreram remoções, segundo dados da Articulação Nacional dos
Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas (Ancop). É certo que o grande público e as comunidades afetadas com as remoções e a violência policial pouco ficou sabendo das violações de direitos relacionadas ao Pan, à Copa e às Olimpíadas, até porque os direitos de transmissão das competições também ficaram nas mãos de poderosos grupos de mídia no Brasil e o acesso à informação e o direito à livre manifestação de pensamento foram violados durante os Jogos.

Segundo a mareense Gizele Martins, “se todo o dinheiro [investido no IBC] fosse dividido entre os inúmeros meios de comunicação comunitária e populares de favelas, ocupações, bairros pobres, estaríamos equipados, nos organizaríamos para fazer muito melhor a nossa própria comunicação. Estaríamos contando o histórico escravista e racista do nosso país, disputando as opiniões”. Ela lembra que, durante os 15 anos que atua com comunicação comunitária nas favelas do Rio de Janeiro, foram poucas as formas de incentivo público para a comunicação não comercial. A cobertura da grande mídia, que, em geral, não pauta as violações de direitos cometidas em nome dos Jogos Olímpicos, tem relação direta com o interesse privado de transmissores e patrocinadores do evento. “As Olimpíadas são um produto. A Globo vendeu cotas multimilionárias,

então os megaeventos deixam de ser uma pauta e passam a ser um produto para a empresa”, explicou Mário Campagnani, integrante do comitê organizador da jornada Rio 2016 – Os Jogos da Exclusão, que realizou atividades de denúncia ao desrespeito aos direitos humanos nas Olimpíadas.

Público ou privado?

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Durante os jogos, o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas organizou, no Rio, a jornada Jogos da Exclusão, denunciando as violações de direitos, dentre elas o direito a manifestação. Imagem: Caio Barbosa

No dossiê de candidatura para ser cidade-sede dos Jogos, apresentado em 2008, o valor estimado do evento era de R$ 28,8 bilhões. Com a mais recente atualização da Matriz de Responsabilidade, em janeiro de 2016, este valor passou para R$ 39 bilhões nos dados oficiais, superando em quase R$ 14 bilhões os custos da Copa do Mundo de

2014 e chegando a quase dez vezes os R$ 3,7 bilhões gastos com o Pan-Americano de 2007. Na versão atual da Matriz, houve um aumento da participação do poder público de 36%, em agosto de 2015, para 40% do montante total.

As altas cifras contrastam com o cenário de destruição da comunidade vizinha ao Parque Olímpico. A Vila Autódromo, onde moravam cerca de 600 famílias e hoje resistem apenas 20, é um símbolo das prioridades de investimentos feitos pelo poder público a serviço do interesse privado. Essa mesma lógica rege também a comunicação. Os serviços de telefonia e internet, que deveriam ser um direito de todos, foram alvo de grandes investimentos para garantir a transmissão dos jogos, enquanto comunidades ao lado das arenas seguem sem acesso à internet banda larga. Uma força-tarefa foi feita para que o Brasil oferecesse, ainda na Copa das Confederações, em 2013, uma internet com a qualidade que o país nunca conseguiu implantar. Essa possibilidade, inclusive, foi a justificativa para que as empresas que fossem oferecer esses serviços tivessem isenções fiscais (IPI, PIS e Cofins). Além disso, foram feitas modificações na legislação

para facilitar a instalação de antenas necessárias para a disponibilização da rede 4G. Para a Copa de 2014, a Telebras investiu R$ 89,4 milhões na implantação de infraestrutura, o que equivale ao investimento anual para a implantação do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). A expectativa do Plano era conectar 35 milhões de domicílios à internet fixa até o ano de realização do Mundial. No entanto, segundo dados de 2015 do Ministério das Comunicações, apenas 23,5 milhões de locais têm banda larga fixa. Quando se olha para fora dos centros urbanos, os números diminuem ainda mais.

Direitos de transmissão

Em dezembro de 2015, o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou que o Grupo Globo comprou os direitos dos Jogos Olímpicos até 2032 para tevê aberta, por assinatura, internet e celular, mas o valor é mantido em segredo. A título de comparação, sabe- que, nos Estados Unidos, um acordo semelhante entre o COI e a NBCU (conglomerado de mídia daquele país) custou R$ 7,6 bilhões. A falta de transparência repete erros de anos passados, já que a empresa brasileira também não revela os gastos para detenção dos direitos sobre a Copa do Mundo de 2014. O que se sabe é que a Rede Globo tem como anunciantes nos Jogos: Claro, Coca Cola, Fiat, Bradesco, P&G e Nestlé. Segundo informações da revista Meio & Mensagem, cada cota de patrocínio foi vendida a R$ 255 milhões. Ou seja, a Globo deverá ter um faturamento de pelo menos R$ 1,53 bilhão com o evento.

A emissora da família Marinho repassa direitos e certamente lucra também sobre o faturamento da Rede Record e da Bandeirantes. A Record, do bispo Edir Macedo, fechou quatro patrocinadores e, se cada cota tiver sido vendida por R$ 126 milhões, deve faturar cerca de R$ 760 milhões com os jogos. Já a Band vendeu quatro cotas de patrocínios, cada uma no valor de R$ 310 milhões, segundo o site Conexão TV.

A concentração da transmissão pela mídia privada não é uma regra universal. Albert Steinberger, jornalista freelancer que trabalha para o canal público alemão Deutsche Welle, aponta as diferenças nas transmissões de grandes eventos esportivos quando se compara o caso do Brasil com o Reino Unido e a Alemanha, por exemplo. Nesses países, as emissoras públicas BBC e Channel 4, no primeiro, e ARD e ZDF, no segundo, transmitem, entre outros, Copa, Olimpíadas e Paralimpíadas. Mas alguns campeonatos nacionais, como a Bundesliga e a Premier League, têm suas transmissões restritas às TVs privadas. “Aqui também se questiona muito se vale a pena gastar milhões em acordos de direitos de transmissão”, apontou Steinberger.

“Um caso para mim que foi super interessante foi a cobertura da BBC durante os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Eles realmente abriram todos os sinais e disponibilizaram na internet. Ou seja, era possível assistir a qualquer tipo de esporte que tivesse acontecendo ao vivo e de graça. Se o direito tivesse sido comprado por uma TV privada, obviamente o modelo de tomada de decisão seria diferente. Seria priorizado o lucro, afinal de contas, o investimento inicial é muito alto”, analisa o jornalista.

No caso brasileiro, o direito de transmissão das Paralimpíadas, que atrai menos público e, portanto, desperta menos interesse comercial, foi comprado pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). De acordo com o plano de trabalho de 2016 da empresa pública, o orçamento total previsto para as Olimpíadas e as Paralimpíadas é de R$ 1,9 milhão de reais, sendo que R$ 450 mil foram usados para a transmissão das Paralimpíadas na televisão, quase 17 vezes menos o valor que a NBCU pagou ao COI para os Jogos Olímpicos de 2020 a 2032.

O resto do montante foi distribuído entre transmissão dos Jogos Olímpicos no rádio (R$ 600 mil), custos para viagens jornalísticas (R$ 350 mil), gastos adicionais no satélite (R$ 220 mil) e compra de espaço no IBC (R$ 280 mil). O mesmo IBC do complexo de mídia que recebeu mais de R$ 500 milhões de investimentos da prefeitura e será gerido por um grupo de empresas privadas.

Acesso à informação

QUADRO
Falta de respostas e acesso negado foram os principais retornos à consulta sobre obras olímpicas/ Reprodução relatório Artigo 19

 

Segundo aponta relatório da organização Artigo 19, no Brasil dos megaeventos esportivos, estamos muito longe de garantir a transparências das informações públicas. O orçamento detalhado e os impactos das obras olímpicas, como a do BRT (Bus Rapid Transit) Transolímpica no Rio de Janeiro, não estão ao alcance de todas as cidadãs e cidadãos como determina a Lei de Acesso à Informação (12.527/11). Os ônibus articulados que trafegam em corredores exclusivos foram uma das principais promessas de legado das Olimpíadas para a cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o relatório, foram feitos 13 pedidos específicos de informações sobre remoções causadas pelas obras do BRT, com base na LAI.

Ao todo, 54 solicitações foram feitas para diferentes órgãos, como o Portal Cidade Olímpica, o Portal Transparência Carioca, o Portal Transparência da Mobilidade e o

Portal da Controladoria Geral do Município, além do Instituto Estadual do Ambiente. Apenas 7% dos pedidos foram atendidos. Foram três meses de busca que levou à conclusão de que o direito à informação não é respeitado e que é praticamente impossível para a população ter acesso à caixa preta das obras preparatórias para as Olimpíadas 2016. “Se não há informação, fica comprometida a efetiva participação popular no debate sobre o tema e, portanto, qualquer possibilidade real de incidência no processo decisório”, conclui a pesquisa.

A falta de transparência também abrange os investimentos para infraestrutura de telecomunicações durante os Jogos. Segundo matéria da Agência Brasil, o valor dos investimentos para possibilitar as conexões 3G e 4G não pode ser divulgado por exigência contratual do Comitê Olímpico Internacional (COI) e do Comitê Olímpico do Brasil (COB). O acordo foi firmado com o Grupo América Móvil, que engloba as marcas Claro, NET e Embratel. Mais uma vez, recursos públicos foram usados para beneficiar empresas privadas. Apesar dos investimentos feitos pelo Grupo América Móvil, coube à Embratel fornecer a rede de fibra ótica para captar os sinais de transmissão entregues ao IBC. Além disso, o site oficial dos Jogos e a venda de ingressos estão hospedados nos data centers da Embratel.

Liberdade de expressão

A violação do direito à comunicação durante as Olimpíadas também se deu através da repressão a manifestações políticas nos locais dos jogos. Responsáveis pela Rio 2016 retiraram dos estádios Mané Garrincha, em Brasília, Mineirão, em Belo Horizonte e no Sambódromo, no Rio de Janeiro, torcedores que se manifestaram contra o governo interino de Michel Temer.

No último sábado (20), o pai de um jovem morto pela Polícia Militar do Rio de Janeiro foi impedido de abrir uma bandeira de protesto no Maracanã. Segundo o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, Carlos da Silva Souza, pai de Carlos Eduardo, um dos cinco jovens assassinados por policiais do 41º Batalhão da Polícia Militar em novembro de 2015, teve cerceado seu direito à manifestação. Tais ações repressivas estão respaldadas pela Lei Geral das Olimpíadas. O inciso IV do artigo 28 estabelece como condição para o acesso e permanência nos locais oficiais, por exemplo, “não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação”. O inciso X do mesmo artigo determina ainda que não se pode “utilizar bandeiras para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável”.

São puníveis com prisão de até um ano a produção e distribuição de produtos que imitem símbolos oficiais da competição, mas também a mera modificação de qualquer símbolo, ainda que seu objetivo seja, por exemplo, a realização de uma paródia. Em abril deste ano, diversas entidades da sociedade civil repudiaram a Lei das Olimpíadas e Paralimpíadas, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, por seu caráter autoritário.

A coordenadora do Centro de Referência Legal da ONG Artigo 19, Camila Marques, mostrou-se preocupada com a repressão à liberdade de expressão que marcou os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. “Com apenas uma semana do início do evento, já vimos o aumento da ocupação na Maré, no Complexo do Alemão e de uma forma geral. Cada vez mais o Estado está se aprimorando no seu aparato de repressão, através da compra de equipamentos, e esse legado é o que realmente vai ficar dos megaeventos no Brasil”, considera Camila Marques.

Sangue no chão

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Pai de jovem assassinado pela polícia é impedido de abrir uma bandeira de protesto no Maracanã/ FOTO: Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas

A comunicação independente, alternativa e comunitária segue pulsante, apesar de todas as dificuldades impostas pela repressão cotidiana que se acirra no contexto dos megaeventos. As articulações de comunicadoras e comunicadores em favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro levaram à criação, por exemplo, de páginas no Facebook para denunciar violências cometidas pela polícia, prefeitura, governo do Estado e Forças Armadas – que ocuparam o Complexo da Maré durante a Copa de 2014. Mas, além de canal de denúncia, as redes sociais têm sido um meio para perseguir comunicadores. Gizele Martins, da Maré, já recebeu até ameaças de estupro e avisos de que deve “calar a boca”. No Complexo do Alemão, outro conjunto de favelas cariocas, Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, também é alvo de perseguição. Em abril deste ano, Santiago denunciou para a mídia e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) que policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Alemão têm abordado moradores perguntando se o conhecem.

O Papo Reto atua principalmente na denúncia à violência policial, através de redes sociais e de conteúdo audiovisual. Os riscos de fato são grandes para quem defende os direitos humanos no Brasil. Segundo a organização internacional Front Line Defenders, o país está em primeiro lugar na lista mundial de defensores assassinados em 2016, ao todo, 24, entre janeiro e abril. A disputa de narrativas sobre os megaeventos e seu impacto, especialmente nas comunidades mais pobres ou periféricas, certamente incomoda as instituições violadoras de direitos. Para Gizele Martins, “com a mídia comercial ao lado da prefeitura e do governo, eles sabem que vão alienar, silenciar, apagar a história e mentir dizendo ao mundo que este é um exemplo de cidade e que durante os Jogos tudo aconteceu perfeitamente, sem qualquer sangue no chão”.

 

 

Por que precisamos já de uma lei de proteção de dados pessoais

Num contexto de massificação de coleta e tratamento de dados na internet, é fundamental garantir a aprovação do PL 5276/16, em tramitação na Câmara.

Por Marina Pita*

Sabe aquele clique que você dá nos “termos de uso” de uma aplicação na internet sem ler o que está escrito ali? Saiba que, ao fazer isso, você pode estar liberando seus dados pessoais para usos que você nem imagina.

Em tempos de conservadorismo e criminalização de condutas, a garantia dodireito à privacidade nas redes se mostra cada vez mais fundamental. Sem ela, nossa liberdade de expressão, de livre manifestação de pensamento e de organização política ficam seriamente comprometidas. Mais do que isso, num contexto de massificação de coleta e tratamento de dados na internet, informações como características de saúde, identidade sexual ou opção religiosa também podem estar sendo usadas sem a sua autorização.

Até hoje, o Brasil não dispõe de uma lei para regular a coleta, armazenamento, processamento e divulgação de dados pessoais. Regular essa prática não significa impedir que dados sejam coletados e pesquisados para trazer benefícios sociais – como, por exemplo, quando informações da população são usadas para analisar uma epidemia de saúde ou desenvolver políticas públicas para atender a uma parcela específica da população.

Mas é preciso estabelecer princípios e critérios para que isso aconteça e, assim, garantir que nossos dados não sejam usados para atender a interesses comerciais, contra a nossa vontade, ultrapassando limites éticos e legalmente aceitos.

Respondendo a essa preocupação e atendendo a um pleito da sociedade civil, o Ministério da Justiça, em diálogo também com o setor empresarial, elaborou um Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais. O processo contou com a contribuição de milhares de brasileiros, por meio de duas consultas públicas, e levou cerca de seis anos para ficar pronto.

Finalmente, o PL 5276/2016 chegou à Câmara dos Deputados, onde tramita com pedido de urgência constitucional – ou seja, tem prazo para ser votado, senão tranca a pauta da Casa legislativa. Mas tem muitos lobistas já trabalhando no Congresso para que o texto seja engavetado.

O projeto defende a privacidade das pessoas tanto em relação ao poder público, cuja atuação pode violar garantias individuais, quanto contra as práticas de entes privados que queiram lucrar com nossos dados. Impede, por exemplo, que empresas coletem, comprem ou vendam dados dos cidadãos sem seu consentimento livre e informado.

A proposta também define que o titular dos dados deve ter acesso facilitado às informações sobre o tratamento pelo qual eles passam. Essas informações – a finalidade específica do tratamento, forma e duração do tratamento e identificação do responsável – deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva.

E, uma vez que muitos dos locais de armazenamento de dados ficam fora do país, o projeto de lei vale para todos os bancos de dados formados a partir de coletas realizadas no Brasil, pela internet ou fora dela (por exemplo, pelo seu plano de saúde ou a empresa do seu cartão de crédito), e impede a transferência internacional de dados para países com leis de proteção menos rigorosas do que a nossa.

Para garantir o cumprimento da norma, o projeto de lei prevê sanções administrativas e possibilidade de ressarcimentos por danos pela utilização ilegal das informações, e determinada que um órgão competente fique responsável pela fiscalização da lei, junto com o Conselho Nacional de Proteção de Dados e da Privacidade. Essa autoridade será responsável inclusive pela adequação progressiva dos bancos de dados já existentes no país antes da entrada em vigor da lei.

Como a violação da sua privacidade impacta sua vida?

O perfil de uma pessoa, do que ela gosta, o que compra, quais suas necessidades, hábitos e dificuldades nunca valeu tanto para o mercado. Ao mesmo tempo, entretanto, o valor de nossos dados pessoais nunca foi tão subestimado por nós. Se os Correios estivessem abrindo suas cartas, lendo e, com as informações ali obtidas, direcionando empresas ao seu encalço, você não concordaria, certo? Mas no mundo online pouca gente parece se preocupar.

Muita gente não sabe – ou acha aceitável – que seus dados, com o maior número de detalhes possível, estejam sendo armazenados e analisados por corporações e governos. É normal ouvir a afirmação: “Se não tenho nada a esconder, podem me vigiar”. Mas aí é que as pessoas se enganam. Não fazer nada de “errado” ou ilegal não quer dizer que a proteção da sua privacidade e o seu controle sobre as informações que lhe dizem respeito sejam fundamentais.

Mesmo a pessoa mais correta do mundo tem algo a manter privado se não quiser ser explorada comercialmente mais do que as outras ou se não quiser ser discriminada ou tratada de maneira diferente.

Veja o caso da discriminação comercial, a que todos estamos sujeitos. Já se sabe que lojas online tem alterado o preço dos produtos ofertados com base no endereço ou perfil do usuário que acessa a página. Há notícias de sites, por exemplo, que vendem mais caro para bairros a depender da nacionalidade predominante dos internautas que ali navegam.

A privacidade também é essencial para o acesso indiscriminado à saúde. Todas as pessoas adoecem, é um fato. Mas, sem a preservação dos seus dados, aquelas com histórico de problemas de saúde ou de doenças crônicas na família passarão a ser discriminadas não só pela empresa do plano de saúde, mas também por futuros empregadores ou empresas de crédito.

Hoje, empresas de gestão de dados de saúde têm cada vez mais acesso aos hábitos das pessoas colhendo dados em aplicativos de celulares. A empresa SulAmerica Saúde, por exemplo, mantém um aplicativo para dispositivos móveis que colhe dados de localização dos usuários o tempo todo.

Para que ela usa esses dados? Não está claro. Mas saber quais lugares uma pessoa frequenta e em que horários, quantas horas trabalha, se faz horas extra, por exemplo, pode ser definidor de quanto cobrar em um seguro saúde. Ou até para definir um candidato numa vaga de emprego.

Em um mundo com enorme capacidade de captura – e os smartphones são a joia da coroa neste aspecto –, armazenamento, processamento e análise dos dados como o que vivemos hoje, todas as pessoas estão sujeitas a algum tipo de discriminação, sejam estes dados corretos ou incorretos, garantidores da igualdade de oportunidades ou excludentes. E quanto maior a disponibilidade de dados e liberdade para o seu processamento, maior a chance de algo dar errado.

Não podemos nos enganar: essas máquinas, os algoritmos, erram e é preciso nos proteger dos erros. Uma jornalista feminista, por exemplo, que faz buscas por notícias sobre feminicídios e formas de assassinato de mulheres, já foi avisada pelo Google que suas buscas estavam estranhas. Daí para ela ela ser apontada por uma autoridade policial, que teve acesso não autorizado a esses dados, como uma pessoa perigosa em potencial é um pulo!

Por todos estes fatores, é fundamental que o PL 5276/16 tramite com celeridade na Câmara dos Deputados e seja aprovado rapidamente pelo Congresso. Enquanto isso, tenha certeza de que seus dados estão sendo coletados sem que você saiba. E os riscos são todos seus.

Clique aqui para ler a carta assinada por dezenas de organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes, em apoio ao Projeto de Proteção de Dados Pessoais.

*Marina Pita é jornalista e membro do Conselho Diretor do Intervozes.