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Por uma TV Pública, também no Espírito Santo

O sistema de comunicação do país pode, pela primeira vez em sua história, contar com uma Rede Nacional de TV´s Públicas. No ano passado, o Governo Federal lançou ao debate a proposta que será finalizada nos próximos dias com o envio de uma medida provisória ao Congresso Nacional. No Espírito Santo, a sociedade aguarda ainda um posicionamento do Governo do Estado sobre o tema e as propostas para o futuro da autarquia Rádio e Televisão Espírito Santo (RTV/ES), que administra – desde a fundação em 1989 – a TVE e a Rádio Espírito Santo.

A comunicação cumpre papel fundamental no processo de formação cultural, educacional e política de nossa sociedade. A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 223 a necessidade da complementariedade entre os sistemas de comunicação comercial, estatal e público. O fato é que nunca houve neste país, apesar da mobilização da sociedade comprometida com a democratização da comunicação, interesse político dos governos para a criação de um sistema público de comunicação. Portanto há quase 20 anos existe um ataque frontal ao que já está estabelecido em lei.

O que há na TV aberta brasileira é a hegemonia de um único modelo: o sistema comercial de TV, que possui uma baixa qualidade da programação (apesar da auto-propaganda rotineira feita pelas próprias emissoras), que se digladiam sem limites na disputa pela audiência, que não garantem a diversidade regional, étnica, racial, social e política do país e que transformam a informação em mercadoria que serve apenas ao lucro. O sistema comercial aberto é formado pelas já tradicionais – e pouquíssimas – emissoras comerciais: Globo, SBT, Record, Band, RedeTV e MTV que possuem 95% da audiência e 100% das verbas publicitárias da TV aberta.

No sistema estatal encontram-se as emissoras legislativas, exclusivas para os canais de TV por assinatura – TV's Assembléias, TV Câmara e TV Senado; a TV Justiça do Poder Judiciário e ainda as emissoras administradas pelos poderes executivos, como é o caso das TV's Educativas do Espírito Santo e de outros Estados. O Governo Federal possui a TV Nacional e a Nbr – canais do Poder Executivo sob responsabilidade da Radiobrás e ainda a TVE do Rio de Janeiro e a TVE do Maranhão sob a responsabilidade da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto.

Conforme estabelece a Lei da TV a Cabo, de 1995, os canais universitários e os canais comunitários são também exclusivos para as pouco mais de 4 milhões de residências que possuem TV por assinatura no país. No Espírito Santo o canal universitário é utilizado pelas TV's da Ufes, Faesa e UVV. Já o canal comunitário jamais foi utilizado para os seus devidos fins – apesar de ter sido criada a associação jurídica de entidades populares que faria a sua gestão – e no momento transmite a programação da chamada TV Ambiental.

As emissoras estatais cumprem um importante papel de darem visibilidade (apenas para a minoria que têm acesso) e de relativa fiscalização sobre as ações dos poderes públicos. Funcionam com recursos públicos mas com gestão estatal sob comando direto dos governos. Os canais universitários funcionam com pouco apoio e também com uma gestão não pública, já que estão sob inteira responsabilidade das instituições de ensino superior.

Fórum Nacional de TV's Públicas

Desde setembro de 2006, oito grupos de trabalho produziram duas publicações como contribuições preparatórias ao I Fórum Nacional de TV's Públicas, realizado em maio deste ano em Brasília. Essa articulação foi promovida pela Presidência da República, Radiobrás, Ministério da Cultura e Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, Associação Brasileira de Televisão Universitária, Associação Brasileira de Canais Comunitários e Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legislativas.

O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação – apresentou como contribuição ao conjunto dos participantes do Fórum um documento intitulado Proposta para um Sistema Público de Radiodifusão. Defendemos uma Rede Nacional de TV's Públicas que afirme a Comunicação como um Direito Humano, central para consolidação de uma sociedade democrática; tenha uma programação que não viole os direitos humanos, que contribua com o acesso à cultura e com a formação crítica; tenha primazia do interesse público, em vez dos fins comerciais.

É seu papel ainda garantir a diversidade cultural (especialmente étnico-racial, de gênero e regional); estimular a diversidade de formatos, abordagens e gêneros; democratizar e garantir igualdade de acesso aos meios de produção e veiculação da comunicação de massa; estabelecer associação entre as emissoras públicas e os produtores independentes; promover a descentralização da produção, viabilizando a veiculação nacional de produções regionais.

É preciso que as emissoras públicas tenham independência em relação aos governos e ao mercado e, por isso, a gestão dessas emissoras deve se dar através de conselhos eleitos pela sociedade, podendo contar também, desde que em minoria, com representantes dos poderes públicos.

Os orçamentos dos sistemas públicos de radiodifusão do Reino Unido, Dinamarca, Áustria, Alemanha e Suécia ultrapassam 0,3% do PIB desses países. No Brasil, não chega a R$ 450 milhões, ou 0,025% do PIB, investidos nas atuais "emissoras públicas". Enquanto isso, a cada ano os poderes públicos (executivo, legislativo e judiciário) e estatais gastam mais de R$ 3 bilhões em publicidade – quase que exclusivamente em mídias comerciais.

O Governo Federal enviará nos próximos dias uma medida provisória ao Congresso e já anunciou que no dia 6 de agosto entra no ar a TV Brasil – provável nome da nova TV formada pela fusão entre a Radiobrás e as TVE's do Rio de Janeiro e do Maranhão. O investimento anunciado para o primeiro ano de funcionamento é de R$ 350 milhões. Porém, as exigências da Carta de Brasília (confira no link abaixo) não foram na maior parte – ao menos para a sociedade – respondidas. E mais: as últimas declarações distanciam o projeto de uma rede pública e o aproximam de uma rede estatal (confira no link abaixo).

Poucos governos estaduais iniciaram debates com a sociedade e legislativos sobre como pretendem inserir as suas emissoras – as atuais TVE's – nessa nova Rede Nacional. O Governo do Espírito Santo, que no ano de 2007 utilizará R$ 37 milhões para a área da "comunicação", ainda não abriu diálogo sobre o processo que incluiria (ou não) a transformação da TVE em uma emissora, de fato, pública. Cabe a sociedade capixaba exigir que o debate venha a público e apresentar propostas para que tenhamos a garantia de uma TV Pública, também no Espírito Santo.

* Flávio Gonçalves é jornalista e militante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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Atender todos os brasis: os desafios das telecomunicações

09 de julho de 2007   A acertada decisão do governo de trocar os Postos de Serviços Telefônicos – PSTs – pela construção da nova estrada de banda larga (conhecidas como backhauls), remete à discussão de como estabelecer políticas de interesse público e aliá-las a um dos pilares do atual modelo de telecomunicações, que é o estímulo à competição entre empresas privadas.  

As concessionárias devem ser vistas como agentes da União para o desenvolvimento do setor e por isso devem ser usadas também como máquinas de execução de políticas públicas. Mas, quanto mais diversificam a sua atuação e ampliam as suas redes, mais as concessionárias ocupam o mercado. Não podemos nos esquecer que ainda hoje as três incumbents locais detêm mais de 95% do mercado brasileiro de telefonia fixa.  

Seus executivos alegam, no entanto, que a posição dominante das concessionárias não pode mais ser compreendida como uma verdade concorrencial, já que, argumentam, o mercado relevante não é mais o de telefonia fixa, mas o de voz, e nesse caso, as celulares estão aí para não brincar com ninguém, e a Voz sobre IP (VoIP), embora não possa ser considerada um serviço de voz tradicional, também arranca uma fatia de suas receitas tradicionais, receitas essas que, em última análise, são as que possibilitam o cumprimento das políticas de universalização.   

A questão é saber a dosagem certa de como atender o Brasil que não tem mercado, sem prejudicar a competição. A competição no setor de telecom – e em quase toda a economia – acontece para 30 milhões de pessoas, 8 milhões de residências, das classes A e B. Aí a briga entre plataformas, tecnologias, serviços e empresas é vigorosa. Há um outro segmento que, a depender do comportamento da economia e das políticas setoriais, também pode ter um ou dois prestadores de serviços, que deve somar mais 50 milhões de brasileiros.  

Os demais 100 milhões de brasileiros, no entanto, só podem ser atendidos por políticas públicas. E, conforme salientou Daniel Goldbenrg, ex-secretário da Secretaria de Direito Econômico e atual diretor do banco Morgan Stanley, em recente evento promovido pela Momento Editorial, agentes econômicos respondem a incentivos; e não adianta nada mudar Constituição, lei ou regulamento se esse preceito não for observado. 

E quais seriam, então, os incentivos que o governo poderia criar para que os agentes econômicos atuem nesse Brasil, majoritário, mas esquecido pelas forças de mercado? A troca das obrigações é uma boa resposta, já que não depende de novos recursos. Mas ela não será suficiente.  

O tão batido dinheiro do Fust (Fundo de Universalização das Telecomunicações) deve ser uma opção séria só se forem consideradas as contribuições correntes, pois os R$ 5 bilhões já arrecadados, dificilmente voltarão para o setor. Recursos orçamentários de outras rubricas podem ser analisados, desde que haja vontade política, mas é quase impossível imaginar que as telecomunicações, que há anos são grandes contribuintes do Orçamento da União passem a ser dele dependentes.  

Desoneração tributária, outra saída, mas aí, depende de uma longa negociação com os estados. Outra alternativa seria a agregação de damanda de telecomunicações por parte da União para oferecer melhores serviços de governo a seus cidadãos (e-saúde, e-educação, e-segurança pública). Nesse caso, há muita indefinição no governo e uma disputa interna sobre se a melhor alternativa seria criar ou não uma empresa própria para competir com as empresas privadas.    

Arranjos locais 

Enquanto esse debate não se traduz em uma política efetiva, uma questão que poderia ser tratada com rapidez é a implementação das novas metas de universalização.  A troca dos PSTs pela construção do backhaul poderia ser uma ótima oportunidade para a União estimular os arranjos produtivos locais. Essas estradas de conexão de alta velocidade deveriam ficar disponíveis às pequenas empresas locais para que elas possam prover a última milha da conectividade, oferecer o acesso à internet das escolas públicas, além de construir os novos espaços digitais locais.

Active Image publicação autorizada.

A TV digital pode nos libertar do apartheid

No final dos anos 1980, anunciava-se no Brasil a chegada da televisão por assinatura. Dezenas de canais seriam oferecidos ao público, rompendo os estreitos limites da televisão aberta, único modelo de transmissão até então conhecido. A tecnologia chegava para democratizar a TV brasileira, dando finalmente ao telespectador ampla possibilidade de escolha. A partir daquele momento, tornava-se irrelevante discutir a qualidade da programação oferecida. Afinal, com a multiplicação de canais, a questão estaria superada. Dali para a frente haveria televisão para todos os gostos. Pelo menos, era o que se dizia.

Doce ilusão. Combinando o abismo na distribuição de renda com a promíscua relação existente entre concessionários de canais de TV e os poderes públicos, a nova tecnologia serviu para tornar ainda mais perverso o papel da televisão no Brasil. Inaugurou-se, com a TV por assinatura, o apartheid televisivo. De um lado, a minoria economicamente privilegiada, com acesso a uma programação um pouco mais diversificada. De outro, a grande maioria – cerca de 90% da população, ou 160 milhões de brasileiros – condenada a ver programas que, quase sempre, beiram a indigência.

O custo da assinatura é proibitivo para a maioria. Mas mesmo a minoria afortunada, dispondo de mais canais, não se viu contemplada por uma ampla diversidade artística, cultural ou informativa. Melhorou um pouco, mas não muito. Isso porque a nova tecnologia ficou nas mãos dos mesmos empresários que historicamente controlam a radiodifusão no país. Eles detêm quase todos os novos canais, reafirmando na TV por assinatura o oligopólio consagrado na TV aberta.

Nada indica que o mesmo não venha a ocorrer com a TV digital, anunciada para entrar no ar, em São Paulo, no próximo dia 2 de dezembro. Outra vez, vozes que se levantam contra a qualidade do serviço prestado pela televisão são contidas sob a alegação de que com a nova tecnologia tudo será diferente. E agora os novos canais não se contarão mais às dezenas, como se previa para o cabo, e sim às centenas, digitalizados. Resta perguntar: quem os controlará? E de que forma serão utilizados?

As perspectivas não são muito animadoras. Há fortes indícios de que uma tecnologia, como a da TV digital, capaz de impulsionar a democratização da oferta televisiva, venha a ser apropriada pelos mesmos grupos que sempre controlaram o setor. São empresas operadoras de um serviço público atuando estritamente nos limites da lógica comercial, determinada pela maximização dos lucros. Nessa linha, a possibilidade do uso ampliado do espectro reduz e a diversidade da programação ficará, outra vez, posta de lado.

A equação é simples. A digitalização da TV permite o alargamento das faixas de transmissão. Onde hoje trafega uma programação, poderão passar quatro ou mesmo oito. Bem utilizados, outorgados para empresas e instituições públicas capazes de atender diferentes demandas da sociedade, esses canais ampliariam significativamente a oferta de programas, com resultados positivos tanto para o telespectador como para a imensa maioria de produtores. Ganhariam quase todos: o público, que passaria a ter opções reais de programação, e o mercado produtor independente, hoje sem espaço nas grandes redes. Seria o melhor dos mundos: a diversidade artística, cultural e política do país chegando à casa de todos os brasileiros combinada à ampliação do mercado de trabalho no setor.

No entanto, ao que tudo indica, a nova tecnologia não será usada dessa forma. Aos atuais concessionários de canais analógicos será outorgada toda a faixa de 6 megahertz por onde trafegarão os sinais digitalizados. E eles farão o que bem entenderem nesse amplo espaço. Poderão multiplicar as suas próprias programações, o que implicará numa definição das imagens um pouco mais baixa (mas ainda semelhante àquelas que vemos hoje através dos DVDs) ou veicular programas únicos em alta definição. Infelizmente, a decisão, mais uma vez, não levará em conta o interesse público. Prevalecerá o que for mais rentável.

Dentro da mesma lógica, deverá ser operada a outra novidade trazida pela TV digital: a interatividade ampla. A nova tecnologia abre a possibilidade de integrar à Internet os milhões de aparelhos receptores de televisão em uso no país. Para isso, são necessários conversores a preços acessíveis e a reserva de áreas do espectro para esse tipo de serviço. A tendência, observada a lógica comercial, será a introdução de uma interatividade simples, capaz apenas de facilitar a venda mais rápida dos produtos anunciados pelas redes de TV. Se isso de fato ocorrer, estará consagrado o uso medíocre de uma tecnologia altamente sofisticada.

Cabe, ainda, entender melhor quais são os atores até aqui apontados como os maiores beneficiados pela chegada da TV digital: as empresas concessionárias de canais de televisão. Bens públicos, as concessões se tornaram, na prática, privadas e praticamente hereditárias. A constituição de 1988, ao definir que a não-renovação de uma concessão de rádio ou TV deva ser aprovada por dois quintos do Congresso Nacional em votação aberta, praticamente tornou perenes os atuais concessionários. E sobre o tema há um silêncio quase sagrado. Pesquisadores e jornalistas encontram dificuldade para saber quando começa e quando acaba uma concessão desse tipo.

Com muito empenho se soube, por exemplo, que vários períodos de outorga vencem nos próximos meses. Um assunto de grande relevância social e política. Afinal, são esses concessionários que ditam a pauta nacional, já que a maioria absoluta da população só se informa ou se diverte pela TV. Cabe então perguntar: será que eles estão prestando um bom serviço público à população? Que contribuição têm dado para reduzir a violência, aumentar a solidariedade, promover o desenvolvimento cultural e artístico da nação? Como estão refletindo a diversidade de idéias existente no país, fundamental para o exercício da democracia? São questões imprescindíveis para uma análise da qualidade do serviço público prestado pelos concessionários.

E está na hora dessa análise ser feita. Sabe-se, por exemplo, que vencem no próximo dia 5 de outubro as concessões da Rede Globo em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte; a da Record, em São Paulo; da Bandeirantes, em São Paulo e Belo Horizonte; da Jornal do Commercio em Recife, entre outras. Seria o momento de avaliarmos publicamente os serviços por elas prestados nos últimos 15 anos, período de vigência das outorgas. Caberia à sociedade dizer, por exemplo, se está satisfeita com a programação que recebe em casa e quais mudanças propõe para os próximos anos. Seria um excelente exercício democrático, infelizmente ainda desconhecido entre nós.

Das respostas sairia o balizamento para as novas concessões, as quais, seguindo na linha do aprofundamento da democracia, teriam como princípio básico a garantia da diversidade. Seria o modo de romper com a mesmice atual, na qual a competição pela audiência se dá em torno de fórmulas exaustivamente repetidas, desprezando o experimento e a inovação.

Nesse quadro, a única sinalização positiva, ainda que embrionária, é a da criação de uma rede pública de televisão. Se bem-sucedida, poderá alterar o panorama sombrio esboçado até aqui. De um lado rompendo com as amarras do mercado, mostrando ao público a vida que existe além desse limite. De outro, provocando mudanças na própria televisão comercial, confrontada com um telespectador mais exigente, conhecedor da diversidade televisiva, a ele apresentada pela rede pública. Embora estreito, esse parece ser o único caminho existente, pelo menos neste momento, para alterar o panorama desolador vivido pela televisão brasileira às vésperas da chegada da TV digital.

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BNDES: dinheiro público para a concentração privada

O BNDES – banco estatal de fomento às políticas públicas e governamentais – acaba de reduzir sua taxa de juro anual de 6% para 4,5% nos financiamentos destinados às empresas de comunicação social que estão incorporando a tecnologia digital ao sistema de TV. O SBT, de Sílvio Santos, já embolsou 9,2 milhões de reais do BNDES e tudo indica que a Globo, Bandeirantes, Record e Rede TV tenham conseguido algo parecido, mas sem divulgação pela imprensa.

Em princípio, parece um negócio cristalino e inquestionável num país dominado pelo capitalismo neoliberal. É algo que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, também chamaria de sinal de "prosperidade". Afinal, grandes empresas estão recebendo incentivos do tesouro nacional para modernizarem seu patrimônio – com a aquisição de equipamentos de última geração. Afinal, o Brasil avança na tecnologia de ponta que é usada apenas em alguns poucos países ricos e desenvolvidos do mundo globalizado.

Por trás dessa transação aparentemente normal entre Estado e iniciativa privada, estão encobertos os equívocos cometidos nas decisões governamentais contrários aos interesses do País e do povo brasileiro. Se governar é saber definir corretamente as prioridades, a escolha errada das prioridades denuncia um governo ruim. No caso, a maneira como a adoção do padrão digital da radiodifusão está sendo implantada merece uma boa reflexão e vários questionamentos – já que caberá à sociedade brasileira pagar todas as contas dos eventuais desatinos.

Primeiramente é preciso questionar porque o Brasil tem urgência em mudar todo o sistema de radiodifusão para uma tecnologia nova e mais sofisticada. Trata-se realmente de uma prioridade nacional? O sistema atual se tornou inviável? Essa análise é pertinente porque o investimento feito na nova tecnologia da radiodifusão, destinado especialmente para o sistema privado, poderia ser aplicado em outras necessidades mais urgentes, como um programa de moradias, a melhoria do sistema de saúde, a abertura de novas universidades federais, a reforma agrária, a modernização das estradas – enfim, no atendimento de várias demandas sociais e, ao mesmo tempo, em obras e empreendimentos geradores de mais empregos do que a mudança do modelo tecnológico.

Talvez a mais forte justificativa para a mudança de tecnologia esteja no fato de que o modelo digital possibilita democratizar o sistema de radiodifusão existente, na medida em que multiplica a capacidade de canais abertos de TV e abre espaço para a concessão de novos canais públicos e comunitários – para segmentos e setores da sociedade excluídos e sem acesso aos meios de comunicação de massa. Somente a democratização efetiva do sistema pode justificar uma política pública voltada para essa modernização tecnológica da radiodifusão.Em segundo lugar, ainda não está claro para a sociedade porque o governo optou pelo modelo digital japonês, defendido pela TV Globo, e desprezou o modelo brasileiro desenvolvido por pesquisadores de várias universidades. É algo incompreensível que se abra mão do domínio do conhecimento e da tecnologia, com patente brasileira, para se adotar um modelo importado. Como é possível que o ministro das Comunicações e o presidente da República tenham escolhido a tecnologia japonesa sem que a sociedade, a comunidade científica e universitária, o Congresso Nacional, os trabalhadores e o Judiciário tenham debatido democraticamente tal decisão? Está claro que a opção feita é danosa ao Brasil, não apenas por aumentar a dependência tecnológica, mas, sobretudo, por aumentar a evasão dos recursos financeiros, o pagamento de royalties e a remessa de lucros para o exterior. Com certeza o Brasil perdeu uma boa chance de estimular o crescimento de seu parque industrial, a geração de empregos mais qualificados e de desenvolver uma tecnologia que pudesse ser compartilhada no Mercosul e com todos os países da América Latina.

Dinheiro público

Em terceiro, precisam ser questionadas as razões que levaram o governo federal a oferecer dinheiro público para o programa de mudança tecnológica, com juros privilegiados, sabendo que o setor da radiodifusão é altamente concentrado e controlado por alguns poucos grupos empresariais privados. É mais difícil entender porque as mesmas condições não são oferecidas aos pequenos agricultores, comerciantes e industriais que tenham projetos de expansão, já que estes têm possibilidade de gerar mais empregos e movimentar mais a economia do que a mudança de tecnologia dos grupos privados da radiodifusão. Enquanto o cidadão comum, no seu dia-a-dia paga juro mínimo de 3% ao mês, nos financiamentos e compras a crédito, e a maior parte dos agricultores, comerciantes e industriais precisa se socorrer no sistema bancário privado, submetidos à agiotagem legalizada dos mercados, os grandes grupos da comunicação têm linha de crédito especial no BNDES com 4,5% ao ano. Tudo indica que essa é apenas mais uma forma de transferir renda e recursos públicos para uma minoria empresarial e rica do País.

Finalmente, a sociedade precisa questionar porque os critérios adotados pelo BNDES são preenchidos facilmente pelos grandes grupos e não pelas emissoras isoladas. Tudo indica que a linha de crédito foi montada para favorecer a incorporação do padrão digital pelas principais redes de TV e deixar de fora as emissoras com poucos recursos patrimoniais e financeiros, as pequenas redes locais, educativas, universitárias e comunitárias. Uma das exigências do Programa de Apoio à Implementação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (PROTVD) é o valor mínimo do financiamento fixado em R$5 milhões, com garantias pessoais, algo completamente fora da realidade da grande maioria das emissoras isoladas de TV.

Mais uma vez a decisão governamental parece apenas uma exigência de garantia financeira, uma medida recomendável para assegurar que o financiamento do BNDES tenha o devido retorno. No entanto, as restrições colocadas provocam conseqüências diretas na realidade do sistema de radiodifusão, entre as quais o distanciamento tecnológico – de qualidade nas transmissões – entre a elite poderosa dos concessionários de radiodifusão e os demais concessionários; a disputa desigual da audiência e no faturamento comercial; e, mais grave, a real possibilidade de ocorrer maior concentração do sistema de comunicação social nas mãos das grandes redes.

Nas condições atuais, as emissoras isoladas de TV não terão recursos próprios para comprar a nova tecnologia, correm o risco de serem incorporadas pelos grandes grupos ou deixarão de existir nos próximos anos, já que o modelo digital começa a vigorar no dia 2 de dezembro deste ano. Ou seja, o "avanço tecnológico" forçado, não prioritário para o Brasil, ao invés de proporcionar a democratização do sistema de radiodifusão, se transformou em mais um mecanismo contrário à democratização e que favorece ainda mais a concentração da comunicação social. Tudo isso com a conivência deliberada do governo federal.

* Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor da PUC-SP.

Nazismo à carioca, com apoio da imprensa

Durante a ocupação do sul do Líbano na década de 1980, um padrão foi identificado por Noam Chomsky na cobertura do uso da violência pelo exército israelense:

"A questão relevante no contexto atual é que inventaram uma história conveniente e uma forma apropriada de discurso, nas quais terrorismo é coisa típica de palestinos, enquanto israelenses fazem apenas ‘retaliações’ ou, às vezes, realizam ‘ações preventivas’ legítimas, reagindo ocasionalmente com dureza deplorável, tal como qualquer país faria em situações muito penosas, segundo eles. O sistema ideológico visa a garantir o reconhecimento de que essas conclusões são teoricamente legítimas, independentemente dos fatos, que ou não são noticiados, ou são noticiados de forma que se adaptem às necessidades ideológicas ou – às vezes – honestamente, mas depois relegados ao esquecimento." (Piratas e Imperadores Antigos e Modernos, Bertrand Brasil, 2006).

O mesmo padrão parece estar se repetindo no Brasil em relação ao combate ao banditismo no Rio de Janeiro. Logo após a operação no Complexo do Alemão, o secretário de Segurança do Rio de Janeiro deu uma entrevista dizendo que todas as vítimas eram bandidos. O Jornal Nacional reproduziu e repercutiu suas declarações.

Para o cidadão comum, a violência no Rio é um truísmo. A violência policial também. O que está deixando de ser um truísmo é a isenção como a imprensa faz a cobertura de ambas. Afinal, a violência policial passou a ser justificada pelos jornalistas.

"Terror contra Terror"

Os adjetivos aplicados à operação pelo jornalismo televisivo não deixam dúvidas. A operação no Complexo do Alemão foi de "retaliação" às quadrilhas de traficantes. Todas as "ações preventivas" da polícia têm sido consideradas legítimas pela mídia. A Rede Globo nem chegou a deplorar os excessos cometidos pelos policiais. Parece ter deixado para fazer isto quando ficar claro que algumas das vítimas eram inocentes. Isto indica que a Globo passou a adotar o princípio de que todos os favelados são culpados até prova em sentido contrário. Um caso grave de influência comunista, já que o temido Vichinsky, procurador predileto de Stalin, foi o inventor dessa máxima jurídica.

Chomsky também fez uma interessante comparação entre as "retaliações" israelenses no sul do Líbano e a brutalidade nazista nos territórios ocupados:

"O chefe da unidade de ligação das FDI no Líbano, general Sholomo Ilya, disse que ‘a única arma contra o terrorismo é o terrorismo’ e que Israel tem, além dos já usados, recursos para ‘falar a linguagem que os terroristas entendem’. O conceito não é novo. As operações da Gestapo na Europa ocupada também foram justificadas pelo combate ao ‘terrorismo’ e uma das vítimas de Klaus Barbie foi encontrada morta com uma mensagem presa ao tórax que dizia ‘Terror contra o Terror’ – coincidentemente, a expressão usada pelo grupo terrorista israelense e o título de reportagem de capa da Der Spiegel sobre o bombardeio terrorista norte-americano na Líbia, em abril de 1986." (Piratas e Imperadores Antigos e Modernos, Bertrand Brasil, 2006).

Incentivar a execução de suspeitos

O nazismo foi derrotado na Europa! Não foi? Tem sido muito ativo no Oriente Médio. E agora a imprensa brasileira está sendo nazista ao permitir que a polícia carioca puna toda uma população em razão da secular incompetência governamental de prefeitos, governadores e presidentes. Ninguém é favelado por opção. Foram as condições históricas, sociais e econômicas que produziram o monstrengo que assusta o dileto e minúsculo grupo dos ricos do Rio de Janeiro. Nenhum favelado é criminoso só porque nasceu e cresceu numa favela. Não é, mas está sendo tratado como tal, e com a cumplicidade da mídia. Se o padrão de cobertura das operações policiais nos morros vier a se transformar num lugar-comum realmente ocorrerá um genocídio. Bem debaixo de nossos narizes.

Os agentes do Estado devem agir sempre observando o princípio da legalidade. Criminosos são aqueles que o Poder Judiciário declara culpados em regular processo com a garantia de direito de defesa. As execuções de criminosos são absolutamente ilegais porque a pena de morte é proibida. Sendo assim, tratar suspeitos como criminosos e incentivar a execução de suspeitos deveria ser considerado um crime pela mídia. Mas não é! Esse nazismo à carioca ainda vai dar o que falar.

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