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A Classificação Indicativa e o retrocesso brasileiro

O Brasil está diante de um retrocesso histórico. A qualquer momento pode ser votada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a queda de parte de uma das maiores conquistas no que tange à regulação da comunicação no Brasil: a Classificação Indicativa. Na tarde da última quarta-feira (30/11), o STF iniciou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) que pede o fim da obrigatoriedade de horários, em conformidade com as faixas etárias, para a classificação indicativa de programas de rádio e TV. Apesar de a ação questionar especificamente a vinculação da programação aos horários adequados às faixas etárias, como prevê, inclusive, o Art. 220 da Constituição Federal, esta medida coloca em risco a eficácia de todo o processo da Classificação Indicativa para televisão e rádio.

A ação, movida pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), já teve o voto favorável de quatro ministros e não houve continuidade da votação ainda na mesma seção porque o Ministro Joaquim Barbosa pediu vistas ao processo. A ADIN é claramente movida pelos interesses das emissoras de rádio e televisão, que desde a implementação das Portarias que regulamentam a Classificação Indicativa tentam derrubá-la. Vale a pena lembrar da tentativa de mudança do fuso horário do Acre em benefício dessas redes há cerca de dois anos e as propagandas criticando o projeto.

O processo que deu origem ao Manual da Classificação Indicativa e às Portarias (1220/2006 e 1000/2007) que regulamentam a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como o Código Civil, além de outras leis correlatas, foi um processo democrático que contou com a participação de diferentes atores da sociedade. Como resultado deste processo, o Brasil tornou-se referência na regulação de uma classificação etária para conteúdo audiovisual e jogos em todo o mundo.

Explicando rapidamente o processo, visto que até os votos dos Ministros demonstram uma clara incompreensão ou desconhecimento das Portarias, a Classificação Indicativa é uma norma constitucional processual que resulta do equilíbrio entre o direito de liberdade de expressão e o dever de proteção absoluta de crianças e adolescentes. Em vários processos legais que envolvem direitos e deveres, haverá colisões entre eles e a  busca de uma solução para este embate parte da compreensão dos direitos e das liberdades individuais e coletivas, bem como da observância dos deveres para que se possa viver em sociedade. A Classificação Indicativa é o resultado possível de um processo democrático que visa a resolver conflitos.

Neste processo, especificamente, estão envolvidos o Estado, a sociedade (e aqui também as empresas que produzem conteúdos) e as famílias. Se há uma compreensão mundial, inclusive com acordos e tratados assinados pelo Brasil e pela maioria dos países democráticos, de que as crianças e adolescentes precisam de proteção, o Estado deve garantir as condições da sociedade e da família cuidarem desses seres em clara situação de risco e vulnerabilidade. Indubitavelmente, uma das situações em que os pequenos se encontram em vulnerabilidade é no contato com obras culturais e audiovisuais. Frente à crescente importância que estes meios têm na vida e na formação das crianças e dos adolescentes, não se pode expor sem cuidado determinados temas abordados nestas obras.

A decisão é da família

Dentre estes temas e conteúdos, há consenso sobre três questões relativas à proteção das crianças: a exposição às drogas, à violência a ao sexo. São apenas a partir destes três pontos – seus atenuantes e agravantes – que se posiciona a Classificação Indicativa. É com relação ao percentual de sexo, drogas e violência que uma obra é classificada etariamente. Não há em qualquer momento a sugestão de que o autor altere a sua criação, mas apenas a adequação a uma determinada classificação etária.  

E para que serve essa classificação? Ao contrário do que se tenta passar, o Estado não interfere, não dita e não resolve nada do que vai ser visto pelo seu filho ou filha. Esta continua sendo uma escolha da família e somente dela. A Portaria da Classificação Indicativa criou, como resultado de todo processo (do qual participaram advogados, psicólogos, produtores audiovisuais, professores de comunicação etc), o Manual da Classificação Indicativa. O Manual diz respeito a todos os produtos, classificando as obras como “Especialmente Recomendado”, “Livre”, “10, 12, 14,16 e 18 anos”.

Quem faz essa Classificação Indicativa? Em primeira instância sempre o produtor! No caso do cinema e dos jogos eletrônicos, estes produtos são levados ao Ministério da Justiça, que averigua a adequação da obra aos critérios brasileiros. Na grande maioria dos casos, a classificação é adequada e apenas em um percentual muito pequeno existe a solicitação de readequação. Cabe lembrar que os pais podem optar por autorizar seus filhos para que eles vejam filmes com classificação diferente da indicada para sua idade – com exceção apenas dos filmes de 18 anos – ou podem comprar jogos de luta, morte, sexo e drogas para os seus filhotes de 8 anos. A decisão é dos pais! O Estado exige apenas que o produtor classifique e averigua tal classificação, caso isso seja do interesse ou curiosidade dos pais. O produtor, por sua vez, faz seu papel de classificar e submeter à análise do Ministério da Justiça. E à família cabe escolher o conteúdo a que seus filhos vão ter acesso.

Adequação do horário de exibição

No caso da televisão, o produto não passa antecipadamente pelo Ministério da Justiça. Havendo denúncia de inadequação, que pode ser feita pela própria sociedade ou pelos profissionais do Ministério da Justiça que monitoram a programação, o programa é notificado e é solicitada a readequação da classificação sugerida. O que há de diferente para as empresas de rádio e televisão é que a adequação da faixa etária está atrelada aos horários em que as crianças e adolescentes estão expostos à televisão. No caso, os pais que trabalham fora de casa o dia inteiro e que não podem exercer diuturnamente a sua fiscalização, não correm o risco de chegar em casa e saber que seus filhos assistiram na “Sessão da Tarde” um filme com conteúdo de violência, drogas ou sexo inadequado para a idade deles.

O que as redes de televisão querem é a “liberdade” de passar a qualquer hora qualquer classificação e você, que não está em casa o dia todo, ou que se ausentou para ir resolver qualquer problema, ou que estava lavando as roupas, trocando as fraldas ou fazendo o almoço, tenha que lidar com a chance de que seus filhos vejam “Pânico na TV” ou “Cine Prive” à tarde.

O que se está discutindo não é se o Estado vai ou não resolver o que seus filhos vão assistir – já está claro que o papel do Estado não é esse. Ele apenas auxilia para que você saiba o conteúdo e possa escolher, e o que se coloca em questão é justamente a não possibilidade de  que pais, mães ou responsáveis estejam presentes o tempo todo com seus filhos. E a depender do julgamento do STF, é o mercado quem vai decidir o conteúdo ao qual os seus filhos terão acesso. E, como se sabe, se o programa “Pânico na TV” tem elevados índices de audiência passando às 23h, vai ter ainda mais passando às 17h – não restam muitas dúvidas de qual será a opção da emissora. Mas você ainda não chegou do trabalho, ou é a hora de pegar o outro filho na escola… problema seu! É isso que está em jogo. São as leis do mercado se sobrepondo à realidade das famílias brasileiras às leis estabelecidas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Há também que se esclarecer que ao contrário do que declarou em seu voto o Ministro Toffoli, a classificação indicativa é presente sim em muitos países. Os Estados Unidos, a Argentina, o Chile, a Áustria e a França são exemplos de países que têm classificação indicativa (www.midiativa.tv/direitos/classindimundo.doc). Não estamos inventando a roda e ainda estamos muito distantes de países democráticos como a Noruega, o Canadá e tantos outros em que a publicidade para crianças já não existe ou é dirigida apenas aos pais. Isso sim é proteger as crianças, que são o presente e o futuro de um país.
 
Decisões problemáticas

Vale ainda lembrar que esta não é a primeira decisão do STF que privilegia os interesses dos empresários da comunicação, sem que qualquer ação até agora movida contra eles tenha logrado êxito. Há pouco tempo, o Tribunal votou a revogação da Lei de Imprensa, por completo, apesar de a mesma já ter seus piores artigos vetados. Ocorre que até hoje não foi votada no Congresso Nacional a nova Lei de Imprensa e os meios de comunicação estão funcionando sem nenhuma regulação. O mesmo foi feito com a queda da obrigatoriedade do Diploma para o exercício da profissão de jornalista. Sob o argumento de que este seria um empecilho à liberdade de expressão, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto de Relator, tão preocupado com a democratização da comunicação, esqueceu-se também de questionar concentração e os grandes conglomerados de comunicação, estes sim o principal empecilho à liberdade de expressão. A atualização da regulação da profissão, que independe da exigência do diploma, até o momento não aconteceu. Além destas, o Supremo também considerou improcedente a ação contra a consignação de novos canais para os radiodifusores prevista no decreto que criou o Sistema Brasileiro de Televisão Digital.

No entanto, outras ações movidas para que o Estado faça cumprir os artigos do capítulo da Comunicação Social presentes Constituição Federal, como a que veta o monopólio e o oligopólio das comunicações, ainda não foram apreciadas pela mesma Corte.

Marina Martins é jornalista, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília. Professora Substituta da UnB e Membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

É hora de avançar também no Ministério das Comunicações

O processo de transformação democrática do Brasil prosseguirá por mais quatro anos. Assim decidiu a maioria da Nação. Será muito difícil, ao cabo desses 12 anos, que desse processo não se consolide uma realidade social e econômica muito distinta da que tínhamos antes de iniciado o primeiro governo Lula e, sobretudo, que seus avanços ainda possam ser revertidos. Quem quer que suceda Dilma, em 2015, não poderá mais voltar atrás nas conquistas alcançadas. O país será outro.

No entanto, se muito avançou em algumas áreas importantes, o governo Lula pouco ou nada avançou em outras. Admitamos, para sermos generosos, que cada fase determina suas prioridades. Uma das áreas nas quais o governo Lula muito pouco avançou foi na das Comunicações. Reivindiquemos: esta é, agora, uma das áreas a ser priorizada.

Há oito anos atrás, recém-eleito presidente, Lula ocupou, como um terceiro “âncora”, ao lado do casal Bonner-Bernardes, todo o tempo de quase uma hora, em edição especial, do “Jornal Nacional” da Rede Globo. Para as corporações mediáticas (doravante CM), este seria o símbolo maior de suas expectativas em domesticá-lo. Mas para o próprio Lula, este seria também o símbolo maior da sua expectativa de vir ser aceito como um novo integrante das elites políticas e econômicas de nosso país. Dois mandatos depois, era perceptível, na reta final da última campanha, a frustração do presidente, respondendo em tom maior a cada cretinice da qual foi vítima ao longo de todos esses oito anos. Preconceito, como subdesenvolvimento, não se improvisa, é obra de séculos…

Lula e o PT alimentaram a ilusão de que poderiam conviver civilizada e democraticamente com as CMs; que pouco ou nada haveria a fazer no campo das Comunicações. Na verdade – é necessário dizê-lo –, Lula e o PT nunca tiveram uma política clara para as Comunicações. Omitiram-se por ocasião da privatização da Telebrás, efetivada às vésperas das eleições de 1998. Não “dava votos”. Agora, durante esta última campanha, viu-se uma candidata Dilma Rousseff sem respostas para as falsidades demagógicas de seu opositor sobre o “êxito” da privatização da Telebrás, embora, qualquer observador independente conheça bem as mazelas resultantes (ver “Nossa Opinião: Privatização, a política que atrasou as telecomunicações no Brasil” e “Telecomunicações, ainda falta muito para universalizar” ).

 

Já no governo, Lula e seu governo deixaram morrer nas gavetas do Ministério das Comunicações até mesmo os três ante-projetos que seu antecessor elaborara, para consumar a reforma que vinha avançando no setor, depois da privatização da Telebrás. Cardoso, ao menos, desejara atualizar o ordenamento jurídico da “comunicação social eletrônica”. O governo Lula nem nisso avançou. Fez que esqueceu.

Pagou pelo erro. E se Dilma não mudar, continuará pagando. Basta ler o noticiário de O Globo no dia seguinte à sua eleição, a começar pela manchete de primeira página para não ter o direito de seguir alimentando ilusões: “Lula elege Dilma e aliados já articulam sua volta em 2014”. Precisa mais?

“Perdeu, playboy”

Não é de hoje que as CMs se colocam em bloco contra o progresso social e a democratização de nossa sociedade. Foi assim em meados dos anos 1950 quando levaram Getulio Vargas ao suicídio, foi assim em 1964 quando pregaram e saudaram o golpe e a ditadura militar. Ao longo de mais de meio século, agruparam-se e consolidaram-se em um pequeno grupo de grandes organizações capitalistas (nacionais e regionais) essenciais à produção e reprodução de um determinado modelo de desenvolvimento, aquele promotor do consumo conspícuo e da concentração de renda. Pretendem-se responsáveis pelo agendamento da “opinião pública”, esta definida enquanto um certo senso comum político e moral daquela parcela mais rica e escolarizada da população, na qual são recrutados os quadros dirigentes da economia e da política nacionais, além, claro, dos próprios jornalistas. Pela natureza essencialmente simbólica da atividade mediática, as CMs tornaram-se, no Brasil, o núcleo formulador essencial do projeto conservador de poder, ocupando o espaço que caberia ao próprio Estado, aos partidos políticos, à Academia, à Igreja, a outras instituições. Aos poucos, todas foram se colocando a reboque da agenda mediática. Se aborto vira, ou não, tema de campanha, não o será porque a Igreja queira ou deixa de querer, mas porque as CMs o querem, ou não.

Mas a sociedade muda. A cada ciclo de mais ou menos meio século, qualquer sociedade capitalista passa por grandes mudanças. Nos últimos 15 a 20 anos, o mundo e o Brasil passaram e seguem passando por grandes transformações econômicas, políticas e culturais. O mundo e o Brasil de hoje não são mais os mesmos que eram quando as CMs se consolidaram de vez, no Brasil, ali por volta dos anos 70 do século passado.

No próprio campo interno do capital, emergiram novas forças produtoras de imaginário e consumo. A “comunicação de massa” está dando lugar a uma comunicação segmentada, identitária, atomizada. Não é o caso, aqui, de examinar se isto é bom ou ruim. É fato. Fato que se expressa no deslocamento das audiências para os canais de TV por assinatura, portais e blogs de internet, música via iPod ou MP3, entretenimentos pelo “celular” etc. Novas grandes corporações mediáticas emergiram, associando produtores e programadores de “conteúdos” com provedores de infra-estrutura, para atender a essas novas realidades econômicas e culturais (é o que se chama “convergência de mídias”). O Brasil não acompanhou essa evolução. Ao destruir a Telebrás do jeito como destruiu (oposto ao que fizeram, com suas “telecoms”, todos os países sérios do mundo, inclusive o México), o governo Cardoso impôs enormes obstáculos, no Brasil, à evolução do nosso capital mediático para essa nova fronteira. O que sobrou – as CMs comerciais de imprensa e radiodifusão – viram-se numa condição bastante fragilizada e disto muito se queixam agora, assumindo subitamente um falso discurso “nacionalista”, depois de terem aplaudido entusiasmadamente a desastrada privatização cardosina.

Ao mesmo tempo, graças sobretudo, no Brasil, ao governo Lula, uma grande parcela da nossa população foi incorporada ao universo do consumo conspícuo. Esta foi a maior realização deste governo. As últimíssimas palavras da candidata Dilma Rousseff, no debate na Globo, interrompidas pelo cronômetro, deixam isto claro, consciente ou subconscientemente: “melhoria da vida material”… Ficou fora, a cultural, a simbólica.

Esta nova massa consumidora é a massa da internet e do celular. Nem por isso culta, se por cultura entendemos uma evolução racional, ilustrada, simbolicamente cada vez mais rica, da mente social humana. Basta ouvirmos a miséria melódica e poética (se dá para usar estes termos) do som dito “popular” que toca nas praias do Nordeste ou nas favelas funqueiras cariocas para percebermos o retrocesso estético e ético que paradoxalmente está acompanhando aquela melhoria material. No fundo, essa massa consumidora por enquanto feliz, será presa fácil do fascismo e do obscurantismo tão logo a economia comece a ratear. E que ninguém espere progresso sem crises, numa economia capitalista… Aliás, o obscurantismo evangélico não teria tido a força que teve nesta última campanha, se à “prosperidade” dos irmãos não correspondesse equivalente pauperização intelectual.

As CMs, nesta última campanha, tudo fizeram, até mesmo promover perigoso obscurantismo, para impor ao País, o governo que imaginavam lhes seria favorável na construção de políticas implícitas ou explícitas em defesa dos seus interesses. Querem controlar a “convergência”, subordinando-a aos seus estreitos e ultrapassados limites. E talvez se iludam (não há, por enquanto, outra explicação), imaginando que ainda podem monopolizar, a partir “de cima”, a produção do imaginário político e cultural do país. “Perdeu, play-boy”, diz-se na linguagem lumpen. Resta saber se Dilma Rousseff entendeu isto.


Um ministério estratégico

Na cabeça e mãos da primeira presidenta do Brasil, encontra-se o desafio de reconstruir a indústria cultural brasileira, sem falar, claro, da valorização ética e estética de toda a enorme riqueza cultural do País ainda a margem e ao largo da produção capitalista. No governo Lula, se teve um ministério atento tanto à indústria empresarial, quanto às expressões amadoras genuinamente populares, este ministério foi o da Cultura. Mas se há um ministério essencial para esta tarefa, este é o das Comunicações. Durante o governo Lula, foi omisso – mas o foi propositadamente omisso. O pouco que o governo avançou, quando avançou, deve-se a iniciativas da Cultura ou da sua Casa Civil – nesta brotaram os programas de “inclusão digital”, inclusive, por último, o Plano Nacional de Banda Larga.

Dilma Rousseff não poderá seguir olhando para o Ministério das Comunicações como um espaço de barganha política. Nesta era da “sociedade da informação”, da “economia criativa”, do “capitalismo cognitivo”, que outros nomes queiram dar ao atual capitalismo, as Comunicações são tão estratégicas quanto eram siderurgia ou petróleo nos anos 1950. Este é um segmento que já atinge 7% do PIB mundial (indústria eletro-eletrônica mais produção e programação de conteúdos audiovisuais). O Brasil não pode se atrasar nele. Espera-se que a presidenta Dilma nomeie para as Comunicações um ministro comprometido com um projeto estratégico de país, não com as vulgaridades da micropolítica partidária – e correspondentes interesses de um sistema ultrapassado de comunicação social.

O governo Dilma Rousseff já tem um programa para as Comunicações. Ele foi escrito pelo movimento popular, juntamente com o empresariado moderno e o próprio Governo Lula, na Iª Conferência Nacional de Comunicação (Iª Confecom). Se Dilma se comprometeu, em seu primeiro pronunciamento, logo após anunciado o resultado, com a Constituição, a Confecom quer, justamente, ver regulamentado os artigos 220 a 224 dessa mesma Constituição. A Confecom quer mais: pediu programas de defesa, apoio, fomento à produção audiovisual brasileira, à diversidade cultural, à pluralidade de vozes. Reivindicou uma grande reforma normativa em direção à “convergência”, mas priorizando a defesa da cultura brasileira, da economia e do desenvolvimento científico-tecnológico nacionais. E sustentou a necessidade de o governo implementar um programa de universalização da banda larga, em regime público (neste aspecto, o PNBL deixado pelo governo Lula não atende a esta demanda). Por fim, mas não por último, defende que os órgãos normativos e regulamentadores sejam transparentes, plurais, democráticos, na forma de Conselhos nos quais se possam ouvir as vozes dos diferentes segmentos da sociedade.

O governo Dilma Rousseff terá quatro anos para pôr essas resoluções em prática, condição sine qua non de consolidação e aprofundamento dos avanços sociais e econômicos até agora conquistados. Para isto, precisará de um ministro das Comunicações comprometido com o movimento popular, com o capitalismo de fronteira e com as reformas democráticas por ambos aprovadas na Confecom. Já é mais do que passada a hora de o projeto representado por Lula e por Dilma, mais uma vez reafirmado nas urnas, assumir de uma vez por todas o comando desse Ministério.

 

 

 

* Marcos Dantas é professor do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ

 

Conselhos são embriões de políticas públicas constitucionais

A aprovação de um indicativo para implementação do Conselho de Comunicação Social do Ceará foi propagada como medida obscurantista pela maioria da grande imprensa e radiodifusão brasileira. A iniciativa da deputada Raquel Marques (PT), apreciada por unanimidade pela Assembléia Legislativa e encaminhada para o governador reeleito Cid Gomes (PSB), foi taxada como perigo a liberdade imprensa e expressão pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), Associação Nacional de Jornais (ANJ) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Já o Ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello se pronunciou¹ que nem a Lei, nem órgão administrativo, podem criar quaisquer embaraço à informação jornalística. 

 

Abert, ANJ, o Ministro do STF e setores da mídia distorcem os fatos para amedrontar a sociedade sobre o papel dos Conselhos. Não é uma resolução da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) a instalação desses órgãos. A Constituição Federal no Art 224 já prevê o Conselho de Comunicação Social pelo Congresso Nacional, a fim de regulamentar os artigos 220, 221, 222 e 223, do Capítulo V da Carta Magna. Infelizmente o Senado, responsável pelo Conselho, o mantém desativado. 

 

Em nível estadual, Constituições como do Pará, Bahia, Alagoas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Goiás também deliberam pela convocação de Conselho Estadual. Assim, a I Confecom buscou orientar para complementariedade entre União, Estados e Municipios, atenta para o fato de nenhuma política pública no país se constituir sem a participação dos três entes federativos.  

 

No caso dos Conselhos Estaduais não há nada a temer entre suas funções deliberativas, consultivas e fiscalizatórias. As Constituições dos estados sub nacionais brasileiros costumam destacar a comunicação nas responsabilidades, culturais, sociais e econômicas, a exemplo do Ceará. Envolver a comunicação nesses termos já é mérito destacável. Resoluções na Organização das Nações Unidas (ONU) já apontam para essas atribuições aos governantes há cerca de 50 anos, em especial no processo que desencadeou o relatório "Um Mundo e Muitas Vozes. Comunicação e informação na nossa época" lançado em 1981 e considerado até hoje o documento mais completo sobre os desafios do setor para as sociedades modernas.  

 

Entre os problemas elencados pelo relatório estão as disparidades regionais e a concentração econômica, e curiosamente o Brasil já é citado como exemplo negativo neste quesito. No caso da legislação e estrutura administrativa nacional o condensamento de atribuições a União na comunicação é uma das características que representam sua defasagem. Tal situação impede o Estado de atenuar as desigualdades e incluir a comunicação como vetor num desenvolvimento socioeconômico horizontalizado. 

 

Durante a I Confecom setores empresariais destacáveis participaram até o fim, como a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA) e Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil). Uma das condições impostas por esses setores foi vetar a votação de propostas em estados e municipios. A medida, apelidada de "AI-8" da Confecom, visava estancar a intensa mobilização das Comissões Pró Conferência (CPC), diretamente responsáveis em tornar a Confecom irreversível na sua caminhada ardilosa. Impedia-se assim que a sociedade civil se apropiasse das complexas pautas negociadas nos Grupos de Trabalho (GT) e plenário da Confecom, posteriormente no Congresso e na agenda eleitoral nos três níveis da federação. Ao final, a implementação de Conselhos foi uma das poucas resoluções da Confecom que apontou para a descentralização.

 

Finalizada a Confecom alguns estados e municípios e a sociedade civil conseguiram ultrapassar os limites do poder Federal. Na Bahia, a I Conferência Estadual de 2008 sinalizou que as forças regionais começavam a se movimentar com relativa autonomia. O processo foi considerado alavancador da Confecom e teve a implementação do Conselho ponto prioritário entre governo, sociedade civil e empresários, com Projeto de Lei pronto para ser enviado à Assembléia ainda em 2010.

 

No Piauí, enquanto governado por Wellington Dias (PT), foi desenvolvido uma Unidade de Políticas Públicas de Comunicação, voltada para radiodifusão comunitária, e pós Confecom encaminhado um projeto de lei para o Conselho Estadual. Em Sergipe um GT formulou propostas para fortalecimento da radiodifusão pública local, já em Pernambuco a TV pública passa por renascimento, ambos, com ampla participação da sociedade. No Ceará, a CPC local se constituiu como Rede Cearense pela Comunicação (Redcom) e formulou a proposta de Conselho Estadual encampada pela parlamentar petista.     

 

Vale ressaltar que as propostas de Conselho no Ceará, São Paulo, Alagoas, Bahia e Piauí prevêem a participação empresarial, em proporção muito superior a média dos demais Conselhos de políticas públicas, como saúde e educação. Na Bahia, entidades empresariais participaram ativamente do Grupo de Trabalho que finalizou uma proposta de consenso do Conselho, atualmente sob estudo pela Procuradoria Geral do Estado.

 

Vácuos históricos

 

Tais propostas estaduais, em especial os Conselhos, caminham sob vácuos históricos do setor, nos quais valem destacar: estrutura administrativa, racionalização das verbas publicitárias, fortalecimento do sistema público, observatório às violações aos direitos humanos na mídia, acompanhamento da utilização do espectro e liberação de outorgas e também da qualidade dos serviços de telecomunicações. 

 

O primeiro vácuo é que os governos estaduais não detém estruturas administrativas aptas para tocar as políticas de comunicação sob interesses sociais e como vetor de desenvolvimento. Geralmente as secretarias de comunicação são meras assessorias de imprensa do governo e responsáveis em distribuir as verbas publicitárias. São desarticuladas as ações das emissoras públicas, empresas gráficas, ouvidorias e até secretarias, em especial as com relações mais diretas com a comunicação, a exemplo da cultura, educação e ciência e tecnologia. Assim, o Conselho tem o papel de auxiliar o governo na condução de pontos convergentes entre órgãos que podem dar corpo coerente a Planos Estaduais de Comunicação e futuramente Secretarias dotadas de estrutura humana e física apropriada. 

 

Racionalização Publicitária

 

O segundo vácuo é o planejamento de políticas estaduais com participação da sociedade civil e atentas para os gastos com publicidade e propaganda.  Atualmente as políticas estaduais são focalizadas em injetar volumosas verbas de publicidade e propaganda. Em 2009, os governos estaduais gastaram R$ 1,69 bilhões neste quesito, valor em crescimento progressivo ano a ano. São Paulo é o recordista e representa 20% deste total, R$ 311 milhões². 

 

Tal montante torna os poderes executivos anunciantes de peso  -provavelmente os maiores- no varejo local e reproduzem a mesma lógica nacional: se beneficiam destes recursos aqueles que detém maior audiência, tiragem ou acesso, critérios "técnicos" utilizados para distribuição destas verbas. 

 

Ainda nas verbas de propaganda, é notória a ausência de transparência na sua destinação.O caminho tradicional do repasse destes recursos é a contratação de agências de publicidade que compram os anúncios no varejo, caracterizando uma relação entre iniciativa privada, a preços livres de concorrência, deixando a sociedade e orgãos de fiscalização de gastos, como os tribunais de contas, sem parâmetros claros do destino final e quantidade dos recursos alocados. 

 

Já os pequenos e médios veículos, sem condições de medir ou alcançar percentuais significativos nos critérios de contratação das agências, ficam vulneráveis a terem afinidades com a linha editorial das assessorias de comunicação dos governos para tentar receber parte deste recurso. 

 

Neste cenário os Conselhos podem se tornar espaços de racionalização das verbas publicitárias, protegendo empresas jornalísticas e governos. Ganha o cidadão ao ter jornalismo autônomo, sem embaraços econômicos e políticos, e também informações sobre a legalidade e viabilidade dos gastos públicos em publicidade.   

 

Fortalecimento do Sistema Público

 

O terceiro vácuo é o fortalecimento dos veículos de caráter público. As emissoras públicas são historicamente sucateadas, com baixos níveis de audiência. Enquanto a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) se estrutura com relativa velocidade em nível nacional, as TV's estaduais continuam sob ingerência do poder Executivo e a ausência de fontes perenes de financiamento.

 

Às emissoras comunitárias são negados programas em complementariedade as demais políticas sociais e as verbas publicitárias são proibidas pela lei. Não é novidade o papel da comunicação para o desenvolvimento socioeconômico e promoção de valores compatíveis com a dignidade humana. Nas periferias dos centros urbanos e na zona rural brasileira os veículos comunitários são alternativas viáveis para informes educativos e valorização cultural. Liberar novas outorgas comunitárias não altera tal panorama, porque o comunicador, sem mecanismos de sustentabilidade, fica à mercê de "padrinhos" políticos ou religiosos, deteriorando a qualidade da informação. 

 

Se trata de papel do Estado promover a sustentabilidade da radiodifusão pública e comunitária, conforme aponta a Organização dos Estados Americanos (OEA), na sua Relatoria Anual para Liberdade de Expressão. Para a OEA a concentração da propriedade comercial da radiodifusão tem efeito similiar a censura: o silêncio. 

 

Assim, os Conselhos Estaduais podem se tornar espaços embrionários na elaboração de políticas com participação social, não só para revisão do caráter das verbas publicitárias, mas também de diagnósticos, desenvolvimento de fundos de fomento, cursos, redes e assessoria técnica, para os veículos comprometidos com a diversidade e pluralidade, desafogando a União de responsabilidade sob esses meios.       

 

Observatório às violações aos Direitos Humanos

 

Um órgão administrativo do Executivo estadual, como o Conselho, não tem competência legal para interferir no conteúdo dos meios de comunicação. O quarto vácuo cumprido por estes órgãos é de observar às violações aos direitos humanos e encaminhar relatórios para o Ministério Público Estadual ou Federal tomarem as providências necessárias. 

 

Atualmente a grade regional é abarrotada por programas policialescos, transmitidos em horários inapropriados para crianças e adolescentes, permeados de sangue, criminalização de grupos hitoricamente discriminados e setenciamento ilegal. 

 

O Ceará teve três programas notificados pelo Ministério da Justiça (MJ) em 2004, quando se tentou efetivar a classificação indicativa: “Barra Pesada” da TV Jangadeiro (SBT), “Cidade 190” da TV Cidade (Record) e “Rota 22” da TV Diário (Globo).  Na Bahia um monitoramento  entre os meses de janeiro e julho de 2010 sistematizou este conjunto de violações. 

 

Neste quesito os Conselhos se tornam espaços fundamentais para institucionalizar estas denúncias, buscando interlocução direta com os empresários, que detém cadeiras cativas na composição, bem como estimular intervenções do Ministério Público junto ao poder Judiciário.

 

Utilização do espectro 

 

A liberação de outorgas de radiodifusão é de competência da União, segundo a Constituição Federal. O trâmite para obter uma concessão já é dotado de pouca transparência e envolve as comissões temáticas do Congresso, fartamente frequentada por políticos radiodifusores. A sensação de impunidade se reverte na utilização do espectro. É comum rádios e TV's pelo país expandirem suas transmissões para localidade onde não foram licenciadas ou mesmo continuarem a operar com o prazo do contrato expirado. Caberia então ao Conselho Estadual encaminhar à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e ao Conselho Nacional relatórios sobre a utilização do espectro e dar maior transparência local aos processos de outorgas.

 

No caso das emissoras comunitárias o caminho para obter uma outorga começa pela barreira técnica, na qual as comunidades mais humildes têm dificuldade de responder. São comuns os políticos e/ou religiosos que se especializaram em preencher tais requisitos para trocar por favores políticos aos comunicadores. O quinto vácuo do Conselho Estadual se conclui ao prestar assessorias técnicas aos comunidadores comunitários e acompanhar o processo de liberação de outorgas, a fim de atenuar, na origem, as distorções na radiodifusão comunitária.  

 

Serviços de telecomunicações

 

Na década de 1990 a privatização das telecomunicações tornou os governos estaduais meros recolhedores e impostos nesse segmento. O Imposto de Circulação de Mercadorias (ICMS) nas teles costuma encarecer os serviços, representando até 60% do valor total em nível estadual, em alguns casos o montante é superior a armamentos e cosméticos,  segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A arrecadação do ICMS é distribuída para diversas políticas, como saúde, educação e segurança pública, mas as políticas de comunicação ficam órfãs do que movimentam economicamente.   

 

O resultado é que os governos estaduais se resumem em aplicar iniciativas de inclusão digital via telecentros e parcerias com empresas de telecomunicações para prover internet em escolas públicas. Ações que pouco interferem para atenuar as disparidades regionais do setor e promover a universalização no acesso à internet em alta velocidade (banda larga), telefonia fixa ou mesmo barateamento das tarifas na telefonia móvel. Esse é o sexto vácuo destacável das políticas estaduais.

 

Caberia então aos Conselhos Estaduais encaminhar sugestões para o poder Executivo e a Assembléia Legislativa para promover a expansão destes serviços. Podendo se pensar, inclusive, em reativar as empresas estatais de telecomunicações, em complementariedade à Telebrás. Também se faz necessário um órgão que dê legitimidade às denúncias aos abusos cometidos pelas empresas e as redirecione à Anatel e Conselho Nacional. 

 

 

* Pedro Caribé é jornalista, repórter do Observatório do Direito à Comunicação e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

1 – Jornal Nacional do dia 21/10/2010

2 -Informação publicada na Folha de São Paulo, 24/05/2010.

Liberdade de expressão em risco

"A Associação Nacional de Jornais (ANJ) acompanha, investiga, denuncia, pede providências e se manifesta em defesa da liberdade de expressão." Retirada do site da ANJ, a frase abre o "Programa pela Liberdade de Imprensa" da associação. É curioso que a principal entidade representativa dos jornais comerciais brasileiros ainda não tenha denunciado alguns episódios recentes que colocaram em xeque a liberdade de expressão no país.

 

O manifesto pela liberdade de expressão da ANJ é repetido incisivamente por todos os donos de jornais brasileiros, em frequentes editoriais e até mesmo reportagens, alertando ainda para a ameaça de censura que ronda o país. Articulados no Brasil com a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) e com a Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner) eles se empenharam numa forte campanha para desqualificar as conferências setoriais de direitos humanos, cultura e comunicação, espaços de escuta à sociedade para formulação de políticas públicas. Produziram um filme que alertava a população para o monstro da censura que poderia acordar. Na América Latina, estão associados a outras entidades empresariais do setor e combatem, com a Sociedade Interamericana de Prensa (SIP), toda e qualquer política dos governos que apoiam e buscam promover iniciativas de comunicação não comerciais, como a Ley dos Medios na Argentina.

 

Diante de tanta dedicação à defesa da liberdade de expressão, era de se esperar que a ANJ fosse a público contestar e denunciar um dos casos mais escancarados de silenciamento público da história recente do país. Maria Rita Kehl, que escrevia semanalmente para o Estadão, foi demitida depois de um "delito de opinião ". Teria incorrido em um erro ao pensar diferente do jornal, dizer o que pensa, expressar um ponto de vista por meio do artigo "Dois Pesos… ", publicado em 02 de outubro. O jornal, que ocupa a vice-presidência da ANJ, alega que Kehl havia sido contratada para escrever sobre psicanálise, e não política. Como a diversidade temática já era característica de sua coluna, fica difícil acreditar que sua demissão não tenha sido um gesto desesperado para afastar uma formadora de opinião que divergia do jornal. Pior que isso, diante do desespero, calaram uma articulista lúcida e questionadora, restringindo a liberdade de expressão no veículo.

 

No encerramento do IV Workshop de Inovação da Aner, o representante da Editora Abril afirmou, categórico, que ?os dois pilares da convivência democrática se baseiam, em nosso ramo, na energia da livre iniciativa e no vigor da liberdade de expressão". Mas como explicar a demissão, em maio, do jornalista Felipe Milanez, editor da revista National Geographic Brasil, da empresa dos Civitá? Milanez publicou no Twitter comentários críticos a respeito da reportagem "A farsa da nação indígena", veiculada na revista Veja.

 

Outro caso recente foi protagonizado pela Folha de S.Paulo, que ocupa a presidência da ANJ. O jornal pediu a retirada do ar do blog Falha de S. Paulo, uma divertida sátira sobre a cobertura da publicação. Processou ainda os irmãos Bocchini, criadores do site, alegando uso indevido da marca, mas evidentemente buscando impedir o contraditório do discurso criado pela Folha. O episódio é agora explorado no novo blog Desculpe a Nossa Falha .

 

Ora, os guardiões da liberdade de imprensa atuando como censores? Alguma coisa está fora da ordem.

 

Democracia x monopólio da mídia

 

Os três episódios revelam que, na verdade, a pior ameaça à liberdade de expressão no Brasil vem justamente dos grandes veículos de comunicação. Ao invés de promover a pluralidade de opiniões de seus profissionais e da sociedade, em vez de respeitar a diversidade de informações que circulam na internet, essa mídia quer garantir o monopólio de sua versão dos fatos. Defende interesses próprios e de seus anunciantes e reproduz um país desigual e sem acesso à informação plural no Brasil.

 

Não há democracia sem pluralidade de visões, sem espaços para que toda diversidade possível se manifeste. Enquanto formos reféns das nove famílias que controlam os meios de comunicação continuaremos sendo silenciados por uma única versão do modo de experimentar a cultura, a religião, a política, a história, a vida. Os três lamentáveis episódios somente confirmam quem realmente põe em risco a liberdade de expressão no país.

 

*Carolina Ribeiro e Oona Castro são jornalistas, integrantes do Intervozes e defensoras da liberdade de expressão e do direito à comunicação.

Liberdade de Expressão X Liberdade de Imprensa: anacronias de nossos tempos

“Liberdade de Expressão X Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia”, coletânea de artigos do professor Venício A. de Lima lançada recentemente pela Editora Publisher, é a síntese mais bem acabada do debate vigente no Brasil neste início de século quando o assunto é regulação e políticas de comunicação.

Os artigos reunidos no livro foram originalmente publicados pelo site Observatório de Imprensa, projeto voltado para o acompanhamento e a discussão da atividade da mídia no país. Fogem, portanto, do formato tradicional das contribuições teóricas, evitando o “hermetismo” típico do gênero e contribuindo de forma generosa com a abertura do debate público sobre o tema. Embora academicamente densos, os textos apresentam um panorama bastante claro – e por isso acessível aos não-especialistas – da forma como os proprietários dos grandes meios de comunicação nacionais recorrem ao princípio jurídico da liberdade de expressão para evitar qualquer forma de incidência da sociedade sobre suas atividades, garantindo um ambiente altamente desregulado cuja marca essencial é a ausência de instrumentos de controle público.

Tal discurso se apóia, entre outros aspectos, na confusão estabelecida entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa – com variáveis como liberdade de expressão artística, liberdade de criação, liberdade de anúncio, liberdade jornalística, entre outros. Como aponta o autor de forma inequívoca, é rotineiro encontrar não só a utilização das duas expressões – liberdade de expressão e liberdade de imprensa – como equivalentes, mas também o deslocamento da liberdade de expressão do indivíduo para a "sociedade" e, desta, implicitamente, para os "jornais", sejam eles impressos ou audiovisuais.

A mesma lógica que busca confundir o direito fundamental à expressão com o direito das empresas privadas que atuam no setor das comunicações materializa-se, de forma ainda mais radical, na tentativa de forjar a aceitação – como se costume jurídico fosse – da "liberdade de expressão comercial" como um direito humano. Mas, como aponta Lima, a liberdade de expressão comercial, ao transformar em equivalentes dois tipos totalmente distintos de informação – a publicitária e a jornalística – “apropriou-se, sem mais, da idéia de liberdade de expressão como se a mídia, anunciantes e agências de publicidade fossem os legítimos representantes do direito individual e coletivo contra a 'censura' e a 'sanha regulatória' exercidas pelo o Estado”.

Não há, portanto, confusão que resista à boa-fé intelectual, especialmente após a leitura de “Liberdade de Expressão X liberdade de Imprensa”.

Lima vai inclusive à origem política e filosófica da liberdade de expressão, jogando por terra a afirmação de que os autores geralmente invocados pelos grandes empresários de mídia do país – como John Stuart Mill e John Milton – referendariam a tese da “sanha regulatória” do Estado brasileiro neste início de século. Pelo contrário: nos alerta Venício Lima que em Sobre a Liberdade (On Liberty), ensaio rotineiramente invocado como um dos pilares da defesa da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, Mill aponta o perigo da “tirania da maioria”, na qual a sociedade – e não o governo – poderia passar a fazer as vezes do tirano. Mill, assim, já sinalizava os riscos para a representação e o respeito à diversidade social, por meio da apropriação privilegiada – e, portanto, desigual – dos meios de comunicação de massa (no caso, os jornais).

Da análise de casos concretos descritos e comentados em “Liberdade de Expressão X Liberdade de Imprensa” não há outra conclusão possível: no Brasil, o princípio jurídico da liberdade de expressão foi capturado pelos proprietários dos meios de comunicação, que impõe uma interpretação deturpada de seu significado original. Os donos da mídia ressignificam este direito humano fundamental de forma a esvaziá-lo e tentam a todo custo, estabelecer como hegemônica a visão de que sua efetivação só se dará com a ausência absoluta de instrumentos que regulem a atividade midiática e imponham restrições a seus interesses econômicos. Assim, a ameaça à liberdade – em particular à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa – tem sido identificada no espaço público como vinda exclusivamente do Estado, mesmo que estejamos vivendo em um Estado de Direito, no (pleno) funcionamento das instituições democráticas.

Foi apoiada nessa pretensa confusão conceitual que se moveram, nos últimos anos, as disputas políticas sobre os modelos regulatórios no campo das comunicações, nos quais os coronéis da mídia brasileira têm obtido amplo sucesso. O resultado dessa hegemonia é claro: no Brasil, a estratégia discursiva empresarial – simultaneamente política e jurídica – prevaleceu e o marco regulatório nacional se moveu historicamente à mercê de interesses privados, ora nacionais, ora internacionais. Como comprovam de forma categórica os diversos relatos da história regulatória dos serviços de comunicação, a circulação de informação, à exceção de períodos episódicos, sempre foi controlada por monopólios e oligopólios privados. Seus proprietários mantiveram, e ainda mantêm, influência decisiva na vida política nacional, perpetuando, no plano normativo, um ambiente altamente favorável à maximização de seus lucros e a defesa de interesses políticos determinados.

A sanha antirregulação do empresariado brasileiro é tamanha que as reformas que combatem não são, nem ao menos, estruturais. Em geral, são medidas que pouco alterariam o status quo e que há muito foram implementadas em democracias liberais, sempre ancoradas no direito à liberdade de expressão. No Brasil, inversamente, tais diretrizes regulatórias não prosperam apoiadas justamente na idéia de que tal liberdade, para que seja garantida em sua plenitude, deve ser compreendida como a abstenção absoluta do Estado na dinâmica econômica do setor. É, por certo, uma das anacronias dos nossos tempos.

“Liberdade de Expressão X Liberdade de Imprensa” desnuda a hipocrisia discursiva dos coronéis da mídia brasileira. E, afirmo sem medo de errar, tratar-se da melhor síntese do debate político-jurídico vigente no campo das comunicações neste início de século XXI.

* Diogo Moyses é radialista, mestre em Direito pela Universidade de São Paulo e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.