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O verdadeiro leão do norte

Enquanto cresce a concentração midiática, também se ampliam as experiências alternativas, em termos de direito à comunicação, diversidade cultural e pluralidade no tratamento da informação. Nessa direção deve ser compreendido o atual projeto da TV Pernambuco, veículo de comunicação do governo do estado de Pernambuco, rearticulada a partir de uma provocação da sociedade civil organizada, por meio do Manifesto Cultura e Comunicação, assinado por 25 entidades pernambucanas da área cultural (música, teatro, comunicação, escritores etc.). Isto motivou o governo daquele importante estado do Nordeste a organizar um grupo de trabalho (GT), formado pelos representantes dessas organizações, com o objetivo de fazer um estudo para reformular a TV Pernambuco.

O referido estudo teve como princípios norteadores: formular um novo marco legal para a TV Pernambuco; produzir um diagnóstico e uma proposta para modernizar a geração e distribuição de seu sinal, atentando para as mudanças tecnológicas; implantar uma nova grade de programação, com respeito à diversidade social, política, cultural, étnica e de gênero, privilegiando a produção do estado e do país, bem como criando condições para a inserção na rede pública brasileira; incrementar e qualificar sua produção própria; propor formas de diversificar e incrementar a captação de recursos, bem como de qualificação de seus profissionais; e elaborar o projeto de reformulação técnica e operacional do canal e seu modo de sustentabilidade, incrementando as relações de parceria com os canais públicos.

Exemplo de transformação

Ao fim de três meses o GT elaborou um relatório-diagnóstico sobre a TV Pernambuco que serviu de instrumento-chave para o processo de sua transformação, tendo como desafios: manter o controle social, ter autonomia em relação a governos e mercado e atingir a sustentabilidade. Para a elaboração do relatório, o GT desenvolveu quatro seminários públicos, objetivando pensar com a coletividade o novo formato da televisão pública pernambucana. Os seminários abordaram temas como a missão da uma TV pública, a questão tecnológica e sua gestão, além de, por fim, terem discutido o relatório. Em consequência disso, em 29 de junho de 2011 foi enviado à Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe) projeto de lei para a criação da Empresa Pernambuco de Comunicação (EPC).

O GT da TV Pernambuco propôs a criação da Empresa Pernambucana de Comunicação (EPC), formulada pelo governo do estado em 2008, nos moldes da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) – TV Brasil, ou seja, visando à transformação da emissora em um efetivo canal público, em construção no país. Independente da natureza jurídica, o GT da TV Pernambuco entende que a sua gestão deve ter como princípios: independência editorial; atenção e respeito às diversidades; transmissão de conteúdos produzidos externamente; programação criativa, inovadora e de qualidade; sustentabilidade política, com base na sociedade e econômica, a partir de fontes diversas de financiamento; zelo e transparência no uso dos recursos técnicos e financeiros; e qualificação dos recursos humanos.

Em seu desenho organizacional, a TV Pernambuco terá como estrutura de decisão principal um Conselho Diretor (composto por 15 membros: quatro representantes do Poder Executivo, dois do Legislativo, um do Ministério Público Estadual e oito da sociedade civil), o que aparentemente mostra um caráter mais democrático das decisões estratégicas. Percebe-se que a TV Pernambuco pode constituir-se em um exemplo de transformação organizacional que, tendo como ponto de partida a motivação da sociedade civil organizada, culmina com o envolvimento dos poderes constituídos em prol de uma comunicação democrática, onde todos devem possuir o direito de participar não só como sujeitos passivos, mas também ativos. Tudo isso, no entanto, será configurado – ou não – no dia-a-dia de operação do canal.

Valério Cruz Brittos e Ricardo Vernieri de Alencar são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e professor da Uespi e mestre em Administração pela UFPB

Os avanços de 2011

Mais um fim de ano. Tempo de balanços, de reavaliar metas, de planejar o futuro. Sobretudo, tempo de refletir sobre o que se fez e o que se deixou de fazer no campo das comunicações.

Ao contrário do rotineiro, e para evitar a repetição do já escrito ao longo do ano, arrisco um balanço seletivo de 2011. Sem qualquer ordem de relevância e sem pretender ser exaustivo, registro dez pontos que, numa perspectiva histórica, podem ser considerados como avanço no sentido da garantia democrática de que mais vozes participem e sejam ouvidas no debate público.

Dez avanços

1.Relatório do special rapporteur para a “promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão” do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, tornado público no dia 3 de junho, reconhece o acesso à internet como um direito humano (ver, neste Observatório, “Na pauta da igreja e da ONU ”).

Os últimos dados sobre a internet no Brasil indicam, segundo a agência F/Nazca, que somos 81,3 milhões de internautas (a partir de 12 anos). Para o Ibope/Nielsen, somos 78 milhões (a partir de 16 anos – setembro/2011). De acordo com a Fecomércio-RJ/Ipsos, o percentual de brasileiros conectados aumentou de 27% para 48%, entre 2007 e 2011 (ver aqui ).

Neste contexto, um projeto de lei para definir regras sobre direitos, deveres e princípios para o uso da internet (marco civil) foi enviado pela Presidência da República ao Congresso Nacional em agosto (ver aqui) .

2.O crescimento e fortalecimento dos movimentos pró-criação dos conselhos estaduais de comunicação social (CCS) em vários estados da federação (ver “Onde estamos e para onde vamos ”).

A pioneira Bahia elegeu os representantes da sociedade civil para o CCS-BA – 10 entidades do segmento empresarial e 10 do movimento social – que tomam posse no dia 12 de dezembro, juntamente com os 7 membros indicados pelo governo do estado.

No Rio Grande do Sul, o pleno do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) aprovou, no dia 1º de dezembro, a recomendação ao governador do estado de criação do CCS-RS. Agora será formado um grupo de trabalho composto por membros do CDES e da Casa Civil para elaborar o projeto de lei a ser encaminhado a Assembleia Legislativa.

3.A realização do II Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, em Brasília, em junho; e do I Encontro Internacional de Blogueiros, em Foz do Iguaçu, PR, em outubro. Os dois encontros sinalizam a consolidação da organização dos blogueiros progressistas no Brasil e o início de uma articulação internacional.

4.A construção e divulgação da “Plataforma para um novo Marco Regulatório das Comunicações no Brasil”, em outubro. O texto que contem as 20 propostas prioritárias, resulta de um trabalho histórico que convergiu na realização da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e foi inicialmente sistematizado no seminário “Marco Regulatório – Propostas para uma Comunicação Democrática”, realizadopelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e outras entidades nacionais e regionais, no Rio de Janeiro, em maio (ver aqui ).

5. A continuidade das atividades quase heroicas de entidades como a Rede de Educação Cidadã (Recid ) e o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC ) promovendoa comunicação popular e sindical.

A Recid é uma articulação de atores sociais, entidades e movimentos populares, vinculada à Secretaria Geral da Presidência da República, que desenvolve um trabalho junto a grupos vulneráveis econômica e socialmente (indígenas, negros, jovens, LGBT, mulheres e outros), totalmente à margem da grande mídia. Um exemplo das atividades da RECID foi a realização da IV Ciranda de Educação Popular, em maio (ver “Direito à comunicação: o Fórum e a Ciranda ”). Já o NPC dedica-se à assessoria de comunicação – do jornal impresso à internet, da oratória ao uso do rádio e do vídeo – e oferece, por exemplo, cursos ligados a comunicação sindical e popular e a história dos trabalhadores.

6.Os inúmeros observatórios de mídia, ligados ou não à Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi ), que surgem e se consolidam em vários estados brasileiros, mobilizando grupos de jovens voluntários que trabalham pelo direito à comunicação. Um exemplo: o Observatório da Mídia Paraiban a, um projeto de ensino, pesquisa e extensão, criado em 2010, por iniciativa de estudantes da Universidade Federal da Paraíba, com o objetivo de analisar a mídia do estado.

7.O processo de consolidação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que completou o mandado de sua primeira diretoria e inicia uma nova gestão ampliando a construção e a presença de um sistema público de comunicação no território nacional. Registre-se a continuidade importante de programas como o pioneiro Observatório da Imprensa na TV e o Ver TV, janelas solitárias para a discussão da grande mídia na televisão brasileira, comandados, respectivamente, pelos jornalistas Alberto Dines e Lalo Leal Filho.

8.A criação da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e pelo Direito à Comunicação com Participação Popular (Frentecom ), em abril. A Frentecom, composta por 194 parlamentares e mais de uma centena de organizações da sociedade civil e coordenada pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP) e pelo deputado Emiliano José (PT-BA), tem como objetivo acompanhar os debates sobre direito à comunicação e liberdade de expressão no Estado brasileiro, especialmente na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados e no Ministério das Comunicações.

9.A disponibilização do cadastro dos concessionários de radiodifusão do Ministério das Comunicações (Dados de Outorga) cujo acesso voltou a ser permitido, a partir de 30 de maio, em relação às entidades por localidade aos sócios e diretores por entidad e.

10.A atitude corajosa de membros do Judiciário que, na contramão de instâncias superiores, enfrentam o poder da grande mídia nas suas respectivas áreas de atuação. Dois exemplos ocorridos em outubro: a entrevista do presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e a Ação Civil Pública do Ministério Público da Paraíba, que pede suspensão de programa por exibição de cenas de estupro de menor, cassação da concessão da TV Correio (repetidora da TV Record) e pagamento de indenização de R$ 500 mil à menor, pelo uso indevido da imagem, violação da privacidade e danos morais, além de danos morais à coletividade, no valor de R$ 5 milhões.

“Finalidade sem fim”

Tomo emprestado um pouco da sabedoria e do otimismo do professor Antonio Cândido, em admirável entrevista publicada no jornal Brasil de Fato, em julho. Explicando sua opção socialista, o professor recorre a Kant, via Bernstein, e afirma:

“O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar ao paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno.”

A regulação da mídia para a democratização da comunicação parece constituir uma dessas “finalidades sem fim” em nosso país.

Feliz 2012.

Venício A. Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011

A distinção entre censura estatal e marco regulatório

Tem sido comum encontrar em jornais e revistas matérias ditas profundas sobre este e aquele assunto. Os profissionais da imprensa falam com familiaridade de tudo, estejam ou não entendendo do que estão falando, escrevendo, reverberando, repercutindo. Querem – e com toda a razão – o direito de deitar falação sobre qualquer assunto que esteja piscando em suas telas mentais. O trabalho de explicador ainda é propriedade – não exclusiva, é claro – dos que trabalham com a informação. Daí a necessidade de destrinchar termos acadêmicos, siglas pouco mencionadas, conceitos nebulosos e quase sempre expostos, mas não compreensíveis ao cidadão ou cidadã comum.

Um bom exemplo é explicitar o que seria há menos de três anos o Roadrunner e o significado de um petaflop. Pois bem, em 9 de junho de 2008, a IBM veiculou um press release divulgando um supercomputador ultrarrápido. Como seu nome sugere, o Roadrunner (“corredor de estradas”) é realmente um sistema veloz, processando um petaflop por segundo. O que é um petaflop? Boa pergunta. É um quatrilhão de cálculos por segundo. A IBM percebeu que o número não faria sentido para a grande maioria dos leitores e, então, acrescentou a seguinte descrição:

“Qual é a rapidez de um petaflop? Muitos notebooks. Equivale, aproximadamente, ao poder de cálculo combinado de 100 mil dos notebooks mais rápidos da atualidade. Seria preciso uma pilha de notebooks com 2,4 quilômetros de altura para se igualar ao desempenho do Roadrunner.

“Seria necessário que cada habitante da Terra – cerca de 7 bilhões de pessoas – trabalhasse com uma calculadora, à taxa de um segundo por cálculo, por mais de 46 anos, para fazer o que o Roadrunner consegue processar em um único dia. Na última década, se fosse possível que os carros reduzissem seu consumo de gasolina na mesma proporção que os supercomputadores melhoraram seu custo e sua eficiência, eles hoje estariam percorrendo 85 mil quilômetros com um litro de combustível.”

A opção já é uma escolha

Existem coisas que podem ser explicadas através de raciocínios simples. E não há complexidade que resista a uma boa explicação. E existem inúmeras figuras de linguagem e metáforas que podem fazer um oceano ser contido em simples xícara de chá. Mas existe um assunto que nunca é bem explicado pela mídia, em especial a grande mídia: o que significa mesmo esse tal de Marco Regulatório da Mídia (MRM)?

A julgar pelo que é veiculado sobre o assunto nos grandes jornais – O Globo, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo – e através das grandes emissoras de televisão, com a TV Globo à frente, o nome do MRM não é outro que censura em estado bruto, intervenção do Estado na vida da sociedade, uma violência contra um dos mais fundamentais direitos da pessoa humana – o direito à livre expressão. Mas será que é isso mesmo?

A adoção de MRM não seria uma chamada aos carretéis do longo novelo de linha que mistura interesses absolutamente privados dentro de uma fachada francamente favorável ou em benefício da sociedade? Não teria chegado o momento de entender que somos livres a partir do momento em que estamos aptos a aceitar as consequências de nossa liberdade? Será que ser livre não exige que sejamos conscientes de nossas atitudes e escolhas, pois o ato de escolher infere uma consequência e a opção de não escolher – por si só – já é uma escolha? Será que estou me aproximando mais de um petaflop livre, leve e solto, e não de um petaflop devidamente apresentado, contextualizado?

As declarações de Christine Lagarde

Por que é tão difícil entender que existe uma diferença brutal entre censura estatal e a adoção de um marco regulatório da mídia? Porque há muita má vontade de quem se sente no dever e no direito de apontar os erros, pecados, crimes, contravenções, ilicitudes e ilegalidades cometidos por terceiros, principalmente se este for governo ou estiver legitimamente representando algum dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E, também, porque não existe qualquer grama de interesse em mostrar, de maneira clara e transparente, que os veículos de comunicação não existem para manipular a opinião pública, nem para instrumentalizar desejos e benefícios privados. É bem próprio da natureza humana desejar tutelar os demais e resistir a qualquer forma de tutela para si mesmo.

Se os meios de comunicação tratassem seus pares, isto é, os meios de comunicação concorrentes, com o mesmo apetite jornalístico com que trata denúncia de corrupção em uma área governamental, teríamos um debate sobre assunto bastante substancial e a sociedade teria a ganhar com isso. Mas não é assim que as coisas acontecem. O proprietário da revista “A” fecha negócio milionário com o governo do estado “B” e, além das assinaturas vendidas, entrega ao governante uma linha editorial auxiliar em que dará projeção e foco a tudo o que lhe possa melhorar a imagem junto à população que o elegeu, ao mesmo tempo em que varrerá para debaixo do tapete todos aqueles sintomas de corrupção que ele, o meio de comunicação, costuma denunciar com grande estardalhaço se ocorrer nas cercanias do governo do estado “C”.

Reflitamos por alguns minutos sobre o comportamento de nossa grande imprensa na quinta-feira (1/12/2011). Nesse dia, os jornais deram imenso destaque a mais uma denúncia em desabono à permanência de Carlos Lupi à frente do Ministério do Trabalho e Emprego. O assunto que não baixará a poeira enquanto a demissão de Carlos Lupi não for encontrada no Diário Oficial da União, foi manchete na capa do principal jornal do país e continuou a ter destaque na escalada de notícias de nosso telejornal de maior audiência.

É óbvio que o assunto só mereceu este tratamento por clara opção editorial e não, em absoluto, por conter suma importância jornalística. É que no mesmo dia esteve visitando o Brasil a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde. A executiva-mor do sempre combatido FMI se encontrou, em Brasília, com a presidenta Dilma Rousseff e saiu do gabinete presidencial com frases como “o Brasil está mais protegido que outras nações contra a crise econômica”, “a economia brasileira está bastante sólida, o sistema bancário bem capitalizado”, além de outros rasgados elogios à gestão da economia brasileira.

Vindo de quem vem, no momento em que a crise econômica continua atingindo em cheio nada menos que a nata dos países mais desenvolvidos do mundo, incluindo as principais nações europeias e os Estados Unidos, chega a ser inimaginável pensar em relegar tais frases (e em tal contexto) a um segundo plano em qualquer escala disso que chamamos valor-notícia.

Acelerar o debate

Mas isso aconteceu. E continuará acontecendo. E pelo andar da carruagem não tardará o dia em que leremos nos jornais a demissão anunciada, um a um, e com várias semanas de antecedência, de todos os integrantes do primeiro escalão do governo federal. Serão demitidos por vários motivos. E dentre estes devido à baixa resistência da autoridade-alvo ao bombardeio midiático pesado, aquele em que balas de verdade se misturam a torpedos de festim e em que denúncias bombásticas costumam se mostrar completamente infundadas e mesmo assim ainda se mesclam a denúncias que merecem, no mínimo, passar por investigação séria a ser conduzida pelos órgãos competentes.

O curioso é que os meios de comunicação não receberam um mísero voto das urnas, aquele lugar onde a população costuma se expressar na escolha de seus legítimos representantes, mas entende ser seu direito aceitar ou repudiar este ou aquele nomeado por quem de direito – no caso, a presidenta da República – para exercer função elevada na condução dos destinos da nação.

Enquanto alinhavo esses pensamentos, me vêm à mente algumas declarações de Judith Brito, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do grupo Folha, no diário carioca O Globo (18/3/2010):

“A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação e, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo.”

Feitas essas considerações, expresso estes pensamentos imperfeitos e penso que temos mais é que acelerar o debate sobre a necessidade de um marco regulatório das comunicações no Brasil.

Motivos não faltam.

Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo.

Volta o debate sobre o diploma de jornalista

Os principais jornais do país reagiram de maneiras diversas à aprovação em primeiro turno, pelo Senado Federal, da Proposta de Emenda Constitucional que recompõe a obrigatoriedade do diploma específico de nível superior para o exercício da profissão de jornalista.

A Folha de S.Paulo, que iniciou a campanha pelo fim da exigência do diploma, por motivos econômicos, nos anos 90, deu maior destaque e espaço ao assunto. O Estado de S.Paulo dedidou ao assunto apenas uma nota de uma coluna e o Globo deu um texto de proporções médias, em três colunas, abaixo da dobra do jornal.

Mas os três jornais manifestam igualmente sua contrariedade com a decisão soberana do Senado, levantando uma suposta divergência entre a deliberação do Legislativo e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que em junho de 2009 considerou inconstitucional a exigência do diploma.

Acontece que uma das motivações do Senado ao rediscutir a matéria é justamente confrontar o Judiciário, reafirmando o papel do Congresso como poder legislativo. Ao optar por uma emenda constitucional, o legislador estabelece o confronto, reafirmando seu papel e desafiando o Supremo Tribunal Federal a avançar em suas atribuições.

O confronto ficou claro na manifestação do senador Demóstenes Torres, líder do partido Democratas, um dos que protestaram contra a decisão do plenário. Torres observou que o STF considera que emendas constitucionais também podem ser declaradas inconstitucionais e que essa certamente será tida como tal.

Provavelmente, o senador oposicionista estava verbalizando uma posição oficial das entidades representativas das empresas de comunicação, que deverão acionar novamente a Suprema Corte, se o projeto for aprovado em segundo turno no Senado e passar também pela Câmara dos Deputados.

Entre os senadores que se manifestaram contra a proposta, os jornais destacam o tucano Aloysio Nunes Ferreira, que repetiu o discutível argumento segundo o qual a exigência do diploma restringe a liberdade de expressão.

Apelando ao Supremo

O texto só foi votado porque o presidente do Senado, José Sarney, passou por cima de um acordo que excluia a matéria das votações desta semana. O líder do PMDB, Renan Calheiros, também protestou contra a decisão de Sarney, mas o discurso mais inflamado partiu do senador e ex-presidente Fernando Collor de Mello. Ele afirmou que as faculdades têm formado “jornalistas analfabetos” e disse que a exigência de diploma é “o embrião daquilo que será o controle social dos meios de comunicação”.

PT, PCdoB, PSB, PSOL, PP, PRB e PR apoiaram a Proposta de Emenda Constitucional e o PSD fechou questão contra, enquanto PSDB, DEM e PTB liberaram suas bancadas para votarem como quisessem. A votação foi de 65 a favor e apenas sete contra.

As entidades que representam empresas de comunicação, evidentemente, protestaram contra a decisão do plenário do Senado, voltando a afirmar que a obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício do jornalismo como profissão restringe a liberdade de expressão.

Já as representações dos jornalistas profissionais, como a Federação Nacional dos Jornalistas, comemorou a votação, ainda que parcial, afirmando que demonstra o desejo do Senado de “corrigir um erro histórico do STF contra a categoria profissional dos jornalistas”.

A campanha contra a exigência do diploma foi iniciada pela Folha de S.Paulo nos anos 1990, em função dos custos para a elaboração dos guias de entretenimento, como as listas de programações dos cinemas. Uma queda-de-braço entre o diretor do jornal, Otavio Frias Filho, e o Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo passou rapidamente de reles picuinha a guerra aberta e o diploma se transformou em ponto de honra para a Folha, que levou o tema à Associação Nacional de Jornais e daí para o Supremo Tribunal Federal.

O mesmo STF que decidiu em 2009 contra o diploma dos jornalistas está na iminência de tomar outra decisão polêmica, ao considerar inconstitucional a legislação que prevê punição a emissoras de rádio e TV que exibem programas inapropriados para crianças e adolescentes em horários diferentes dos autorizados pelo Ministério da Justiça.

Para quatro dos dez ministros, os pais é que devem controlar o que seus filhos vêem na TV.

Ou, quem sabe, na impossibilidade de os pais deixarem seu trabalho para conferir o que seus filhos estão assistindo, a formação de nossos jovens e adolescentes talvez deva ser entregue aos programadores dos filmes da sessão da tarde.

Por um efetivo marco regulatório da mídia no Brasil

Para modificar uma legislação de 1962, totalmente defasada em termos políticos, econômicos, tecnológicos e culturais, quando nem a líder do oligopólio midiático existia, movimentos sociais e pesquisadores vêm travando há algumas décadas batalhas por mais espaço para discussões. A luta, materializada na busca da substituição do Código Brasileiro de Telecomunicações (já revogado quanto à telefonia), visa, ao menos, a uma difusão de informações pelo espectro eletromagnético de modo mais parecido com uma verdadeira comunicação: algo dialógico que permita a pluralidade de tipos de conteúdo e uma maior participação social na produção e distribuição, considerando a diversidade do país.

Após muita espera e mobilização, quase no apagar das luzes de sua gestão, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou a criação da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Mesmo com vários problemas, a iniciativa permitiu discussões municipais e estaduais, com o ápice ocorrido em Brasília, na realização da I Confecom, realizada em dezembro de 2009. Foram aprovadas mais de 600 propostas, que deveriam ser discutidas no Congresso Nacional, balizando a construção de um marco regulatório para as comunicações no Brasil, sintonizado com os princípios democráticos.

Quase dois anos depois, o atual ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, demonstra ter esquecido disso. Em reunião realizada em outubro último, com entidades sociais que trazem como uma de suas principais bandeiras a democratização da comunicação, ele prometeu abrir em consulta pública o novo marco regulatório da mídia eletrônica ainda em dezembro deste ano. O que poderia ser visto como um avanço sinaliza a discussão apenas de pontos específicos da proposta, evitando ao máximo um maior confronto com os grandes grupos midiáticos. As entidades apresentaram a Bernardo 20 pontos principais, que foram construídos em consulta pública através do site http://www.comunicacaodemocratica.org.br.

Construir propostas específicas

Questiona-se aqui a falta de interesse em se reivindicar a apresentação das discussões sobre as propostas da Confecom e, além disso, o próprio formato de consulta pública. Quantas pessoas têm acesso a discussões sobre o assunto para além de alguns setores da academia e de determinados movimentos sociais? Quantas pessoas têm acesso à internet e, além disso, como poderiam saber sobre esta consulta e sobre a situação atual da comunicação? Vale lembrar que o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), prioridade do governo federal, reflete a necessidade de um maior acesso à internet. Porém, não há um planejamento sobre como se deve dar este acesso para que o uso da rede vá além do simples entretenimento, com o ambiente digital servindo para conscientizações sobre assuntos que não passam na grade mídia ou que poucas vezes geram repercussão nas redes sociais.

Não se discorda da existência desta consulta pública sobre os determinados pontos – por mais que se saiba como elas (não) funcionam no Brasil. Mas se houve uma Conferência Nacional de Comunicação, que estabeleceu uma série de propostas aprovadas em diferentes níveis da “sociedade civil”, por que construir outro documento que, além do mais, reduz as necessidades do setor? Toda consulta e iniciativa de abertura ao diálogo é válida; não obstante, maior consulta foi a própria Confecom que, de forma descentralizada, permitiu que todos os setores interessados se manifestassem sobre a temática. Lamentavelmente, isso se deu sem a presença de grande parte dos radiodifusores, a começar pelas Organizações Globo, mas isto não chega a ser novidade, já que via de regra esses grupos negam-se a participar de espaços abertos, preferindo a negociação de bastidor.

O Ministério das Comunicações, sob a gestão de Paulo Bernardo, conseguiu dar celeridade na liberação de algumas informações sobre as concessões, como a lista dos congressistas sócios de rádios e TVs. Porém, está apagando de vez qualquer conquista da Confecom e se propõe a construir propostas específicas, que não avancem tanto. Mesmo dentre estas poucas que ele aceite colocar em consulta pública, se não houver concordância dos grandes meios, o governo não parece que vai tensionar, tendo em vista sua dependência da aprovação das indústrias midiáticas, na falta de um sistema alternativo, que permita uma aproximação mais franca com os diversos setores sociais.

Aproveitar as brechas

Como o ministro sempre deixa claro em suas entrevistas, ele sabe que um marco regulatório atualizado é necessário. Entretanto, a regra é que o auge do processo fique só na consulta em si, na qual o governo abre espaço, entrando verdadeiramente no conflito os movimentos sociais com preocupação no setor, mais ao estilo Davi X Golias. Afinal, há uma imensa força político-institucional contrária à regulamentação, liderada pelos grandes grupos comunicacionais, inclusive com alguns deputados federais e senadores legislando em causa própria, por serem donos de TVs e rádios. O PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer e do presidente do Senado José Sarney – dono de muitos meios de comunicação no Maranhão –, já deixou claro que é contra qualquer regulação no setor.

Enfim, o foco deste texto não é desestimular os movimentos que lutam em prol de uma democratização da comunicação, mas destacar questões importantes sobre o assunto. Não se pode esquecer tratar-se da terceira gestão de um partido que ainda pouco fez para efetivamente mudar a realidade do setor em prol de uma comunicação pública. Se o espaço for dado, o interessante é observar os pontos pedidos por estes movimentos que participaram da reunião, confrontando-os de forma criteriosa com o que foi aprovado na Confecom. Devem-se aproveitar todas as brechas até esta nova consulta pública, mas com a consciência sobre possíveis limites no debate. Afinal, se a sociedade já disse o que quer, não seria a hora de implementar tais projetos e não seguir insistindo em perguntas que já foram respondidas?

Valério Cruz Brittos e Anderson David Gomes dos Santos são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, e mestrando no mesmo programa.