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As lições do caso Cisco

No ano passado, na comemoração dos resultados do exercício, na sede da Cisco Systems, em São Francisco (EUA), um quadro luminoso classificava o desempenho das subsidiárias da corporação. O Brasil estava no topo em matéria de expansão, ainda que respondendo apenas por 1% das vendas globais da companhia, cujo faturamento líquido foi de US$ 34,9 bilhões. Contudo, tanto a subsidiária brasileira da Cisco, como as de algumas dezenas de outras grandes corporações que atuam no país não divulgam os resultados de suas operações locais. Elas são, na esmagadora maioria, empresas de capital aberto, com papéis negociados em bolsas de valores, em seus países de origem.

Porém, aqui, a maioria dessas subsidiárias funciona como sociedade limitada, não anônima e, assim, não precisam divulgar seus balanços. Uma situação incômoda porque a falta de resultados auditados não só compromete a veracidade das informações prestadas, como a própria transparência da atuação das companhias em questão. Sem esquecer que as brasileiras que abrem seus dados reclamam do tratamento desigual.

No Brasil, houve tempo em que se falava na possibilidade de a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) passar a exigir – pelo menos das mega-empresas – a divulgação de seus resultados no mercado local. Não deu em nada, para desespero de analistas e mídia especializada que, até hoje, lida com informações virtuais: “crescemos 100, 200, 300%”, percentuais que acabam por ser aplicados a valores “estimados pelo mercado”. E fica por isso mesmo. A prática é a mesma de companhias estrangeiras, com ou sem produção local.

Nesta semana, veio a público a operação Persona, encetada por Polícia e Receita Federal, que flagrou sonegação fiscal de R$ 1,5 bilhão perpetrada por empresas daqui e do exterior. Um bom momento, este, para avaliar, de novo, a possibilidade de exigir das empresas aqui instaladas – pelo menos daquelas de capital aberto, mas não exclusivamente – que prestem conta das suas operações locais. Mesmo que só 1% de um faturamento de US$ 34,5 bilhões seja quase nada, como disse a matriz da Cisco, quando se abateu sobre a sua subsidiária brasileira e outras tantas empresas locais e americanas um dilúvio de informações e contra-informações cujas provas ainda não foram devidamente apresentadas ao distinto público.

Faça o que eu digo…

Nos EUA, a Cisco System, como outras mega-corporações com ações negociadas em bolsas de valores, além das obrigações de transparência (tantas vezes desrespeitadas, aliás) estão enquadradas em várias leis anti-corrupção. Em tese tão estritas como a Lei Sarbanes-Oxley (SOX), criada em 2002 como resposta aos escândalos empresariais nos EUA e com objetivo explícito de dirimir fraudes e aumentar o rigor na fiscalização e controle de suas atividades e de seus funcionários. Contudo, ora a lei, como se vê!

Mas, se, até agora, praticamente não houve repercussão internacional do caso Cisco, o quadro certamente seria outro se a Securities and Exchange Commission (SEC), o xerife do mercado acionário americano, entrasse em cena para investigar se alguma de suas regras teria sido descumprida pela Cisco, que também está sujeita à lei Foreign Corrupt Practice Act (FCPA), mais uma destinada a acabar com práticas de corrupção.

O momento Persona também pode ser uma ótima oportunidade para avaliar os benefícios e malefícios de corredores de importação como Ilhéus, pelo visto, um propício caldo de cultura para a sonegação e a corrupção, tamanho o volume de benefícios concedidos. Sem fiscalização de contrapartidas, pelo visto. Bem ao contrário, com a ajuda e o beneplácito de fiscais da própria Receita. Igualmente merece ser olhada a legislação que passou a permitir a importação por conta e ordem de terceiros – mecanismo que, reconhecem fiscais da Receita, dificulta ainda mais o acompanhamento dos procedimentos que acobertam sub ou superfaturamento, conseqüentemente, sonegação, prejuízos nem sempre recuperáveis aos cofres públicos.

Mídia e consumo: que infância estamos construindo?

"NÃO ESQUEÇA a minha Caloi". "Compre Batom". "Danoninho vale mais do que um bifinho"… Não é de hoje que os apelos publicitários interferem na formação de nossos filhos. No Dia das Crianças nos sentimos compelidos a refletir. Que infância estamos construindo? As crianças sumiram das ruas, das praças e dos colos e se refugiaram nos shoppings ou nas telas.

"Filho, você comeu direito?". "Não esquece o casaco!". "Só mais uma história". "Já sei andar de bicicleta sem rodinhas!". Onde estão essas palavras? Está cada vez mais difícil escutarmos o riso das crianças, assim como suas verdadeiras necessidades. Vivemos imersos em imagens e sons que nos atravessam sem nos pedir permissão. A palavra foi substituída pela imagem. A coleção, pela aquisição. A atenção, pelo presente. O medo do lobo mau, pelo medo da realidade. O abraço, pelo objeto.

O desejo, pela necessidade, e a criança, pelo consumidor -antes mesmo de se tornar cidadã. O ter prevalece sobre o ser. Esse é o tempo do consumo e da descartabilidade.

No Brasil, 12 de outubro convencionou-se como o Dia das Crianças, mas a que preço? O que de fato celebramos nessa data: a criança ou o consumo? Parece-nos que esse hábito é vivido pela maioria das famílias como um simples dever ao consumo.

O 12 de outubro foi proposto pelo deputado federal Galdino do Valle Filho em 1920 e oficializado como Dia das Crianças pelo presidente Arthur Bernardes em 1924. Porém, o dia passou a ser comemorado só em 1960, depois que a fábrica de brinquedos Estrela e a Johnson & Johnson criaram a Semana do Bebê Robusto. Um convite ao consumismo precoce.

Se fôssemos comemorar realmente a criança, por que não fazer em 20 de novembro, data da aprovação da Declaração dos Direitos das Crianças?

No mês das crianças, a publicidade surge com força total. Quando vemos que o valor gasto no Brasil em publicidade dirigida ao público infantil foi de aproximadamente R$ 210 milhões (Ibope) e que o valor do investimento no Programa Federal de Desenvolvimento da Educação Infantil (FNDE) foi de aproximadamente R$ 28 milhões, ficamos pasmos.

A publicidade participa da formação de nossas crianças tanto quanto a escola. O que é mais importante, esses objetos que prometem a felicidade ou a educação?

As crianças são desde cedo incitadas a participar da lógica de mercado. A forma como são olhadas e investidas pelos outros passa pela cultura do consumo. As expectativas em torno do nascimento, a escolha do nome e dos objetos e a reorganização da casa circunscrevem o lugar social no qual se constituirão a identidade e os valores do bebê.

As imagens publicitárias dirigem-se às crianças, o que é extremamente abusivo, pois até os 12 anos não têm capacidade crítica de entender o caráter persuasivo das mensagens. Até os quatro anos as crianças não conseguem diferenciar publicidade de programas. Conforme pesquisa norte-americana, bastam apenas 30 segundos para uma marca influenciá-las. Se pensarmos que a criança brasileira passa em média cinco horas por dia em frente à TV (Ibope, 2005), quanta influência da mídia ela sofre?

Esse problema se soma ao afastamento das brincadeiras. Quem precisa de dez sapatos, três bolsas ou saber usar batom? Os pais foram desautorizados do poder, ou melhor, do seu saber, e a mídia se ocupou do papel de transmitir os caminhos da infância. Porém, o mercado -mídia ou anunciantes- assumiu isso pensando no lucro imediato, e não nas crianças ou no futuro da nação.

A infância não pode ser aprisionada pela falsa felicidade que a sociedade de consumo nos vende. Criança precisa de olhar, de palavras e de escuta. Precisa ter infância para ser criança. E os pais sabem o que é melhor para os filhos.

Nesse Dia das Crianças, troquemos o shopping pelo parque. Façamos brinquedos, em vez de comprá-los prontos. Troquemos as guloseimas pelo bolo feito no calor da cozinha.

Paremos para refletir. Olhemos para a infância que nos circunda e rememoremos nossa experiência infantil. Assim, talvez possamos subverter a ordem estabelecida do consumismo desenfreado e encontrar uma forma mais sincera de homenagearmos nossas crianças.

* Lais Fontenelle Pereira, mestre em psicologia clínica pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), é psicóloga do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana.

O limite (quase) intransponível dos 1.839.083

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número acima correspondia, em abril de 2007, a 1% da população brasileira.


O cinema nacional costuma ser dividido em antes e depois de Collor, que acabou com a Embrafilme e deixou o país por anos sem conseguir exibir um único filme. Carlota Joaquina, de Carla Camurati, lançado em 1994, é considerado o primeiro longa-metragem da retomada. Nestes últimos 13 anos, de acordo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), apenas 16 películas brasileiras conseguiram ultrapassar a marca dos 1% da população em público pagante. O filme mais visto na retomada (“Os dois filhos de Francisco”) vendeu em ingressos o equivalente à 3% do total de brasileiros.

Para que uma peça de teatro alcançasse 1% da população ela teria que lotar um auditório de 300 pessoas, de segunda a domingo, durante mais de 16 anos ininterruptos.

No site da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) descobrimos que os cinco maiores periódicos do Brasil têm um público leitor somado de cerca de 0,7% dos moradores do Brasil. Já a Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER) afirma que as três maiores revistas semanais vendem juntas exemplares suficientes para 1,01% dos brasileiros.

A Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) divulga apenas o nome  dos mais vendidos e não a quantidade dos respectivos CDs. Mas, a imprensa especializada informou que o Padre Marcelo (o campeão no ranking da ABPD em 2006) vendeu 867 mil CDs, ou o equivalente a menos de 0,5% dos brasileiros.

Segundo a Associação Brasileira de TVs por Assinatura (ABTA), o Brasil possui hoje 4,9 milhões de residências que assinam algum serviço de TV. Admitindo a média de 3,4 pessoas por casa (de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar – PNAD – realizada pelo IBGE em 2006), seriam algo em torno de 16,6 milhões de pessoas com acesso a TV paga, ou aproximadamente 9% do total de nossa população. O canal mais assistido (segundo o IBOPE) é o TNT, com cerca de 17% de raiting. No contingente de brasileiros, o TNT alcança em média 1,5%.

Infelizmente, não foi possível fazer este mesmo tipo de levantamento para a venda de livros, um dos mercados menos transparentes do campo da comunicação. Mas, a pesquisa “Economia da cadeia produtiva do livro”, de Fábio Sá Earp e George Kornis, revela que 51% dos exemplares são reservados para compras institucionais, quase sempre livros escolares. Apenas 49% são adquiridos em livrarias.

Um país para (muito) poucos

A conclusão deste rápido levantamento é mais do que óbvia: o Brasil é um país feito para uma minoria extremamente reduzida. E poucos são os produtos culturais que conseguem ultrapassar a barreira de 1% de nossa população. O brasileiro médio (talvez mais de 90% da população) não vai ao cinema, não lê jornais e revistas, não tem TV paga, não freqüenta o teatro e não compra CDs e livros.

Mas, podemos arriscar ainda duas outras conclusões.

Só a radiodifusão (TV aberta e rádio) consegue dialogar com a grande maioria de nossa população. Seu alcance (e conseqüentemente seu poder), quando comparado com as demais mídias, é avassalador. A TV está presente em 91,3% dos domicílios e o rádio em 87,9% (PNAD 2006). De acordo com a pesquisa “Os donos da mídia”, realizada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), em 2001, apenas a TV Globo possui uma audiência média de 54% dos aparelhos ligados. Sua presença é relativamente homogênea em todas as classes sociais e em todas as regiões geográficas. Em uma sociedade de massas, a interlocução passa principalmente pelos processos midiáticos e no Brasil eles têm um único nome: Globo.

Os músicos, compositores, atores, atrizes, diretores, escritores… que produzem a cultura mainstream têm um público reduzidíssimo. E isso explica uma série de coisas. Em primeiro lugar, a dependência (inclusive ideológica) destes artistas em relação à Globo, que seria a única porta de entrada para o Brasil que fica além da barreira dos 1%. Em segundo lugar, a dependência de verbas estatais, uma vez que estamos falando de um público consumidor tão reduzido que não chega nem mesmo a viabilizar a sustentação de mercado dessa produção. Por fim, ainda que não seja a única causa, o fato da produção cultural mainstream depender simultaneamente de uma única empresa e do Estado, talvez ajude a explicar o caráter conformista e pouco crítico da grande maioria do seu conteúdo.

* Gustavo Gindre é membro eleito do Comitê Gestor da Internet do Brasil e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Liberdade de Expressão: o relatório da Article 19 e a grande mídia

A Article 19 é uma organização de direitos humanos fundada na Inglaterra em 1987 que atua em vários países na promoção e proteção do direito à liberdade de expressão. O escritório brasileiro da ONG foi inaugurado em março deste ano. Seu nome é tirado do Artigo XIX da Declaração Universal de Direitos Humanos que – nunca é demais lembrar – reza: "Qualquer um tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui liberdade de sustentar opiniões sem interferência e procurar, receber e compartilhar informações e idéias por qualquer meio e independente de fronteiras."

Recentemente foi divulgado Relatório de levantamento feito no Brasil pela Diretora Executiva da Article 19 e a coordenadora do escritório no país com o objetivo de "analisar o atual estado da liberdade de expressão, inclusive da liberdade de informação" [acesse o relatório clicando aqui].

No Relatório foram identificados os seis "maiores desafios à liberdade de expressão no Brasil", a saber:

1. A ausência de um marco legal adequado, com leis que datam de um período não democrático e normas que se encontram técnica e tecnologicamente ultrapassadas;

2. Ameaças ao pluralismo e à diversidade na mídia, causadas pela ausência de políticas regulatórias que apóiem os radio-difusores independentes, especialmente os não-comerciais e comunitários, e por um elevado grau de concentração da propriedade dos meios de comunicação social;

3. Radiodifusão comunitária sob pressão, com sua operação limitada por procedimentos de licenciamento que são lentos, ineficazes e punitivos;

4. Uso abusivo de indenizações por dano moral contra jornalistas e veículos de comunicação social com base em alegadas práticas difamatórias, inclusive com a utilização de decisões liminares que podem caracterizar censura prévia;

5. Um ambiente profissional em que a violência contra jornalistas ainda é um problema, mas um problema que talvez se encontre sub-dimensionado; e,

6. Um direito de acesso à informação protegido pela Constituição, mas cuja implementação pode ser comprometida pela ausência de regulamentação e pela existência de disposições legais em vigor que violam tal direito.

O Relatório inclui também um conjunto de recomendações, entre elas:

(1) a adoção de um marco legal adequado,

(2) a criação de um sistema público de radiodifusão,

(3) maior apoio à radiodifusão comunitária,

(4) investigação de casos de violência contra jornalistas,

(5) uma maior articulação entre os diferentes mecanismos de monitoramento de violações contra a liberdade de imprensa e

(6) a adoção urgente de um regime de acesso à informação pública.

O Relatório da Article 19 deve, certamente, ser lido e estudado na sua íntegra. Muitas vezes, um observador externo consegue identificar questões que escapam ao horizonte daqueles que estão diariamente imersos nas circunstâncias e nas condições onde ocorrem os problemas. Este fato torna análises e avaliações como a da Article 19 ainda mais importantes. E é exatamente por essa razão que retomo o tema do Relatório.

Destaque seletivo

A grande mídia brasileira deu destaque seletivo apenas ao importante item 4 do Relatório da Article 19, ignorando quase que completamente os outros cinco itens do levantamento.

Não seria jornalisticamente correto divulgar todos os itens constantes do Relatório? Não valeria a pena, por exemplo, ver o que o Relatório tem a dizer (item 2) sobre as "ameaças ao pluralismo e a diversidade na mídia"?

Primeiro, o Relatório lembra que a Corte Inter-Americana de Direitos Humanos considera que a liberdade de expressão exige que "os veículos de comunicação social estejam potencialmente abertos a todos sem discriminação ou, mais precisamente, que não existam indivíduos ou grupos que estejam excluídos do acesso a tal mídia". Em seguida afirma que "esta posição tem sido reconhecida por órgãos e cortes regionais e internacionais que têm também se manifestado sobre os vários componentes do pluralismo e da diversidade, como a existência de três sistemas de radiodifusão (público, privado e comunitário), a necessidade de pluralismo de fontes ou a existência de órgãos reguladores absolutamente independentes".

Na seqüência, o relatório constata que "a atual situação brasileira está longe de satisfazer padrões internacionais nesta área. Os veículos de comunicação social estão concentrados nas mãos de poucos, em violação ao direito da população de receber informação sobre assuntos de interesse público de uma variedade de fontes" e atribui a situação a dois fatores principais:

(a) a ausência de políticas regulatórias que apóiem o desenvolvimento de veículos independentes, em especial de veículos não-comerciais e comunitárias; e

(b) um alto grau de concentração da propriedade dos veículos de comunicação social.

O relatório prossegue fazendo considerações positivas sobre o compromisso do governo federal de promover a criação de uma TV pública ainda em 2007 e lembra normas internacionais já existentes e necessárias para garantir a independência e a autonomia do sistema público.

Concentração ameaça diversidade

Com relação à mídia privada, o Relatório da Article 19 menciona a concentração da propriedade e destaca que grupos da sociedade civil brasileira "consideram (a concentração) a principal ameaça à diversidade". E continua: "seis empresas de mídia controlam o mercado de TV no Brasil, um mercado que gira mais de 3 bilhões de dólares por ano. A Rede Globo detém aproximadamente metade deste mercado, num total de 1,59 bilhão de dólares. Estas seis principais empresas de mídia controlam, em conjunto com seus 138 grupos afiliados, um total de 668 veículos midiáticos (TVs, rádios e jornais) e 92% da audiência televisiva; a Globo, sozinha, detém 54% da audiência da TV (em um país em que 81% da população assiste à TV todos os dias, numa média de 3,5 horas por dia)". 

O Relatório cita que tanto a Corte Inter-Americana de Direitos Humanos como A Declaração Inter-Americana de Princípios sobre Liberdade de Expressão exigem medidas que visem limitar monopólios e oligopólios e cita o Princípio 12 que afirma:

"Os monopólios ou oligopólios na propriedade e no controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis sobre concorrência desleal, pois conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito à informação pelos cidadãos. Em nenhum caso estas leis devem aplicar-se exclusivamente aos meios de comunicação. As concessões de rádio e televisão devem observar critérios democráticos que garantam a igualdade de oportunidades de acesso para todos os indivíduos".

E, finalmente, o Relatório faz recomendações específicas das quais destaco duas:

1. Soluções para a questão da concentração da propriedade dos meios de comunicação social devem ser consideradas pelo governo, inclusive através:  da adoção e efetiva aplicação de regras claras e justas sobre concentração da propriedade que preservem e protejam o interesse público na radiodifusão;  e da utilização da diversidade como critério para concessão de novas licenças de rádio e TV, assim como, em casos significativamente sérios, para a renovação de licenças.

2. Os sistemas público, privado e comunitário devem ser mutuamente complementares e assegurar o livre fluxo de idéias e opiniões vindos de diferentes grupos e regiões, representativos da riqueza da diversidade observada na sociedade brasileira.Insistindo que o Relatório da Article 19 deve ser lido na sua íntegra, é interessante verificar que a grande mídia brasileira tenha praticamente ignorado cinco dos seis itens relatados no texto.

É legítimo que se conclua, portanto, que a grande mídia brasileira usa da omissão deliberada de informações para proteger seus interesses contrariando a liberdade de expressão e os direitos da cidadania de acesso à informação.

Essa constatação não está no Relatório da Article 19.

A inconstitucionalidade da Medida Provisória da TV Brasil

O governo federal encaminhou ao Congresso a Medida Provisória nº 398, de 10 de outubro de 2007, que trata dos princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo, autorizando-o a constituir a Empresa Brasil de Comunicação – EBC, promovendo a extinção da Radiobrás com a incorporação de seu respectivo patrimônio.

Um dos primeiros aspectos a ser analisado consiste na existência dos pressupostos constitucionais que autorizam a edição de uma medida provisória sobre a referida matéria. A Constituição exige a presença da relevância e da urgência do assunto de interesse público enquanto fatores ensejadores da expedição da medida provisória.

Sem dúvida alguma, a organização do serviço de radiodifusão "pública" é relevante, razão pela qual atende ao primeiro requisito constitucional. Contudo, não é possível afirmar que a matéria seja urgente a ponto de justificar a expedição do referido ato normativo. Pelo contrário, a organização do serviço de radiodifusão "público" pode perfeitamente aguardar sua disciplina normativa, mediante a discussão e aprovação na forma de projeto de lei.

Portanto, é inconstitucional a MP nº 398 por não preencher o requisito da urgência estabelecido no caput do art. 62 da Constituição do Brasil. Cuida destacar que o STF mudou seu entendimento tradicional e passou a verificar com mais rigor o atendimento dos requisitos para a expedição de medidas provisórias. Daí a plena possibilidade de decretação da inconstitucionalidade do aludido ato normativo por um vício formal.

Ferramentas inadequadas

Por outro lado, um outro aspecto a ser analisado está no próprio objeto da MP que consiste na denominada organização dos serviços de radiodifusão "pública".

Entendo que não se trata propriamente de serviços de radiodifusão "pública", mas, sim, de serviços de radiodifusão estatal. É que a Constituição adota o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal. Penso que o setor de radiodifusão estatal, cujos serviços decorrem tanto do dever de comunicação institucional, que incumbe ao Estado, quanto do direito à informação dos cidadãos brasileiros, não se confunde com o setor público não-estatal.

Com efeito, o setor público não-estatal, ou sistema público de televisão (que não se confunde com a idéia convencional de televisão pública), identifica-se com a esfera da sociedade civil, para a qual deve ser reservada parcela do uso do espectro eletromagnético para fins de oferecimento do serviço de televisão por radiodifusão.

Trata-se de um corolário do princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal, estabelecido no art. 223, caput, da CF, ou seja, um setor reservado pela Constituição à garantia da expressão, informação e comunicação social aos cidadãos brasileiros que são, freqüentemente, submetidos ao silêncio no debate público. Vale dizer, consiste em uma garantia de acesso da cidadania aos meios de radiodifusão. Todavia, o modelo legal de radiodifusão ainda em vigor (Lei no 4.117/62) não apresenta as ferramentas institucionais adequadas para a formatação de um sistema público de comunicação social no campo da radiodifusão.

Comunicação institucional

O sistema de radiodifusão público requer a plena participação da sociedade civil na organização da programação da TV Pública. Ou seja, uma emissora de televisão cujo controle pertença de direito e de fato à sociedade civil, e não ao governo, nem às emissoras privadas. A verdadeira TV pública é aquela independente do poder econômico (não visa ao lucro) e do poder político (não beneficia nem prejudica o governo, candidatos ou partidos políticos). É a modalidade de televisão voltada para a realização das legítimas expectativas sociais em torno da concretização de uma comunicação democrática. Conseqüentemente, as emissoras de televisão públicas têm uma significação muito especial (a fim de não serem confundidas com o entendimento tradicional atribuído à TV Pública que a identifica à figura do Estado), qual seja, não são nem entidades estatais, nem entidades privadas com o objetivo de lucro, mas são, isto sim, organizações da sociedade civil sem fins lucrativos.

Apesar dessas considerações, defendo a plena possibilidade de ser organizado um sistema de radiodifusão estatal, isto é, o Estado Federativo do Brasil (União, Estados e Municípios e os Poderes Executivos, Legislativo e Judiciário), no exercício de suas competências constitucionais, organizar e prestar serviços de televisão na modalidade radiodifusão.

A televisão estatal por radiodifusão constitui uma modalidade de serviço público privativo do Estado, sendo que uma de suas finalidades é assegurar a comunicação social de caráter institucional, nos termos do art. 37, §1º da CF, a respeito dos atos e (ou) fatos relacionados ao Poder Executivo, ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário.

TVs comunitárias

Ademais, o poder público tem deveres a cumprir no que tange à educação e à cultura. Em razão disso, a televisão estatal não se reduz à realização da comunicação institucional. Nesse sentido, é possível que um canal de televisão integrante do sistema estatal veicule tanto conteúdos relacionados à informação institucional quanto à educação e à cultura.

Por outro lado, a conceituação da televisão estatal deve estar vinculada à titularidade exclusiva e ao controle do Estado sobre a programação. Com efeito, o núcleo de sua definição corresponde às idéias de competência estatal quanto à organização e prestação do serviço de televisão por radiodifusão. Daí a incompatibilidade entre a livre iniciativa e o sistema estatal. É verdade que isso não impede a participação social no controle da gestão e da programação dos canais estatais de televisão.

Enfim, apóio a idéia de organização do sistema de radiodifusão estatal, desde que, mediante a forma jurídica correta, qual seja, o encaminhamento por intermédio de projeto de lei, e desde que ele seja totalmente desvinculado do sistema de radiodifusão público, desenvolvendo-se igualmente uma verdadeira TV Pública de qualidade, independente do governo, inclusive com a reserva no espaço eletromagnético para a existência de emissoras de televisão comunitárias no campo da radiodifusão.