“A situação da liberdade de expressão no Brasil nos últimos seis meses tem se complicado bastante”, lamentou o relator especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), Edison Lanza, que esteve em São Paulo nesta segunda-feira, 26, em debate promovido pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e a Artigo 19.
Para ele, o momento político no país é delicado, mas também é uma boa oportunidade para a reflexão sobre a função democrática que cumpre a liberdade de expressão. “A livre manifestação é um direito fundamental para consolidar e reafirmar o sistema democrático”, afirma.
Lanza, que é jornalista e advogado, destacou algumas questões que considera uma tendência no Brasil no decorrer dos últimos 10 anos, que teriam se constituído em “problemas estruturais”: a violência contra jornalistas e comunicadores; o uso de aparato policial para inibir o trabalho da imprensa; a interpretação que se dá sobre o que é liberdade de expressão e o fato dela não funcionar para proteger a livre manifestação; e a falta de diversidade nos meios de comunicação no país, o que prejudica o pluralismo e a multiplicidade de ideias.
O relator mostrou muita preocupação com questões que eram consideradas avanços, mas que agora apresentam uma pauta de retrocessos, na medida em que caracterizam um momento “regressivo em direitos humanos, o que se aplica à liberdade de expressão, como a tentativa de acabar com a Lei de Acesso à Informação”. O início deste “desmonte” teria sido a incorporação da Controladoria Geral da União (CGU) pelo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, pois, nessa estrutura, o órgão pode sofrer possíveis interferências políticas. Por isso, Lanza reforça a importância da autonomia e independência da CGU.
Segundo Lanza, o relatório de 2016 ainda está em construção, mas já é possível afirmar que houve uma grande derrota no que tange à liberdade de expressão no Brasil. Para ele, o enfraquecimento da comunicação pública com a Medida Provisória (MP) que alterou o caráter da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e destituiu o Conselho Curador trará efeitos muito negativos para o país. “Este é um setor que muito avançou nos últimos anos. Houve um fortalecimento dos canais públicos, com uma programação plural e diversa e uma visão diferente da dos canais comerciais. Mas que perde muito com essa MP e com a maior interferência do governo [atual]”, frisa.
Manifestações e violência policial
Edison Lanza destaca que nesta visita, a OEA está trabalhando a questão do protesto social no Brasil. “Estão sendo desrespeitados direitos básicos da pessoa no espaço público. Jornalistas que trabalham atendendo interesses públicos enfrentam dificuldades para cobrir manifestações”.
Ele critica o uso desproporcional da força para reprimir as manifestações, tanto contra os manifestantes quanto em relação aos profissionais que cobrem os protestos, “A violência contra jornalistas vai das agressões à apreensão de materiais de trabalho, além da militarização e da agressão e detenção de participantes. Nesse momento, mais do que nunca temos que retomar a defesa da liberdade de expressão”, afirma.
Camila Marques, da Artigo 19, reforça que um tema muito recorrente nas relatorias da OEA é o das violações à liberdade de expressão em protestos e manifestações sociais, e que isso vem se tornando cada vez mais evidente a partir de julho de 2013 quando houve muita visibilidade aos protestos. Ela critica a ação do Estado, que violenta ainda mais os direitos dos cidadãos. “Ao invés do Estado parar e repensar suas ações e suas práticas, ele aprimorou e sofisticou tanto suas técnicas de repressão quanto seus argumentos jurídicos para impedir a manifestação de acontecer ou para criminalizar o manifestante. Hoje estão aplicando tipos penais bastante complexos, como a formação de organização criminosa”, afirma ela.
Marques destaca a falta de um protocolo para a ação dos militares durante abordagem de manifestantes na rua. “Desde 2013, a policia faz uso desproporcional da força contra os manifestantes. A gente nem sabe se existem protocolos, já que são documentos sigilosos. Questionamos em determinado momento sobre o que eles [policiais] seguiam para o uso dos armamentos ‘não letais’. Eles indicaram que seguiam a orientação dos fornecedores. Lemos um desses manuais, que dizia que o equipamento só poderia ser usado da cintura para baixo. Ou seja, eles não seguem nem os manuais, que não são documentos oficias.”
Para Marques, existe um vácuo normativo na regulamentação do uso da força. “Existe desde 2014 uma ação judicial tentando obrigar o estado de São Paulo a constituir um protocolo com base em normas internacionais e até mesmo em normativas gerais de uso da força que já existem no Brasil. Em 2015, um juiz decidiu que a polícia não pode agir de qualquer forma. Ele entendeu que os policiais tinham que ter algum amparo legal para seguir, e proferiu uma liminar positiva [à demanda]. Porém, o estado recorreu e ainda aguarda nova decisão”, explica.
Criminalização pelo Judiciário
Outra questão que Marques levanta é a pauta de retrocessos no Congresso Nacional, que tenta reinserir na Lei Antiterrorismo trechos que já foram suprimidos do projeto de lei, como a questão dos atos de terrorismo decorrentes de posições político-ideológicas e a exclusão da ressalva de que a lei não se aplica aos movimentos sociais, desde que estejam reivindicando direitos constitucionais. “A lei já é bastante problemática, e vale lembrar que o Judiciário, em sua maioria, é um Judiciário conservador, que pode fazer uma interpretação bastante criminalizadora desse projeto [texto legal]. Esse é um alerta para que a sociedade acompanhe [a tramitação do projeto], para que não haja ainda mais retrocessos”.
Um alerta à sociedade sobre as posturas criminalizadoras do Judiciário em relação aos movimentos sociais e às pessoas presentes em protestos também se encontra nas últimas decisões de juízes que responsabilizam profissionais da comunicação por acidentes ocorridos nas manifestações. “Decisões judiciais estão culpabilizando a vítima, inclusive jornalistas que cobrem manifestações e estão no exercício de suas profissões, como é os casos de Alex Silveira e Sergio Silva. Os dois cobriam manifestações e perderam a visão por conta de balas de borrachas disparadas pela polícia. Nos dois casos, a Justiça decidiu que eles não deveriam receber indenização do Estado e que eram responsáveis pelo acontecido”, lamenta.
Renata Miele, coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), aponta que as repressões policiais em protestos têm sido seletivas. “Nenhuma manifestação convocada por grupos de direita sofreu qualquer tipo de repressão policial. Todas as manifestações com pautas em defesa da democracia, saúde, educação foram reprimidas. Um exemplo claro foi a manifestação dos professores no Paraná.”
Ela afirma que a vedação à liberdade de expressão tem se ampliado e agora também se manifesta em outros espaços da sociedade, como nos ambientes universitário e escolar, e cita como exemplo o chamado projeto Escola sem Partido, que tenta confundir a sociedade sobre quais são efetivamente suas intenções. Miele pede ao relator especial da OEA que esta questão igualmente seja tratada no relatório. “Não podemos permitir retrocessos. A livre expressão do pensamento é a base para a produção do conhecimento e de formação de uma sociedade mais critica e mais politizada.”
Liberdade de expressão na internet
Edison Lanza citou o Marco Civil da Internet como muito importante para que o Brasil alcance um efetivo exercício de liberdade de expressão, na medida em que defende a neutralidade de rede, a não discriminação e a proteção da privacidade. “Uma lei que é exemplo para outros países, mas que está em risco por tentativas de alterações no Congresso”, aponta ele.
Sobre o assunto, Marques sustenta que estamos vivendo um período de “vigilantismo” virtual e lembra da ação policial que culminou com a prisão de 21 manifestantes, caracterizada pela atuação de um militar que estava infiltrado no grupo de pessoas que simplesmente organizava sua livre manifestação e que vigiava as redes sociais. “Temos que lutar até mesmo pelo direito ao protesto”, desabafa.
Para Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, o Marco Civil da Internet está passando por um momento crucial no Congresso Nacional. “Uma série de projetos de lei tenta mudar a lei já aprovada. Um deles libera o acesso aos dados das pessoas sem ordem judicial para qualquer autoridade policial. São projetos que violam a privacidade do usuário com a falsa ideia de que estão combatendo crimes cibernéticos”, pondera.
Repressão a jornalistas em protestos
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) está produzindo um relatório sobre os casos de violência policial sofridos por jornalistas brasileiros durante a cobertura de protestos nos últimos três anos. Órgão independente da Organização dos Estados Americanos (OEA), a CIDH enviou ao país dois representantes para colher relatos, evidências e dados que possam comprovar as recorrentes denúncias de violência, intimidação e cerceamento da liberdade de expressão nos diferentes protestos de rua que eclodiram no país desde 2013.
O relatório deve estar pronto no início de 2017, quando será apresentado ao Pleno da Comissão. Ela vai decidir se aprova o relatório ou não. Se aprovar, a CIDH pode encaminhar uma ação para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
De acordo com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), entre 2013 e 2016 foram registrados 208 casos de agressões, prisões indevidas, destruição de equipamentos e cerceamento do trabalho de profissionais de imprensa pelas forças policiais do país, em especial pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação