Orientações restritivas às mulheres limitam o uso das redes e da tecnologia, desencorajando a participação e o empoderamento feminino
Marina Pita*
Um grande amigo tem uma camisa com os dizeres: “código é poesia”. Acho lindo e sempre sorrio pensando que, sim, é mesmo, a depender do uso que se faz da programação – como mudar o mundo, por exemplo. Mas, convenhamos, antes de ser poesia, código é poder.
As habilidades tecnológicas – incluindo a capacidade de compreender e escrever as linguagens de programação – são cada vez mais relevantes à medida que a tecnologia da informação ganha crescente espaço como mediadora de todas as esferas da vida.
Preocupa, portanto, o resultado da pesquisa Parenting for a Digital Future do Departamento de Mídia e Comunicação da Escola de Economia e Ciência Política da Universidade de Londres que investigou como os pais lidam, gerenciam e educam seus filhos para o uso da internet. Foram consideradas duas formas de orientações dos pais, as restritivas e as mediadoras, e identificado que meninas têm mais chance de receber as orientações restritivas como educação para o uso da internet.
A mediação restritiva é composta por lista de proibições, banimento de algumas práticas e obrigação de supervisão. Já a mediação “habilitadora” inclui diálogo, estímulo ao uso de tecnologia ao mesmo tempo em que discute riscos, com algumas restrições, mas sempre considerando que, em geral, a web pode oferecer mais oportunidades que riscos.
A pesquisa é interessante porque nos ajuda a explicar porque muitas de nós mulheres ainda prefere distância da tecnologia e da web. No Brasil, de cerca de 520 mil pessoas que trabalham no setor de tecnologia da informação, apenas 20% são mulheres.
A culpabilização de meninas, adolescentes e mulheres pelo comportamento machista da sociedade também por meio da rede mundial de computadores precisa ser olhada com muita atenção e combatida se quisermos que mais mulheres se apropriem da poesia e do poder que as habilidades técnicas podem propiciar.
Os pais não educam as meninas para temerem as tecnologias e a Internet desejando sua exclusão do mundo digital ou que não tenham acesso às oportunidades que a web oferece. Trata-se de uma tentativa de protegê-las.
Tampouco há má intenção (assim imaginamos) em campanhas sobre privacidade direcionada a adolescentes. Por outro lado, não dá pra negar que, recorrentemente, estas campanhas colocam as meninas e mulheres em posição de responsáveis pela violência que sofrem, já que foram elas que escolheram a exposição na internet. Em ambas as perspectivas há uma enorme culpabilização da mulher.
A orientação para o uso das redes deveria ser em outro sentido, mostrando a elas que existe machismo no mundo, mesmo em pleno século XXI, e que elas precisam, sim, se proteger. Porém esta proteção não deve ser se ausentando das redes e das tecnologias e sim se apropriando delas.
Cenário de desigualdades
Infelizmente, hoje ainda sabemos pouco sobre a desigualdade de gênero no acesso à web e em termos de conhecimento tecnológico, principalmente porque há diversas interseccionalidades que precisam entrar na análise: renda, raça, local de moradia e etc.
Uma pesquisa da Women’s Right Foundation World Wide Web Foundation, de 2015, em áreas pobres urbanas do mundo em desenvolvimento, aponta que as mulheres têm 50% menos chance de se conectar à internet do que homens da mesma comunidade.
As mulheres têm, ainda, 30% a 50% menos chance de usar a Internet para empoderamento econômico e político; 25% menos chance de fazer uso da Internet para procurar emprego do que homens, 52% menos chance de compartilhar opinião controversa online do que homens.
E, um dos dados mais importantes, as mulheres têm 1,6 vezes mais chance de relatar falta de conhecimento como barreira para uso da internet do que os homens.
Ódio e violência nas redes
É preciso esclarecer que a violência de gênero cometida contra mulheres – hoje presente nas redes sociais – não nasceu com o advento da internet.
Se ainda convivemos com o machismo e com a violência é porque nossa sociedade não foi capaz de produzir equidade de gênero e respeito às mulheres na vida fora das redes também.
Então, o mesmo respeito que cobramos garantir no mundo “real” deve ser buscado no mundo virtual – se é que ainda faz sentido distinguir um do outro.
É claro que o medo de mulheres – e de seus familiares – sobre os riscos a que estão submetidas no mundo virtual não é desprovido de embasamento real. São inúmeros os casos já registrados no Brasil e no mundo de pornografia de vingança, por exemplo. O termo é usado quando um ex-marido ou namorado posta vídeos ou fotos íntimas com a intenção e punir a mulher pelo fim do relacionamento.
Além disso, mesmo quando estão exercendo atividades moralmente aceitáveis como escrever uma opinião ou crítica nas redes – e não compartilhando “nudes” de seus corpos – as mulheres são criticadas e expostas de forma diferenciada e terão mais chances de sofrer algum tipo de violência.
Uma pesquisa do jornal inglês The Guardian acerca dos comentários nos artigos que publica mostrou que dos 10 articulistas mais ofendidos, oito são mulheres.
Das oito, quatro são brancas, uma é judia, duas são homossexuais e uma é muçulmana. E, enquanto afastamos as mulheres do conhecimento sobre a internet e a tecnologia as amedrontando, cresce o registro de ataques de misocrackers (misóginos que se dedicam a ataques na web), que derrubam sites feministas e invadem contas de mulheres que ousam se posicionar publicamente.
Recentemente, em busca de coletivos hackers do Brasil, me deparei com um coletivo que dizia ser contra as práticas da Cryptorave – evento de 24hs sobre privacidade que o Intervozes ajuda a organizar e que conta com uma trilha apenas para discutir questões de gênero e empoderar mais mulheres no universo da segurança digital.
Ao tentar entender as diferenças, a resposta curta e grossa: “nós não acreditamos em gênero, nós somos hackers”. E aí ficou claro que é preciso disputar o imaginário do hacker – usualmente relacionado a homens que não conseguem/querem se relacionar com mulheres.
Não podemos permitir que se formem mais misocrackers do que hackers feministas. Acabar com a cultura do medo das mulheres à tecnologia é urgente.
Rotas a navegar
A Associação para o Progresso das Comunicações (APC), que tem feito um trabalho muito interessante (vale conhecer) no que diz respeito a gênero e tecnologia/web, listou algumas sugestões para acabarmos com os abusos: informar as mulheres sobre o que fazer em caso de abuso, ensinar as mulheres quais as acusações possíveis e criar serviços de proteção adequados.
É essencial que passemos a monitorar, criar evidências, documentar e analisar a violência contra as mulheres na web. Também é fundamental construir alternativas que permitam discutir e falar sobre obre a violência, o ódio, a perseguição a mulheres na web sem cair na culpabilização ou afastar as mulheres do universo tecnológico/digital. “Meu corpo, minhas regras” também precisa valer para o mundo virtual.
Além de denunciar o machismo e a violência nas redes sociais, é preciso seguir fomentando a construção de lideranças femininas, que sejam capazes de incidir sobre a legislação da rede e das aplicações, de atuar nos serviços de proteção às vítimas, de influenciar na forma como os negócios na internet funcionam.
Por fim, é preciso construir outras rotas de navegação para o empoderamento feminino nas redes. Um deles é justamente a apropriação tecnológica. As mulheres precisam entender e conhecer mais os códigos e as tecnologias que atuam por trás das plataformas digitais.
O uso da criptografia no envio de mensagens pessoais é apenas uma das infinitas possibilidades existentes.
Então, é urgente que ampliemos a formação em tecnologia para mulheres e introduzamos a formação em direitos humanos nos cursos de tecnologia do país.
*É jornalista e membro do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Publicado originalmente no blog do Intervozes na Carta Capital em 10 de março de 2017.