Como já havia sido denunciado por entidades da sociedade civil e defensores da democratização da comunicação, o governo de Michel Temer está disposto a desmontar a comunicação pública, a partir de mudanças na Empresa Brasil de Comunicação (EBC). É o que fica explicito com a publicação da Medida Provisória (MP) 744, hoje dia 02, no Diário Oficial da União (DOE).
A MP apresenta alterações que atacam a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e a participação da sociedade civil nas decisões da empresa, acabando com o Conselho Curador e com o mandato do diretor-presidente – que até hoje só podia sair por dois votos de desconfiança do Conselho Curador. Essa medida faz com que o diretor-presidente fique subordinado a nomeações e exonerações da Presidência da República.
E é o que acontece no primeiro dia de sua publicação. O DOE ainda traz a exoneração de Ricardo Mello da presidência da e nomeia novamente Laerte Rimoli, que chegou a ocupar o cargo por algumas semanas, até uma decisão do Supremo Tribunal Federal cassar sua nomeação, pois feria o estatuto da EBC – mudança só foi possível devido à publicação da MP.
O texto dá total poder ao Conselho de Administração, que passa a ser composto por seis indicados do governo e um dos empregados (até agora, eram quatro do governo e um dos funcionários). Acaba com a autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão.
Para Jonas Valente, coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do DF, a medida, que chega com o discurso de “atacar o partidarismo e o aparelhamento pelo governo”, retira os principais mecanismos que protegiam a empresa. “Mesmo com todos os defeitos e limites, essas eram justamente as ferramentas para evitar o aparelhamento. Essas medidas acabam com a participação social na empresa e atacam os instrumentos concretos que configuravam o seu caráter público”, afirma.
Em nota divulgada ainda ontem, o secretário de comunicação da Central Única dos Trabalhadores, Roni Barbosa, expressava preocupação com o destino da comunicação pública e alternativa. “No próximo período, vamos ver os golpistas avançando contra as mídias que divergem da narrativa hegemônica, imposta pela grande mídia. A intenção é acabar com as vozes discordantes. Outra preocupação é com o destino da EBC, que pode abolir seus espaços de participação popular e ser usada como porta-voz dos golpistas”, previu Barbosa.
Opinião também compartilhada pela coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Renata Mielli, que, em entrevista ao portal Vermelho, afirmava que a mídia independente já estava sendo alvo de muitos ataques por parte do governo Temer, com a ofensiva colocada em prática com a suspensão de verbas publicitárias pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, prejudicando muitos veículos que contavam com os recursos acordados. Ela ainda lembra que o interesse de acabar com a EBC já foi explicitado em matéria publicada pela Folha de São Paulo em 2009, intitulada “Tela Fria”, que defendia o fechamento da EBC. “Os argumentos mudaram, mas os interesses continuam os mesmos”.
Rita Freire, presidenta do Conselho Curador da EBC, lamentou a notícia em mensagem que divulgou nas redes sociais. “A democracia brasileira acaba de sofrer mais um golpe com a publicação da Medida Provisória que acaba com o caráter público da nossa Empresa Brasil de Comunicação, ao derrubar seus instrumentos de autonomia: o Conselho Curador, que assegura a participação da sociedade na sua gestão, e o mandato do diretor-presidente, o mesmo que foi assegurado pela liminar do ministro do Supremo, Dias Tóffoli. A resistência aos desmandos não começa agora. Está nas ruas, sob repressão e violência do Estado, mas com a coragem necessária para defender o País das sombras trazidas pelos golpistas”.
A EBC já vinha passando por restruturações e mudanças por conta de cortes no orçamento e principalmente após o governo federal represar e contingenciar recursos que já haviam sido previstos e que estão em torno de R$ 700 milhões. Além deste valor, a empresa aguarda uma definição sobre a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, criada em 2008, que determina que 75% do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel) seja destinado à EBC. Porém, a verba está bloqueada desde 2009 devido a uma ação impetrada na Justiça pelas empresas de telefonia.
Empresa Brasil de Comunicação
A EBC é uma empresa pública criada em 2007 para fortalecer o sistema público de comunicação, previsto na Constituição Federal em complementaridade aos sistemas privado e estatal. É gestora da TV Brasil, Agência Brasil, Radioagência Nacional, das rádios Nacional AM do Rio, Nacional AM e FM de Brasília, Nacional OC da Amazônia e Nacional AM e FM do Alto Solimões, bem como das rádios AM e FM MEC do Rio de Janeiro. É também responsável pela Voz do Brasil e pelo canal de TV NBR, que veicula os atos do governo federal.
A empresa divulga conteúdos jornalísticos, educativos, culturais, esportivos e de entretenimento, tendo como objetivo expressar a diversidade e pluralidade brasileira. A sua estrutura prevista no decreto de criação contava com: Assembleia Geral; órgãos da administração, que são o Conselho de Administração e a Diretoria Executiva; e órgãos de fiscalização, que são o Conselho Curador e o Conselho Fiscal, mais Auditoria Interna.
Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação
Em 2016, as gerações nascidas nas décadas de 1990 e 2000 defrontaram-se, talvez pela primeira vez de forma mais aberta, com a ação incisiva e determinada dos grandes conglomerados midiáticos, no sentido de moldarem, à sua imagem e semelhança, o sistema político do país.
Texto: Helena Martins | Colaboraram: Iara Moura, Mônica Mourão e Elizângela Araújo
O afastamento da presidenta Dilma Rousseff, por meio de um golpe que envolveu decididamente o Legislativo, o Judiciário e os meios de comunicação, trouxe à tona e exigiu que fosse incluída na agenda de debates da sociedade a problemática do papel da mídia para a construção – ou o desmonte – da democracia. Na memória de um país que não enfrentou abertamente a história da ditadura civil-militar (1964-1985), restavam quase apagados casos de como o escândalo Proconsult, uma tentativa de fraude, encobertada pela Rede Globo, que objetivava impossibilitar a vitória de Leonel Brizola, em 1982, ao governo do Rio de Janeiro. A apresentação pela emissora do maior comício das Diretas Já, em São Paulo, em 1984, como uma festa em comemoração ao aniversário da capital paulista, ou a determinante edição debate televisivo entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Melo, candidatos à Presidência da República em 1989, às vésperas da eleição, pareciam fatos datados e cuja repetição seria improvável no tempo presente, dada a possibilidade de circulação de narrativas diferentes daquelas apresentadas pelos oligopólios.
Muito embora a criminalização, o silenciamento e a distorção de fatos envolvendo movimentos sociais e outros grupos progressistas sejam uma constante na história do sistema de comunicação brasileiro, a sociedade acostumou-se a ver uma mídia complacente com o poder central e seu projeto, ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990. No campo acadêmico, vimos o deslocamento do olhar sobre o poder dos conglomerados para as práticas de resistência e reelaboração de significados pelos receptores, bem como a difusão de entusiasmados estudos que decretaram o fim da comunicação massiva com o advento da internet.
No início dos anos 2000, após a eleição de Lula, apesar da ausência de enfrentamento do poder midiático por parte do governo, os oligopólios mudaram de postura. No contexto da Ação Penal 470, apelidada pela própria mídia como “mensalão”, em 2005, eles passaram ao que a professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Liziane Guazina, afirma ser uma postura adversária aos políticos e à política, conforme demonstrou na tese de doutorado “Jornalismo em Busca da Credibilidade: a cobertura adversária do Jornal Nacional no Escândalo do Mensalão”. Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Luís Felipe Miguel aponta que, a partir de então, houve “um processo de regressão da ação política da mídia brasileira”. Ele avalia que, do fim do período ditatorial até as eleições presidenciais de 2002, a grande imprensa parecia ter aprendido a conviver com o pluripartidarismo. Ela “parou de agir tão ostensivamente em favor de tal ou qual candidato e passou mais a exigir, de todos, compromissos básicos com certos interesses, o que se alinha às formas dominantes de intervenção política da mídia nas democracias liberais. Não é ausência de interferência, é uma interferência que se dá mais em termos de limitação do debate legítimo e menos como tentativa de induzir a opção eleitoral. Como o PT havia abandonado as partes de seu programa que podiam ser consideradas antissistêmicas, parecia possível uma acomodação dentro desse modelo”, explica.
A defesa aberta do golpe contra a democracia
No dia 13 de arço de 2016, o regresso tornou-se nítido. Se, em 1964, O Globo usou seu editorial do dia 2 de abril para proclamar que a nação vivia “dias gloriosos”, porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a
democracia, a lei e a ordem”, e saudou o golpe como um movimento não partidário, do qual participaram “todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais”, em 2016, foi a vez do Estado de S. Paulo usar o principal espaço de opinião do jornal para inflamar as milhares de pessoas que saíram às ruas, naquele dia de domingo, para protestar contra a presidenta Dilma Rousseff.
Após afirmar que “a maioria dos brasileiros, conforme atestam há tempos as pesquisas de opinião, exige que a petista Dilma Rousseff deixe a Presidência da República”, dispara: “a oportunidade de expressar concretamente essa demanda e, assim, impulsionar a máquina institucional responsável por destituí-la, conforme prevê a Constituição, será oferecida hoje, nas manifestações populares programadas Brasil afora. Chegou a hora de os brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente que não honra o cargo que ocupa e que hoje é o principal entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em alto e bom som: basta! Que as famílias indignadas com a crise moral representada por esse desgoverno não se deixem intimidar pelo rosnar da matilha de petistas e agregados, cujo único interesse na manutenção de Dilma na Presidência é preservar a boquinha à qual se habituaram desde que o PT chegou ao poder”[1].
Nos dois textos, há o apelo às famílias “indignadas com a crise moral”; o tom odioso com que trata o PT e a esquerda, em sentido amplo; a apresentação dos críticos à presidenta como não partidários e legítimos representantes da maioria dos brasileiros, além da adoção de uma postura convocatória por parte do jornal, justificada pela suposta defesa da democracia. Do mesmo modo, assim como no contexto do golpe de 1964, essa postura abertamente golpista foi combinada com a construção cotidiana de percepções sobre a crise política.
Na avaliação de Luís Felipe Miguel, “a mídia foi crucial para produzir o clima de opinião favorável ao golpe. Produziu-se uma narrativa manipulada e unilateral, de criminalização do governo, do PT e da esquerda em geral. Além disso, a mídia tem colaborado num processo mais de longo prazo, de desconstrução do discurso dos direitos e produção de uma representação do mundo social focada na competição e sem espaço para a solidariedade, isto é, de esvaziamento dos pressupostos da narrativa da esquerda”.
Se a construção da hegemonia depende, como detalhou o filósofo italiano Antonio Gramsci, da combinação entre coerção, portanto uso da força, e consenso, era – e tem sido – fundamental produzir sentidos comuns sobre os fatos e, inclusive, acerca das possíveis saídas que deveriam ser adotadas. Isso foi feito através de enquadramentos favoráveis aos protestos em defesa do impeachment; exclusão do contraditório da cobertura jornalística dos principais veículos de comunicação; repetição incessante de argumentos e outros mecanismos de manipulação.
Desequilíbrio: a gente vê por aqui
Em março, mês decisivo para a definição dos rumos da crise política, diversas análises produzidas pelo Intervozes buscaram captar o posicionamento dos veículos vinculados
às grandes corporações, bem como a relação com as instituições que deveriam zelar pela democracia. Os textos mostram que, desde o início daquele mês, uma sucessão de episódios que revelaram a articulação íntima entre mídia e Judiciário foi, aos poucos, convencendo parte expressiva dos brasileiros a apoiar o impeachment de Dilma como uma solução final à crise política brasileira.
A edição especial do Jornal Nacional sobre a Operação Aletheia (fase da Lava Jato que culminou com a condução coercitiva do ex-presidente Lula) foi praticamente toda dedicada ao fato de, de relevância inegável. Os números, porém, mostram a ausência de equilíbrio. Nos primeiros quatro blocos do jornal do dia 4 de março, embora tenham sido veiculados 21 minutos de matérias sobre o tema, apenas 50 segundos foram ocupados com a posição da defesa. No segundo, novos 15 minutos de reportagens e apenas 20 segundos com a posição do ex-presidente e outros 20 segundos com fala de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula. A defesa dos empresários envolvidos no caso foi lida pelos apresentadores na bancada, totalizando pouco mais de um minuto e meio. Na matéria sobre o tríplex do Guarujá, foram sete segundos para citar a nota do Instituto Lula em 2 minutos e 50 segundos de reportagem.
Lula falou a primeira vez quando já haviam se passado 40 minutos de jornal. Dilma entrou na sequência, com fala de 1 minuto e 15 segundos. Rui Falcão, presidente do Partido dos Trabalhadores, teve direito a 16 segundos. Na matéria sobre as repercussões no Congresso, a oposição ocupou 1 minuto, ao passo que o PT, 30 segundos. No vídeo, o repórter divulgou, por 2 minutos, informações de como a direita pretendia paralisar o Parlamento até o impeachment sair.
Quando promotores de São Paulo pediram a prisão preventiva de Lula, no dia 10, o Jornal Nacional apresentou os fatos sem citar as críticas feitas por juristas, especialistas e inúmeros membros do Ministério Público à peça jurídica. No sábado 12, o principal telejornal do país destinou sete minutos para negar o pedido de direito de resposta do Instituto Lula em relação à cobertura daquele fato. A emissora se disse “surpreendida” por ser chamada a cumprir uma lei em vigor no Brasil – que tem o objetivo, exatamente, de garantir o princípio constitucional do equilíbrio jornalístico e o direito de não ser ofendido nos meios de comunicação. Em vez de atender o pedido, veiculou editorial defendendo-se e reiterando as acusações. Invertendo a lógica das coisas, a empresa utilizou-se do discurso de defesa da liberdade de imprensa para seguir sua atuação autoritária, avessa à pluralidade de pensamento no país.
No dia 13 de março, quando foi registrado o maior número de protestos favoráveis ao impeachment, a Globo-News cobriu, por mais de 12 horas, as manifestações. Ao longo do dia, repórteres e comentaristas se revezaram para enaltecer os protestos, repetir à exaustão, a cada cidade noticiada, os motivos que já estavam claros para os telespectadores, e jogar sobre os atos um peso decisivo sobre o processo de mudanças no comando do governo federal. Duas frases sintetizam a narrativa hegemônica: “um desfecho com a Dilma não agrega… O Brasil está perdendo o bonde da história”, afirmou a jornalista Cristiana Lôbo. Já Renata Lo Prete asseverou: “podemos chegar ao final do dia sem a ideia de que o país está dividido”.
Na Globo, o tradicional filme das tardes de domingo foi suspenso para dar espaço à cobertura ao vivo do que se passava na Avenida Paulista, em São Paulo. “Agora há pouco a gente presenciou o momento mais emocionante das manifestações. A FIESP jogou balões verdes e amarelos contra o número de impostos que os brasileiros pagam. Foi um movimento muito forte, as pessoas aplaudiram, foi uma emoção aqui”, declarou um repórter. Outra jornalista não conteve o entusiasmo e arrematou: “está linda a festa”.
O mesmo enquadramento foi repetido no programa nobre do domingo, o Fantástico. Em trinta e cinco minutos de programa, coube ao PT apenas 45 segundos de fala; à secretaria de Comunicação da Presidência da República, 30 segundos; e, aos protestos pró-governo, que também haviam sido realizados, menos de 2,5 minutos. A reportagem de abertura do programa, que teve 17 minutos de giro nacional e internacional sobre os atos, não teve qualquer contraponto.
O bloco sobre as manifestações foi encerrado com mais de 6 minutos sobre novas táticas e descobertas da operação Lava Jato, selando um domingo nada plural – e triste – para o jornalismo brasileiro. Nos dias seguintes, vazamento de conversas envolvendo Lula e, inclusive, a presidenta da República, que bem poderiam ser compreendidas como ataques à Segurança Nacional, ganharam destaque. Os apresentadores do JN, William Bonner e Renata Vasconcelos, chegaram a protagonizar uma vergonhosa leitura teatral das conversas – grampos ilegais que tiveram o sigilo derrubado pelo juiz Sérgio Moro. Buscando ocultar a parcialidade, o jornal apresentou respostas de Dilma, bem como protestos contrários ao afastamento – além, claro, daqueles favoráveis que se multiplicaram enquanto o JN ainda estava no ar.
Postura diversa foi adotada na cobertura dos atos em defesa da democracia, com destaque para aqueles realizados no dia 18 de março. Repetidos à exaustão, os números inferiores destes protestos em relação aos marcados pelo verde e amarelo passado foram também um elemento central para deslegitimá-los. Reiterando o argumento, o Jornal Nacional apresentou, no dia seguinte, uma reportagem somente sobre o comparativo das presenças. Outras duas diferenças foram notórias: a menor intensidade da cobertura e a presença do contraditório. A frase de Eliane Catanhede dispensa grandes explicações:
“a manifestação de hoje mostra que quem está indo pra rua é a militância. Não é o conjunto do povo brasileiro”, disse a comentarista. Assim, a Globo buscou levar o telespectador a não se enxergar naquelas pessoas “de vermelho” e “petistas”, como tantas vezes foram tachadas, numa ocultação de toda a diversidade de posicionamentos políticos de pessoas e grupos que denunciaram o golpe.
Capas do O Globo não deixam dúvidas acerca dessa estratégia. “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula e a favor de Moro”, estampou o periódico no dia 13 de março. “Aliados de Dilma e Lula fazem manifestação em todos os estados”, resumiu no dia 18.
Os casos deixaram nítida a midiatização da política e das ações do próprio Judiciário, bem como as estratégias de manipulação adotadas pela Globo, no que foi seguida por boa parte da imprensa brasileira. A seletividade das acusações, especialmente das denúncias de corrupção; a confirmação da relevância de determinados fatos e posicionamentos, aos quais foi atribuído caráter nacional; a utilização de números e imagens que conferiam legitimidade à argumentação e a fixação de argumentos por meio da repetição e da eliminação do contraditório foram os elementos da estratégia. Para não correr riscos, a Globo, especialmente, valeu-se de falas editorializadas ao longo de toda a cobertura, ao passo que a emissora praticamente dispensou a presença de comentaristas externos. A opinião pública era, afinal, a opinião dos próprios jornalistas do grupo.
Diante desse quadro e garantido o enraizamento social de tal posicionamento, não foi preciso abusar da inteligência dos analistas de mídia durante a cobertura da aprovação do afastamento, acompanhada, ao vivo, em todo o Brasil. Registros dos atos e de declarações de deputados foram abundantes. Não se viu, contudo, apuração, investigação, contextualização e problematização do processo em curso. Os argumentos que embasam o pedido de impeachment não foram apresentados, muito menos os de sua defesa. Nenhum convidado externo – nem mesmo um “especialista” alinhado ao posicionamento da Globo – foi convidado a discutir a situação do país. A postura motivou diversas críticas por parte da imprensa internacional, que denunciou o papel de políticos como Eduardo Cunha em todo o processo, as fragilidades jurídicas e mesmo os riscos à democracia. A crítica também foi direcionada aos conglomerados midiáticos. A tentativa de imprimir outras leituras à crise política e de denunciar as artimanhas que levariam ao impeachment coube aos veículos alternativos e também às emissoras públicas, em especial à TV Brasil. Também, por isso, apontam jornalistas da casa, a empresa sofreu forte retaliação logo que Temer assumiu.
Quando do episódio de demissão do diretor-presidente da EBC, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos, Edson Lanza, destacou que “o desenvolvimento de um sistema de meios de comunicação público em nível nacional, com garantias de independência em sua gestão e mecanismos de participação para a sociedade civil constitui um esforço positivo para a promoção do pluralismo de vozes nos meios de comunicação do Brasil”.
Os fundamentos da ataque da mídia à democracia
Pesquisador da relação entre mídia e democracia, o professor aposentado da UnB, Venício Lima, critica a postura adotada pela grande mídia no contexto da atual crise política. Para ele, ela expressa “continuidades históricas no comportamento da mídia que são fundamentalmente antidemocráticas e que são construtoras de uma cultura política que acaba sendo a cultura política dominante, independente de, por exemplo, uma nova geração que não necessariamente se utiliza de uma velha mídia”.
A partir da leitura de diversos estudos sobre o tema, Lima aponta três elementos-chave desse comportamento dos meios de comunicação. O primeiro é a adoção de um conceito de opinião pública “publicista”. Exemplificando o termo a partir da ação da mídia contra o presidente João Goulart, ele explica que os meios “assumiam que o papel da mídia era um papel de formação da opinião pública, mas ao mesmo tempo era um papel de representação e expressão dessa opinião pública”, o que era feito também com a desqualificação de outras instituições, como partidos, sindicatos e o próprio Congresso.
Em sentido semelhante, outra continuidade que pode ser percebida é a construção de um discurso adversário em relação à democracia, que é expresso na crítica permanente à política e aos políticos. Um olhar sobre as consequências dessa argumentação, para o professor, pode ajudar a explicar a eleição de candidatos que se apresentam como “apolíticos” nas eleições deste ano.
O perfil conservador desses políticos pode estar associado ao terceiro elemento destacado por Lima: o fato de a grande mídia ter adotado o discurso da vulgata neoliberal e, obviamente, refratário à esquerda. “Se você analisar o conjunto de palavras que fazem parte de um léxico neoliberal que vão sendo introduzidas no cotidiano das
pessoas, e como a mídia passou a criar uma linguagem pública usando esse léxico, é impressionante. E, no contexto dessa vulgata neoliberal, há também uma linguagem que favorece a intolerância e o ódio”, opina.
A cobertura oficialesca das medidas de Temer
O programa neoliberal adotado sem mediações por Michel Temer encontra na mídia um grande aliado. Medidas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que propõe o congelamento dos gastos públicos por vinte anos, ou a Reforma da Previdência têm sido apresentadas como ações imprescindíveis para que o país obtenha melhoras em seus índices econômicos. O discurso sobre a PEC, repetido à exaustão, buscava simplificar o problema e ocultar propostas concretas de saídas para a crise que não apenem os trabalhadores, como a auditoria da dívida pública e a taxação das grandes fortunas. No dia 30 de novembro, data da votação da Proposta no Senado, milhares de pessoas de todo o país foram a Brasília protestar contra a aprovação da medida que é considerada como um marco do fim do pacto constitucional firmado em 1988. O objetivo delas era chamar a atenção da sociedade e pressionar os parlamentares. Não obstante, a agenda midiática foi alterada devido ao acidente aéreo que vitimou 71 pessoas na Colômbia, a maior parte formada por integrantes do clube Chapecoense e profissionais da imprensa.
A tragédia ocupou todos os noticiários, de forma praticamente ininterrupta e sensacionalista. Enquanto os movimentos protestavam na Esplanada dos Ministérios, às casas de milhares de pessoas não chegavam informações sobre o que ocorria em Brasília. O silêncio fora rompido apenas quando o conflito já estava instaurado no local. Então, era útil à imprensa defensora da PEC apontar os atos de “vandalismo” – sem criticar, claro, a violência policial. Na madrugada, a Câmara dos Deputados também aproveitou o envolvimento dos brasileiros com a tragédia para alterar e votar o pacote de medidas contra a corrupção. Nos dias que se seguiram, enquanto a PEC não ganhava destaque em jornais como o Bom Dia Brasil e o Jornal Nacional, duas das principais fontes de informação de milhares de pessoas, a cobertura sobre o Chapecoense dava lugar apenas à discussão sobre as medidas de combate à corrupção.
Nos dias seguintes, as políticas propostas pelo governo Temer continuaram a ter o apoio da grande mídia, mas o discurso em relação ao presidente ganhou inflexões. Após oanúncio do acordo firmado pela cúpula da Odebrecht com o Ministério Público Federal (MPF), reportagens críticas passaram a ser mais recorrentes. No dia 9 de dezembro, o Jornal Nacional revelou o acordo de Cláudio Melo Filho, ex-diretor da empreiteira. Na abertura, citou o nome de Temer após destacar os de vários políticos da cúpula do governo. Na sequência, foi feito o anúncio de denúncia contra o ex-presidente Lula e seu filho e, em seguida, da redução da inflação – “a menor do mês de novembro em 18 anos”. A primeira notícia do jornal foi exatamente sobre a pauta positiva do dia: a redução da inflação. A segunda tratou da prisão do prefeito de Embu das Artes, na Grande São Paulo. A terceira, da identificação de suspeitos de matar um turista italiano, no Rio de Janeiro. A quarta, do anúncio do novo técnico da Chapecoense. Uma matéria sobre a situação dos sobreviventes do acidente foi apresentada na sequência.
Do acidente, o JN passou a um tema internacional, o relatório do Unicef sobre crianças que vivem em áreas de conflito ou são afetadas por desastres naturais. No segundo bloco, ganhou espaço a reforma da previdência, tema de duas reportagens seguidas. Até mesmo a previsão do tempo já havia sido anunciada quando, aos 25 minutos e 30 segundos, foi ao ar a matéria sobre a delação.
O destaque dado foi à denúncia contra Geraldo Alckmin. Embora o nome de Temer tenha sido pronunciado nas chamadas do jornal, inclusive na escalada, o caso envolvendo o presidente só foi detalhado aos 43 minutos e 10 segundos, por meio de link com um jornalista posicionado em Brasília. Isso é, não precisou de edição ou algo mais complexo do ponto de vista técnico. O texto passou longe de ser personalista. O nome de Temer foi apresentado em meio a muitos outros. E mais. Foi um dos últimos a ser citado. A “atuação indireta” de Temer, que teria pedido doações pessoalmente em uma ocasião, foi explicitada. No dia 10, o depoimento dele veio à tona. Na lista de 51 políticos, o próprio Temer – citado 43 vezes na delação premiada. O tom adversário verificado em momentos anteriores, contudo, não foi reprisado.
Na longa chamada inicial do Jornal Nacional, o nome do presidente sequer foi citado. A matéria sobre o capítulo dedicado por Cláudio Melo Filho a Temer começou assim: “as delações da Lava Jato, que já tinham atingido em cheio o grupo político do PT, e que ainda podem atingir mais nas próximas revelações, voltam-se agora contra para o núcleo do PMDB e políticos do PSDB”. O nome de Temer é citado quando a reportagem alcança o primeiro minuto. Destaca trecho da delação em que o empresário diz que Temer atuava de “maneira muito mais indireta”. O tratamento da denúncia de pedido de R$ 10 milhões foi bastante sutil, sobretudo se compararmos com a postura adotada em delações que envolveram Dilma Rousseff. No Jornal das 10, na Globo News, o tradicionalmente ácido Merval Pereira teve que fazer uma ginástica argumentativa para criticar o vazamento das delações. Merval chegou a concordar com a postura da Procuradoria- Geral da República, que decidiu abrir investigação para apurar o vazamento do conteúdo de delações.
A fragilidade do governo abriu espaço para a disputa entre setores da burguesia, que se reflete também no comportamento da mídia. Os jornais impressos deram destaque ao envolvimento do atual presidente, inclusive O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, que deram exclusividade, na chamada principal, à referência a Temer. A disputa pela ocupação do poder dependerá do resultado da pressão popular diante das novas denúncias e do avanço das propostas conservadoras, como a PEC 55 e a reforma da previdência. Este capítulo da história está aberto. E a posição da mídia, mais uma vez, poderá ser definidora. Conforme visto, embora os canais privados resguardassem entre si algumas divergências editoriais e formais, a narrativa geral que culminou no estabelecimento do impeachment de Dilma e com a chegada ao poder de Temer seguiu um caminho coerente e uníssono em seu objetivo geral. O governo Temer encontra na grande mídia uma aliada no que diz respeito ao apoio às medidas neoliberais mais polêmicas.
A falta de pluralidade de opiniões remonta à própria estrutura que organiza os meios de comunicação no Brasil regidos por uma lógica estritamente comercial. Além disso, a posse dos canais de rádio e TV por grupos religiosos e/ou políticos, conforme veremos, também garante a ressonância de um discurso hegemônico condizente com os interesses das elites políticas nacionais.
Representantes de emissoras públicas de todo país estiveram reunidos em Brasília/DF, nesta semana, para discutir sobre a importância da manutenção da rede pública de televisão e da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), além de pedir à direção da EBC uma maior abertura para o diálogo.
Segundo Tibico Brasil, presidente da TV Ceará, há uma grande preocupação com a quebra de conquistas obtidas desde 2010, quando foi criada a Rede Nacional de Comunicação Pública (RNPC). “Estamos passando por um momento de dificuldades na interlocução e vemos que há uma grande preocupação com adequação da grade de horário, mas sem que esse tema seja debatido com o conjunto que compõe a rede”, afirma Tibico. Ele reforça que a maior preocupação de uma rede pública seria a “democratização da cultura”, realizada por meio da descentralização da produção e não em função do retorno de audiência. “Isso deve ser a consequência e não o objetivo”, frisa.
Quando foi criada, a rede nacional era formada pela TV Brasil, por sete emissoras universitárias e por 15 emissoras públicas estaduais, alcançando pelo menos 700 emissoras entre afiliadas e retransmissoras. Com um alcance inicial de 1.716 municípios, a rede ultrapassa hoje 3 mil municípios.
Para Israel do Vale, presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC), a prioridade no momento é conseguir a liberação dos recursos da Contribuição para Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), que estão bloqueados desde 2009 porque empresas de telecomunicações contestam a contribuição judicialmente.
Outra questão destacada por Israel é a movimentação na grade de programação da TV Brasil sem consulta às emissoras públicas. “Essas mudanças não podem ser feitas de forma abrupta. Têm que ser dialogadas com a rede. Essa movimentação sem diálogo desestabiliza as emissoras públicas. Cada emissora tem sua peculiaridade, e isso deve ser analisado com um tempo maior para não gerar um problema em série”, aponta ele.
O presidente da ABEPEC lembra ainda o congelamento anunciado pela direção da EBC aos contratos firmados com as emissoras. “Vamos tratar esta questão como algo provisório e iremos trabalhar para que esteja prevista verba no orçamento de 2017. Iremos buscar com os governadores e parlamentares o apoio necessário para que o executivo regulamente o decreto”, enfatiza.
Devido ao momento atual de incertezas e cortes orçamentários na Empresa Brasil de Comunicação, a rede de emissoras púbicas de televisão manifestou sua preocupação com o futuro da EBC por meio de nota divulgada nesta sexta-feira, dia 12 de agosto, e reafirmou a importância do fortalecimento da comunicação pública.
Leia o conteúdo da nota na íntegra:
POR UMA COMUNICAÇÃO PÚBLICA FORTE, COMPROMETIDA COM O CIDADÃO E A DEMOCRACIA
Reunidas em Brasília, as emissoras públicas estaduais de TV que compõem a Rede Nacional de Comunicação Pública manifestam seu total apoio à continuidade da operação da TV Brasil, fundamental para o cumprimento do princípio de complementariedade de sistemas de televisão definido pela Constituição Federal. A ameaça de suspensão das atividades da TV Brasil é gravíssima. Configuraria um duro ataque à liberdade de imprensa e de expressão e uma violação a um dos direitos humanos fundamentais reconhecidos pelas Nações Unidas.
A Empresa Brasil de Comunicação (EBC), nave-mãe da TV Brasil, da TV Brasil Internacional, da NBR, de oito emissoras de rádio e uma agência de notícias, foi inaugurada em 2007 com a missão de avançar na concretização dos artigos da Constituição relativos à comunicação – que seguem sem regulamentação na sua quase totalidade, 28 anos depois de promulgada a Carta Magna.
A hipótese de descontinuidade da TV Brasil prejudicaria diretamente toda estrutura de comunicação pública no país, na medida em que boa parte da programação das emissoras regionais provém dela. Na prática, a rede pública de televisão é o único meio de circulação de informação gratuita qualificada sobre fatos ocorridos para além do eixo Rio-São Paulo, onde se concentram as grandes redes de TV comerciais. É por meio da rede pública, a partir da TV Brasil, que a sociedade brasileira enxerga melhor a diversidade de temas, personagens, realidades e culturas regionais – o que demarca com clareza os diferentes papéis da TV pública e da TV comercial.
Da mesma forma, é importante acentuar a distinção entre uma TV pública como a TV Brasil e um canal estatal – caso da NBR, responsável pela comunicação governamental do Poder Executivo Federal. Essenciais para a defesa de uma democracia saudável, TV Brasil e NBR precisam demarcar com cada vez mais clareza seus diferentes papéis, que serão melhor cumpridos quanto maior for a separação de estruturas, equipes e conteúdos.
A lei que cria a TV Brasil oferece também um importante mecanismo de fomento à radiodifusão pública, por meio da única fonte de financiamento existente para o setor. A Contribuição para o Fomento à Radiodifusão Pública precisa ser regulamentada urgentemente, para que se possa escoar os R$ 2,7 bilhões, arrecadados desde 2009, entre as TVs e as rádios do campo público.
As emissoras abaixo assinadas reafirmam, portanto, a importância da preservação do caráter público da TV Brasil e do fortalecimento da Rede Nacional de Comunicação Pública, essenciais para a garantia dos direitos à informação, à comunicação e à liberdade de expressão. O que se constitui como instrumento indispensável para a afirmação de uma comunicação voltada aos interesses do cidadão, e que contribua para a consolidação da jovem democracia brasileira.
TV Aldeia (Acre)
TV Antares (Piauí)
TV Aperipê (Sergipe)
TV Ceará
TV Cultura do Amazonas
TV Pernambuco
TV UFB (Paraíba)
TV UFSC (Santa Catarina)
TV UFG (Goiás)
TV Universitária do Recife
TV Universitária (Rio Grande do Norte)
TVE Alagoas
TVE Bahia
TVE Tocantins
TVT (São Paulo)
Rede Minas
O papel da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) na comunicação pública do país foi tema de debate nesta segunda-feira, dia 8 de agosto, em seminário realizado pelo Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional. O evento contou com a participação de especialistas e também de integrantes do Conselho Curador da EBC.
O seminário “Missão da EBC na Comunicação Pública” pretendeu servir de facilitador do diálogo entre sociedade civil organizada, entidades em defesa da democratização da comunicação, funcionários da EBC e parlamentares, visando demonstrar a importância da manutenção da Empresa Brasil de Comunicação para o fortalecimento da democracia brasileira.
A vice-presidente do Conselho Curador da EBC, Evelin Maciel, lembrou o histórico da empresa, implementada pela Lei nº 11.652/2008 na perspectiva de regulamentar e estabelecer o sistema público de comunicação no Brasil, como previsto na Constituição Federal. Isso é importante porque garante o direito à comunicação por meio da complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação.
Evelin destacou a diversidade construída pela programação plural mantida pela emissora. “Uma das maiores conquistas da EBC é conseguir mostrar um Brasil que tem tão pouco espaço na grande mídia. A programação é planejada para pensar e representar a diversidade do nosso país”, frisou. Ela ressaltou a necessidade de autonomia financeira para garantir a autonomia editorial. “A Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública não está sendo liberada para a empresa. O dinheiro que já soma aproximadamente R$ 2 bilhões está sendo depositado judicialmente pelas empresas de telecomunicações, que contestam a contribuição”. A contribuição foi criada em 2008 e determina que 75% do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel) seja destinado à EBC. Porém, está bloqueada desde 2009 devido a uma ação impetrada na Justiça pelas empresas de telefonia.
Para a representante dos empregados no Conselho Curador, Akemi Nitahara, a EBC tem uma grande missão: contribuir para a construção da cidadania e para o fortalecimento de pautas de interesse público. “A sociedade não enxerga a comunicação como direito humano, e é essa concepção que temos que fazer refletir na sociedade”.
Nitahara também reforçou a necessidade de maior autonomia para a empresa e lembrou que entre os princípios da EBC estão a finalidade educativa e o incentivo à produção regional e independente. “A autonomia é o que mais desejamos para a EBC, para que possa servir aos interesses da sociedade. É preciso repensar esse modelo no qual a maioria do nosso Conselho de Administração é formado por membros do governo”, apontou. Ela ainda ressaltou a importância do mandato do presidente da empresa não coincidir com o do presidente da República, e destacou a necessidade de maior participação da sociedade e dos funcionários nas decisões da empresa.
Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), igualmente salientou a importância do fortalecimento das empresas públicas para a democracia no Brasil. “Temos o dever de seguir e regulamentar a comunicação pública, que compreende um segmento muito maior que as empresas públicas [inclui as rádios comunitárias, por exemplo]. A EBC tem um papel fundamental nesse setor.”
Bucci explanou sobre a experiência das emissoras públicas nos Estados Unidos e na Europa, onde não se organizam a partir do Estado. “Devemos lembrar que a EBC é uma empresa pública e não permitir que ela se transforme em uma empresa governamental. Nos países que costumamos usar como referência de democracia, as emissoras públicas de comunicação não sofrem interferência do Estado. São um modelo independente.”
O professor também argumentou sobre a importância de que os governos assegurem a diversidade e a cultura não só a partir de um modelo de mercado. “Certas expressões da cultura só existem até hoje por contarem com o apoio governamental. Por isso, as democracias criaram um balanço entre emissoras públicas e comerciais em vários países no mundo: para garantir essas expressões. A EBC ainda não é a solução, mas é uma trilha para a solução e devemos segui-la”. Ele ainda levantou algumas questões que precisam ser revistas para a efetiva independência da empresa: a mudança no quadro do Conselho Administrativo, que hoje possui em sua maioria pessoas do governo, e a vinculação à Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o que também limita a atuação da empresa. “Defender o sistema público é defender a Constituição e isso só pode ser feito no esboço da regulamentação da comunicação”, disse.
Durante o debate, Renata Mielli, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), afirmou que não há democracia sem comunicação democrática. Ela fez críticas ao modelo da empresa, mas defendeu a instituição por sua contribuição no caminho por uma comunicação democrática e cidadã. “Existem erros na concepção da comunicação pública. O Brasil não tem experiência de comunicação pública. Estamos construindo tudo do zero”, declarou. Ela também lembrou uma matéria publicada pela Folha de São Paulo em 2009 intitulada “Tela Fria”, que defendia o fechamento da EBC. “Os argumentos mudaram, mas os interesses continuam os mesmos”, afirmou.
O professor do Departamento de Comunicação Social na Universidade Federal de Pernambuco, José Mário Austregésilo, alegou que a existência da EBC é imprescindível para a sobrevivência das emissoras públicas de todo país. “A manutenção e o fortalecimento da EBC são essenciais para as emissoras públicas. Sua extinção nos deixaria sem uma cabeça de rede e sem o compartilhamento de conteúdo.”
Jonas Valente, coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas, frisou que a Constituição é clara no que se trata da complementaridade dos sistemas de comunicação comercial, estatal e público. “Discutir o fim da EBC é desprezar a Constituição”, reforçou.
O presidente da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado, senador Lasier Martins, foi convidado para o debate, mas não compareceu alegando agenda inadiável no Rio Grande do Sul. Vale lembrar que Lasier foi funcionário da RBS, filiada da Rede Globo naquele estado, e um dos maiores monopólios de comunicação no Brasil.
A reunião encaminhou como proposta aprovada a publicação de um resumo da reunião desta segunda-feira, que servirá de subsidio para futuros debates. O Conselho de Comunicação Social também referendou documento em que afirma que a defesa da comunicação pública e da EBC é uma de suas prioridades.
Conjuntura
O papel da empresa tornou-se foco de debates desde a posse do presidente interino, Michel Temer, que chegou a exonerar o jornalista Ricardo Melo do cargo de diretor-presidente e nomeou Laerte Rimoli no lugar. No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu a continuação, em caráter liminar, da gestão de Ricardo Melo, empossado dias antes do afastamento temporário de Dilma Rousseff da Presidência, em maio. O governo interino alegava direcionamento na cobertura jornalística e demitiu profissionais, comentaristas e âncoras da empresa considerados “pró-Dilma”.
Nessa disputa política pela direção da empresa, houve ameaças de extinção da EBC por medida provisória ou pelo menos da TV Brasil e do Conselho Curador. Nos bastidores, o que vem sendo comentado é a intenção do governo interino de transformar a EBC em mera divulgadora do conteúdo institucional do Poder Executivo. O que compromete o caráter público da EBC.
Os painelistas da reunião se manifestaram contrários à extinção da empresa pública por ela cumprir um preceito constitucional – o de complementaridade dos sistemas de comunicação – e por ser responsável por uma programação plural que representa a diversidade cultural e social existente no Brasil. Os painelistas cobraram, porém, o aprimoramento da empresa e que possíveis mudanças sejam feitas após amplo debate, “e não de maneira impositiva, por medida provisória”.
Conheça a EBC
A EBC é uma empresa pública criada em 2007 para fortalecer o sistema público de comunicação. É gestora da TV Brasil, Agência Brasil, Radioagência Nacional, das rádios Nacional AM do Rio, Nacional AM e FM de Brasília, Nacional OC da Amazônia e Nacional AM e FM do Alto Solimões, bem como as rádios AM e FM MEC do Rio de Janeiro. É também responsável pela Voz do Brasil e pelo canal de TV NBr, que veicula os atos do governo federal.
A empresa divulga conteúdos jornalísticos, educativos, culturais, esportivos e de entretenimento, tendo como objetivo expressar a diversidade e pluralidade brasileira. A sua estrutura prevista inclui: Assembleia Geral; órgãos da administração, que são o Conselho de Administração e a Diretoria Executiva; e órgãos de fiscalização, que são o Conselho Curador e o Conselho Fiscal, mais Auditoria Interna.
Governo interino de Temer intervém na Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e ameaça a continuidade do incipiente projeto de comunicação pública nacional
Um dos primeiros atos do presidente interino Michel Temer foi a exoneração do diretor-presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Com a demissão de Ricardo Melo e de mais de uma centena de funcionários, e a declaração de que deverá editar Medida Provisória para mudar o caráter da Empresa e extinguir o Conselho Curador, sem nenhum debate público, Temer dá sinais de intenção de retomar o caráter de propaganda estatal que veículos de comunicação pública já tiveram em outros momentos da história do Brasil, como o período do Estado Novo e da Ditadura Militar.
Buscando se proteger das implicações legais da demissão de Ricardo Melo, o governo interino de Michel Temer anunciou ainda que estava editando uma Medida Provisória para mudar o funcionamento da EBC. Segundo informações divulgadas da Folha de São Paulo no dia 18/05, a MP ainda está em elaboração e contém dentre suas alterações, a extinção do Conselho Curador, órgão cuja principal função é zelar pela autonomia da EBC, impedindo ingerência do governo e do mercado sobre a programação, o conteúdo e a gestão da comunicação pública.
“Houve um boato da exoneração do presidente que feria a lei e essa exoneração foi confirmada no Diário oficial após o Conselho Curador esclarecer esse governo de que a prerrogativa de demitir o presidente é deste órgão aqui. Isso foi feito numa fase em que o país está esperando que seja julgado o processo de impeachment da presidenta Dilma. Esse ato sugere para a sociedade a intenção de aparelhamento”, defendeu Rita Freire, presidenta do Conselho Curador, durante a reunião extraordinária do órgão que aprovou nota de pedido de esclarecimento ao presidente interino Michel Temer nesta terça-feira (31). A reunião foi interrompida quando um grupo de ativistas foi impedido de entrar no salão. Após serem autorizados, os ativistas entoaram: “Michel Temer não me representa. Nem Rimoli não me representa. Eu vou explicar. Não tá entendendo? Mexeu com a EBC, você vai sair perdendo”.
Intervenção durante reunião extraordinária do Conselho Curador da EBC, na tarde de 31/05/2016
Segundo Ricardo Melo, o clima na Empresa nos dias subsequentes à sua exoneração é de insegurança. “Eu não fui comunicado da exoneração. Eu fiquei sabendo que estava exonerado pelo Diário Oficial. São madrugadas e madrugadas que a maioria dos funcionários da nossa emissora ficam acompanhando a hora que o diário oficial vai sair pra saber o que vai acontecer no outro dia”, denunciou durante solenidade em homenagem a ele próprio realizada na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro no último dia 23 de maio. Segundo relato do jornalista, a Empresa está vivendo um processo truculento, “de fazer inveja aos momentos ditatoriais no Brasil”. “A EBC vai ser simplesmente um porta-voz das medidas que o governo golpista pretende tomar se ele continuar no poder”, afirmou.
Em entrevista à Agência Brasil, o presidente empossado, Laerte Rimoli, defendeu-se das críticas e prometeu “devolver a empresa para a sociedade brasileira”. Rimoli atuou como diretor de comunicação na Câmara dos Deputados, durante a gestão do presidente afastado da Casa, Eduardo Cunha. Ricardo Melo, porém, relata que a promessa de apaziguar os ânimos na empresa não é o que está acontecendo na prática. Melo denunciou a truculência de episódios como o arrombamento da sala da superintendente da regional sudeste I, Marília Baracat, e a tentativa de obstrução ao trabalho que ele mesmo sofreu, quando coordenava o fechamento do Repórter Brasil no sábado anterior (21), já que continuava na função de diretor de jornalismo. O cancelamento da transmissão do show de Mano Brown (dos Racionais MCs) na Virada Cultura de São Paulo como uma tentativa de silenciar manifestações contrárias ao governo Temer e a demissão do jornalista recém-contratado, Sidney Rezende, também foram episódios repudiados pelo ex-diretor.
Para representantes dos trabalhadores e trabalhadoras da EBC e movimentos sindicais, a ingerência que hoje se apresenta de maneira “truculenta e ilegal”, marcou a história da empresa em outros momentos e se refletiu em dificuldades internas. A diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, Cláudia Abreu, lembrou que a EBC não é um “projeto de governo”, mas é “resultado de uma cobrança da sociedade civil sobre a necessidade de um projeto de comunicação pública”.
A jornalista defende que é necessário ampliar o debate interno e a valorização profissional dos trabalhadores concursados e repudiou episódios de assédio moral a líderes sindicais e a condução de trabalhadores à Polícia Federal acusados de fazer piquete durante a greve de 2013. Apesar das críticas, Cláudia destaca a necessidade da união dos gestores, trabalhadores e sociedade civil “contra o golpe e em defesa do caráter público da empresa, que é uma conquista da sociedade e não de um governo”.
Enquanto fechávamos esse texto, estava em análise, no Supremo Tribunal Federal, um mandado de segurança impetrado por Ricardo Melo denunciando a ilegalidade de sua exoneração e da nomeação de Laerte Rimoli. Na Corte, a relatoria da ação ficou sob a responsabilidade do ministro Dias Toffoli, que determinou a notificação do presidente da República interino para que ele preste informações. Até o fechamento deste texto, Toffoli não havia se pronunciado sobre o caso . Após longo debate público que levou à criação da EBC, firmou-se a concepção de que o diretor-presidente deveria ter mandato-fixo, não coincidente com a Presidência da República, de 4 anos. O mandato de Melo seguiria até o ano de 2020 e a violação desta determinação é o principal argumento que levou à abertura do mandado de segurança em análise.
Futuro incerto
As notícias de mudanças abruptas na EBC têm sido recebidas com preocupação em várias regiões do país. É o caso da Amazônia, região comumente negligenciada na programação de canais privados de comunicação do país. A Rádio Nacional Alto Solimões, caçula das emissoras da EBC, funciona atualmente com sete funcionários que se revezam nas funções de produção, jornalismo, locução, atendimento aos ouvintes e questões administrativas. Em 2016, completa dez anos de existência. Como parte da comemoração, os funcionários da emissora e os ouvintes aguardam com ansiedade o presente prometido: reformas técnicas para propiciar a chegada do sinal às áreas rurais e ribeirinhas mais remotas e concurso público para ampliar a equipe técnica. As últimas intervenções do presidente interino Michel Temer transmitem para a pequena sucursal de Tabatinga um clima de insegurança quanto ao futuro.
Os cuidados para evitar o surto de H1N1 que o Brasil atravessa, as indicações de como identificar os sintomas da doença e os grupos prioritários na vacinação: esse era o destaque da manhã do dia 23/05/2016 no noticiário Bom Dia Amazônia, transmitido para a região da Amazônia legal e do Alto Solimões, extremo oeste do estado do Amazonas. O programa entra no ar, ao vivo, de segunda a sábado, às 05h, pela Rádio Nacional da Amazônia e às 03h na Rádio Nacional do Alto Solimões. Entremeando a entrevista com um médico especialista na doença, ídolos da música popular brasileira e do pop nacional animavam a manhã dos ouvintes. Diferente da erudita Rádio Mec – também do campo público e que se dedica à música clássica – ali, ídolos do tecnobrega e do reggaeton também figuravam na programação.
A emissora foi criada em 2006 e está localizada no limite fronteiriço do Brasil com a Colômbia e o Peru, no município de Tabatinga (AM). Atualmente, segundo a coordenadora Miss Lene Ferreira, a rádio alcança satisfatoriamente quatro municípios: Tabatinga, Benjamin, Atalaia do Norte e São Paulo de Olivença. A medição do alcance, para além dos aparatos técnicos, se dá de maneira muito simples: pela participação ativa dos ouvintes. “As pessoas ligam ou vêm até a rádio pra dar e receber notícias sobre a família, para saber de concursos públicos, anunciar festas, reuniões. É pela Rádio que elas são convocadas a comparecer no Fórum. É a ligação com a cidade, com o país”, explica.
O sinal é uma preocupação constante da rádio que nasceu com a pretensão de alcançar nove municípios (Tabatinga, Atalaia do Norte, Benjamim Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tocantins, Jutaí e Fonte Boa). Por meio das ondas de AM e FM, o resgate da cultura lusófona-brasileira também está entre os objetivos da emissora. Miss Lene conta que as rádios que alcançavam a maior parte da região eram colombianas ou peruanas. “As pessoas usam a rádio também do outro lado (da fronteira) para aprimorar ou aprender o português”, conta.
Segundo relatório da ouvidoria da EBC, a questão do sinal é o maior motivo das reclamações que o órgão recebeu no ano de 2015. Até nas grandes cidades é comum a TV e as rádios do sistema ficarem fora do ar. “Embora as queixas sejam provenientes de vários pontos do Brasil, as zonas norte e oeste da cidade do Rio de Janeiro se destacam. O sinal da área provém da estação retransmissora da Serra do Mendanha, cujos equipamentos não garantem boa qualidade do sinal e muitas vezes deixam a região sem sinal algum durante meses”, destaca o documento. No mesmo informe, a superintendência de suporte explica que a demora em resolver as questões técnicas se dá pela burocracia para aquisição de equipamentos e realização dos reparos.
Enquanto na tarde do dia 20./05 no Alto Solimões, ouvia-se a segunda edição do Repórter Amazônia, nas capitais São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro funcionários, ouvintes, telespectadores, leitores e apoiadores ocupavam as sedes das EBC em protesto contra a exoneração de Ricardo Melo. A nomeação que já havia sido antecipada na imprensa se confirmaria com a publicação no Diário Oficial da União na manhã daquele dia.
Para aqueles que protestavam na sexta-feira (20), a troca de presidentes fere a autonomia da EBC uma vez que passa por cima da lei de criação da empresa (11.652/2007) a qual estabelece, em seu artigo 19, que o mandato de quatro anos do presidente só pode ser interrompido por meio de dois dispositivos: a saída espontânea ou a existência de dois votos de desconfiança feitas pelo Conselho Curador da Empresa.
No ato organizado pela Frente em Defesa da Comunicação Pública em Brasília, a presidenta do Conselho Curador, Rita Freire, ressaltou: “estamos caminhando junto com os trabalhadores e a sociedade civil que está representada nesse conselho e está levantando sua voz hoje para que o direito à comunicação pública não seja maculado, violado, agredido por interesses circunstanciais de mudança na vida do país”.
A EBC foi criada em 2007 após a realização do I Fórum Nacional de TVs Públicas. Integrou as veteranas Rádio Nacional do Rio de Janeiro, Rádio Nacional Amazônia, Rádio Mec e outras emissoras geridas pela extinta Radiobrás e pela TVE do Rio de Janeiro numa só rede nacional de comunicação pública. As emissoras estaduais educativas também foram incorporadas ao Sistema Público de Comunicação. Concomitantemente à criação da empresa, entraram no ar também a TV Brasil e a Agência Brasil. O portal da EBC estreou em julho de 2012.
Diversidade em xeque
Não é a primeira vez que a EBC sofre com interferências que comprometem o caráter público, a atividade jornalística e a relação de confiança com o público. Ao longo da existência da empresa, questões de ingerência foram constantemente denunciadas pelos empregados e até pelos espectadores/as, ouvintes e leitores/as através da ouvidoria.
Durante o final de 2015 e o início de 2016, com o acirramento da conjuntura de crise política nacional, a ouvidoria recebeu denúncias de espectadores questionando uma suposta falta de equilíbrio nos conteúdos dos programas jornalísticos das rádios, da TV e nas coberturas da Agência Brasil. O relatório de março de 2016, por exemplo, período de manifestações a favor e contra o impeachment e de divulgação de grampos telefônicos pelo juiz Sérgio Moro, destaca a reclamação de uma telespectadora que se diz indignada com a edição do dia 10/03/2016 do Repórter Brasil:
“Considero grave o uso de uma emissora pública, bancada com recursos públicos, ser usada assim para atender os interesses político-partidários do governo do momento. Os apresentadores e os dois jornalistas convidados para comentar o pedido de prisão não disfarçaram suas preferências políticas e fizeram de tudo para tentar caracterizar as investigações recentes como injustas, indevidas”, diz um trecho da reclamação.
Em coluna publicada no portal da EBC, a ouvidora Joseti Marques endossa a crítica da leitora, mas chama atenção para o fato de que também são recorrentes reclamações que apontam os programas jornalísticos da EBC como iguais aos das emissoras comerciais em forma e conteúdo. São comuns também comentários que criticam o fato de as reportagens não defenderem o governo. A ouvidora explica que a confusão entre público, estatal e governamental ainda é um desafio a ser superado.
Para Priscilla Kerche, repórter da TV Brasil de São Paulo, a tentativa da empresa em copiar os modelos de gestão dos meios privados, hierarquizado e pouco democrático, faz confundir o papel do meio público e cria problemas para o exercício da atividade jornalística. “ A influência governista pesou em cargos decisórios assumidos por comissionados que, mais uma vez, se espelham na mídia tradicional. Muito por conta de uma cultura jornalística do país também. O desafio é produzir conteúdo qualificado e diferenciado numa estrutura que reproduz a lógica de empresas comerciais, mas que não tem estrutura pra fazer igual e nem deveria ter isso como objetivo”, defende.
Para o jornalista Albert Steinberger, que passou pelas redações da TV Câmara, TV Globo, BBC Brasil (sucursal da TV pública britânica para o Brasil), ZDF (TV pública alemã – Canal 2) e Deutsche Welle (canal alemão estatal/público voltado para o exterior), as interferências ao trabalho dos jornalistas estão presentes nos diversos tipos de meios em diferentes níveis:
“Seja uma linha editorial neoliberal, ou uma limitação para lidar com assuntos da família real britânica. Não dá para idealizar e acreditar que exista um meio com liberdade total para o jornalista. Todos os veículos têm suas limitações de acordo com a cultura da empresa, fonte de financiamento, chefia e outros fatores”, defende.
O jornalista destaca, porém, que a existência de uma variedade de vozes na grande imprensa, como acontece na Inglaterra e na Alemanha, onde é possível, por exemplo, investigar livremente as contas do governo ou as acusações de irregularidade em determinada empresa e “ver um fato sob diferentes olhares”, é positivo e necessário para a sociedade. Buscando garantir essa diversidade, a Constituição Federal estabelece em seu artigo 222 a complementaridade dos sistemas público, estatal e privado na exploração dos serviços de rádio e TV em território nacional.
Democracia fora do ar
Episódios anteriores de interferência dos governos e de grupos empresariais nas atividades das emissoras do campo público deixaram marcas profundas na história do Brasil. Em 30 de março de 1964, na madrugada que marcou a instalação da ditadura civil-militar, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro virou meio de transmissão de grupos que se opunham ao golpe que estava em vias de acontecer reunidos na Rede Pela Legalidade.
No primeiro dia do golpe, o diretor da Rádio Nacional foi informado pelo telefone da chegada de dois tanques de guerra que apontavam os canhões para os transmissores da Rádio Nacional, acompanhados por cerca de 100 soldados armados. Assim que se instalou, o presidente Castelo Branco demitiu 39 funcionários da Rádio Nacional sem qualquer processo. A emissora, criada em 1936 e estatizada pelo Estado Novo em 1940, tinha 800 empregados e produzia 20 horas de programação diária, liderando a audiência no país.
Documentos reunidos na pesquisa “O Serviço Nacional de Informações e a comunicação” (Peic/UFRJ) revelam que a espionagem, a censura e a demissão e perseguição de funcionários eram expedientes utilizados pelos governos militares como forma de conter as críticas ao regime feitas pelos movimentos democráticos. A partir da madrugada do dia 30 de março para o dia 1º de abril de 1964, os veículos públicos, privados, comunitários, educativos e alternativos eram alvos a serem neutralizados pela inteligência dos militares. A pesquisa mostra ainda que, nem mesmo com o fim da ditadura notou-se significativa mudança de percepção do ponto de vista do controle de conteúdo.
“A linguagem e os métodos utilizados para vigiar os meios de comunicação permaneceram similares mesmo após o fim da ditadura. O que evidencia o caráter do que historicamente entendemos por ‘transição suave’ e que, mesmo no contexto democrático, a vigília e o controle permaneceram”, relata Janaine Aires pesquisadora da UFRJ.
Documentos coletados nos arquivos do SNI sobre espionagem de veículos do campo público por governos militares
O uso dos meios públicos alemães durante a Segunda Guerra para a propaganda nazista se tornou episódio exemplar do imperativo de proteger o interesse público e garantir a diversidade de ideias nos meios de comunicação. Embora a independência financeira seja constantemente alvo de pressão dos meios privados, os canais públicos, tanto na Alemanha quanto na Inglaterra, se financiam por meio de uma taxa anual que os cidadãos dos dois países pagam. Atualmente a taxa anual de TV está em 215,76 euros por residência na Alemanha (por ano). No Reino Unido, o valor anual é de 145,50 libras.
Na Alemanha e em outros países da Europa – como Portugal e Espanha – onde o modelo de radiodifusão se desenvolveu primeiro como monopólio público e o uso privado só veio posteriormente, a comunicação pública percorreu um caminho próprio consolidando-se e servindo de modelo para os demais sistemas no mundo. Lá, a ZDF lidera a audiência com 12,6%, seguida pela ARD com 11,5%. A rede privada RTL aparece encostada em terceiro lugar com 10%.
Do mesmo modo, a BBC inglesa é líder de audiência com uma programação variada que mescla entretenimento e informação. Por conta disso, as emissoras também são alvo das mídias privadas. No Bild Zeitung na Alemanha e no The Sun são recorrentes os ataques. Aqui, durante a recente troca de presidentes da EBC, os jornais O Globo e O Estado de São Paulo publicaram editoriais questionando a rentabilidade e a relevância da EBC e acusando a empresa de ser instrumento de “propaganda lulopetista”. Ambos os jornais, de grandes grupos de mídia, acusam a EBC de representar um gasto estatal desnecessário e desproporcional.
A EBC custa à União cerca de R$ 750 milhões anuais. Os gastos com publicidade do Governo Federal, empregados na Rede Globo, por outro lado, somam 6,2 bilhões de reais nos 12 anos de governo petista, ou seja, uma média de 516 milhões ao ano, sem contar a verba empregada em suas afiliadas.
Programação infantil na contramão do consumismo
“Nasce hoje uma nova televisão para que os brasileiros tenham mais liberdade de escolha. Isso é pluralidade. Isso é democracia. A TV Brasil quer ser um espelho de nosso país, espera refletir a multidão de brasileiros de todas as raças, cores, credos, regiões e condições sociais que formam o coletivo chamado Brasil”.
O trecho da vinheta exibida durante a primeira transmissão da TV Brasil em 2 de dezembro de 2007 foi lido pela atriz Zezé Motta e resume o intento da emissora em ter uma programação diversa que refletisse a cultura nacional e o interesse público. A grade da TV Brasil foi formatada a partir de uma perspectiva generalista com programas informativos, jornalísticos e de entretenimento, além da programação infantil.
A programação voltada para este público é reconhecida em âmbito internacional antes mesmo da TV Brasil entrar no ar. Os casos de sucesso “Meu amigãoZão” e “TV Piá”, no qual crianças de diferentes regiões do Brasil aparecem compartilhando saberes, brincadeiras e suas culturas, demonstram que a TV Brasil busca se diferenciar das TVs comerciais nos desenhos, séries e revistas eletrônicas voltadas para os pequenos.
“Enquanto as emissoras comerciais visualizam a criança e o adolescente principalmente como consumidores, a TV Brasil olha as crianças sob a ótica da cidadania. Uma implicação imediata dessa diferença é a inexistência de publicidade nas 7 horas de programação infanto-juvenil exibidas cotidianamente”, explica Inês Vitorino, pesquisadora da Universidade Federal do Ceará, coordenadora do Grupo de Pesquisa da Relação Infância e Mídia (Grim). À convite do Conselho Curador da EBC, o grupo fez um monitoramento que analisou a programação infanto-juvenil da emissora levando em consideração critérios de diversidade regional, originalidade, incentivo à criatividade, a ausência de conteúdos danosos ao desenvolvimento do público infantil, entre outros.
A transmissão de campeonatos de futebol feminino e das séries B, C e D do futebol masculino também são destaques na programação que em 2016 apostou na transmissão de eventos culturais e shows como o Desfile das Campeãs durante o carnaval do Rio de Janeiro e a Virada Cultural de São Paulo.
Pensar a programação da emissora é uma das prerrogativas do Conselho Curador formado por 22 membros: 15 representantes da sociedade civil, indicados via consulta popular e aprovados pela presidência; quatro do Governo Federal; um da Câmara dos Deputados; um do Senado Federal; e um representante dos trabalhadores da EBC. Os representantes do público são escolhidos por meio de consulta pública. Se a intenção da Medida Provisória de Temer se confirmar, o órgão pode ser extinto e o acompanhamento da sociedade civil quanto
à diversidade, a isenção jornalística e o respeito aos direitos humanos, dentre outros princípios da comunicação pública, podem ficar fora do ar por um longo tempo.